quinta-feira, 3 de maio de 2012

ENTREVISTA COM ERNESTO SÁBATO (2)


Janer Cristaldo – O mesmo não diriam um Proust ou Joyce. Explique melhor a coisa. Ernesto Sábato – O inconsciente se expressa sempre por imagens, como nos sonhos, que são como cinema mudo, com raras exceções. A pintura tem esta vantagem sobre a literatura, embora por outro lado tenha desvantagens. Tanto em um caso como no outro, o fundamental, as grandes verdades, vêm do inconsciente. De um sonho pode-se dizer qualquer coisa, menos que seja falso. O processo da criação, tal como pelo menos eu pude verificar pessoalmente, é assim: em momentos excepcionais, nessa região penumbrosa que fica entre o sono e o pleno despertar, às vezes se consegue entrever algo, o que poderíamos e talvez deveríamos denominar de "objeto poético", quase inexpressável, ambíguo, contraditório, mas tão verdadeiro que nos sacode, nos angustia ou nos fascina. O escritor tem de expressar esse objeto por intermédio da palavra, mas a palavra sempre é conceitual: "árvore" não é a imagem de uma árvore, já que serve tanto para uma palmeira como para um limoeiro. É uma convenção abstrata, e por isso em cada língua se diz de maneira diferente: árvore, baum, tree... Um dos grandes problemas que o escritor tem de resolver é o de expressar, mediante conceitos puros, algo que não é conceitual, mas visual, e além disso ambíguo, polivalente. Penso em todas as interpretações que se podem fazer e foram feitas dos sonhos de José, através dos séculos. Essa é a diferença entre poesia e prosa, não a que se pensa normalmente: a prosa, em sentido estrito, é um teorema, ou uma lei científica, ou um prospecto que acompanha um objeto doméstico eletrônico, em que se dá instruções precisas e unívocas sobre cada botão. A poesia, no sentido grande e clássico, é, ao contrário, ambígua e multívoca, seja um poema, uma tragédia ou um grande romance. Tem muitas leituras, como se diz agora no jargão, é suscetível de diferentes interpretações, que mudam inclusive em nós mesmos, como leitores, à medida que passam os anos. Esta linguagem poética, que na simples prosa emprega idéias abstratas, na pintura se dá diretamente através de uma imagem.

JC – Você tem feito exposições?
ES – Sim, mas só no estrangeiro. a primeira no centro Pompidou, há pouco uma em Madri e outra novamente em Paris.

JC – Como influiu em seu ânimo, e mesmo em sua saúde, essa nova condição?
ES – Maravilhosamente. A pintura é mais liberadora, por isso talvez existam pintores mais longevos que escritores. Marc Chagall não acabava de morrer nunca... Há, além disso, a vantagem de ser algo mais intuitivo e manual. Até o cheiro de terebintina me subjuga. Cada vez que entrava no ateliê de pintura de um amigo meu sentia esse cheiro e um sentimento de frustração. Alguma vez escrevi que lutamos contra o destino e o destino por fim tem razão. Eu costumava dizer a Matilde: morrerei com uma enorme nostalgia da pintura. A semicegueira me permitiu a pintura.

JC – Em que escola você se situa?
ES – Você, que leu e traduziu meus romances, que acha?
JC – Uma pintura trágica e expressionista?
ES – Acertou. Ultimamente derivou para uma obra totalmente sobrenaturalista. Há quadros tão terríveis que não poderia colocá-los em minha casa, como diria um marxista eterno, o Groucho.

JC – Como se sente hoje o pintor que está quase cego?
ES – Enfim, não exageremos. Mas quero te dizer que tive uma crise, via como se tivesse uma teia de aranha pela frente. Tive a paixão pela pintura desde que era pequeno. Isso tem a ver com algo muito curioso. Durante toda minha vida tive paixão pela pintura. Sempre estive vinculado com o pintor, tanto na Argentina como em Paris. Eu vivi em Paris muitas vezes, mas principalmente um ano inteiro antes da guerra, no laboratório Curie, com um bolsa que obtive com o Dr. Houssay, prêmio Nobel de medicina.

JC – Me consta que ele ficou muito frustrado com sua renúncia à ciência...
ES – Sim, logicamente, inclusive me retirou a saudação. Olha só o que é a mentalidade cientificista! Não fiz disto um problema fundamental. Estive em um momento crítico quando se produziu a fissão do átomo de urânio. Aí eu pensei que isto seria o princípio do apocalipse. Acontece que sempre fui apocalíptico por natureza.

JC – Não é por acaso que escreveu Abaddón...
ES – Neste romance pus em minha lápide: " Ernesto Sábato quis ser enterrado nesta terra com uma só palavra em sua tumba: PAZ". Aí narro de forma fantástica o que sofri, neste momento de minha vida. Eu vivia, como sabes... eu chegava tarde no laboratório, cansado, e vivia à noite com os surrealistas, no Dôme, naquela época era um dos cafés dos surrealistas, agora é um café burguês. Quando voltei lá, anos mais tarde, com muito temor de rever o café, quase morri de tristeza. Mas lá continuam as fotografias antigas. Ali eu me reunia com quase todos. Com Domínguez, que depois se suicidou... depois te conto algo sobre este suicídio. Certa vez me convidou para que nos suicidássemos juntos.

JC – Ah, sim? Bom... e quando ocorre o episódio com Victor Brauner, você cria um personagem nominado pela letra E. Houve uma briga entre Dominguez e outro pintor e Brauner acabou tendo o olho vazado por copo, jogado por alguém. O personagem E. tem algo a ver com Ernesto?
ES – Não, não. Não foi comigo. Pus E. porque era um amigo comum. Pus assim por delicadeza, sei lá por quê... Foi terrível. Na verdade, tudo ocorreu no ateliê de Domínguez. Ele foi um bom amigo. Era das Ilhas Canárias, muito louco, talvez não fosse um grande pintor, mas fez coisas boas. Era um surrealista autêntico, talvez o surrealista mais autêntico que conheci em minha vida. Ele viveu como um surrealista, não foi um farsante como Dali, por exemplo. Eu gostava muito dele. Era enorme, brutal, acromegálico. Era bom pintor... Depois trabalhou com Picasso, porque Picasso além de ser um gênio, sem dúvida alguma, era também uma espécie de executivo, tinha uma mentalidade muito comercial. Este homem, Picasso, jamais quis conhecê-lo. Pintor importante, mas jamais gostei dele como ser humano. Tínhamos amigos comuns, como Domínguez, que trabalhou com ele durante anos. É autor de muitas das falsificações de Picasso que existem no mundo. Nos Estados Unidos há muitos Picasso/Domínguez.

JC – Creio que também de Dali...
ES – Também fez falsificações de Dali. Era uma pessoa muito divertida, de humor negro, propenso ao suicídio, ao álcool, às drogas, mas um grande amigo e muito generoso.
JC – E este convite ao suicídio entre vocês dois ...
ES – Para concluir isto... nesta época, foi antes da guerra. Bem, a pobre Matilde foi o marco de minha existência. Eu daria dez vezes minha vida para tê-la. Está doente há oito anos e meio, como sabes. Tem arteriosclerose e está semi-paralizada, mas... é para mim uma dor muito profunda, dizer isto não tem nada de mais, todo mundo sabe, na Argentina se diz... que tenho outras mulheres. Creio que a monogamia é uma invenção do cristianismo, porque nem mesmo seus antepassados judeus eram monógamos. Pensava nada mais que em Davi e em Salomão.

JC – Isto faz parte da vida de um escritor.
ES – Sim, faz parte da vida em geral. Acontece que há uma espécie de hipocrisia, e eu detesto a hipocrisia. Tive algumas paixões muito fortes que duraram anos. Ela sofreu muito.
JC – Ela sempre teve conhecimento dessas paixões?
ES – Sim, de uma maneira ou de outra, claro. Algumas duraram dez anos. Houve grandes culturas polígamas e também poliândricas e que nada têm de escandalosas. Isto é uma hipocrisia típica de agora, desses países chamados cristãos.

JC – Alejandra estará calcada em alguma de suas amadas?
ES – Não, não. Em meus romances há dois ou três personagens que podíamos chamar de "après nature", como diziam os pintores naturalistas, que pintavam uma banana como uma banana, uma maçã como uma maçã. Em meus personagens, a exceção é Dominguez, que aparece em Abaddón e em Héroes y Tumbas, mas é um Dominguez deformado completamente por acontecimentos que não eram dele, mas eram como um retrato dele. Digo isto com carinho... Os outros personagens são todos ilusórios. Há em Abaddón, nesse momento que considerei o começo do apocalipse, pela fissão do átomo de urânio, dois personagens, um que se chama Molinelli e o outro tem um nome judeu muito estranho, como Citronenbaum, que quer dizer algo como limoeiro. Eu me divertia muito inventando esse personagem, porque era um judeu pequeno, com uma roupa que provavelmente pertencia a algum antepassado enorme, ou que usava por falta de dinheiro. Era pequeno e magro, tinha algo parecido com Trotski, eu o imaginei assim. Mas com uns olhos tremendos e acompanhado pelo Molinelli, que era um grandote e gordo.

JC – Você não tem grande apreço pelo naturalismo...
ES – O naturalismo me aborrece. Às vezes há pessoas que me perguntam coisas tão grotescas como, por exemplo, se Alejandra vivia realmente no Mirador. Mas Alejandra jamais viveu. Paradoxalmente, o fato de criar, inventar um personagem, te dá uma liberdade absoluta. No entanto, todos os personagens, creio, se se faz uma literatura profunda, e não uma literatura naturalista – isto não digo eu, mas já disse Ibsen, já disse Flaubert – madame Bovary c'est moi–, é um exagero. Madame Bovary tinha de uma forma caricatural o próprio romantismo que Flaubert tinha escondido. Mas era uma pobre mulher de província. Ibsen diz: "todas as personagens saíram de meu coração". O coração do homem é muito misterioso e jamais acabamos de conhecê-lo. Quando escreves, as coisas vão saindo. Estes dois personagens, Molinelli e Citronenbaum, as pessoas crêem que existiram. No entanto, jamais existiram. Mas, em outro sentido penso que, no fundo, toda obra literária, se é profunda, vem do mais profundo do coração, que é inescrutável. Além disso, é misterioso a ponto de assustar-te nos sonhos. E estes sonhos são teus. Escrevi coisas que Pascal chamava "raisons du coeur", as razões do coração. Isto se escreve daqui para baixo (Sábato indica a têmpora). Daqui para cima é o teorema de Pitágoras. Estas coisas são muito formosas, mas não servem para viver nem para morrer. A literatura, a arte, a poesia –a poesia em geral, no sentido grave e profundo que lhe dão os gregos– isto é, tudo que não é cerebral, tudo que tem a ver com as paixões, sentimentos, emoções, com o inconsciente, aí está a grande verdade. De um sonho pode se dizer qualquer coisa menos que seja uma mentira. Mas o sonho é uma verdade misteriosa que o próprio homem que o sonhou não sabe bem o que quis dizer. Isto inclusive o assusta.

JC – Enfim, o que é assustador em tua obra é o "Informe sobre Cegos", um pesadelo. De onde saiu esta...
ES – Isto é apenas um pedaço, pois nos três romances há coisas que são pesadelos. Há vários sonhos: o pássaro de Castel, em El Tunel. Em Abaddón há muitas coisas que jamais aconteceram, aquelas coisas na cripta de uma igreja, aquela violação de uma mulher que, no lugar do sexo, tinha um olho. Tudo isto te ocorre como te ocorre em um sonho. Não sabes o que queres dizer. Eu nunca soube o que ia dizer. Escrevia o que ia saindo. Em minha obscura intuição, sabia que tinha de escrever algo. Mas os cegos de meus romances não são cegos no sentido naturalista da palavra. Certa vez um médico me perguntou, assim como alguém me pede a verdade verdadeira, ao autor: "essa história dos cegos é verdade?" Ele estava muito preocupado. Eu disse: olhe, tudo depende do que você entende como verdade. Quem vai imaginar que os cegos vivem nas cloacas? Isto talvez seja uma metáfora do inconsciente, coisas que vão saindo aos borbotões. Há além disso humor negro e coisas muito misteriosas. Esta é a única espécie de literatura que me interessa. Pois penso que aí estão as grandes verdades, sempre, como nos sonhos, e dos sonhos se pode dizer qualquer coisa, menos que sejam uma mentira.

JC – Antes que esqueçamos, como é esta história do suicídio com Dominguez? É uma coisa pouco conhecida em sua biografia.
ES – Ah, sim, ia me referir a isto por Matilde. Matilde estava comigo desde seus dezessete anos. Era de uma família judia, muito religiosa, havia em sua família talmudistas. Nessa época, eu estava metido no movimento comunista, mas metido de verdade, nunca fui comunista de salão. Fui secretário do Partido Comunista durante cinco anos, e me separei quando começaram os processos de Moscou e percebi ser uma abominação aquela ditadura espantosa que deixou vinte milhões de mortos e torturados. Dados pós-Gorbatchov. Nessa época, conheci Matilde. Fugiu de casa com dezessete anos. Naquela época, na Argentina, ter dezessete anos era ser menor de idade. Enganou a polícia durante um ano. Eu vivia clandestinamente. Dessa época até hoje, são sessenta e tantos anos, temos vivido juntos, e viveremos juntos até a morte. Eu daria dez vezes minha vida por Matilde. Ela foi quem me alentou, me estimulou. É uma mulher sensível, terrivelmente sensível, muito inteligente, muito imaginativa. Enfim, como todos os homens, tive paixões por outras mulheres. Algumas foram paixões pequenas e outras duraram anos. Matilde sofreu muito com isso. O que contei tem a ver com a pergunta que me fez. Horrível, porque nos instalamos em Paris em um quartinho na Rue de Sommerard, perto de Cluny. Tive uma aventura com uma mulher russa, dessas emigradas, uma coisa muito feia. Assim como fiz outras coisas muito bonitas, essa foi uma coisa ... totalmente sexual, digamos. Há que dizer a verdade, me horroriza estar mistificando. Deixei Matilde com o filho que tinha três meses e fui viver sob outro teto, para poder ter uma vida livre com essa mulher. Matilde decidiu voltar à Argentina. Eu a acompanhei ao embarque. Foi realmente muito triste tudo isto. É uma lembrança que não me traz nenhuma honra. Que se pode fazer? Eu creio que o homem tem uma natureza polígama.
Em Paris, quando chegou o inverno, foi um inverno muito frio, era antes da guerra, seria no mês de novembro, dezembro, eu estava muito só, trabalhando no laboratório Curie, e à noite me reunia com os surrealistas. Com Matta, Domínguez, Bréton. Este era um bom poeta, que fez um manifesto misturando o materialismo dialético com os sonhos. Nesta época, fomos uma tarde ao Marché aux Puces, que ficava na Porte de Clignancourt. Voltamos porque havia começado a chuviscar, era uma tarde muito triste. Domínguez era um homem de fundo trágico. Voltamos no metrô que ia até Porte d'Orléans, porque o ateliê de Dominguez estava em Montparnasse. Saímos do metrô e chuviscava, já era de noite. Ele me disse: "Ernesto, que te parece se esta noite nos suicidamos juntos?"

JC – Assim, só por dizer?
ES – Não, ele tinha a obsessão do suicídio. Eu também estive duas ou três vezes muito perto do suicídio.
JC – Isto se pode ver em seus livros.
ES – Sim, isto foi uma obsessão. Fui sempre um depressivo, passava das paixões mais violentas a depressões que duravam meses, eram muito profundas. Domínguez me disse aquilo, quando estávamos já no ateliê, e eu lhe disse: "Olhe, não, eu tenho outros projetos". (Ri). A palavra projeto agora é curiosa, para um suicídio.

Resumo da ópera: o projeto de Domínguez não vingou, ou pelo menos não vingou em parte, já que ele decidiu partir sozinho. Sábato, hoje em sua oitava década de existência, está "vivito y coleando", como dizem os espanhóis, e nos lega uma densa obra ficcional. Em correspondência passada, falávamos de morte, esta eterna obsessão de Sábato, que inclusive já escreveu seu epitáfio em Abaddón. Como bom discípulo, tive de discordar dele. Sábato já escapou à condição de mortal. Pode até ocorrer que morra, que seu corpo se putrefaça. Isto pouco importa. Permanecerá sempre vivo na memória de todo homem culto. Por: Janer Cristaldo

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