terça-feira, 15 de maio de 2012

Última religião do ocidente tem futuro entre botocudos

As três grandes religiões contemporâneas, ditas abrâmicas, nasceram no deserto. O monoteísmo surge da areia, diz Michel Onfray. O nome do mais genial dos ficcionistas perdeu-se nos tempos. Foi aquele que criou este personagem universal, que até mesmo um mendigo analfabeto conhece: Deus. O judaísmo manteve-se mais ou menos uno e sempre fechado em si mesmo. O cristianismo optou pelo proselitismo e captação de fiéis e partiu-se em mil pedaços. O islamismo tem suas dissidências, mas mesmo assim é a religião que mais tem se expandido nos últimos séculos. Século passado, um movimento laico e messiânico assumiu todas as características das antigas religiões. Freud o pressentiu e escreveu - em 1927 - em O Futuro de uma Ilusão: “Se quisermos expulsar de nossa civilização européia a religião, não se poderá chegar a isso senão com a ajuda de um novo sistema, e este sistema, desde sua origem, adotará todas as características psicológicas da religião: santidade, rigidez, intolerância e a mesma proibição de pensar, como autodefesa”. Comentei a nova religião em meu ensaio Engenheiro de Almas, escrito em 1986 e publicado em 2.000, pela ebooksbrasil. Não foram muitos os escritores a intuir que não se estava precisamente ante uma revolução, mas ante uma nova religião. Entre estes, poucos foram tão precisos na denúncia do novo dogma como Nikos Kazantzakis. No relato de sua peregrinação à Rússia - Voyages - Russie, diz o cretense que pouco a pouco a luz se fazia em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplista. Como em todas as religiões, eles buscavam divulgar essas respostas, tentando torná-las compreensíveis para o povo. Kazantzakis reconhece então, na Rússia, a existência de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos e educava como bem entendia milhões de crianças. Este exército, diz o cretense, possui seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin. E seus apóstolos fanatizados que pregam as Boas Novas a todas as gentes. Possui também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, sua hierarquia, sua liturgia e mesmo a excomunhão. E sobretudo a fé, que lhe assegurava deter a verdade e trazia a resposta definitiva aos problemas da vida. Não há apenas um Livro - acrescentaríamos -, como também os livros apócrifos. Assim como a Igreja Romana censura os testemunhos gnósticos que não servem à sua ambição de poder, assim censurou-se até mesmo a obra de Marx na finada União Soviética. “Nós somos contemporâneos - diz Kazantzakis - deste grande momento em que nasce uma nova religião”. Albert Camus é outra voz solitária a denunciar o caráter eclesial da nova idéia. O proletariado - diz Camus tentando entender o marxismo - “por suas dores e suas lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação”. Sua percepção do caráter religioso do marxismo é continuamente retomada em seus ensaio mais ambicioso, L’Homme Revolté: “O movimento revolucionário, ao final do século XIX e ao começo do século XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário”. “A revolução russa permanece só, viva contra seu próprio sistema, ainda longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia se afasta ainda mais. A fé resta intacta, mas ela se curva sob uma enorme massa de problemas e de descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo diante de Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre”. A nova religião nascera e os intelectuais do Ocidente, os lúcidos entre os lúcidos, caíram como patinhos no engodo. Este é o grande enigma que cerca o fenômeno Stalin: como foi possível que espíritos abertos e generosos da época se tornassem cúmplices e devotos deste formidável assassino? Ou talvez não fossem tão lúcidos, nem tão abertos nem tão generosos, e sim pobres crianças em busca de um novo pai? Não será por acaso que a ladainha mais freqüente entoada a Stalin é a de Paisinho dos Povos. Nos anos 90, exaurida, a nova religião afunda. As três outras antigas religiões, que depositaram os prometidos castigos e recompensas no inexpugnável cofre do Além, persistem triunfantes. Afinal, o Além está sempre além. A nova fé prometeu o paraíso aquém. Marx colocou o paraíso duas ou três gerações logo adiante. Ora, você pode anunciar o paraíso até a geração de seus netos. Mas se o anunciado paraíso não ocorre, você não espera mais. O profeta era fajuto e a religião que pregava não chegou a durar um século. Religião morta, religião posta. Há uns bons dez anos, escrevi que quem viu muito bem o vazio de fé que assolaria o Ocidente com a morte do comunismo foi o cineasta italiano Nanni Moretti, em Palombella Rossa. O filme é de 89, significativamente o ano em que caiu o Muro de Berlim. A história tem como personagem principal um deputado comunista que, do dia para a noite, perdeu a memória. A cena final é emblemática: em uma auto-estrada, centenas de jovens correm para saudar o sol. Está inaugurada a nova religião, o culto da natureza. Em vez de anjos derramando taças sobre o planeta, que trazem fome, pestes, terremotos, maremotos, temos o aquecimento global e o efeito estufa. O que era Terra passa a chamar-se Gaia, um ser vivo com projetos próprios. O João de Patmos do novo apocalipse chama-se James Lovelock. O mínimo que prometia era o Saara invadindo a Europa e uma Berlim tão quente quanto Bagdá. Isso para as próximas três décadas. Em fins de 2007, Al Gore desembarcou em Sevilha para falar de seu movimento contra o câmbio climático. Em seu afã de chegar aos interlocutores, Gore, que é profundamente religioso, usa frases como: "A Noé foi dito que salvasse as espécies vivas e isto hoje continua sendo nossa obrigação”. A nova religião pretendia salvar a humanidade da entropia. Mês passado, o profeta se retratou. O que é insólito. Jamais vi profetas se retratando. Os profetas bíblicos, cautelosos, anunciavam o fim dos tempos para quando não mais estariam na terra. Lovelock precipitou-se e, como o planeta teimava em não aquecer-se, teve de voltar atrás. Mesmo assim, fez acólitos no mundo todo com a sua Hipótese Gaia. Mas, para bom crente, tanto faz como tanto fez que o profeta se desdiga. A religião está em pleno desenvolvimento e a bicicleta tem de continuar andando. Universidades, ONGs e instituições outras apostaram milhões de dólares em pesquisas que visavam não propriamente a estudar os fenômenos climáticos, mas a comprovar a tese do aquecimento global. Cientistas e pesquisadores comprometeram seus currículos e reputações. Agora é tarde para voltar atrás. Azar do Lovelock. Vai ver que está ficando caduco. Pois só velhotes caducos podem negar o aquecimento global. Está hoje acontecendo com os ecochatos o mesmo que aconteceu ontem com os velhos intelectuais bolcheviques. Produziram tantos ensaios e teses apostando na revolução do proletariado que hoje não podem mais negá-la. Seria algo como dizer: “tudo que escrevi era besteira e minha vida toda foi inútil”. O homem que desenvolveu a tese idiota, mais própria de histórias em quadrinhos, acaba de renegá-la. A imprensa, como se nem tivesse ouvido falar da retratação de Lovelock, continua batendo na tecla do aquecimento global. No Rio Grande do Sul, nestes dias, está sendo incensado como santo um maluco que assumiu a Hipótese Gaia, o José Lutzenberger. Os gaúchos, que parecem só ler Zero Hora, ainda desconhecem as notícias do mês passado da imprensa internacional. Nietzsche já nos alertava sobre o quanto fede o cadáver de um deus morto. É fácil construir religiões. Difícil é descontruí-las. Como aconteceu com o marxismo, a nova fé começará a morrer no mundo desenvolvido. Cá entre nós, botocudos, continuará a gozar de boa saúde pelas próximas décadas.Por: Janer Cristaldo

Um comentário:

Alfredo Benatto disse...

O gostoso de comentários como este é que nos traz o contraditório e com esse contraditório o desafio de buscarmos a síntese para a verdade de cada um.