quinta-feira, 30 de outubro de 2014

PARA COMPREENDER KANT

Kant escreveu em 1762: "Eu me veria a mim mesmo como mais inútil do que um simples trabalhador manual se não acreditasse que esta ocupação (a filosofia) pode acrescentar valor a todas as outras e ajudá-las a estabelecer os direitos da humanidade."

Homem de maturação lenta, aos trinta e oito anos ele descobria o que viria a ser a meta constante do resto da sua vida: "estabelecer os direitos da humanidade", demolir a autoridade da tradição e do hábito, criar a sociedade racional governada por um Estado racional educador de seres humanos racionais, prontos a agir sob o ditame de regras universais em vez de seguir seus instintos como os animais ou os padres como um camponês medieval.

Tudo o que ele fez desde o momento daquela declaração de princípios foi para servir a esse objetivo, ao qual mesmo os feitos filosóficos mais notáveis que ele realizou ao longo do caminho se subordinam como meios para um fim.

Ele acreditava que esse fim não somente era desejável, mas estava inscrito na própria evolução histórica da humanidade como uma meta final a que tudo tendia de maneira tortuosa e problemática, mas constante e irreversível. Quando Kant reconhece que os seres humanos podem falhar em atingir essa meta, ele deixa claro que nenhuma outra existe: assim, entre a sociedade racional kantiana e a barbárie," tertium non datur".

A obra filosófica de Kant, no seu conjunto e nas suas partes, se dirige invariavelmente à consecução de metas que afetarão toda a sociedade, toda a cultura, toda a política, a moral, a religião, o direito, a educação, as relações familiares, a vida humana, enfim, na sua totalidade.

Kant não foi, de maneira alguma, um pensador isolado, extramundano, desinteressado, envolvido em abstrações que só atraem um número insignificante de estudiosos especializados. Tanto quanto Platão, Lutero ou Karl Marx, ele foi um reformador da humanidade, um reformador do mundo. Foi isso o que ele quis ser, e foi isso o que ele se tornou. Nada do que ele escreveu e ensinou pode ser compreendido fora desse projeto grandioso – ou, se quiserem, megalômano.

O que pode encobrir essa realidade ao ponto de torná-la inapreensível são três fatores:

1 Na maior parte das suas obras, Kant faz uso de um vocabulário especial tão inusitado e de uma linguagem tão abstrusa, que parece empenhado antes em limitar o círculo dos seus leitores às dimensões de uma seita esotérica do que em influenciar o público maior.

2 Algumas partes especiais da sua filosofia são tão complexas, tão dificultosas e tão brilhantemente realizadas, que tendem a aparecer como monumentos isolados, remetendo a um discreto segundo plano os objetivos mais amplos a cujo serviço foram construídas.

3 Por isso mesmo, muitos estudiosos do kantismo, e entre eles alguns dos mais competentes, tenderam a descrever a estrutura do pensamento de Kant tomando esses monumentos como centros articuladores do conjunto, reduzindo tudo o mais à condição de opiniões periféricas ou mesmo a episódios de valor puramente histórico-biográfico.

Contra esses três fatores, resta o fato incontestável de que o próprio Kant proclamou repetidas vezes, até a extrema velhice, os mesmos objetivos gerais, constantes e finais que o inspiravam. Nenhuma interpretação engenhosa de uma filosofia deve obscurecer o modo como o próprio filósofo a compreendia.

É verdade que esses objetivos aparecem somente em escritos menores, e não nas “obras-primas” como a Crítica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo, mas o fato de que Kant continuasse a reiterá-los longo tempo depois da publicação dessas obras mostra que ele jamais perdeu de vista as metas que desejava alcançar, e que nem muito menos se deslumbrou com seus sucessos parciais ao ponto de permitir que eles, por si só , tomassem o lugar da ambição maior.

Bem ao contrário, se ele concedeu uma longa e concentrada atenção a determinados problemas específicos, não foi porque tivesse se desviado dessa ambição, mas porque entendeu que esta não poderia ser realizada no mundo histórico-social sem que esses problemas fossem resolvidos antes.

Quando, no empenho de submeter o destino humano ao império da Razão, ele se dedica ao exame crítico desta última e de suas limitações em vez de exaltar acriticamente as virtudes da potência racional, Kant mostra apenas que é um guerreiro sério, que não entra em combate sem ter avaliado meticulosamente as possibilidades e limites do equipamento bélico que carrega. E, quando restringe o alcance da razão em vez de estendê-lo até o infinito, não faz senão concentrar as forças do seu exército em vez de dispersá-las.

É isso precisamente o que o seu contemporâneo Napoleão Bonaparte aprenderá a fazer no campo de batalha.

De todos os reformadores do mundo, Kant foi talvez o mais sutil e engenhoso. Evitando dirigir-se à massa popular, restringindo o seu público aos intelectuais "high brow", salvou-se de ataques grosseiros que nunca faltaram a Lutero e a Marx e se impôs ao mundo com uma aura de respeitabilidade inatacável, como uma divindade misteriosa e distante.

Sobretudo, o fato de tratar os seus ideais não como verdades dogmáticas e sim como fontes de problemas, contradições e dificuldades sem fim, permitiu que sua influência se alastrasse para muito além de grupos de aderentes explícitos e se espalhasse anonimamente por toda parte, até adquirir aquilo que Antonio Gramsci sonhava obter para o Partido Comunista: "o poder onipresente e invisível de um imperativo categórico".
Por: Olavo de Carvalho é jornalista, ensaísta e professor de Filosofia

terça-feira, 28 de outubro de 2014

VOCÊ SABE LER?

Se parassem você pela rua e lhe perguntassem se você sabe ler, qual seria sua resposta? Provavelmente, pela leitura que está fazendo neste momento, seria de que sim, sabe ler. Mas se perguntássemos se você entende os signos que forma o significado do que você lê? Agora já ficou um pouquinho mais complicado, mas acredito que muitos ainda diriam que sim. Essa afirmação encontra fundamento no fato de que, quando lê o texto você o compreende, ou seja, entender o significado do conteúdo do texto. Mas se perguntasse se você saber ler símbolos, ou seja, a junção entre vários signos que formam um significado de caráter convencional? Estudando filósofos como Ferdinand de Saussure e Charles Sander Peirce e outros nos pegamos com alguns problemas de ordem do entendimento da linguagem.

Quando você lê um livro, você se pergunta se entendeu o que o autor quis dizer? Interessante, esta é a mesma pergunta que as professores de interpretação de texto fazem muitas vezes aos seus alunos. O interessante é que depois que cada aluno expõe sua idéia sobre o que o autor quis dizer a professora corrige e classifica em certos e errados. Mas se eu perguntasse a você o que quero dizer com a frase: “Amo acordar e sentir o cheiro do orvalho pela manhã”. Não passou pela sua cabeça que quero dizer exatamente isto, “amo acordar e sentir o cheiro do orvalho pela manhã”. Se eu pedir a você que interprete o que disse, o que quiseres interpretar estará correto, pois solicitei que unisse o seu conteúdo ao que eu disse. Não teria como dizer que está errado o que pensou a respeito do que disse, uma vez que é interpretação sua. Quantos problemas seriam resolvidos se simplesmente levássemos ao pé da letra o que está escrito.

Se me colocar na posição de quem tem de interpretar o que o autor escreveu, meu filho disse, minha mulher pintou, o jardineiro construiu, estou construindo um mundo de significados. Se olhar para sua esposa e ouvir o que ela diz talvez você entenda que ela está cansada, que precisa de ajuda, que quer mais sua presença. Não é preciso interpretar as notas ruins de seu filho na escola, basta perguntá-lo e, provavelmente, ele lhe responderá. É dispensável interpretar o que seu chefe quis dizer quando falou que seu trabalho precisa melhorar, basta fazer o que exatamente foi dito, melhorar.

Retomo a pergunta que fiz no início, você saber ler? Se você está escutando o que não foi dito, vendo o que não foi mostrado, percebendo o que não foi insinuado, provavelmente sua leitura está muito ruim. A abertura dos ouvidos, olhos, nariz, boca, dos poros para ouvir o outro é uma atitude de leitura nobre. Colocar-se diante do livro e ver o que ele disse é uma postura de quem valoriza as páginas de quem escreveu para dizer e não para ser interpretado.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/





sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A AMBIÇÃO FILOSÓFICA

O que caracteriza e distingue a filosofia no meio de tantos outros empreendimentos humanos é a peculiar sofisticação, riqueza e precisão dos meios intelectuais que ela põe a serviço do seu projeto.


Não existe filosofia modesta. Toda filosofia é uma intervenção de longo prazo e larga escala no mundo dos acontecimentos humanos. Enquanto os decretos dos governantes passam e se desfazem em pó no esquecimento, as filosofias permanecem ativas e influentes decorridos séculos ou milênios do falecimento dos seus criadores, afetando ou modelando o curso das discussões científicas, morais, políticas e religiosas. Revelam, nisso, uma força auto-revigorante quase miraculosa. Milhares de biografias de Napoleão e Júlio César não trariam de volta os seus impérios, mas às vezes basta um debate erudito ou um ensaio de reinterpretação para que uma filosofia que parecia esquecida ressurja das cinzas e, adornada ou não do prefixo “neo”, venha interferir na vida contemporânea como se tivesse sido publicada ontem.

Não imaginem que esse fenômeno se deva somenteao zelo de admiradores e discípulos tardios que, à revelia e sem a mínima participação de seus mestres e inspiradores mortos, não deixam que a chama se apague. Ao contrário, foram esses mestres e inspiradores mesmos que, concebendo metas de longo prazo e colocando a serviço delas as mais complexas e poderosas estratégias cognitivas, deixaram aberta ou fomentaram conscientemente a possibilidade de sucessivos renascimentos.

Em algumas filosofias a meta ambicionada é tão evidente que não precisa nem ser declarada. Ninguém pode duvidar de que Sto. Agostinho, Sto. Tomás ou Pascal sonhavam apenas em expandir o domínio hegemônico da Igreja Católica e converter, se possível, a humanidade inteira. Isso transparece em cada linha que escreveram. Os três divergem somente nas estratégias intelectuais com que planejam realizar esse objetivo, as quais escapam ao assunto deste artigo.

Em outros casos – Marx, por exemplo, ou Nietzsche --, o objetivo é tão enfaticamente reiterado que basta citar esses nomes para que venha imediatamente à memória do público a imagem da utopia socialista ou a do Super-Homem que emerge soberanamente livre no deserto do nada após a destruição de todos os valores.

Porém mais interessante é o caso daqueles filósofos que sussurram seus objetivos tão discretamente, quase em segredo, que estes podem passar despercebidos ou ser negligenciados durante décadas ou séculos por estudiosos que nada mais vêem nas obras deles senão a poderosa arquitetura dos meios, chegando a tomá-la como se fosse o fim.

A mais mínima hesitação do filósofo em colocar a declaração de fins bem visível no pórtico ou no topo da sua filosofia pode levar a esse resultado. Porque os fins, em si mesmos, são por assim dizer anteriores à filosofia e, determinando-lhe a forma de conjunto, não são por ela afetados exceto no que diz respeito aos seus meios de realização. Os fins de uma filosofia não são exclusivos dela: podem ser compartilhados por uma multidão de não-filósofos que talvez nem tenham o vigor intelectual necessário para compreendê-la. O exemplo mais didático, nesse sentido, é o já citado de Agostinho, Tomás e Pascal. Eles queriam expandir o cristianismo? Sim. É esse o objetivo que norteia todo o seu esforço filosófico? Sim. Mas quantos homens não queriam o mesmo sem ser filósofos?

O que caracteriza e distingue a filosofia no meio de tantos outros empreendimentos humanos é a peculiar sofisticação, riqueza e precisão dos meios intelectuais que ela põe a serviço do seu projeto. Enquanto outros pregam os fins e tentam realizá-los na prática ou morrem por eles no campo de batalha, o filósofo se empenha em remover os mais árduos obstáculos cognitivos que se interpõem entre a humanidade presente e a consecução desses fins, erguendo novos arcabouços intelectuais que a viabilizem. Esses obstáculos podem consistir de crenças do senso comum, erros de percepção ou de raciocínio, doutrinas religiosas, científicas ou mesmo filosóficas equivocadas, símbolos inadequados ou mal interpretados que bloqueiam a imaginação, fraquezas da psique humana etc. etc.

Josiah Royce distinguia, com razão, entre o “espírito” de uma filosofia e a sua “realização técnica” – o ideal inspirador e a forma acabada da sua cristalização em obra filosófica. Tão ampla é a esfera dos problemas envolvidos na “realização técnica”, tão árdua a tarefa de resolvê-los, tão complexo o equipamento intelectual que tem de ser usado (e às vezes criado) na sua construção, e não raro tão dificultosa a sua absorção pelo leitor, que, se não advertido quanto aos fins e ideais subjacentes, este pode prolongar o exame da maquinaria indefinidamente até o ponto de tomá-la como se ela fosse a finalidade de si mesma. Sem contar, é claro, o prazer vaidoso que o pedantismo erudito pode extrair do destrinchamento interminável de miudezas técnicas, em que as questões fundamentais são adiadas para o dia de são nunca em nome de uma aparência de “rigor”. Para piorar as coisas, muitos elementos da “realização técnica” têm mesmo um valor autônomo, que permite integrá-los em outros projetos filosóficos alheios ou hostis aos fins originários a que serviram. Não é preciso ser tomista nem marxista para tirar proveito de parcelas inteiras do tomismo ou do marxismo.

É claro, no fim das contas, que o desvio de foco se comete menos facilmente com os filósofos que declararam abertamente os seus fins, ou com aqueles onde estes são auto-evidentes, do que com os tipos ambíguos e escorregadios que, por medo do escândalo ou por aversão a polêmicas, preferiram ser mais discretos ou obscuros.

Cometem-se menos desatinos por fuga do essencial na interpretação de Marx, de Sto. Tomás de Aquino ou de Pascal que na de Maquiavel, Kant ou Descartes.
Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

AS FILOSOFIAS E SUA ESTRUTURA

A estrutura de uma filosofia é o que ela tem de mais patente e de mais oculto ao mesmo tempo. Patente, porque está presente em todas as suas partes, mesmo as mais ínfimas e humildes, as quais nada são fora dela. Oculto, porque só está presente no fundo, como chave de travamento do conjunto, e jamais como parte ou tema explícito em qualquer das partes. O filósofo que tomasse como tema a estrutura da sua própria filosofia, para discorrer sobre ela, já a estaria, nesse mesmo momento, inserindo como parte numa estrutura maior.



Uma das conseqüências disso é que a estrutura jamais pode ser revelada por nenhuma “análise de texto”, por mais meticulosa e bem cuidadinha que seja, a qual só leva à estrutura da exposição, ou da obra escrita, cuja relação com a estrutura da filosofia propriamente dita é sempre variada e ambígua.

O método para apreender a estrutura de uma filosofia tem de partir dos seguintes princípios:

(1) Toda filosofia, por abstrata e desinteressada que pareça, é uma intervenção no curso dos negócios humanos. Visa sempre a modificar ou reforçar o estado de coisas na sociedade, na cultura, na ciência, na religião, nos costumes, ou mesmo na condição humana em sua totalidade,

(2) Para esse fim, ela procede a um exame em profundidade dos obstáculos, cognitivos ou de qualquer outra ordem, que impedem ou dificultam a sua consecução, tentando criar os meios intelectuais e práticos para removê-los.

(3) Sua estrutura, portanto, define-se como uma articulação de fins e meios: Qual a meta histórico-cultural proposta e qual a estratégia, a um tempo cognitiva e persuasiva, usada para legitimá-la e viabilizá-la?

Dito de outro modo, a estrutura de uma filosofia só se revela quando o discurso em que ela se expressa é examinado não como um puro sistema de idéias e doutrinas, mas como uma ação humana, a intervenção de um indivíduo intelectualmente privilegiado na vida dos seus semelhantes supostamente menos dotados que estejam dispostos a ouvi-lo.

Ora, o exame de um discurso como modalidade de ação humana é o campo especializado dos estudos retóricos, da arte da persuasão. Para apreender a estrutura de uma filosofia, a articulação dos seus fins com os seus meios, é preciso portanto examiná-la desde o ponto de vista retórico, considerando-a como esforço de persuasão destinado a produzir, através de modificações na esfera cognitiva, determinados efeitos na vida histórico-social ou até na vida humana em geral.

O que faz com que essa obviedade seja freqüentemente esquecida é que a exposição das idéias filosóficas se faz em geral por meio de um discurso lógico-dialético que despreza o apelo à persuasão retórica e pretende situar-se no campo da demonstração estrita, das certezas intelectuais imunes aos atrativos da oratória.

Acontece que esse discurso, enquanto tal, não é “a” filosofia, mas apenas o conjunto ou sistema de meios intelectuais pelos quais ela busca realizar os seus fins. Se o examinamos “em si mesmo”, sem subordiná-lo aos fins a que deve servir, perdemo-nos numa infinidade de “problemas filosóficos” ou acidentes de percurso, sem jamais atinar com a estrutura da filosofia em questão, a qual estrutura consiste precisamente na articulação dos fins com os meios.

No empenho de discernir essa estrutura, é portanto necessário compreender o discurso lógico-dialético como parte e instrumento de um esforço de persuasão, isto é, de um empreendimento que, visto no conjunto, não é e não pode ser senão de ordem retórica.

O método, portanto, para descobrir a estrutura de uma filosofia reside na análise retórica do seu discurso, discernindo nele os quatro elementos que nos tratados clássicos definem todo discurso retórico: a “situação” de discurso, isto é, o quadro histórico, social, cultural e psicológico onde ele emerge e no qual pretende intervir; o “juiz”, isto é, o público em especial a que se dirige e sobre o qual pretende influir; o “objetivo” ou meta, isto é, a modificação específica que pretende introduzir no quadro; e por fim o “discurso” mesmo, isto é, o conjunto de meios de argumentação, prova e persuasão colocados em ação para realizar esse fim.

Felizmente, o objetivo ou meta – o “para quê”, em última análise, o filósofo está fazendo o que faz – vem explicitamente declarado na maior parte das filosofias. Basta procurá-lo. A dificuldade reside em que nem sempre ele consta das partes consideradas mais importantes ou mais nobres da obra filosófica – às vezes só aparece em cartas pessoais ou trabalhos menores --, de modo que o estudioso, especialmente quando adestrado numa tradição de ensino que privilegia sobretudo a análise dos textos enquanto tais e se concentra por isso nos de maior prestígio, pode se perder num emaranhado de dificuldades de percurso e não chegar jamais a perguntar-se para onde, afinal, o filósofo o está levando com tudo isso. É assim que a mais requintada sofisticação dos meios de análise pode se tornar uma apurada técnica de não entender nada.

Embora eu não conheça nenhum caso em que o objetivo tenha permanecido totalmente oculto, o filósofo pode ter um bom motivo para mantê-lo discreto, quando o considera perigoso ou revolucionário demais para poder, sem escândalo, ser exibido em público nas partes mais nobres e vistosas da sua obra escrita. Neste caso é necessário procurá-lo em escritos menores e de ocasião, cuja importância estratégica no conjunto escapa à atenção do analista vulgar, deslumbrado ante o prestígio das “grandes obras”.

É esse, precisamente, o caso de Immanuel Kant, de Descartes e de Maquiavel.
Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.


terça-feira, 14 de outubro de 2014

COMO NÃO SER ESMAGADO PELA CRUZ DO DIA A DIA?

A vida do homem sobre a Terra é marcada por dificuldades. Com os cristãos não é diferente. A cruz do dia a dia parece, às vezes, ser muito pesada e, para não ser esmagado por ela, é preciso mudar a perspectiva em relação à própria vida. É preciso ter uma visão sobrenatural da própria existência.


Na vida espiritual não é incomum ocorrer uma certa ondulação, ou seja, alternar períodos de grandes consolações com períodos de aridez espiritual. O problema se dá quando as alterações são muito bruscas, elas denotam uma visão carnal da vida. É preciso, então, olhar para a própria vida com o olhar de Deus. Perceber, nas mais diferentes situações da vida, mesmo aquelas injustas, inesperadas, dolorosas, a ação de Deus ou uma oportunidade de oferecer o sofrimento a Ele.

A perspectiva da salvação das almas, da eternidade muda completamente o modo de avaliar os acontecimentos. Uma injustiça que esteja acontecendo pode ser encarada de duas maneiras por aqueles que possuem a visão transcendente: se existe solução, por meio da luta, a ação; mas, se não existe, a aceitação, a resignação, fazendo uma leitura espiritual, enxergando tudo a partir de Deus.

Viktor Frankl, médico psiquiatra judeu, fundador da Logoterapia, enxergou uma realidade que a Igreja Católica conhece há muitos séculos: quando uma pessoa é visitada pelo sofrimento e infere a ele um sentido, torna-se mais fácil suportá-lo.

Dar um sentido sobrenatural às situações adversas torna-as aceitáveis, pois retira delas o absurdo. É o que diz Santo Agostinho: "Deus onipotente, sendo sumamente bom, não deixaria mal algum em sua obra, se não fosse tão poderoso e bom que pudesse tirar até do mal o bem..."(conf. Enchir. 11,3).

Assim, de cada cruz que visita o homem advém uma ressurreição. Depende apenas do modo como percebemos as situações. O transcendente faz com que não se enxergue apenas o prejuízo de uma realidade adversa. Quando se olha para os fatos da vida sob a perspectiva divina, tudo se inverte, tudo muda e, assim, de vítima, o homem se torna vencedor, como experimentou São Paulo quando afirmou: "em Cristo somos mais que vencedores." (conf. Rm 8, 37)
Por: padre Paulo Ricardo

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

VALOR NÃO TEM PREÇO!

Quando você entra numa loja, pede por um produto e pergunta por aquilo que será cobrado, está falando em valor ou preço? Este é um tema aparentemente fácil de resolver, mas é preciso investigar um pouco melhor antes de atribuir juízos. Um filósofo que pode ajudar a pensar melhor sobre isso é Max Scheler, filósofo alemão que trabalhou com profundidade esta questão, criando inclusive uma tabela que define uma escala de valores. Para ele o valor é anterior ao objetvo, ou seja, a escala de valores é objetiva e independe do objeto em questão.


Quando você chega numa loja e pergunta pelo valor de um produto está cometendo um engano, pois quem atribui valor é você. Caso pergunte sobre o preço, essa sim é a maneira certa, pois quem atribui o preço é o dono do produto. O proprietário estabelece o preço de acordo com uma série de custos que ele tem para produzir e leva em conta ainda a lei da oferta e da procura. Para o proprietário não existe uma hierarquia de preços, cada produto terá uma margem de lucro, algumas maiores, outras menores. O valor é individual e geralmente se dá em escala, ou seja, a pessoa tem uma ligação com o produto, pessoa, conceito, havendo uma ligação entre pessoa e objeto em escala de importância.

A maneira como cada um elabora sua escala de importância depende de vários fatores, mas pode-se resumir dizendo que depende da história de vida da pessoa. Algumas pessoas aprenderam que tem valor aquilo que elas não têm. Para elas, tudo o que elas não tiverem será valorado. Há outras pessoas que aprenderam que tem valor o que os outros dizem que tem valor, assim a elas terá valor o que a televisão disser que tem valor, por exemplo. Há casos de pessoas que dão valor ao que a fé diz que tem valor, sendo assim, o que estiver fora dos conceitos da fé, não terá valor. Existem tantas formas de valorar quantos existem pessoas sobre a terra, nenhuma certa e nenhuma errada, cada uma com o seu jeito.

Há um mito, algumas vezes já relatado, mas não custa relembrar. Midas, rei grego, homem muito ganancioso, queria ser o homem mais rico do mundo. Em certa oportunidade Zeus, rei dos deuses gregos, perguntou-lhe porque não distribuía sua riqueza aos pobres. Midas, por sua vez, disse que se pudesse transformava tudo o que tocasse em ouro. Logo que chegou em casa pediu um banquete, mas não conseguia comer porque tudo o que tocava virava ouro. Enquanto jantava chegou sua filha. O rei a tocou e ela logo se tornou uma estátua de ouro. Esta é apenas uma das centenas de versões que existem.

Midas aprendeu a duras penas a diferença entre dinheiro e valor.. Há um tempo um amigo me contou uma história. Dizia ele que um amigo, muito rico tinha vários carros na garagem, mas os filhos não dirigiam nenhum deles. Não porque não soubessem dirigir, não tivessem carteira ou a permissão do pai, todos eles estavam livres para pegar qualquer um dos carros, mas mesmo assim não os dirigiam. Quando foram questionados sobre o motivo de tal comportamento, relataram que aqueles carros era o que, na vida, o pai mais dava valor. Nenhum deles sentia-se à vontade de dirigir uma coisa que não tinha preço.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Publicado no site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

FAÇA VOCÊ MESMO!

Por um acaso você corta seu próprio cabelo? Você consegue pintar perfeitamente a unha da mão direita com a mão esquerda? Você consegue coçar o meio das suas costas sozinho? Consegue roer a unha do próprio pé? Consegue fazer curativos nas próprias feridas? Em cada um destes casos, é necessário, ao menos para a maioria das pessoas, que alguém que lhe possa auxiliar para que ela possa realizar a atividade. Para a pessoa que coça as minhas costas, nada de mais, provavelmente ela estará atrás de mim e facilmente pode coçar. Para o barbeiro que corta o meu cabelo, simples, ele pode dar uma volta inteira ao redor de mim e ainda ver a minha cabeça de cima. Para outros casos acontece o mesmo: a pessoa que desempenha a atividade entende ser muito fácil o que está fazendo, mas para quem recebe parecia impossível fazê-lo sozinho.


Na vida, algumas pessoas, quando encontram problemas, pela posição em que se colocam na situação não conseguem localizá-lo exatamente. Pior ainda, algumas pessoas se colocam em uma posição de modo que o problema pareça inatingível, muito distante delas. Há também os casos nos quais o problema é muito forte e a pessoa entende que ela sozinha não tem capacidade de resolver. Existem ainda centenas de cenários diferentes para o posicionamento de uma pessoa frente a um problema. Mas, o que fazer quando o problema se apresenta de um modo que não tenho como resolver sozinho? Peço ajuda, ao menos seria o aconselhável, mas não é o que acontece em muitos casos.

O mais comum é ver por aí pessoas que estão pintando as próprias unhas, cortando os próprios cabelos, fechando as próprias feridas. Estas pessoas, ao fazerem isso se dão por autossuficientes, não precisam de outra pessoa para lhes ajudar, elas podem fazer sozinhas. Claro que sim, provavelmente um contorcionista existencial consiga coçar o meio de suas costas, mas seria muito mais fácil e certeiro se outra pessoa o fizesse. Esses autossuficientes agem como um velho desenho que eu costumava assistir quando criança, o “Ursulão”. O personagem era famoso por tentar fazer as coisas por ele mesmo, segundo ele, economizaria “quinhentas pratas”. Mas, invariavelmente, pela sua falta de habilidade, falta de conhecimento e muitas vezes de sorte mesmo, acabava fazendo uma enorme confusão e gastando muito mais do que deveria.

Muitas pessoas se apresentam pela vida apontando nossas fragilidades e a facilidade com que poderíamos resolver, mas nem todas saberiam como nos ajudar. É bem provável que qualquer um possa olhar minha cabeça em volta e de cima, mas nem todos sabem cortar o meu cabelo. Claro que ao barbeiro parece fácil, visto que ele se preparou para isso. O ideal é que eu procure o profissional adequado para que ele possa fazer o melhor por mim. Não é porque sou médico que me atenderei a mim mesmo, posso fazê-lo, mas não sei se terei clareza para realmente ver o diagnóstico.

Para sua casa, o seu carro, os seus dentes, você procura os profissionais competentes, e para ajudá-lo existencialmente? Você faz como o Ursulão, economiza quinhentas pratas fazendo por você mesmo o que os outros fariam, na maior parte das vezes, muito melhor? Nem sempre é fácil pagar, mas eu não confiaria meu carro a uma pessoa qualquer, nem a mim mesmo, prefiro um mecânico. Na vida também pode ser assim, quando eu não estiver bem, posso procurar alguém que me ajude a ficar melhor. Quando eu procuro ajuda não estou sendo fraco, mas estou sendo forte o suficiente para fazer algo por mim mesmo. Claro que isso é assim para algumas pessoas, para outras tantas é bobagem.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Publicado no site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

VERDADE OU CONSEQUÊNCIA

Verdade, aletheia, véritas, emunah. Todas estas palavras referem-se à correspondência entre o que foi dito e o que se apresenta. Na terapia, ao longo do tempo tenho me deparado com muitas verdades, ou seja, fatos apresentados pela pessoa que lhe são tão evidentes a ponto de não gerar dúvidas. Um dos casos que me chama atenção é quando uma pessoa relata que fica ao lado de alguém por não ter escolha, porque se entende responsável pelo outro. Uma pessoa que relata isso justifica dizendo que o outro precisa dele financeiramente, porque sozinho não saberia se virar, porque é frágil emocionalmente, cairia em depressão. Em cada uma das justificativas a verdade é clara: é preciso ficar porque o outro depende desta pessoa.


Numa das consultas ouvi uma história que há muito tempo não ouvia. A história conta de um caixeiro viajante, vendedor que ia de cidade em cidade vendendo produtos que comprava diretamente na fábrica. Havia numa vila um menino que tinha uma grande admiração pela profissão e sempre que o caixeiro passava na cidade ele queria ir junto. Quando tinha certa idade pediu aos pais e com o consentimento destes partiu com o caixeiro fazer vendas pelas cidades vizinhas. Numa determinada cidade o caixeiro viu uma família muito pobre que tinha uma vaca muito bonita e que dava muito leite. O caixeiro combinou com o menino: “Vamos pedir pouso aqui e durante a madrugada roubamos a vaca, o lucro de sua venda dividimos meio a meio”. O menino concordou e foi assim que o fizeram, acordaram de madrugada e levaram a vaca da família. Foram até uma cidade vizinha e a venderam, o dinheiro foi dividido tal como o caixeiro tinha dito, mas aquilo começou a incomodar o menino. Pensava ele: “Mas era a fonte de alimento e recurso da família, bebiam o leite, vendiam o queijo, como ficarão sem a vaca?” Quando o menino chegou novamente em casa decidiu não seguir novamente em viagem, guardou o dinheiro com o intuito de ir devolver, mas não conseguia ir.

Depois de muito tempo, quando atingiu a maioridade, agora homem, decidiu que não viveria mais com aquele peso. Pegou suas coisas, o dinheiro que entendia ser justo devolver pelo mal causado e partiu. Chegando ao local onde havia a pequena cabana viu uma casa grande, plantações, pomares. Vendo isso o remorso bateu forte. Mesmo assim tocou a campainha da casa para pedir informações sobre as pessoas que moravam na cabana que ali ficava. Foi recebido pelo dono. Perguntou sobre uma família que vivia numa cabana que ficava no mesmo local. O dono da grande casa lhe disse que ele mesmo morava ali, que eram muito pobres, tinham como único bem uma vaquinha. Certa noite, depois que um caixeiro viajante e seu ajudante passaram por ali a vaquinha fora roubada. Com isto ele pegou o pouco dinheiro que tinha e comprou algumas sementes, cultivou e assim começou a prosperar até chegar ao ponto atual. E disse ainda que era grato ao ladrão que o libertou da dependência daquela vaca.

Em muitos casos uma pessoa entende que não pode partir porque o outro depende dela, mas a verdade é que a sua permanência reforça a dependência. Em outras palavras, um marido que não termina o casamento porque a mulher depende dele a mantém dependente continuando ao seu lado. Uma mãe que vai ao apartamento do filho para fazer a limpeza porque o filho precisa pode estar criando dependência. O fato é que muitos não querem encarar a verdade de que são eles que tornam as pessoas próximas dependentes, ou seja, a sua verdade é na realidade uma consequência.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Publicado no site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

SER - HUMANO

Há em filosofia alguns termos ou formas de se abordar as relações. Tais termos foram trabalhados nos últimos artigos. O tema das relações está presente em nosso cotidiano, reforçado por determinadas notícias que se espalham pela televisão, internet e outros veículos de comunicação. Sendo assim, acredito ser pertinente, por exemplo, a notícia que apareceu numa terça-feira, dia 07 de fevereiro de 2012, referente à troca de casais que está ocorrendo num programa de televisão. Parece que aos poucos a relação entre uma pessoa e outra pessoa está se tornando uma relação entre uma pessoa e um objeto. É interessante observar que este comportamento não se vê só lá na televisão, também se vê no dia-a-dia, em casa, na escola, no trabalho, etc.


Nos artigos anteriores, talvez a linguagem usada, por se tratar de filosofia, tenha ficado um tanto inacessível. No presente artigo, usarei argumentações muito simples. Em Filosofia Clínica, há um termo chamado Interseção de Estruturas de Pensamento, ou seja, a relação que se dá entre dois seres vivos, a relação que se dá como troca. A Interseção de Estruturas de Pensamento supõe que eu entre em contato com o outro na medida em que ele entra em contato comigo, o outro pode ser uma pessoa ou mesmo meu animal de estimação. O outro na interseção é alguém que, como eu, contribui na relação e não é objeto dela. Uma interseção de EP, como é mais comumente conhecida, pode ser positiva, negativa, variável ou indefinida.

Desenvolver uma interseção, ou seja, amarrar laços com outra pessoa é se colocar e receber o outro num espaço de construção coletiva. Esse espaço normalmente não depende somente de uma das partes, mas das duas partes. Se, pela manhã você vai até a padaria comprar pães e é gentil com o vizinho que mora duas casas além da sua na direção da padaria, será que lhe será grosseiro? Ainda que ele o seja, a parte para a construção de uma interseção positiva partiu de você. Uma relação agradável na qual tanto eu quanto o outro estejam bem é uma interseção positiva.

Quanto você sai nervoso pela manhã, entra em seu carro e se transforma, fica grosseiro, mal educado, será recebido com gentileza? Neste exemplo, caso a interseção ocorra de maneira negativa, partiu de você. Este tipo de interseção se dá quando uma ou as duas partes não se sentem bem na relação.

Uma relação na qual você está com a pessoa e hora está bem, hora está mal, tanto para você quanto para ela, é uma interseção variável. E há ainda interseções que acontecem e que não se pode dizer se são positivas ou negativas, sendo caracterizadas provavelmente por indefinidas.

Mas veja, em todo o caso, as interseções se dão entre seres com vontade própria, com arbítrio sobre suas ações, pelo menos até certo ponto. Em se tratando de pessoas, não é você e nem ele o culpado, mas vocês. Mas, e numa relação com objetos inanimados, quem é o culpado quando o objeto estraga? Quem é o culpado pelo mal uso de um objeto? Diferente de uma interseção, onde você e o outro têm vida, numa relação em que você coloca o outro como algo separado, este outro se tornou objeto. Você, por si mesmo, pode se fazer objeto quando não entrar em interseção consigo mesmo como pessoa.

Ser: uma palavra que define movimento, indica o que cada um é agora, mas isto a partir de si mesmo e do outro. Uma interseção, ou seja, uma relação entre dois seres deve ser construída num espaço comum aos dois seres. Relacionar-se com coisas é se colocar acima delas, ter o poder de fazer nascer e morrer, talvez. O entendimento de que você não é objeto e o outro não é objeto deveria fazê-lo compreender que a sua vida está diretamente ligada a do outro, seja ele quem for.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site:

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

SER E APARECER

História de vida, o que é isto? Quanto você olha para o passado e o faz reviver faz com os olhos do presente, mesmo que tente fazê-lo a partir do ponto de vista que tinha no passado ainda assim ele é presente. Esse olhar sempre atual da própria história de vida precisa de certo treinamento, sendo que o primeiro deles é entender que a história de vida não é a pessoa, mas um registro daquilo que viveu, por onde esteve. Se ao longo da vida você por um acaso cometeu “erros” isso não quer dizer que você seja uma pessoa errada, mas uma pessoa que cometeu erros. O contrário também é válido, fazer coisas boas não torna ninguém uma pessoa boa, mas uma pessoa que faz coisas boas. As atitudes de cada pessoa não necessariamente refletem o que ela é, mas sim o que ela faz com aquilo que ela é.


Certa vez conheci um jovem senhor de 70 anos, uma pessoa que cuidava das crianças do bairro, encaminhava para o escotismo, circo, cinema, leitura, enfim, cultura. Por muito tempo me pareceu uma pessoa muito boa, uma pessoa com uma história que dizia que ele era um homem muito bom. Cresci e tive a oportunidade de conversar com este mesmo homem anos depois, já em faze terminal, disse a ele que ele era um homem bom, exemplo de pessoa. Sua resposta me deixou confuso na época, hoje entendo perfeitamente o que ele disse. Disse ele: “Não sou um homem bom, vivi minha vida para mim, fiz sempre o que quis, sou orgulhoso, mesquinho, arrogante, prepotente. Quando vocês eram pequenos eu via em vocês bichos do mato e me achava muito melhor, por isso mostrava um mundo “melhor” para vocês, queria poder dizer para mim mesmo que fui eu quem os salvou da ignorância. Dei-me o direto de achar que o que viviam na pequena vila deveria ser mudado, a começar pelas crianças, por isso me arroguei o direito de intervir. Eu me achava a melhor das pessoas, porque ninguém ao redor sabia o que eu sabia, tinha viajado o que eu tinha viajado, por isso não escutava, falava, dava conselhos”.

Passei anos discordando, entendendo que se ele fez coisas boas é porque era uma pessoa boa. No entanto, anos mais tarde, depois de muita filosofia percebi que, ele via em suas atitudes a intenção por detrás delas. Filosoficamente a questão fica bem complicada, pois será que interessa o mérito interior de uma boa ação? Os mais religiosos provavelmente dirão que sim, mas e a história de fé sem obras é morta, será o oposto também é verdade? Que obras sem fé também são mortas? Voltando ao caso citado, esse homem mostrou e, mesmo depois de seu falecimento, ainda mostra que as atitudes de uma pessoa não mostram quem ela é.

Por isso, quando olhar para a própria história, com suas escolhas, acertos e erros, é necessário perceber que suas atitudes não são você, mas o que você faz com o que você é. Aos que cometeram erros ao longo da vida e sentem-se julgados pelos outros, basta lembrar que estes outros têm suas histórias. Podemos não ter orgulho de algumas escolhas que fizemos, mas podemos nos orgulhar das escolhas que são feitas agora, neste momento.

Por isso, se sua história contém coisas das quais você não se orgulha, veja o que pode ser feito deste momento em diante para se orgulhar. Se sua atitude no casamento mostra uma pessoa que você não é, pode ser feito diferente. Há uma única coisa que não pode se feita: legar a responsabilidade ao outro pelo passado que tenho, pois mesmo quando outorgo ao outro a escrita da minha história sou responsável por ela. Meu amigo fez muitas cosias boas mesmo se achando mau, uma pessoa pode fazer muitas cosias más se achando boa.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: