quinta-feira, 24 de setembro de 2015

AUTOGENIA - RESUMO III

Este texto é a continuação do resumo anterior, onde foram apresentados de maneira resumida e objetiva os conceitos de Autogenia e os modos de identificação via linguagem e vizinhança. Neste resumo veremos a identificação de patamar via mecanicidade, a resolução do caso do profissional que se casou e se tornou pai e também que nem toda questão existencial é necessariamente autogênica.

Apenas para lembrar, seguindo o mesmo exemplo do resumo II, nosso guia como é o caso de uma pessoa que ao longo de sua vida teve como direcionamento existencial a Busca (Tópico 11). Apenas como ilustração este tópico é o determinante para ele, fazendo com que até mesmo o casamento tenha sido uma maneira de ascender profissionalmente. No entanto, após um ano de casado nasceu o primeiro filho e junto com ele veio a proposta de promoção e mudança de cidade. Até o momento, apenas o tópico determinante (Busca) dava as ordens, mas com o nascimento do filho, a Interseção de EPs (Tópico 28) se mostra importante a ponto de confrontar sua Busca. Fica então evidente o choque entre os tópicos 11 e 28. No resumo anterior vimos como a pessoa se orientará para solucionar a questão de acordo com o patamar autogênico que vive. Neste resumo mostraremos como se dá o desenvolvimento de acordo com o patamar por mecanicidade.

03 - Identificação de patamar via mecanicidade

A identificação do patamar autogênico por mecanicidade é bastante simples, basta perceber a maneira como a pessoa conduz sua problemática na direção do Desfecho. Há na estrutura de pensamento tópicos específicos que são pela constituição mecânicos, um dos quais a Razão (Tópico 10). Sendo um tanto simplista pode-se dizer que uma pessoa será tanto mais mecânica quanto mais racional for na resolução do problema em questão. Outro tópico que indica mecanicidade no desenrolar das situações é Comportamento & Função (Tópico 13). Assim como no caso da razão para comportamento e função também, quanto mais baseada neste tópico a solução for, mas mecânica será. Existem ainda outros tópicos com relativa mecanicidade, mas estes dois já servem como exemplo.
No entanto é possível que uma pessoa não seja mecânica como tópico especificamente, mas como estrutura. Algumas estruturas, quando você observa uma parte dela, parece pouco mecânica, parece intuitiva, mas isso é apenas ilusão, ao olhar a estrutura como um todo a mecanicidade fica evidente. Pela palavra intuitiva é possível perceber que falo em sites e aplicativos, algumas estruturas são assim. Intuitivas nas partes, mas mecânicas no todo. É justamente por isso que dizer que uma estrutura é mecânica somente pelo uso da razão é bobagem, pois a razão é um dos indicadores da estrutura e não a estrutura como um todo.

Um parágrafo contradiz o outro? Não. A condução da solução de acordo com princípios racionais ou de comportamento e função não deixou de ser mecânica. O que muda do primeiro para o segundo parágrafo é a consideração da estrutura como um todo, se a solução vier de tópicos específicos pode dizer de sua mecanicidade pela base de onde ela vem. Agora, se a solução vier da estrutura, se os dados que encaminham a solução vierem do todo que é a Estrutura de Pensamento, é necessário considerar a mecanicidade da estrutura. Como o que nos interessa é a consideração a partir da Estrutura e não dos Tópicos, a mecanicidade depende exclusivamente da Estrutura.

Uma pessoa mais mecânica, ou seja, abaixo dos patamares de nossa época, setembro de 2015, na condução de uma solução, pensará em todos os passos necessários e o quanto de esforço é necessário para que tudo aconteça. Pensa no quanto de desgaste, na força, nos perigos, na logística, nos possíveis problemas que pode ter para que tudo dê certo. Em boa parte dos casos o cenário mostra que a força necessária para fazer tudo o que precisa ser feito torna o que tem que ser feito pouco interessante. Eu já ouvi em alguns casos: “Aí o molho sai mais caro que a carne”. É uma frase interessante, que mostra que tudo o que precisa ser feito torna o prato principal desinteressante. Geralmente são expressões que mostram falta de entendimento dos motivos de acontecer justamente naquele momento, pensando até ser azar. No caso de nosso exemplo, o profissional agora pai, a partir da proposta começará a arquitetar as possíveis soluções que tem e o que precisa ser feito para que cada uma delas dê certo. Ele pensa em como será se mudar com o filho para outra cidade e o que pode fazer para não afastar o filho dos avós. Pensa no custo que terá para manter isso, mas ao mesmo tempo que o custo vale a pena pela criança. Ele construirá esquemas resolutivos diversos contendo os prós e contra da proposta até chegar a uma conclusão. No entanto, os esquemas que elaborará serão de tal forma complexos e difíceis que se mostrarão demasiados pesados pelo retorno que darão. Por mais que pense em todos os meios para solucionar seu dilema, tem ainda a ideia consigo de que é conspiração do destino para que não consiga o que quer, azar, “coisa feita”.

Uma pessoa de nossa época, setembro de 2015, quando tiver um problema usualmente procurará entender como foi que ele ocorreu e a partir das prerrogativas do próprio problema tentará resolvê-lo. Um bom exemplo é o de pessoas que se atrapalham financeiramente e entendem que revendo seu orçamento, trabalhando mais, gastando menos irão resolver o seu problema, e de fato irão. Outro bom exemplo é do relacionamento que está ruim, cada um vê onde está errando e procura melhorar para que assim o relacionamento como um todo melhore. Pode-se dizer que entender as causas e a lógica do problema dê às pessoas a capacidade de resolvê-los. O nosso quase íntimo pai de família procurará ver como foi que surgiu a situação, verá o que tem que ser feito para resolver o seu problema, procurará na própria situação que vive a solução para ela. Pode-se dizer que, em nossa época, boa parte da mecanicidade está atrelada ao fato de que este pai buscará em sua situação a solução para ela.

Uma pessoa menos mecânica que os patamares de nossa época, quando tiver um problema, considerará o problema como algo que vai além do que vive no momento que está inserida e a partir de si própria enquanto história de vida. Assim pode ser considerado Gandhi, que ao liderar seu povo contra a Inglaterra fez algo simples, recomendou aos indianos voltarem a ser indianos. Como Jesus Cristo que ao ser perguntado sobre a moeda responde com simplicidade, mesmo a resposta parecendo um tanto mecânica ela não é resolvida a partir do problema, mas vai além dele. O caso de nosso personagem, o profissional que se tornou pai, ao ser menos mecânico ele começa a considerar sua vida como um todo e não apenas o momento que vive. Ao considerar a família, o filho, os avós, sua carreira e colocar a si mesmo enquanto história de vida pode fazer com que outros elementos, que até então estavam de fora, apareçam.

Solução para o caso exemplo

Independente do método utilizado para identificar o patamar autogênico é importante ter em conta se a questão a ser tratada é ou não de cunho autogênico. De acordo com a definição de Nunes; Pedrosa (2000) do Submodo Autogenia é “a organização orientada da EP, feita pelo filósofo clínico, via interseção, para que dê à pessoa um rumo mais recomendável”. Considerando a definição de Nunes; Pedrosa, para que uma questão possa ser considerada autogênica precisa ter como assunto último um trabalho que se dedique à organização ou reorganização da Estrutura de Pensamento da pessoa.

O caso que foi utilizado como exemplo que mostrou o choque entre a Razão (Tópico 10) e Interseção de EPs (Tópico 28) não tem como ser considerado um assunto de cunho autogênico. A questão, do modo como foi estruturada, apresenta um choque pontual entre dois tópicos e num acompanhamento filosófico clínico demandará encaminhamentos pontuais. Alguns, os mais dramáticos, perguntarão: “Mas isso não pode gerar um questão autogênica?” A resposta é simples: “Pode”. Mas aí teríamos uma condição diferenciada onde o choque entre dois tópicos produz efeitos capazes de tracionar toda a estrutura, o que é plenamente possível. Lembrando que para isso são necessárias condições ímpares, o que usualmente não acontece.

Como o problema de nosso profissional que se tornou pai não é autogênico, ele deverá ser resolvido no patamar que se encontrar. Se no caso ele se encontrar num patamar mais baixo que o patamar de nossa época, onde há amarrações linguísticas que indicam falta de saída, vizinhanças pesadas que mostram um caminho de difícil solução e mecanicidade que aponta o azar, falta de sorte e que será necessário muito esforço para que dê certo, é possível que ele opte por não aceitar a promoção. Ele pode ter utilizado como Submodo Esquema Resolutivo (Sub. 05) e o fim da equação mostrar que “não vale a pena” ser promovido. Neste caso, a Interseção de EP venceu e a Busca perdeu. É possível que ele veja no filho a frustração profissional, quase como a personificação de busca interrompida.

Num patamar como o de nossos dias, o nosso personagem provavelmente utilizaria também como Submodo o Esquema Resolutivo (Sub. 05), levantaria os prós e contras da proposta e tentaria, ao máximo, compor uma solução que lhe pudesse dar as duas coisas. Ao examinar a situação, perceber a possibilidade dos avós também irem para a cidade onde seria alocado, percebe então que é possível viver sua Busca. Mesmo que as condições sejam complicadas e que exija dele certo esforço para fazer dar certo, arrumar lugar para morar, a logística de levar os avós da criança, a adaptação da mulher e a sua na nova cidade. Neste caso, dos diversos possíveis, a Busca se sobressaiu conseguindo também manter as interseções.

Já num patamar mais elevado o profissional percebe que, no contexto que vive, a promoção que lhe foi dada veio em boa hora, pois ele gosta de dirigir e a cidade que fica a 150 km de distância pode ser um bom passeio diário. Assim, a interseção é mantida e a busca também ganha vazão, a conciliação faz com que Busca e Interseção sejam mantidas tal e qual estavam. Pode ser esquisito, mas o menos mecânico tende a observar de fora da caixa e pode perceber ainda outras formas de encaminhar a situação.

Em cada uma das soluções o resultado final pode ser diferente tanto pelo tópico que é atendido, tanto pelo Submodo que é utilizado para encaminhar a situação. O exemplo é apenas uma ilustração de que um caso não autogênico deve ser resolvido no patamar que está de acordo com os submodos que a historicidade da pessoa sugere.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

AUTOGENIA - RESUMO II

O termo faz alusão ao Tópico 30 da EP como ao submodo 27. Como Estrutura de Pensamento, informa como a pessoa está estruturada, como os tópicos estão inter-relacionados; vê se há choques, se um tópico reforça ou anula outro. Segundo Packter, Autogenia “é o que dará ao clínico, em interseção, a oportunidade de entender o relacionamento funcional do que ocorre à EP da pessoa”. A EP é constituída de dados sensoriais, abstratos, espirituais, etc. Os exames de Autogenia nos mostrarão como isso ocorre. (NUNES; PEDROSA, 2000, p. 19)

Quando o terapeuta preenche todos os tópicos da Estrutura do Pensamento, caso a pessoa tenha, com os dados de sua historicidade chega a hora de ver como se dá a relação entre estes conteúdos e a resultante destas relações. O resultados destas relações é conhecido como Autogenia. A análise autogênica pode mostrar ao filósofo elementos como: tópico determinante ou determinantes, tópicos importantes, tópico fraco ou fracos, choques entre e intra-tópicos, inadequação tópica, etc. O estudo autogênico diz ao filósofo como essa estrutura está enquanto dinâmica interna.

Quando o terapeuta finda a montagem da Estrutura de Pensamento ao analisar a Autogenia da estrutura, percebe que existe um tópico ou alguns tópicos que conseguem direcionar toda a estrutura. Estes tópicos são considerados como tópicos determinantes. Essa consideração não se deve ao fato de que o conteúdo do tópico está mais presente na historicidade ou que a pessoa dá mais evidência. O que diz se um tópico é ou não determinante à estrutura, é sua participação nos direcionamentos existenciais de toda a estrutura. Assim se, por exemplo, o Tópico 11 – Busca, for o tópico determinante é ele provavelmente quem diz para onde toda a estrutura se direcionará. Caso a pessoa tenha como busca construir uma carreira de sucesso, e essa busca for determinante, a pessoa tende a tomar suas decisões, orientar suas escolhas em prol de atender às demandas geradas pelas buscas.

Diferente do tópico determinante, temos os tópicos importantes, são tópicos que tem papel secundário na estrutura enquanto indivíduos, mas quando unidos a outros tópicos podem se tornar determinantes. Assim, se para uma pessoa que tem como busca a carreira profissional e isto lhe é determinante, os tópicos importantes como, por exemplo, Tópico 28 – Interseção de Estruturas de Pensamento, são levados em conta nas decisões a serem tomadas diante da busca. É assim que se constroem alguns choques entre tópicos, se a Busca é determinante, mas vai contra Interseção de EPs que é um tópico importante, pode acontecer que a pessoa não tenha certeza se seguir carreira seria mesmo a melhor decisão.

Para exemplificar, um pai de família que ao longo de sua vida teve a carreira como prioridade, inclusive o casamento colaborou para ascensão na carreira. No entanto, com um ano de casado nasceu o primeiro filho, agora veio a decisão da organização de que ele seria promovido, mas que teria de mudar de cidade. A carreira (tópico Busca) determinante diz que ele deve seguir seu caminho, mas o filho e a boa interseção (Tópico Interseção de EPs) que tem com ele dizem que não será uma boa por conta da proximidade com os avós que o menino tem. É assim que, em muitos casos, o profissional tem um choque interno entre Busca e Interseção de EPs.

O tópico fraco, por sua vez, é o tópico em que fica evidente que a Estrutura de Pensamento passa por dificuldades. Este tópico pode ser comparado aos sintomas de uma doença, a dor ou desconforto que não é a doença em si, mas o veículo pelo qual a doença se manifesta. Mesmo que em alguns casos os sintomas sejam a própria doença. Para exemplificar, voltando ao profissional que se tornou pai e agora passa por um choque entre os tópicos Busca e Interseção de Estrutura de Pensamento, agora o resultado deste choque é ansiedade. Este profissional teve como resultado do choque entre os tópicos uma alteração no Tópico 04 – Emoções. Assim, o tópico emoções é o tópico fraco ou predisponente, ao menos neste caso. Cada estrutura tem um ou mais tópicos onde podem se manifestar como sintomas de dificuldades que a estrutura vive.

Seguindo o estudo da Estrutura de Pensamento o terapeuta identificará o patamar autogênico da pessoa. O patamar autogênico corresponde ao modo como os tópicos se relacionam entre si e o que deles resulta como um todo de acordo com o contexto que este indivíduo está inserido. Enquanto autogenia os Exames das Categorias não tem participação direta, mas servem como parâmetro externo de indicação. Desta forma ao observar como é o mundo que cerca a pessoa de acordo com os elementos categoriais, sejam eles: assunto, circunstância, tempo, lugar e relação, são eles os parâmetros contextualizados de localização. A partir destes contextos, é possível observar que por mais singular que uma pessoa seja, autogenicamente ela pode fazer par com outros seres. Sua singularidade, de acordo com a forma como está estruturada participa de contextos específicos com outros seres que tem estruturas similares. Para exemplificar seguem dois modos básicos de identificação de patamar autogênico.

01 - Identificação de patamar via linguagem

Pessoas em patamares mais baixos demonstram, via linguagem, amarrações que mostram falta de opção diante das circunstâncias que estão. Para estas pessoas o mundo é mau, um lugar ruim, colocam-se diante da realidade como reféns, o que podem fazer é apenas seguir o caminho e rezar para que não aconteça o pior. Seguindo o mesmo exemplo do profissional que se tornou pai e tem uma proposta de mudar-se para o exterior. Se ele estiver em patamares mais baixos ele utilizará expressões como: estou num beco sem saída, não tenho como deixar a empresa na mão, estou entre a cruz e a espada, não vejo luz no fim do túnel, etc..

Pessoas em patamares comuns de nossa época, setembro de 2015, demonstram via linguagem, buscar alternativas às circunstâncias que se encontram. Assim, há o entendimento de que é a pessoa quem tem que fazer a sua parte e buscar alternativas, achar uma saída. O mesmo pai, agora em situação de patamar mais elevado utilizaria expressões como: temos que pesar os pró e contra desta proposta, temos de ver a viabilidade, perder a oportunidade pode ser igual a perder o emprego, tenho que conversar com alguém que entende minha situação, etc..

Pessoas em patamares mais elevados, demonstram linguisticamente despreocupação com os elementos circunstanciais que vivem, entendendo que o próprio movimento dos elementos encaminhará as soluções para o que se apresenta. Este pai, por fim, num patamar ainda mais elevado utilizará expressões como: veio em boa hora, deve ser obra do destino, é a realização de um sonho, sorte, etc..

No entanto, em alguns casos, a pessoa via linguagem demonstra estar em um patamar autogênico, mas está de fato em outro. Um bom exemplo para isto são pessoas que adquirem hábitos linguísticos religiosos e usam termos como: graça, providência divina, bênçãos, etc. Termos como estes denotam elevado estágio autogênico, pois indicam que a pessoa vive de maneira mais leve, toca a sua vida e deixa que as coisas se encaminhem. Mas não é bem assim que se verifica na historicidade como um todo, esta pessoa pode estar abaixo do patamar autogênico dos tempos atuais. O Deus do qual ela fala que vem a graça ou a providência é um Deus malvado, que pune quem erra, que castiga o pecador, um Deus, inclusive, com o qual ela negocia. A forma como a pessoa se relaciona com o objeto da linguagem, ou seja, a maneira como o objeto linguístico é vivido enquanto vizinho mostra que a análise linguística por si só pode ser enganosa.

O contrário também é verdadeiro, algumas pessoas tem uma linguagem que denota um mundo hostil, pesado, difícil, indicando baixos patamares autogênicos. No entanto a forma como elas lidam com as dificuldades que a vida lhes apresenta mostra que seu patamar é mais elevado. É o exemplo de quem fala das amarras da economia, das dificuldades de se livrar da pesada carga tributária brasileira, da educação pública que não tem mais jeito, da religião que virou comercio, não há saída. Esta mesma pessoa no seu dia-a-dia trabalha, paga suas contas, tem um dinheirinho guardado, participa como voluntário na escola. A linguagem denota um patamar e a análise por vizinhança demonstra um patamar diferente.

02 - Identificação via vizinhança

Outra forma de se identificar o patamar autogênico de uma estrutura de pensamento é pelas vizinhanças que ela tem. Um vizinho de uma estrutura é todo e qualquer elemento que esteja ligado à estrutura via intencionalidade. Todo elemento que está próximo da estrutura só estará se houver intencionalidade direcionada a ele. Exemplo, você sai pela sua casa e observa diversas coisas que estão ao seu redor, ao quê você prestou atenção? A todos os elementos que você descrever que percebeu são eles seus vizinhos. Os que antes você não percebeu e agora passa a prestar atenção e passa a perceber, são estes também agora seus vizinhos.

Ao direcionar então a atenção para um sentimento de amor que se tem pela esposa a pessoa torna o sentimento de amor seu vizinho. No entanto, não é assim tão simples, muitos podem alegar que os pensamentos vêm à cabeça sem qualquer controle, que não se pode controlar o pensamento. Isto acontece porque ao longo da vida a pessoa não aprendeu a controlar o pensamento e ele traz a ideia que quer, isto faz com que a pessoa tenha pouco ou nenhum controle sobre os vizinhos que vem do pensamento. Outras pessoas não educaram seus sentidos e tem poucas vivências sensoriais, pessoas assim podem tomar um bom vinho e não sentir o aroma, se quer o sabor. Por isso que para ter algo como vizinho é necessário nossa atenção sobre ele, tudo o que não tiver nossa atenção não será nosso vizinho.

Outro erro que se comete com bastante frequência é não querer um vizinho e, justamente por isso, tornar o elemento vizinho. Isto acontece porque a pessoa quando não quer algo se aproxima tentando afastar. É como alguém que não quer pensar nas palavras duras do pai e tenta esquecer, tentar esquecer destas palavras faz delas vizinhas, pois se dedica a elas como negação. O mesmo pode acontecer com uma pessoa que se quer evitar, querer evitar a pessoa faz com que se pense nela, onde ela poderia estar, o que ela pensa, o que fazer se encontrar a pessoa. Todos os comportamentos são intencionalidade que tornam a pessoa um vizinhos.

Quanto aos vizinhos, outra questão a se considerar é se o vizinho é ou não adequado à pessoa. Somente uma pesquisa bem feita na historicidade da pessoa indica quais são os vizinhos que historicamente fazem bem ou mal à pessoa. Além de serem bons ou maus à estrutura de pensamento, o filósofo fará ainda outras considerações como o efeito que cada vizinho tem, como motivação, retração, expansão, enfim, como cada elemento interfere na estrutura quando se torna vizinho. Algo que pode acontecer, apenas para elencar mais uma das tantas possibilidades, é que alguns elementos, para se tornarem vizinhos, precisam de outros. Pode ser assim considerado quando um homem precisa de um filho para ter como seu vizinho momentos de lazer.

Dos tantos patamares possíveis, considerados a partir dos elementos de nossa época, consideraremos apenas três. Um patamar mais baixo que o de nossa época, o nosso patamar e um patamar superior de acordo com o critério de vizinhança.

Pessoas em patamares mais baixos tem em suas vizinhanças elementos com os quais a relação é pesada, sofrida, difícil. Para estes a relação se dá por propriedade. Há, portanto, uma relação na qual o elemento pertence ao sujeito, como uma bicicleta, um carro, uma casa. O elemento está e vizinho por pertença, como um pai que tem o filho como uma propriedade sua, que deve fazer o que ele entende que seja melhor. Vizinhos assim usualmente tornam a vida muito mecânica, pela necessidade de gestão de todos os vizinhos que estão em relação com a estrutura do sujeito.

Pessoas em patamares comuns de nossa época, setembro de 2015, tem como vizinhos elementos que estão acima e abaixo deste patamar. Desta forma, é possível ter contato com vizinhos muito elevados como anjo, mas também é possível ter contatos com níveis muito mais baixos, a violência. Os vizinhos neste patamar são normalmente tidos como posse, ou seja, como elementos que me dizem respeito pela posição que a pessoa ocupa em relação ao objeto. Assim como o pai que possui o filho e entende que quando ele sai de casa para se casar perde a posse, outorgando à esposa a posse do filho. Diferente da propriedade, a posse você pode ter ou não, já a propriedade é intrínseca ao sujeito. Como a liquidez é uma das propriedades da água, para alguns pais, os filhos são sua propriedade, não podendo ser separados de si.

Pessoas de patamares mais elevados tem como vizinhos elementos com os quais as relações se dão por afinidade. Para estes os objetos sobre os quais direcionam sua intencionalidade são tidos como elementos com os quais fazem par, ou seja, entendem que caracteres afins fazem com que esteja próximos. Seria o caso do pai que está em relação com o filho conversando sobre a escola, sobre os jogos de futebol, que são elementos de afinidade. No entanto, o pai percebe que aos poucos o filho se distancia e conversa mais com seus amigos, com sua namorada e entende que este é o caminho do filho. Percebe que, pela falta de afinidades, aos poucos o filho se afastou e que em certo momento ele pode voltar a se aproximar pelo surgimento de outros elementos que os tornem afins.

Lembro que este escrito é apenas um resumo, pode-se dizer que a estruturação didática de uma série de conteúdos aprendidos ao longo dos anos em aulas e cursos com o professor Lúcio Packter, a quem atribuo a autoria do que acima organizei.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

sábado, 5 de setembro de 2015

AUTOGENIA

Definições

Tópico 30 - Autogenia

O termo faz alusão ao Tópico 30 da EP como ao submodo 27. Como Estrutura de Pensamento, informa como a pessoa está estruturada, como os tópicos estão inter-relacionados; vê se há choques, se um tópico reforça ou anula outro. Segundo Packter, Autogenia “é o que dará ao clínico, em interseção, a oportunidade de entender o relacionamento funcional do que ocorre à EP da pessoa”. A EP é constituída de dados sensoriais, abstratos, espirituais, etc. Os exames de Autogenia nos mostrarão como isso ocorre. (NUNES; PEDROSA, 2000, p. 19).

No Tópico 27, foi vista a análise de estrutura, o entendimento daquele tópico revela a Estrutura de Pensamento como conjunto dos tópicos, literalmente, enquanto estrutura. Agora, na Autogenia, já não há mais a preocupação quanto aos tópicos em relação à EP e à estrutura considerada como formação, mas em relação ao funcionamento da mesma. Quando o filósofo se ocupa da Autogenia, ele estudará os tópicos sob o aspecto da relação e verá os choques, o que reforça e o que enfraquece a estrutura enquanto funcionamento. Para deixar o mais claro possível, Packter diz que Autogenia “(como tópico da EP) é a denominação da configuração, da associação, da inter-relação que os tópicos da EP têm entre eles mesmos”.
A partir dessas relações é que o filósofo poderá determinar a melhor ação a ser tomada enquanto percebe na estrutura as portas de acesso dos conteúdos da pessoa. Esses cuidados são tomados para não associar conteúdos de tópicos diferentes e conflitantes em um mesmo submodo. Também como maneira de evitar entrar em certas questões que alteram o funcionamento da EP e inviabilizam a clínica, como entrar em questões com demandas muito fortes, falar de assuntos que a pessoa desmerece e tudo o mais que os estudos em clínica puderem revelar.
Os autores que fundamentam esse tópico são: Cantor; Kant; Russell

Submodo 27- Autogenia

Como submodo, objetiva organizar os submodos para modificar a organização tópica. “É a organização orientada da EP, feita pelo filósofo clínico, via interseção, para que dê à pessoa um rumo mais recomendável” (Caderno de Submodos). (PEDROSA, 2000, p. 19).
Enquanto tópico, a Autogenia mostra como está organizada a EP da pessoa, quais as relações tópicas e em que isso implica na vida da pessoa. Quando se trabalha Autogenia enquanto submodo, é possível ver como se pode elevar o nível de funcionamento, ou seja, fazer com que a pessoa tome um rumo em direção às coisas que tornam sua EP producente. A diferença entre uma EP em baixo nível de funcionamento e uma elevada é de grande simplicidade, quanto mais baixo o nível de funcionamento de uma EP, mais mecânicas as coisas se tornam. Uma Estrutura de Pensamento com um nível de funcionamento elevado se torna mais leve, etérea, de maneira que os problemas se tornam cada vez mais solúveis e menos trabalhosos. Quando nossa EP pega um caminho, tanto para cima quanto para baixo, a tendência é que siga o movimento inercial. Para que isso não aconteça, o filósofo, a partir da historicidade da pessoa, abre janelas para cima e, a partir de uma primeira, muitas outras se abrirão. Como a pessoa que vem ao terapeuta em um nível de funcionamento muito baixo, preocupado em pagar contas, lavar o carro, ir pagar as contas, cortar a grama, tudo isso é cansativo, incomoda. O clínico percebe que, para abrir janelas para cima, é preciso agendar coisas que tenham a ver com passeios, viagens, caminhadas. A partir de então, a pessoa continua resolvendo tudo o que resolvia antes, mas parece que algumas coisas se resolvem sozinhas, ela estranhamente começa a ter o que se chama de sorte.
Temos de lembrar a pertinência disso na vida da pessoa, não é porque aparentemente é bom ter a Autogenia elevada que será feito isso. Pense numa pessoa que está em final de conclusão de curso, tem muitos trabalhos a fazer, pesquisas. Algumas pessoas, quando tem a Autogenia elevada, tiram os pés do chão e acabam esquecendo a materialidade. Por isso, quando necessário e somente quando bem estudado, é possível fazer esse movimento.

Tipos de Autogenia:

Horizontal

A autogenia horizontal é assim chamada pelo movimento que a Estrutura de Pensamento faz dentro de um mesmo patamar. Este tipo de movimento provoca alterações na estrutura, mas não capazes de fazê-la mudar de nível, são movimentos que mudam apenas os conteúdos com os quais a EP entra em contato dentro de um mesmo nível.

Vertical

Vertical é o tipo de movimento que acontece quando pela organização da EP há uma elevação autogênica. Este movimento tanto pode ser de ascendência quanto de descendência, em outras palavras, a organização pode tanto levar a pessoa para cima quanto para baixo. Esta movimentação acontece quando um tópico tem força de tração autogênica. Assim, quando a EP é ordenada e vive a partir dos pressupostos do tópico determinante pode haver movimentação vertical da estrutura com um todo. Diferente do movimento horizontal, este tipo de movimento coloca a EP em contato com conceitos de outras naturezas. Por isso é recomendado um movimento lento e estruturado para que a ascensão autogênica possa ser segura e sustentável.

Transversal

Nas autogenias transversais a modificação de padrão autogênico acontece pelo contato com “coisas” que estão fora dos nossos padrões existenciais. O contato com estas coisas que se aproximam de nós ou nós nos aproximamos delas é feito geralmente de maneira muito equívoca. Essas equivocidades acontecem pela falta de linguagem que possa fazer o transito de conteúdos dialógicos de um ser para o outro. No entanto, nos, pela nossa origem acabamos por humanizar as “coisas” com as quais entramos em contato, até mesmo como uma forma de explicar ou entender. A forma como se dá o contato com outras coisas na autogenia transversal já não entra mais na qualificação de sustentação e vizinhança, ainda mais diferente segue a questão de que este contato pode fugir aos caracteres dos exames das categorias.

Modificações de padrão autogênico

Para modificar um padrão autogênico é necessário primeiro se fazer algumas questões:
- Se eu mudar de padrão estou disposto a deixar algumas coisas para trás? A resposta desta pergunta é necessária, pois nem tudo ou todos que convivem com a pessoa neste patamar a acompanharão no próximo. O problema é, que em alguns casos, o filho, a esposa, amigos, não vão conseguir acompanhar.
- Essa modificação de padrão é sustentável? Ou seja, será que a EP tem estrutura para se manter no padrão para o qual está se deslocando? Pode ser que aquela EP tenha conteúdos e possibilidades de depuração apenas para modificações horizontais, que já seriam uma grande coisa.
- Mudar de padrão autogênico fará bem a pessoa? Nem todas as pessoas precisam de modificações de padrão vertical, algumas nem mesmo de modificações horizontais. Para algumas pessoas o problema em nada tem a ver com modificações autogênicas, seus problemas são pontuais.
Existem outras questões que podem ser feitas na caminhada antes de promover qualquer movimento na EP do partilhante, mas estas constituem as mais importantes.
Uma vez que estão respondidas as questões o terapeuta parte do tópico com força de tração autogênica e inicia a potencialização deste tópico de modo a promover o movimento. Em alguns casos será necessário primeiro ensinar e somente depois potencializar (depurar) o tópico ou conjunto de tópicos para alcançar o resultado. A partir do momento que começa a acontecer a elevação do padrão o partilhante começa a entrar em contato com uma nova “vizinhança”, a elevação vai se efetivar na medida que essa “vizinhança” se tornar familiar. Nos primeiros tempos é provável que a “vizinhança” anterior faça força tracionando a EP para baixo, caso a familiaridade com o novo padrão não seja forte o suficiente pode acontecer haver regresso ao patamar anterior. Mas, na medida que a pessoa ganhar familiaridade, logo estará estabelecida e segura no novo patamar.
A “vizinhança” é um vice-conceito utilizado para apontar que há uma depuração estrutural onde a EP entra em contato com novos conteúdos. Por isso as duas recomendações iniciais, pois esse contato pressupões deixar alguns conteúdos anteriores de lado e também o tempo para criar intimidade. A fluência com estes novos conteúdos é que vai ou não garantir a permanência da pessoa no novo patamar. Sendo assim, por vizinho, pode se entender outras emoções, conhecimentos, pessoas, experiências, enfim, conteúdos do novo padrão.

As modificações de padrões autogênicos provocam profundas mudanças na pessoa como um todo visto que toda a EP acaba por sofrer depurações. Em patamares mais altos conceitos mecânicos deixam de fazer sentido, sua existência é apenas referência a algo que não lhes diz mais respeito. Aproximações e relacionamentos se dão por afinidade, o mesmo acontece com os direcionamentos existenciais, não existe mais uma preocupação intensa e vigiada sobre o caminho que será trilhado. Em níveis pouco acima dos que se vive de maneira geral as alterações já são consideráveis nos modos de vida que se tem. Pode acontecer de algumas pessoas utilizarem palavras que as aproximam de patamares autogênicos mais elevados, no entanto não existe elevação, mas aproximação lingüística.
Achar que existem grandes alterações de padrões autogênicos é um sonho, apenas em alguns raros casos isso é verificável. Na maior parte dos casos existe um pequeno movimento, mas que quando bem feito provoca profundas alterações na vida da pessoa. Há ainda o problema das pseudo modificações, provocadas algumas vezes por produtos químicos, medicamentos, eventos espirituais, enfim, movimentos de alteração episódica. Estes movimentos são comuns a algumas pessoas, a outras causam transtornos, pois o movimento não é previsto e nem aceitável em sua EP.

Outra maneira de provocas ascensão autogênica é ensinar a pessoa a soltar-se a sua EP. Esse modo é um tanto mais complexo visto que os caminhos não são previstos em sua maior parte, diferente do caminho convencional. Pela falta de previsibilidade, também chamada controle, boa parte das pessoa prefere fazer o contrário, amarrar sua EP ao modo como elas acham que deve funcionar. Mas, ao soltar-se à sua EP é provável que a própria estrutura mostre qual é o caminho adequado de elevação.


Representação Gráfica




Por: Rosemiro aparecido   Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

quarta-feira, 8 de abril de 2015

A FILOSOFIA NÃO É UMA CIÊNCIA, É UMA TÉCNICA.

Se uma ciência busca recortar um conjunto homogêneo de fenômenos e reduzi-lo a uma clave explicativa comum que possa ser confirmada ou impugnada por todos os pesquisadores interessados, o resultado dela é necessariamente uma série de sentenças articuladas entre si por nexos lógicos e referida ao mundo da experiência por um sistema de procedimentos de verificação.

Uma técnica, ao contrário, reúne várias correntes causais autônomas e heterogêneas, irredutíveis a princípios comuns e unificadas tão somente pelo resultado a obter. Nenhuma técnica, por mais simples que seja, se reduz à aplicação de um princípio científico único. Nenhuma técnica, a rigor, se deixa explicar totalmente pela ciência. A técnica tem sua racionalidade própria, interseccionada com a da ciência mas não redutível a ela.

O resultado do trabalho científico são afirmações abstratas válidas para um certo domínio previamente recortado segundo uma homogeneidade hipotética, que a investigação científica, se bem sucedida, transfigurará em homogeneidade tética, ou positiva, fundamentando na experiência, retroativamente, o recorte adotado de início.

O resultado da obra técnica é um produto concreto (de con cresco, “crescer junto) obtido pela articulação real, não ideal, de diferentes concreções parciais.

A filosofia é uma técnica porque o resultado a que ela visa não é um conjunto de afirmações abstratas sobre esta ou aquela parte da realidade, nem mesmo sobre a “realidade como um todo”: é a capacitação do sujeito cognoscente humano individual para a apreensão concreta dos nexos entre conhecimento e realidade, apreensão sem a qual nenhum conhecimento, cientifico ou não, pode estar seguro de que faz sentido, nem de que seu objeto corresponde a algo no mundo real.

Diante de qualquer conhecimento, a filosofia busca esclarecer:

· Sua inteligibilidade

· Sua significação

· Sua realidade

· Sua posição na ordem geral conhecida

· Seu valor para a autoconsciência individual, para a cultura e para a civilização

Os componentes essenciais da técnica filosófica são:

1. A anamnese pela qual o filósofo rastreia a origem das suas idéias e assume a responsabilidade por elas.

2. A meditação pela qual ele busca transcender o círculo das suas idéias e permitir que a própria realidade lhe fale numa experiência cognitiva originária.

3. O exame dialético pelo qual ele integra a sua experiência cognitiva na tradição filosófica, e esta naquela.

4. A pesquisa erudita pela qual ele se apossa da tradição.

5. A hermenêutica pela qual ele torna transparentes para o exame dialético as sentenças dos filósofos do passado e todos os demais elementos da herança cultural que sejam necessários para a sua atividade filosófica.

6. O exame de consciência pelo qual ele integra na sua personalidade total as aquisições da sua investigação filosófica.

7. A técnica expressiva pela qual ele torna a sua experiência cognitiva reprodutível por outras pessoas.

Todos os grandes filósofos do passado praticaram esse conjunto de técnicas e muitos se referiram a elas em suas obras, mas nenhum se ocupou em fazer delas uma exposição abrangente e sistemática. Fornecer um resumo dessa exposição, abrindo para os estudos de filosofia uma porta antiqüíssima que a maioria dos professores de filosofia ignora por completo, tal é o objetivo do presente encontro.
Por: Olavo de carvalho Do site: http://www.seminariodefilosofia.org



quinta-feira, 2 de abril de 2015

POR QUE DEIXAMOS DE SENTIR PRAZER PELA VIDA

É pela comparação com a cultura grega antiga que Fernando Muniz traça um perfil do prazer em nossa sociedade contemporânea no novo livro “Prazeres Ilimitados”, que será lançado nesta quinta-feira, às 19h, na Livraria da Travessa, em Ipanema. Segundo o filósofo, apesar de vivermos em um mundo hedonista – onde a busca do prazer é o mote principal -, estamos incapacitados de senti-lo.


Glamurama: O que é o prazer hoje?

Fernando Muniz: O prazer saiu de cena e se tornou uma certa compulsão, uma coisa que nunca se realiza. A sociedade exige sempre mais e mais, projeta para o futuro uma coisa que nunca ocorre. E essa antecipação provoca ansiedade, que vai adiando o momento da realização, e o prazer nunca acontece. O que existe é a voracidade, o consumo de tudo em volta, mas que não traz saciedade. O mundo contemporâneo está, ao contrário do que se pensa, mais afastado do prazer. Quando o prazer passa a perder a importância, a vida passa a ser ameaçada. Muito do mal estar contemporâneo está ligado a essa incapacidade de viver o prazer.

Glamurama: Qual é o lugar do prazer na nossa vida?

Fernando Muniz: Apesar de vivermos em mundo hedonista, não temos nenhuma reflexão profunda sobre o prazer. O prazer hoje é tido como uma coisa que todo mundo acha que sabe. Como o prazer já é um dado, uma coisa óbvia, ele deixa de ser um problema, e, consequentemente, deixa de ser um objeto de reflexão. Já na Grécia antiga, o prazer foi objeto de muito questionamento.

Glamurama: O que as pessoas buscam para obter prazer?

Fernando Muniz: Uma nova relação amorosa, ter mais dinheiro, poder, fama, um corpo mais perfeito. Ou seja, o que você impõe a você mesmo, esvazia a própria possibilidade de você ter uma vida plena e satisfeita, sempre projetada para um futuro inacessível. Isso gera uma histeria de tanta incitação.

Glamurama: Por que não conseguimos ter prazer de fato?

Fernando Muniz: Essa perda não é uma questão individual. Você não decide ter ou não ter um comportamento compulsivo. As sociedades estão organizadas desta forma. A incitação ao consumo, ao que vem depois, faz com que as relações humanas sejam provisórias. A fila está sempre andando. O que você acabou de comprar já não tem importância alguma. As necessidades que você jamais teve, vai ter amanhã. Você não tem mais prazer nem com pessoas nem com coisas. Isso gera um buraco no mundo contemporâneo. É uma situação de frustração constante. Você vê, por exemplo, a ex-namorada do Mick Jagger, a L’Wren Scott [morta em março do ano passado]. Um dia ela está linda, namorando um cara famoso, e no outro, está enforcada. No mundo contemporâneo, a distância entre o sofrimento profundo e a alegria excessiva é quase nenhuma. A pessoa que dá uma gargalhada pode cair no choro.

Glamurama: Mas as pessoas parecem estar mais felizes hoje em dia, pelo menos nas redes sociais.

Fernando Muniz: É. Todo mundo parece feliz. As pessoas acham que elas precisam parecer assim, mas acabam parecendo mais histéricas do que felizes. Sem entrar nos aspetos positivos das redes sociais, as pessoas acabam expondo somente o que querem que as outras saibam dela. É sempre narcísico. As pessoas entendem que a vida delas tem valor porque ela mostra. É um esvaziamento da própria vida, uma incapacidade de se encontrar sentido. Já que as coisas não tem sentido, é preciso postar. A vida se dá pelas reações: se alguém curtiu ou não curtiu.

Glamurama: As redes acabam então preenchendo esse vazio?

Fernando Muniz: É um jeito de lidar com o esvaziamento, mas é provisório. A pessoa precisa postar outra coisa, e depois outra. Ela pode achar um namorado e, sem saber o que ela o quer, posta uma foto dele. Então, ela começa a ver se aquilo pode fazer algum sentido, dependendo das reações dos outros. O valor é dado de fora e não por ela mesma.

Glamurama: Estamos passando por uma espécie de doença coletiva?

Fernando Muniz: Acho que sim. É uma espécie de patologia cultural, uma doença da nossa própria cultura. Não encontramos ainda os meios para que as pessoas se tornem satisfeitas.

Glamurama: E quais seriam os meios?

Fernando Muniz: São muitos. Os gregos faziam uma reflexão constante. No mundo contemporâneo já existe o caminho. Não existe a pergunta: “Como a minha vida pode ser maravilhosa?”. Isso não é uma questão. Para os gregos, era. Para você encontrar a justificativa da sua existência acho que a reflexão é o primeiro passo. Eu proponho no livro uma volta aos gregos, no sentido de recuperar as questões sobre o que é o prazer, qual é o lugar que ele tem na nossa vida e o que ele significa.
Por Denise Meira do Amaral 
Fernando Muniz passou seis meses escrevendo “Prazeres Ilimitados” nos Estados Unidos
Do site: http://glamurama.uol.com.br





segunda-feira, 30 de março de 2015

QUAL A DIFERENÇA ENTRE CORPO, ALMA E ESPÍRITO?

No Novo Testamento a distinção entre corpo, alma e espírito aparece somente uma única vez. São Paulo assim diz na I Carta aos Tessalonicenses: “Que o próprio Deus da paz vos santifique inteiramente, e que todo o vosso ser - o espírito, alma e o corpo - seja guardado irrepreensível para a vinda do Senhor Jesus Cristo! (5,23). O Catecismo, por sua vez, explica essa passagem:


Por vezes ocorre que a alma aparece distinta do espírito. Assim, São Paulo ora para que nosso “ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo”, seja guardado irrepreensível na Vinda do Senhor. A Igreja ensina que esta distinção não introduz uma dualidade na alma. “Espírito” significa que o homem está ordenado desde a sua criação para o seu fim sobrenatural, e que sua alma é capaz de ser elevada gratuitamente à comunhão com Deus. (367)

Atualmente existe uma tendência dos teólogos em dizer que o ser humano não possui alma, pois isto seria uma visão dualista, platônica e que não corresponderia ao pensamento bíblico, judeu. Nada mais equivocado.

No Antigo Testamento, durante muito tempo não se falou em “ressurreição dos corpos”. pelo contrário, cria-se que a pessoa vivia no “sheol”, eram “refrains”, cuja existência era sombria, até mesmo umbrátil.

Aos poucos, Deus foi revelando que aquelas “sombras” na verdade continuavam tendo personalidade e que os bons eram abençoados e os maus punidos. A ideia de que ao término de sua vida a pessoa era recompensada - embora ainda não se falasse em ressurreição - estava bem clara no Antigo Testamento como um segundo passo, já na época dos Profetas.

O terceiro passo começar a surgir. Após a morte, no fim dos tempos, o corpo e alma irão se unir e haverá a ressurreição dos mortos. Logo após vem o Novo Testamento.

Nosso Senhor Jesus Cristo diz ao Bom Ladrão na Cruz: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso”(Lc 23,3). Ora, o “hoje” a que Ele se refere só pode dizer respeito à alma do Bom Ladrão, pois o corpo, evidentemente, seria sepultado, assim como o corpo de Jesus também o foi.

No Novo Testamento quando uma pessoa morre existe uma punição eterna ou uma recompensa eterna e no final dos tempos haverá também a ressurreição dos mortos. É uma distinção clara entre o corpo e a alma.

O Catecismo ensina que o corpo e a alma são uma só natureza humana, não são duas naturezas que se unem, mas uma só realidade e, com a ruptura dessa realidade única chamada morte, algo terrível acontece, algo que não estava nos planos de Deus. Mesmo assim o homem é corpo e alma, material e espiritual respectivamente.

Por que, então, São Paulo fala de “corpo, alma e espírito”? Recordando que a Igreja ensina com toda clareza que não são duas almas, mas corpo e alma. Existe, contudo, na única alma humana, o lugar onde Deus habita. Trata-se do “espírito”, ou seja, uma realidade sobrenatural que existe nos homens.

Assim, aqueles que são filhos de Deus batizados - corpo e alma - pelo fato de serem templo de Deus, possuem um “lugar” onde Deus habita. É possível dizer também que o lugar onde Deus habita enquanto Espírito Santo é que o se chama de “espírito”.

A alma como um todo é responsável por diversas coisas: inteligência, vontade, fantasias, etc., mas nem tudo isso é o lugar onde Deus habita. Este é lugar mais profundo do homem, onde ele é ele mesmo de tal forma que não é mais ele e sim Deus. “Interior intimo meo”, como definiu Santo Agostinho.

O ser humano não foi abandonado a si mesmo, natureza pura. Dentro de sua natureza existe uma outra natureza, o sobrenatural, a presença de Deus. A natureza agraciada por Deus (nos pagãos é a graça de Cristo). Mas os batizados possuem uma consistênvia ainda maior, pois podem e devem reconhecer que são filhos de Deus, templos do Espírito Santo. 
Por: Padre Paulo Ricardo Do site: https://padrepauloricardo.org

segunda-feira, 23 de março de 2015

A PRUDÊNCIA

O mundo atual padece de uma grave epidemia: a falta de rumo. As pessoas, em geral, não têm ideia de qual é a sua finalidade última. A falta de direção atinge não somente as pessoas, mas a própria Igreja como um todo e isso tem uma causa muito clara: a imanentização do fim último do ser humano.

Parece ser algo muito difícil de se compreender, mas não é. Primeiro é preciso recordar que a finalidade da vida humana está na vida eterna, da mesma forma que a finalidade da história está na meta-história, a finalidade do mundo está fora dele e assim por diante [01]. Todavia, por causa da acusação marxista de que falar de vida eterna, de céu, inferno etc., é alienante, atualmente ninguém mais fala sobre esses temas, temendo justamente ser tachado de “alienado". A imanentização, portanto, é centrar-se no hoje, naquilo que pode ser experimentado. É o agora.

Ocorre que deixar de falar da finalidade última do homem destrói a vida espiritual como um todo e até mesmo as virtudes que se tenta ordenar tornam-se sem sentido por falta de direção. Por isso, é preciso potencializar justamente a virtude que permite a ordenação de todas as outras: a virtude da prudência.

Na linguagem comum, a palavra “prudência" significa uma espécie de cautela, esperteza… mas, na tradição da filosofia perene, de Santo Tomás de Aquino, é a virtude que dispõe os meios para se alcançar o fim. Ora, o ser humano em seu agir tem uma finalidade, uma direção, diferentemente dos animais, por exemplo, que quando amanhece, esperam pelo anoitecer e quando anoitece, pelo amanhecer e assim dia após dia. Eles não têm uma meta, não têm uma vocação. Mas o agir humano tem essa meta, tem sede de realização, isso é inegável e pode ser comprovado apenas com um olhar para dentro de si mesmo.

A partir disso, o homem passa a determinar os meios que precisará dar para alcançar o seu fim último, a sua realização. Ora, estando num ambiente de Igreja, por exemplo, em que ninguém mais fala do céu, da vida eterna, mas, ao contrário, conclamam para trabalhar e fazer uma “sociedade mais justa", “um mundo melhor" o que ocorre é que claramente mudou-se o fim. Nesse momento, todo o edifício mora e, toda espiritualidade caem por terra.

Jean Lauand, em sua obra “Prudência, a virtude da decisão certa", afirma que “para Tomás de Aquino, sem a prudência não há nenhuma virtude"[02]. Trata-se de uma afirmação bastante grave e o autor cita Tomás em outra frase não menos chocante, retirada do “Comentário às sentenças", quando diz que “sem a prudência, as demais virtudes quanto maiores fossem, mais danos causariam." Ora, se uma pessoa é casta, mas a finalidade de sua castidade não é o céu, essa pessoa simplesmente não é casta. A sua castidade não é virtude, é cosmético, boas maneiras, mas não virtude.

Diante disso é possível vislumbrar a tragédia que assola a Igreja Católica. O silêncio a respeito do céu, da vida eterna, do fim último está levando ao esvaziamento das virtudes. Na Suma Teológica, Santo Tomás responde à pergunta: “Pode haver prudência nos pecadores?"[03] dizendo:

A prudência pode ter três sentidos. Há, com efeito, uma prudência falsa, ou por semelhança. Com efeito, dado que o homem prudente é aquele que dispõe acertadamente o que deve ser feito em vista de um fim bom, todo aquele que dispõe, em vista de um fim mau, algumas coisas conformes a este fim, possui uma falsa prudência na medida em que toma como fim não um bem verdadeiro, mas uma semelhança de bem; (...)
A segunda prudência é verdadeira porque enconra os caminhos adequados ao fim verdadeiramente bom, mas é imperfeita por dois motivos. Primeiro, porque este bem que ela toma como fim não é fim comum de toda vida humana, mas de alguma coisa especial. (...) O segundo motivo, é que falta aqui o ato principal da prudência. É o caso daquele que delibera com acerto e julga exatamente, mesmo a respeito daquilo que concerne à vida inteira, mas não comanda eficazmente.

A terceira prudência, verdadeira e perfeita ao mesmo tempo, é aquela que delibera, julga e comanda retamente em vista do fim bom da vida toda.

Ora, a epidemia mencionada reside justamente na alta incidência de prudência imperfeita, pois as pessoas não escolhem realizar o fim último de suas vidas, que é a vida eterna. E, infelizmente, a prudência imperfeita, diz Santo Tomás, “é comum aos bons e aos maus, sobretudo aquela que é imperfeita em razão de seu fim particular".

O que se vê comumente é que as pessoas procuram a direção espiritual para resolver problemas próximos, imediatos e, sim, é possível resolvê-los topicamente, contudo, se não for ordenado o fim último (céu, santidade, servir a Deus etc.), as virtudes de que se dispõe de nada adiantam, pois não são verdadeiramente virtudes, conforme já visto.

Uma distinção importante acerca da prudência deve ser feita também, pois existe a prudência adquirida e a prudência infusa. Quem explica é o Padre Reginald Garrigou-Lagrange em sua obra “As três idades da vida interior", volume III, capítulo 8, quando diz que aquele que possui a prudência verdadeira escolhe o que em filosofia clássica de denomina fim honesto, em vez do fim útil que pode até ser bom, mas não é o verdadeiro. Já o fim honesto pode ser alcançado de duas maneiras: pela razão, quando então é chamada de prudência adquirida que é boa, necessária e deve ser cultivada; e pela fé, denominada prudência infusa, pois a revelação, a graça propicia ao homem enxergar melhor certas coisas.

O Pe. Garrigou-Lagrange ensina que promover o fim honesto racional é procurar viver a castidade, a humildade e a paciência, pois essas três ações colaboram para que atitudes prudentes sejam tomadas. De forma clara, significa usar a inteligência para colocar em ordem os apetites: concupiscível com a castidade, irascível com a paciência e a vontade com a humildade.

Mas isso só não basta: quando o homem conhece a caridade, a cruz de Cristo enxerga que há algo mais. Uma outra prudência nasce e diz que o seu fim último não é somente aquele que a razão alcança, mas um que foi revelado. A partir da caridade, a virtude da prudência passa a crescer de forma extraordinária, tal como a dos santos. E ela se torna princípio de ação, enquanto que a falsa prudência - epidêmica - faz com que as pessoas não decidam nada.

A prudência infusa é iluminada pela fé e faz com que o homem viva em sintonia com a caridade, com o amor de Cristo, levando-o cada vez mais a se doar, como os santos, de tal forma que, aos olhos humanos, certas atitudes podem ser tomadas até mesmo como imprudentes, mas no fundo são atos de verdadeira prudência, pois é como Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou: “quem quiser se salvar vai se perder, mas quem se perder por amor a mim, vai se salvar"[04]. Essa é a verdadeira prudência.
Referências
Direção Espiritual: Como descobrir a minha vocação?
LAUAND, Jean, “Prudência, a virtude da decisão certa - Santo Tomás de Aquino", Ed. Martins Fontes.
Suma Teológica, II-II, q. 47, a. 13
Mc 8, 35
Por: Padre Paulo Ricardo  Do site: https://padrepauloricardo.org

FILOSOFAR COMO OS ANTIGOS

O que é mais importante na filosofia? Infelizmente, muita gente acha que é decorar nomes, conceitos e períodos históricos. Não é.

Quando estava no primeiro ano de medicina, perguntei a um professor como um paciente terminal se via diante do nada. Ele me disse o seguinte: "O senhor está na aula errada, deveria estar na aula de filosofia".

Levei cinco anos para seguir seu conselho. Não por falta de coragem (desculpa mais fácil de dar, afinal trocar uma carreira de medicina pela de filosofia é uma loucura), porque sou passional no que faço e isso facilmente se assemelha à coragem. Gostava do conhecimento médico mesmo.

A filosofia para mim sempre foi mais da ordem da experiência do que da teoria. Absurdo, a priori, num mundo dominado pela Senhora Capes e sua alma de capitalismo chinês.

Devido a essa preferência pela experiência em detrimento da teoria, depois de fazer a experiência cética, nunca mais consegui viver sem respirá-la.

Estudar filosofia é mais parecido com a atividade de ruminar um texto (como faziam os monges no início do cristianismo e ainda o fazem), lendo-o atentamente e várias vezes, procurando nele "seu próprio texto", do que simplesmente defender um doutorado. A burocracia mata tudo, inclusive a filosofia.

Sim, sei que minhas palavras parecem românticas. Não o são se você conhecer filosofia antiga e a obra de Pierre Hadot. Na realidade, a "filosofia como arte de viver" (título de um dos seus livros) é coisa para quem tem repertório sólido, e não apenas conhecimento burocrático sobre autores, épocas e conceitos (apesar de que tudo isso é importante também).

"Antes formar os espíritos do que informar." Essa é a definição que Arnold I. Davidson dá para hipótese de Hadot sobre a filosofia antiga: a filosofia antiga era um exercício espiritual.

Davidson é professor de filosofia da religião e literatura comparada da Universidade de Chicago e parceiro de Pierre Hadot em suas pesquisas sobre filosofia antiga.

Ele faz o prefácio da edição dos "Exercícios Espirituais", de Pierre Hadot, recém-publicado pela É Realizações, essa editora que tem feito um trabalho belíssimo no Brasil, trazendo para nós títulos que são verdadeiras pérolas do pensamento clássico.

Segundo Hadot, muitas das contradições que encontramos em obras estoicas e epicuristas são fruto do fato de que seus autores não estavam preocupados em defender hipóteses meramente "claras e distintas" acerca de problemas teóricos, mas pensavam a filosofia como modo de enfrentamento da existência, por isso ele toma "existencial" como sinônimo de "espiritual".

Devo viver segundo as demandas da matéria ou existirão outras? Devo viver segundo os critérios do mundo ou cuidar para que ele não me iluda e, consequentemente, me frustre demasiadamente? Como responder a questões do tipo "Devo viver segundo o que penso e sinto ou devo levar em conta o que o grupo considera essencial"?

O silêncio é para os sábios. Falar demais na vida é sempre um sinal de vaidade e fraqueza? Como enfrentar o fato de que o mundo é o lugar da mentira? Vale a pena se dedicar aos vínculos afetivos ou não?

"Espiritual" aqui não significa apenas religioso mas intelectual, sensorial, imaginativo, afetivo e moral. É o termo que Hadot usa para reunir todas essas dimensões da condição humana.

Nesse sentido, a ética para ele não é apenas uma discussão sobre normas (ética exterior), mas também o combate interno (ética interior) entre o bem e o mal, a experiência dessa luta no silêncio da alma. O vai e vem entre a incerteza da decisão e a certeza da dúvida.

Filosofia como exercício espiritual é uma pedagogia para a sutileza. E a sutileza é um milagre num mundo em que a grosseria reina. Ar puro no mundo do ruído que é o nosso.

É nesse contexto que penso o ato de ensinar filosofia. E por isso, espero ajudar meus alunos a exercitarem seus espíritos e, assim, encontrarem "seu próprio texto".

E, com eles, rever o meu, para assim, quem sabe, talvez, "transfigurar o cotidiano", que, segundo Hadot, é a função suprema da filosofia.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP.

segunda-feira, 16 de março de 2015

NOAM CHOMSKY: ESTAMOS À BEIRA DA TOTAL AUTO-DESTRUIÇÃO?


Existem mais processos de longo prazo apontando na direção, talvez não da destruição total, mas ao menos da destruição da capacidade de uma vida decente.


O que o futuro trará? Uma postura razoável seria tentar olhar para a espécie humana de fora. Então imagine que você é um extraterrestre observador que está tentando desvendar o que acontece aqui ou, se imagine como um historiador daqui a 100 anos - assumindo que existam historiadores em 100 anos, o que não é óbvio - e você está olhando para o que acontece. Veria algo impressionante.

Pela primeira vez na história da espécie humana, desenvolvemos claramente a capacidade de nos destruirmos. Isso é verdade desde 1945. Agora está finalmente sendo reconhecido que existem mais processos de longo-prazo como a destruição ambiental liderando na mesma direção, talvez não à destruição total, mas ao menos à destruição da capacidade de uma existência decente.

E existem outros perigos como pandemias, as quais estão relacionadas à globalização e interação. Então, existem processos em curso e instituições em vigor, como sistemas de armas nucleares, os quais podem levar à explosão ou talvez, extermínio, da existência organizada.

Como destruir o planeta sem tentar muito 

A pergunta é: O que as pessoas estão fazendo a respeito? Nada disso é segredo. Está tudo perfeitamente aberto. De fato, você tem que fazer um esforço para não enxergar. 

Houve uma gama de reações. Têm aqueles que estão tentando ao máximo fazer algo em relação à essas ameaças, e outros que estão agindo para aumentá-las. Se olhar para quem são, esse historiador futurista ou extraterrestre observador veriam algo estranho. As sociedades menos desenvolvidas, incluindo povos indígenas, ou seus remanescentes, sociedades tribais e as primeiras nações do Canadá, que estão tentando mitigar ou superar essas ameaças. Não estão falando sobre guerra nuclear, mas sim desastre ambiental, e estão realmente tentando fazer algo a respeito.

De fato, ao redor do mundo - Austrália, Índia, América do Sul - existem batalhas acontecendo, às vezes guerras. Na Índia, é uma guerra enorme sobre a destruição ambiental direta, com sociedades tribais tentando resistir às operações de extração de recursos que são extremamente prejudiciais localmente, mas também em suas consequências gerais. Em sociedades onde as populações indígenas têm influência, muitos tomam uma posição forte. O mais forte dos países em relação ao aquecimento global é a Bolívia, cuja maioria é indígena e requisitos constitucionais protegem os “direitos da natureza”.

O Equador, o qual também tem uma população indígena ampla, é o único exportador de petróleo que conheço onde o governo está procurando auxílio para ajudar a manter o petróleo no solo, ao invés de produzi-lo e exportá-lo - e no solo é onde deveria estar.

O presidente Venezuelano Hugo Chávez, que morreu recentemente e foi objeto de gozação, insulto e ódio ao redor do mundo ocidental, atendeu a uma sessão da Assembléia Geral da ONU a poucos anos atrás onde ele suscitou todo tipo de ridículo ao chamar George W. Bush de demônio. Ele também concedeu um discurso que foi interessante. Claro, Venezuela é uma grande produtora de petróleo. O petróleo é praticamente todo seu PIB. Naquele discurso, ele alertou dos perigos do sobreuso dos combustíveis fóssil e sugeriu aos países produtores e consumidores que se juntassem para tentar manejar formas de diminuir o uso desses combustíveis. Isso foi bem impressionante da parte de um produtor de petróleo. Você sabe, ele era parte índio, com passado indígena. Esse aspecto de suas ações na ONU nunca foi reportado, diferentemente das coisas engraçadas que fez.

Então, em um extremo têm-se os indígenas, sociedades tribais tentando amenizar a corrida ao desastre. No outro extremo, as sociedades mais ricas, poderosas na história da humanidade, como os EUA e o Canadá, que estão correndo em velocidade máxima para destruir o meio ambiente o mais rápido possível. Diferentemente do Equador e das sociedades indígenas ao redor do mundo, eles querem extrair cada gota de hidrocarbonetos do solo com toda velocidade possível.

Ambos partidos políticos, o presidente Obama, a mídia, e a imprensa internacional parecem estar olhando adiante com grande entusiasmo para o que eles chamam de “um século de independência energética” para os EUA. Independência energética é quase um conceito sem significado, mas botamos isso de lado. O que eles querem dizer é: teremos um século no qual maximizaremos o uso de combustíveis fóssil e contribuiremos para a destruição do planeta.

E esse é basicamente o caso em todo lugar. Evidentemente, quando se trata de desenvolvimento de energia alternativa, a Europa está fazendo alguma coisa. Enquanto isso, os EUA, o mais rico e poderoso país de toda a história do mundo, é a única nação dentre talvez 100 relevantes que não possui uma política nacional para a restrição do uso de combustíveis fóssil, e que nem ao menos mira na energia renovável. Não é por que a população não quer. Os americanos estão bem próximos da norma internacional com sua preocupação com o aquecimento global. Suas estruturas institucionais que bloqueiam a mudança. Os interesses comerciais não aceitam e são poderosos em determinar políticas, então temos um grande vão entre opinião e política em muitas questões, incluindo esta. Então, é isso que o historiador do futuro veria. Ele também pode ler os jornais científicos de hoje. Cada um que você abre tem uma predição mais horrível que a outra.

“O momento mais perigoso na história”

A outra questão é a guerra nuclear. É sabido por um bom tempo, que se tivesse que haver uma primeira tacada por uma super potência, mesmo sem retaliação, provavelmente destruiria a civilização somente por causa das consequências de um inverno-nuclear que se seguiria. Você pode ler sobre isso no Boletim de Cientistas Atômicos. É bem compreendido. Então o perigo sempre foi muito pior do que achávamos que fosse.

Acabamos de passar pelo 50o aniversário da Crise dos Mísseis Cubanos, a qual foi chamada de “o momento mais perigoso na história” pelo historiador Arthur Schlesinger, o conselheiro do presidente John F. Kennedy. E foi. Foi uma chamada bem próxima do fim, e não foi a única vez tampouco. De algumas formas, no entanto, o pior aspecto desses eventos é que a lições não foram aprendidas.

O que aconteceu na crise dos mísseis em outubro de 1962 foi petrificado para parecer que atos de coragem e reflexão eram abundantes. A verdade é que todo o episódio foi quase insano. Houve um ponto, enquanto a crise chegava em seu pico, que o Premier Soviético Nikita Khrushchev escreveu para Kennedy oferecendo resolver a questão com um anuncio publico de retirada dos mísseis russos de Cuba e dos mísseis americanos da Turquia. Na realidade, Kennedy nem sabia que os EUA possuíam mísseis na Turquia na época. Estavam sendo retirados de todo modo, porque estavam sendo substituídos por submarinos nucleares mais letais, e que eram invulneráveis.

Então essa era a proposta. Kennedy e seus conselheiros consideraram-na - e a rejeitaram. Na época, o próprio Kennedy estimava a possibilidade de uma guerra nuclear em um terço da metade. Então Kennedy estava disposto a aceitar um risco muito alto de destruição em massa afim de estabelecer o princípio de que nós - e somente nós - temos o direito de deter mísseis ofensivos além de nossas fronteiras, na realidade em qualquer lugar que quisermos, sem importar o risco aos outros - e a nós mesmos, se tudo sair do controle. Temos esse direito, mas ninguém mais o detém.

No entanto, Kennedy aceitou um acordo secreto para a retirada dos mísseis que os EUA já estavam retirando, somente se nunca fosse à publico. Khrushchev, em outras palavras, teve que retirar abertamente os mísseis russos enquanto os EUA secretamente retiraram seus obsoletos; isto é, Khrushchev teve que ser humilhado e Kennedy manteve sua pose de macho. Ele é altamente elogiado por isso: coragem e popularidade sob ameaça, e por aí vai. O horror de suas decisões não é nem mencionado - tente achar nos arquivos.

E para somar um pouco mais, poucos meses antes da crise estourar os EUA haviam mandado mísseis com ogivas nucleares para Okinawa. Eram mirados na China durante um período de grande tensão regional.

Bom, quem liga? Temos o direito de fazer o que quisermos em qualquer lugar do mundo. Essa foi uma lição daquela época, mas haviam outras por vir.

Dez anos depois disso, em 1973, o secretário de estado Henry Kissinger chamou um alerta vermelho nuclear. Era seu modo de avisar à Rússia para não interferir na constante guerra Israel-Árabes e, em particular, não interferir depois de terem informado aos israelenses que poderiam violar o cessar fogo que os EUA e a Rússia haviam concordado. Felizmente, nada aconteceu.

Dez anos depois, o presidente em vigor era Ronald Reagan. Assim que entrou na Casa Branca, ele e seus conselheiros fizeram com que a Força Aérea começasse a entrar no espaço aéreo Russo para tentar levantar informações sobre os sistemas de alerta russos, Operação Able Archer. Essencialmente, eram ataques falsos. Os Russos estavam incertos, alguns oficiais de alta patente acreditavam que seria o primeiro passo para um ataque real. Felizmente, eles não reagiram, mesmo sendo uma chamada estreita. E continua assim. 

O que pensar das crises nucleares Iraniana e Norte-Coreana

No momento, a questão nuclear está regularmente nas capas nos casos do Irã e da Coréia do Norte. Existem jeitos de lidar com essa crise contínua. Talvez não funcionasse, mas ao menos tentaria. No entanto, não estão nem sendo consideradas, nem reportadas.

Tome o caso do Irã, que é considerado no ocidente - não no mundo árabe, não na Ásia - a maior ameaça à paz mundial. É uma obsessão ocidental, e é interessante investigar as razões disso, mas deixarei isso de lado. Há um jeito de lidar com a suposta maior ameaça à paz mundial? Na realidade existem várias. Uma forma, bastante sensível, foi proposta alguns meses atrás em uma reunião dos países não alinhados em Teerã. De fato, estavam apenas reiterando uma proposta que esteve circulando por décadas, pressionada particularmente pelo Egito, e que foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU.

A proposta é mover em direção ao estabelecimento de uma zona sem armas nucleares na região. Essa não seria a resposta para tudo, mas seria um grande passo à frente. E haviam modos de proceder. Sob o patrocínio da ONU, houve uma conferência internacional na Finlândia dezembro passado para tentar implementar planos nesta trajetória. O que aconteceu? Você não lerá sobre isso nos jornais pois não foi divulgado - somente em jornais especialistas.

No início de novembro, o Irã concordou em comparecer à reunião. Alguns dias depois Obama cancelou a reunião, dizendo que a hora não estava correta. O Parlamento Europeu divulgou uma declaração pedindo que continuasse, assim como os estados árabes. Nada resultou. Então moveremos em direção a sanções mais rígidas contra a população Iraniana - não prejudica o regime - e talvez guerra. Quem sabe o que irá acontecer?

No nordeste da Ásia, é a mesma coisa. A Coréia do Norte pode ser o país mais louco do mundo. É certamente um bom competidor para o título. Mas faz sentido tentar adivinhar o que se passa pela cabeça alheia quando estão agindo feito loucos. Por que se comportariam assim? Nos imagine na situação deles. Imagine o que significou na Guerra da Coréia anos dos 1950’s o seu país ser totalmente nivelado, tudo destruído por uma enorme super potência, a qual estava regozijando sobre o que estava fazendo. Imagine a marca que deixaria para trás.

Tenha em mente que a liderança Norte Coreana possivelmente leu os jornais públicos militares desta super potência na época explicando que, uma vez que todo o resto da Coréia do Norte foi destruído, a força aérea foi enviada para a Coréia do Norte para destruir suas represas, enormes represas que controlavam o fornecimento de água - um crime de guerra, pelo qual pessoas foram enforcadas em Nuremberg. E esses jornais oficiais falavam excitadamente sobre como foi maravilhoso ver a água se esvaindo, e os asiáticos correndo e tentando sobreviver. Os jornais exaltavam com algo que para os asiáticos fora horrores para além da imaginação. Significou a destruição de sua colheita de arroz, o que resultou em fome e morte. Quão maravilhoso! Não está na nossa memória, mas está na deles.

Voltemos ao presente. Há uma história recente interessante. Em 1993, Israel e Coréia do Norte se moviam em direção a um acordo no qual a Coréia do Norte pararia de enviar quaisquer mísseis ou tecnologia militar para o Oriente Médio e Israel reconheceria seu país. O presidente Clinton interveio e bloqueou. Pouco depois disso, em retaliação, a Coréia do Norte promoveu um teste de mísseis pequeno. Os EUA e a Coréia do Norte chegaram então a um acordo em 1994 que interrompeu seu trabalho nuclear e foi mais ou menos honrado pelos dois lados. Quando George W. Bush tomou posse, a Coréia do Norte tinha talvez uma arma nuclear e verificadamente não produzia mais.

Bush imediatamente lançou seu militarismo agressivo, ameaçando a Coréia do Norte - “machado do mal” e tudo isso - então a Coréia do Norte voltou a trabalhar com seu programa nuclear. Na época que Bush deixou a Casa Branca, tinham de 8 a 10 armas nucleares e um sistema de mísseis, outra grande conquista neoconservadora. No meio, outras coisas aconteceram. Em 2005, os EUA e a Coréia do Norte realmente chegaram a um acordo no qual a Coréia do Norte teria que terminar com todo seu desenvolvimento nuclear e de mísseis. Em troca, o ocidente, mas principalmente os EUA, forneceria um reator de água natural para suas necessidades medicinais e pararia com declarações agressivas. Eles então formariam um pacto de não agressão e caminhariam em direção ao conforto.

Era muito promissor, mas quase imediatamente Bush menosprezou. Retirou a oferta do reator de água natural e iniciou programas para compelir bancos a pararem de manejar qualquer transação Norte Coreana, até mesmo as legais. Os Norte Coreanos reagiram revivendo seu programa de armas nuclear. E esse é o modo que se segue.

É bem sabido. Pode-se ler na cultura americana principal. O que dizem é: é um regime bem louco, mas também segue uma política do olho por olho, dente por dente. Você faz um gesto hostil e responderemos com um gesto louco nosso. Você faz um gesto confortável e responderemos da mesma forma.

Ultimamente, por exemplo, existem exercícios militares Sul Coreanos-Americanos na península Coreana a qual, do ponto de vista do Norte, tem que parecer ameaçador. Pensaríamos que estão nos ameaçando se estivessem indo ao Canadá e mirando em nós. No curso disso, os mais avançados bombardeiros na história, Stealth B-2 e B-52, estão travando ataques de bombardeio nuclear simulados nas fronteiras da Coréia do Norte.

Isso, com certeza, reacende a chama do passado. Eles lembram daquele passado, então estão reagindo de uma forma agressiva e extrema. Bom, o que chega no ocidente derivado disso tudo é o quão loucos e horríveis os líderes Norte Coreanos são. Sim, eles são. Mas essa não é toda a história, e esse é o jeito que o mundo está indo.

Não é que não haja alternativas. As alternativas somente não estão sendo levadas em conta. Isso é perigoso. Então, se me perguntar como o mundo estará no futuro, saiba que não é uma boa imagem. A menos que as pessoas façam algo a respeito. Sempre podemos.
Tradução: Isabela Palhares
Fonte:http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Noam-Chomsky-estamos-a-beira-da-total-auto-destruicao-/6/32713

segunda-feira, 9 de março de 2015

A FONTE DA CRIAÇÃO

O pensamento e a literatura não se constroem na universidade, que se tornou, ao contrário, a institucionalização do mediano


Toda verdade que se espalha por muitos ouvidos logo se torna um lugar-comum, uma fórmula repetida mecanicamente, esvaziada da sua substância intuitiva originária. É ainda uma verdade “material”, mas não “formal”, diriam os escolásticos -- isto é, um conteúdo verdadeiro apreendido de maneira falsa.

O conhecimento da verdade, no seu sentido pleno, material e formal ao mesmo tempo, é um privilégio da consciência individual humana. Pode ser repassada de um indivíduo a outros, mas cada um tem de fazer por si mesmo o esforço de apreendê-la. Não existe verdade comunitária.

Todo professor confirma isso diariamente. Um aluno isolado pode compreender a explicação que escapa totalmente ao resto da classe, mas é impossível que a classe como um todo apreenda algo que nenhum dos seus membros entendeu individualmente.

A civilização inteira do Ocidente nasce com a proclamação dessa ideia: Abraão guarda no segredo da sua alma a instrução que recebeu de Deus. Moisés sobe sozinho ao Monte Sinai. Cristo no alto da cruz encarna a Verdade solitária, incompreensível aos que O rodeavam – até mesmo, em determinada medida, aos Seus discípulos mais próximos.

Em ciência, a colaboração entre vários pesquisadores prossegue no escuro até que um deles enxergue o que os outros não enxergaram.

Ninguém em volta compreende o que se passa na alma do artista quando ele transfigura a pedra informe na Pietà ou as palavras do dicionário na Divina Comédia.

No entanto, é certo que a consciência individual, para chegar a essas alturas, precisa da ajuda da comunidade, que a protege, a estimula e a nutre de conhecimentos até que ela possa alçar seu voo solitário. E mesmo então ela continua precisando do diálogo com outras consciências, nas quais se reconhece e das quais se distingue pouco a pouco na individualidade irredutível da sua solidão criadora.

A tensão entre a independência individual e a participação numa comunidade de inteligências afins é um dos traços mais constantes da História ocidental. Sócrates busca sua audiência entre os jovens da aristocracia ateniense, mas foge dela quando eles, na sua fragilidade de moços, repousam da filosofia, entregando-se a jogos e prazeres indignos de um filósofo.

Sto. Tomás adestra sua inteligência nas disputas universitárias, mas, quando obtém por fim as respostas mais altas que desejava, sabe que vai levá-las sozinho para a vida eterna, sem poder dizer mais uma palavra sequer. Goethe busca a perfeição do caráter na agitação do mundo, mas a do talento na solidão. 

O equilíbrio dinâmico esboroa-se, porém, quando a atividade intelectual e criativa se padroniza ao ponto de identificar-se com a participação numa determinada categoria profissional.

William Faulkner ou Henry Miller ririam se alguém lhes pedisse um currículo universitário ou uma carteira sindical de escritor. Hoje, nos EUA, a literatura, para não falar da filosofia, foi quase que integralmente absorvida pelas profissões universitárias correspondentes.

Por isso não há mais nenhum Henry Miller ou William Faulkner, apenas uma profusão de talentos médios ou sofríveis. Nenhum aprendizado universitário substituirá jamais a densa experiência da vida, as “impressões autênticas” de que falava Saul Bellow.

Por isso mesmo, o que há de mais vigoroso na literatura americana das últimas décadas vem de tipos marginais e extravagantes, como John Kennedy Toole ou Hubert Selby Junior. E Thomas Pynchon salvou seu talento ao escapar da carreira acadêmica a que tudo parecia destiná-lo.

Na França, o caso de Emil Cioran é exemplar. Talvez o mais poderoso artista da língua francesa na segunda metade do século XX, nasceu na Romênia e, ao fugir para Paris, evitou cuidadosamente não só meter-se ali em instituições acadêmicas, mas exorcizou toda identidade profissional concebível: durante décadas viveu espremido num sótão, comendo diariamente no restaurante da Aliança Francesa e renovando ilegalmente, até à velhice, uma bolsa de jovem estudante.

Justamente na época em que o governo Pompidou seduzia a intelectualidade inteira com cargos universitários, enquadrando até os rebeldes de 68 e estrangulando com um cordão de ouro o mais animado ambiente de debates que já existiu, ele se manteve ferozmente à margem de toda vida oficial, recusando até mesmo prêmios literários.

No Brasil, é notório que a crítica literária morreu ao ser absorvida pela universidade. Com ela, foi para o túmulo também a literatura de ficção. E décadas de empombadíssima filosofia universitária não nos deram um Mário Ferreira dos Santos, um Vilém Flusser, um Vicente Ferreira da Silva, um Miguel Reale, que nada deveram à universidade. O exemplo brasileiro ilustra com perfeição o aforisma de Nicolás Gomez Dávila: “Un diploma de dentista es respetable, pero uno de filósofo es grotesco.”

Sim, um escritor, um pensador, um artista precisa de companheiros, de diálogo. Mas nada substitui os encontros espontâneos, os círculos de convivência informal, a amizade fundada na comunidade de sonhos e valores, longe de todo enquadramento burocrático, de toda organização profissional. O tipo de convívio que não estrangula a individualidade no garrote vil dos regulamentos e dos planos de carreira, mas a preza e estimula.

Foi justamente nesses círculos que se formou a mais talentosa geração de escritores que o nosso país já produziu, aquela que ingressou na vida literária na década de 30 e dominou o panorama até os anos 70 do século XX. Tudo o que veio depois, trazido nos braços da universidade, é lixo em comparação.

Quando Bellow definiu a missão do escritor como o registro das “impressões autênticas”, e Martin Amis como “a luta contra o clichê”, disseram ambos a mesma coisa: só o apego irredutível à liberdade da consciência individual, contra todo compromisso deformante, liga um ser humano à fonte da experiência viva de onde nasce toda grande literatura, toda grande arte, todo grande pensamento.
Por: Olavo de carvalho Publicado no Diário do Comércio