terça-feira, 27 de agosto de 2013

SALMOS CHILENOS

Dias atrás entrei na catedral de Santiago do Chile. Minha mulher, discípula de Guimarães Rosa, para quem "quanto mais religião melhor", adora todo e qualquer santo.

Eu, mais miserável nesse assunto, apesar de não religioso, sou facilmente capturado pelo aspecto estético e sublime de templos sagrados. Foi um prazer ver e ouvir aquela missa "en chileno".

A catedral silenciosa, discreta e com pouca luz, com sua altura gigantesca, nos ajudava a lembrar nosso lugar no mundo -que não me venham os inteligentinhos fazer o blá-blá-blá da crítica à religião, porque a conheço desde o jardim da infância.

Sentir-se "em seu justo lugar no mundo" é parte clássica de toda boa espiritualidade, contra esse narcisismo dos "direitos do Eu total" de hoje, essa coisa "ninja brega".

Este "justo lugar no mundo" é parte daquilo que o historiador das religiões Mircea Eliade chama de perceber que não somos o "axis mundi" (o eixo do mundo). Toda verdadeira espiritualidade deve nos ajudar a vivenciar este "descentramento" de nosso próprio valor.

O mistério me encanta e me faz sentir menos banal. A sensação da banalidade de tudo me esmaga continuamente. Sou um peregrino da falta de sentido. Uma testemunha da noite escura da alma de San Juan de la Cruz e Terrence Malick. Não levo a sério ateus militantes que ainda acham que ateísmo é "evolução espiritual". Para mim, ateísmo é, apenas, o modo mais óbvio de ser e um estágio elementar em filosofia.

Fiquei ateu com oito anos. Alguém poderia dizer que com os anos me tornei um ateu encantado pelo "personagem" Deus e pela possibilidade de existir o perdão no mundo, justamente porque, no fundo, não o merecemos. Sou cego, mas pressinto o espaço à minha volta.

O padre em sua homilia falava da alegria da vida. O papa Francisco quando cá esteve tocou neste tema, falando da "religião da alegria". Não se trata de autoajuda, como pode parecer aos desinformados, mas da mais fina teologia moral cristã (e judaica também). O que é essa alegria? Vejamos.

A vida é precária. A pobreza (material, espiritual, psicológica) é como a gravidade, na hora em que relaxamos, ela nos consome. É uma questão de tempo. Nosso caminho é "para baixo". Não é à toa que tomamos antidepressivos o tempo todo, cada um se vira como pode. A solidariedade na melancolia devia nos unir a todos. O que não perdoo na autoajuda é que ela mente para nosso justo desespero dizendo que ele é mera questão de incompetência.

É aqui que começa a consistência da teologia da alegria a qual se refere o papa Francisco: temos todas as razões "materiais" do mundo para sermos tristes, o milagre é não sermos tristes todo o tempo.

Confiar na vida é quase impossível. A fé na vida é um mistério e um dom. Muito mais caro do que a inteligência e a cultura -não as desprezo, porque inclusive elas são quase tudo que tenho.

Este é o sentido de fé como "estar acompanhando" em sua encíclica "A Luz da Fé".

A alegria da qual falava o padre chileno e o papa Francisco é a "alegria teologal", aquela que nasce das três virtudes teologais básicas: a esperança, a fé e a caridade (o amor).

Ter esperança, crer na vida e amar são experiências que separam a infância espiritual da maturidade d'alma. O desespero é o caminho mais curto entre dois momentos na vida. A esperança é que é o milagre para quem enxerga o mundo como ele é. Por isso, toda literatura espiritual séria começa pelo vale das sombras.

Dizer que uma virtude é teologal é dizer que ela é fruto da graça de Deus, não uma dedução a partir dos fatos do mundo. Dos fatos, apenas deduzimos o desespero. Mas, por isso mesmo, esta alegria, quando nos visita, tem o hálito divino, por sua própria quase total impossibilidade de ser, para quem reconhece o vale das sombras à nossa volta. Na mística, esta alegria pode nos levar às lágrimas. Este é o conhecido "dom das lágrimas", marca de quem vê a beleza do mundo em meio ao véu absoluto do desespero.

Nada a ver com religião como muleta, mas sim com uma espiritualidade de quem caminha só, eternamente, entre sombras. 
Por: Luiz Felipe Pondé  Folha de SP   ponde.folha@uol.com.br

domingo, 25 de agosto de 2013

DORES EXISTENCIAS

Vivemos numa época em que as dores são consideradas como ruins, uma dor é algo a ser debelado. Antigamente quando uma criança cortava o dedo, era tratada com Merthiolate e Mercúrio Cromo. Um dos desafios às mães era convencer a criança a se deixar medicar, pois eram medicamentos que causavam dor. Geralmente a mãe dizia: “Fica quieto, se dói, cura”. Atualmente o medicamento já não causa mais dor, a fórmula foi alterada de maneira que a aplicação seja indolor. Quando não se tinha Merthiolate utilizava-se álcool ou até mesmo a velha e boa cachaça com arnica. Aqueles que passaram por estes tratamentos devem lembrar que era bastante doloroso a aplicação destes medicamentos sobre a ferida. Era também uma época em que a criança tinha desde cedo uma participação forte na família, em muitos casos com tarefas como alimentar os animais, varrer o pátio, capinar a horta. As dificuldades da família eram partilhadas, não se “tapava o sol com a peneira” para que a criança não sofresse. 

Esta postura menos polida, dito por alguns, mas realista, era a maneira que as famílias antigas tinham para preparar suas crianças para a vida. Eram crianças, hoje adultos, que desde cedo percebiam que na vida passar por algumas dores era algo absolutamente normal e natural. Sabiam que depois de um dia capinando as mãos teriam bolhas e estas provocariam dores; com o tempo e o trabalho a pele da mão engrossava e já não fazia mais calo. Não se pode dizer que era algo agradável, bom, desejável, mas era algo pelo qual era necessário passar. Colaborar com a família passava pela dor do trabalho físico. 

Existencialmente as coisas não são muito diferentes: existem dores que precisam ser vividas para que nos façam mais fortes. Imagine uma mocinha que arruma um namorado. Pelos acasos da vida seu relacionamento não funciona e ela sofre. Sua mãe, por temer o pior recomenda um remedinho para aliviar essa dor ou leva a filha às compras para esquecer. O que esta mãe está fazendo? Muito provavelmente está evitando que a filha crie resistência, que aprenda com o que aconteceu, que vivencie de maneira produtiva aquela dor existencial. Sofrer por sofrer não é recomendável, mas eliminar todo o sofrimento também não é produtivo. 

Em alguns casos uma depressão pode ser o melhor remédio que uma pessoa encontrará para muitos dos males. Em um de meus atendimentos ouvi o seguinte: “Eu estava em depressão, estava triste, não queria conversar e as pessoas diziam que eu não tinha motivo para estar assim. Eu sabia, mas quanto mais elas me diziam, mais depressiva eu ficava. Eu estava vivendo minha depressão, era um momento que eu precisava viver. Depois que vivi segui em frente”. É interessante perceber que viver uma dor existencial não significa ser masoquista, mas viver a consequência de uma série de fatores que podem ser ruins agora, mas serão muito bons no futuro. Na primeira vez em que se vai à academia ao fazer exercícios os músculos doem, e é sinal de que os exercícios estão fazendo efeito. 

Uma pessoa que usa dispositivos para anestesiar uma dor pode pouco a pouco aumentar a dose para uma dor que é, aparentemente, cada vez maior. Algumas pessoas ao anestesiar suas dores também anestesiam seus prazeres. Correm o risco de chegar num tempo em que não sabem mais o que é dor ou prazer, ou seja, ficam anestesiadas para a vida.
Por: Rosemiro A. Sefstrom  Di site www.filosofiaclinicasc.com.br 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

"EM UM MUNDO MELHOR"

É possível um mundo melhor? Sim e não. Sim, é possível um mundo melhor a começar por melhores remédios, casas, escolas, hospitais, aviões, democracia (ainda acredito nela, apesar de ficar de bode às vezes).


Não, não é possível um mundo melhor porque algumas coisas não mudam, como o caráter humano, suas mentiras e vaidades, sua violência, mesmo que travestida de civilidade, nossas inseguranças, nossa miséria física e mental, nossa hipocrisia. Nossas ambivalências sem cura. Os valores são incomensuráveis. Você até pode achar que na vida vale mais a pena "ser" do que "ter", mas isso pode ser apenas um modo infantil de ver as coisas: não há "ser" sem o "ter" que sustenta tudo.

A famosa frase "que vão os anéis e fiquem os dedos" às vezes mais parece ser bem o contrário, "que vão dedos e fiquem os anéis", porque os diamantes são eternos, e os dedos, não.

Resumindo: mesmo a tecnologia e a ciência, grandes fatores positivos, podem ser elas mesmas terríveis. Não é outro o sentido de se perguntar "como educar depois de Auschwitz?", como se pergunta o filósofo Theodor Adorno. Mesmo a democracia pode virar coisa de "black blocs" ou demagogos que juram confiar na "sabedoria popular". E isso dá bode.

Recentemente revi o filme "Em um Mundo Melhor", de Susanne Bier, de 2010. Trata-se de um filme bastante didático, bom para escolas. Um médico sueco trabalha em algum lugar infeliz da África, enquanto sua família derrete na Dinamarca onde mora.

Seu filho é objeto de bullying (chamam-no de "rato" pelos dentes feios que tem e esvaziam o pneu da sua bicicleta o tempo todo). Ele nunca reage. É tímido e tem medo dos mais fortes. Sabe que se reagisse apanharia mais. Muitas vezes, a essência da coragem é perder o medo de sofrer além do que já se sofre. A verdade da coragem não é querer vencer, mas perder o medo de perder tudo que se tem.

Escolas de crianças são um escândalo. Um depósito de violência de todo tipo. Um lugar especialmente indicado se quisermos duvidar da existência de Deus usando o famoso argumento a partir do mal ("argument from evil", como dizem os filósofos da religião americanos): se Deus existe e é bom e todo-poderoso, como o mundo pode ser mau como obviamente é?

Há todo tipo de resposta para isso, e elas compõem o que em teologia se chama "teodiceia". Qual é o sentido de ser bom na vida? Há garantias de que o bem compensa? Não, não há, nenhuma.

Eu concordo com o filósofo Isaiah Berlin: não há teodiceia possível. Os valores são incomensuráveis entre culturas, pessoas, épocas históricas. Qualquer utopia não passa de um surto infantil projetado sobre o mundo. Não vai mais longe do que uma história de Branca de Neve.

Voltando ao filme. O médico é contra violência física. E vive isso de modo corajoso, não se pode negar. A vida que leva na África é prova de seu caráter. Enfrenta um sujeito que bate na sua cara na Dinamarca, quando está visitando sua mulher e filhos, de modo digno, revelando a estupidez que está por trás do brutamontes idiota.

Ela quer o divórcio porque se sente sozinha, é óbvio, e, aparentemente, além de deixá-la sozinha, ele andou comendo alguém por aí... Santo, mas nem tanto... Você pode salvar o mundo enterrando sua família. Olha aí a incomensurabilidade de que fala Berlin.

Ao final, seu princípio de não violência é testado na África e ele perceberá que para tudo existe um basta, e às vezes a violência é tudo que resta. Os pacifistas são também gente infantil.

Mas onde está esse mundo melhor no filme? A vida em casa degringola. O filho humilhado encontra um amigo que o protege na escola. Um menino corajoso, decidido e violento, que se move no mundo de modo oposto aos princípios do médico.

Na verdade, o menino é um desesperado, solitário, que acaba de perder a mãe de câncer, num processo doloroso que sutilmente o filme parece indicar ter chegado à eutanásia.

O mundo melhor parece ser aquele no qual as pessoas podem errar, pedir perdão e ser perdoadas. Um mundo melhor não é um mundo sem violência ou ambivalência, mas um mundo onde existe o perdão. Por: Luiz Felipe Pondé  Folha de SP

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

RESPEITO E HUMANIDADE

A única maneira de respeitar o diferente é respeitando sua humanidade, respeitando-o como ser humano. Quando nos damos conta de que cada pessoa é exatamente tão humana quanto nós, impõe-se um respeito que, de outra forma, poderia facilmente desaparecer por qualquer tipo de falsa razão.


O nazismo, para conseguir apoio da população para seus objetivos genocidas, começou negando a humanidade dos judeus; os jornais nazistas retratavam judeus caricatos, com enormes narizes e tranças, roubando o dinheiro do povo alemão. Aos poucos, essa desumanização chegou ao ponto em que o amigo ou colega de trabalho judeu – que era conhecido e certamente não correspondia àquela horrenda caricatura, que só existia nas mentes deformadas dos nazistas – passava, ele também, a ter a sua humanidade negada. Não são poucas as histórias de judeus atacados em praça pública e espezinhados, ainda antes do início do genocídio organizado, pelos vizinhos e conhecidos. Com o sucesso do processo de desumanização, eles deixavam de ser o amigo ou vizinho e se tornavam um ser subumano, um inimigo impessoal contra o qual todo ataque seria justo. Antes do genocídio vieram as pequenas humilhações.

E a história destes primeiros sucessos na desumanização do próximo vem agora se repetindo. Há alguns meses, rapazes da antiga TFP foram atacados na rua por militantes gayzistas em Curitiba. Há poucos dias, o mesmo ocorreu com o deputado Feliciano, publicamente humilhado e constrangido em um avião de carreira quando uma dupla de passageiros postou-se ao seu lado, rebolando e berrando no corredor do avião. Um deles, até a intervenção de outro passageiro, chegou ao ponto de passar-lhe repetidamente a mão nas orelhas e cabelo.

Mais uma vez, não interessa se concordamos ou não com o deputado; o que é preciso evitar a todo custo é a desumanização do adversário político ou de quem pensa diferente. Não há nenhuma diferença essencial entre a boçalidade que nega a humanidade do homossexual e a boçalidade que nega a humanidade do deputado. Quando alguém se sente autorizado a gritar, xingar ou esfregar as mãos na cabeça do próximo, mostra já ter perdido completamente o respeito que é devido a todo ser humano.

E se, em vez de em um avião lotado, Feliciano houvesse sido encontrado por seus atacantes em uma rua deserta, sem ter quem o acudisse? E se eles já tivessem perdido ainda mais a inibição, depois de beber umas e outras? Em vez de um mero desrespeito, poderíamos ter tido uma tragédia. A diferença, repito, é de grau, não de essência. 
Por: Carlos Ramalhete é professor Publicado no jornal Gazeta do Povo.




domingo, 18 de agosto de 2013

CRÔNICA ANTIGA: FALÊNCIA DO MACHO

Descobriu tudo e deu três tiros na mulher. Para bom entendedor, a manchete já disse tudo, nem é preciso ler a notícia. O crime ocorreu sexta-feira passada, na esquina da Sete de Setembro com a João Manoel. Entrei num edifício do centro, o porteiro comentava:
- Nesses casos, a culpa é sempre da mulher. O homem sempre tem razão.

A meu lado, estava o homicida potencial. Em minha pasta de recortes, as notícias sobre maridos que matam mulheres já estão ocupando um espaço excessivo. Ora o marido mata a mulher que o traiu, ora mata o amante da mulher, quando não mata os dois. O fato comporta algumas variantes. Mas a decisão do júri é uma só: absolvição. Defesa da honra, pretextam. Mas que honra é essa que exige sangue para ser lavada?

Vejo algo de mais profundo e sintomático nessa atitude do marido e do júri. Não creio se trate apenas de defesa da honra. Mas sim medo do homem de nossa época ante a nova mulher que surge.

Houve um momento na História em que o Estado encarregava-se de vingar os brios do macho insultado. Antes do surgimento da roda e da máquina, era senhor quem tinha maior força física, ou seja, o homem. O homem erigiu o Estado e as leis eram um reflexo de sua vontade absoluta. A mulher era sua propriedade, o adultério era antes de mais nada um roubo. E o Estado punia esse roubo. Jogava os adúlteros na fogueira. Ou pendurava-os no patíbulo.

Os tempos mudaram. Hoje, força física não alimenta ninguém, exceto ídolos do futebol ou campeões olímpicos. A máquina permite que uma mulher execute o mesmo trabalho de um homem. Não está mais em jogo sua força física, mas sua capacidade mental. Mesmo ainda inferiorizada, a mulher pode hoje prover o seu sustento, decidir, comandar. Em outras palavras, equipara-se ao homem. Se nos primórdios da humanidade a subsistência dependia de músculos rijos, manejo do tacape ou machado, argúcia na caça, hoje subsistência depende de conhecimento, técnica, cultura. Sabemos como vive – ou melhor, sobrevive – quem só dispõe de força física para o trabalho.

A fêmea do homem evoluiu. O macho continua o mesmo.

Posso ser dono de um livro, de um par de sapatos, de um carro. São coisas, objetos. Eu os possuo e deles disponho como bem entender. Mas não posso ser dono de uma mulher, de um outro ser humano com vontade própria. Se minha mulher me troca por um outro homem, creio existirem apenas duas atitudes a tomar. Uma, seria cumprimentar minha mulher, caso tenha encontrado um homem melhor dotado e com mais capacidade de oferecer-lhe amor e compreensão. (Pois é bem possível que eu não seja o mais perfeito e amoroso dos homens, não é verdade?) A outra atitude seria dar-lhe pêsames, por ter-me trocado por um homem inferior e incapaz de oferecer-lhe amor. (Pois é bem possível que eu não seja o mais imperfeito e egoísta dos homens, não é verdade?)

Mas o macho contemporâneo não renunciou à sua condição de senhor. Vê na mulher uma escrava, uma coisa de sua propriedade. Sente-se roubado? Mata. Os jurados o inocentam, numa espécie de alerta: “Cuidado, querida. Se me traíres, te mato. E meus colegas me absolverão”. Chamam a isto defesa da honra.

Os tempos mudaram. A mulher se transformou. O homem ficou parado no tempo. Ao sentir-se traído, só conhece uma forma de diálogo: reage à bala. Isto é, o macho está falido. 

Por: Janer Cristaldo *Porto Alegre, Folha da Manhã, 03/11/1975

sábado, 17 de agosto de 2013

O GUANGUE DE COPPOLA

Não pretendo envaidecer-me. Não pretendo convencer ninguém. Mas quando li, anos atrás, uma reportagem na "Vanity Fair" sobre um gangue de adolescentes que assaltava casas de celebridades em Hollywood, pensei: isso dava um filme. Mais: isso dava um filme para Sofia Coppola.


Minto, claro. Não cheguei a tanto. Não cheguei a Coppola. Mas estava na cara - ou, melhor dizendo, estava no texto que só Coppola tinha unhas para tocar esta guitarra.

Aconteceu. O brilhantíssimo "The Bling Ring", que estreia no Brasil essa sexta-feira, é um filme sobre o mais bizarro dos crimes: o crime do "desejo mimético".

A expressão pertence a René Girard, um dos grandes pensadores do nosso tempo que - atenção, Brasil! - tem a obra publicada pela editora É Realizações em colecção de luxo.

Defendia René Girard que os seres humanos, ao contrário da falácia romântica, não são seres "autênticos", que buscam realizar na vida ou na arte as suas incorrompidas naturezas.
Incorrompidas? Pois sim. Todos estamos corrompidos pelos modelos que invejamos. Ou, dito de outra forma, desejamos o que os outros desejam; queremos ser o que os nossos modelos são ou pretendem ser.
Divulgação 
Emma Watson vive a perua Nicki no filme 'Bling Ring: A Gangue de Hollywood'


Para citar um caso literário próximo a Girard, D. Quixote não amava genuinamente Dulcineia. Ele amava os exemplos dos romances de cavalaria e comportava-se como os modelos romanescos se comportam: cortejando a sua donzela, lutando contra os seus gigantes imaginários.

No fundo, Girard mostrava o jogo triangular em que vivemos constantemente: um processo mimético em que existimos nós e os objectos dos nossos desejos, devidamente mediados pelo modelo que invejamos. Escusado será dizer que as sociedades modernas, e em particular as "sociedades do espectáculo", elevaram esse jogo a patamares nunca vistos.

Eis a premissa de Sofia Coppola: no bairro mais exclusivo de Los Angeles, aquele grupo de adolescentes está longe de viver na pobreza.

Mas a distância que os perturba não é material. É simbólica e, por via do símbolo, existencial. Não basta roubar vestidos Chanel ou sapatos Manolo Blahnik para usar ou vender.

Os vestidos devem pertencer à celebridade X e os sapatos à celebridade Y. O proprietário da coisa é mais importante do que a coisa em si. Como nas relíquias religiosas que provocavam furor na Idade Média, tocar na relíquia é pertencer ao círculo exclusivo dos eleitos.

E aqueles adolescentes pertencem, ou acreditam que pertencem, sempre que se apropriam de mais um objeto cobiçado. Coppola é notável ao filmar o êxtase quase religioso daqueles crentes ao entrarem no santuário narcísico de Paris Hilton.

Como é notável ao filmar o fim da aventura e o início de outra: o momento em que a polícia surge na casa de cada um para os algemar e prender. Como normalmente algema e prende uma qualquer Lindsay Lohan da Hollywood "trash" dos nossos dias.

Finalmente em tribunal e na prisão, eles são as verdadeiras celebridades. Eles comportam-se como celebridades. E, como ensina René Girarard, o "desejo mimético" converte-se em rivalidade com o modelo que anteriormente se imitava.

Não admira que uma das adolescentes, em entrevista televisiva, confesse o seu desprezo por ter escutado o choro desamparado de Lindsay Lohan quando ambas partilhavam o mesmo presídio.

Como não admira que o único rapaz do gangue afirme, orgulhoso, que depois da sua detenção já havia mais de 800 pedidos de amizade no Facebook. Oitocentos pedidos. Oitocentos novos candidatos para reiniciar o círculo infernal do "desejo mimético".

Aliás, para que esse círculo fosse perfeito, só faltava que a casa de cada um dos assaltantes também fosse assaltada por novos assaltantes. Mas isso talvez fosse pedir demais.
Por: João Pereira Coutunho  Folha de SP

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A NOITE ESCURA DE TERRENCE MALICK

"Amor Pleno", novo filme de Terrence Malick, é um exemplo do que o místico espanhol do século 16 San Juan de la Cruz chamou de "noite escura da alma". Não é à toa que o padre (Javier Bardem) tem um discurso muito colado ao do místico espanhol. Ele é o personagem central da narrativa. Como sempre, sem teologia e filosofia, não se entende Terrence Malick.


Por consequência, o filme está próximo do texto bíblico "Cântico dos Cânticos", peça fundamental da literatura mística ocidental, influência marcante no místico espanhol: "Onde Te escondestes que não Te encontro, meu Deus?". No "Cânticos", o amor entre Deus e a humanidade é representado pelo amor entre um homem e uma mulher, suas agonias, prazeres e ausências. "A Noite Escura da Alma" é, como "Cânticos", um texto erótico.

"O amor de Cristo pela sua igreja é como o amor de um homem e uma mulher", diz Bardem. Eis a chave para entendermos o poema místico que é "Amor Pleno". No cristianismo, amor não é mero afeto, mas a ação que nos faz existir. Sem ele, a vida esvazia.

Nesta chave, o amor entre Ben Affleck e "suas" duas mulheres está também "sob" o véu da noite escura da alma, assim como está o amor do padre por Deus e o mundo. Ele é incapaz de amar, elas sofrem por isso.

O filme encerra com a imagem do Mont Saint-Michel, na França, local onde o casal vai no começo de seu amor. Esta abadia é símbolo da vida monástica medieval. Os filósofos vitorinos (Hugo e Ricardo da Abadia de São Vitor, século 12), em sua teoria sobre o amor, entendiam que o amor, posteriormente dito romântico, era da mesma substância do amor de Deus.

Assim como é difícil para nós mantermos o amor por Deus, é difícil sustentarmos o amor entre um homem e uma mulher. Nossa natureza "caída" não suporta o "peso" do amor. Este "peso" assume várias formas, entre elas, o compromisso com ele, principalmente no vazio que o cotidiano instaura em nosso coração e corpo sedentos.

Nossa natureza tende "para baixo", para o tédio e a insatisfação, como diz a mulher francesa no filme quando se refere às duas mulheres que existe nela: uma tende para o amor, para o alto, a outra para baixo, para a terra.

Não é à toa que ela, a francesa, após uma longa conversa com a amiga italiana, niilista e entediada, chega ao adultério, símbolo máximo do tédio e da degradação do amor. Quando nos distanciamos do amor, nos dissipamos num desejo que nos leva ao nada.

Mas, o que vem a ser esta "noite escura da alma"? Quando falamos de mística, pensamos normalmente em êxtase, em "gozo místico". Mas, a "noite escura" é o momento em que a alma, conhecedora de Deus, deixa de senti-lo no seu cotidiano, o que a leva à solidão, ao desespero e à dúvida. Uma verdadeira mística da agonia.

Neste momento, o padre lembra a máxima do Evangelho: "Você deve amar", portanto, o amor não é mero sentimento, mas sim uma ação, como é dito no filme. Agir com amor, mesmo que não sintamos o amor. Para ele, continuar cuidando dos doentes, para o casal, continuar a cuidar um do outro, porque longe do amor, somos todos doentes, umas criaturas da noite que vagam numa escuridão sem fim. No escuro, não é só o outro que desaparece, mas nós também.

O padre chega mesmo a lamentar o fato que, em seu ministério, ele deve "fingir" sentimentos que não tem, assim como um casal deve continuar a amar (esta é a condição do amor como "ação" e não mero sentimento) mesmo quando a paixão desaparece.

Quando nos sentimos longe do amor (de Deus), vemos nosso nada, isso deixa nossa alma inquieta, sedenta. Como é dito em "Árvore da Vida", filme anterior de Malick, a vida sem amor "flashes by", apenas passa. Esta é a chave para passarmos do "Árvore da Vida" ao "Amor Pleno". A responsabilidade dos que "amam menos", como diz o padre, se referindo a ele e a Ben Affleck, é maior, porque são eles que enxergam melhor o vazio no coração da vida.

Os ecos da "noite escura" atingem toda a existência, para além da teologia, adentrando a solidão nossa de cada dia. O drama maior não é não ser amado, mas ser incapaz de amar.
Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

COMPOSIÇÃO

Tirar fotografias é um hobbie que faz parte da vida de muita gente. Nos dias de hoje com o advento da tecnologia fotográfica muitas pessoas têm acesso ao equipamento, desde os mais simples embutidos em um celular até os profissionais. A primeira fotografia conhecida veio ao mundo pelas mãos do francês Joseph Nicéphore Niépce em 1826, lembrando que a invenção da fotografia não pode ser atribuída a Joseph, pois foi um longo processo que envolveu muitos outros pesquisadores. As primeiras fotografias necessitavam de mais ou menos oito horas de exposição à claridade para que se pudesse obter a imagem no papel. Há pouco tempo ainda era necessário fotografar e esperar pela revelação para ver se o efeito esperado apareceria no papel. Muitas vezes a tão esperada foto “queimava”. 

Por mais que seja fácil fotografar, produzir um bom material já não é tão simples. Existem algumas regras que fazem com que o resultado seja agradável aos olhos e não apenas um registro do momento. A primeira regra básica é preencher os espaços, basta olhar fotografias consagradas e podemos perceber que não aparecem espaços vazios, o assunto que interessa preenche o espaço. Uma segunda regra é perceber se o fundo tem a ver com o tema principal, observar se as cores, formas e claridade estão de acordo com o assunto mais importante da foto. Outra dica interessante é planejar com antecedência, é necessário ao fotógrafo criar o ambiente da fotografia, observar os elementos e dispô-los de maneira a produzir o efeito desejado. Por fim recomenda-se enquadrar bem, perceber se o tema da foto não está muito longe, muito perto, se está de acordo com o que propõe a temática. 

Em nossa vida o dia-a-dia não está muito longe de uma fotografia, observe. Por exemplo, sua esposa pergunta como foi o seu dia, ou seja, de tudo o que você viveu ela espera de você em algumas palavras uma composição. Como a pergunta foi pelo seu dia, o tema é livre, pode falar do trabalho, do almoço, do caminho até o trabalho, dos pensamentos, enfim. Como o seu dia tem muitas coisas você vai escolher algo para ser o seu tema, o elemento que vai preencher sua narrativa. Deste modo, você pode contar os horríveis buracos que têm na Avenida Centenário na Próspera e utilizar como fundo o bom dia de trabalho que teve. Pode ainda usar como tema o belo dia que teve e usar como fundo o projeto de um passeio no fim de semana. O tema que você escolher vai determinar com o que você está entrando em contato, alimentando-se, compondo. 

O fundo do dia-a-dia de cada um é diferente. Para alguns o tema é a grande história de amor que vivem, mas usam como pano de fundo dívidas, brigas, traições. Parece estranho, mas usam elementos que não combinam numa mesma foto, percebem que não está legal, mas não entendem exatamente o quê. Há casos ainda em que a pessoa vive uma terrível depressão e usa como pano de fundo os filhos na faculdade, o marido em um bom emprego. O fundo não combina com o tema principal, a composição pode gerar ansiedade, confusão. Lembrando que o tema é aquilo com o que você entra em contato, o fundo são as condições em que isso acontece. 

Planejar com antecedência é selecionar o que vai entrar e o que vai ficar de fora da minha fotografia. Eu posso incluir na minha fotografia os buracos da Avenida Centenário lá na Próspera, assim como posso incluir os pergolados da Praça Nereu Ramos. O que é tema e fundo, eu posso definir, não preciso ser refém dos elementos, posso compor com eles. Já enquadrar bem, isso seria colocar o tema central na posição que ele merece, no terço que lhe cabe no cenário planejado. A composição narrativa do seu dia para a sua esposa mostra com quais elementos está compondo a sua vida.
Por: Rosemiro A. Sefstrom  Do site www.filosofiaclinicasc.com.br

PLEBISCITO EM COPACABANA

Se Dona Dilma Rousseff queria um plebiscito, já o teve: o recente encontro entusiástico e triunfal do Papa Francisco com três milhões de fiéis na Praia de Copacabana, a maior manifestação de massas de toda a nossa história, mostrou que o povo brasileiro ama tudo o que a presidenta odeia e odeia tudo o que ela ama: feminismo, gayzismo, abortismo, comunismo, tudo o que é anticristão só sobrevive neste país graças à proteção do governo e de bilionários imbecis. Não tem raízes na nossa sociedade, não tem eco na alma popular, não tem nada a ver com a nossa vida. Quem tem é a Igreja, quem tem é o Papa.


A Presidência da República e a dita "grande mídia" sabem perfeitamente disso, mas querem dar a impressão de que a "Marcha das Vadias" é tão representativa da opinião nacional, tão legítima e tão digna de carinhosa atenção, quanto a grandiosa e multitudinária proclamação popular de adesão incondicional aos valores da fé cristã.

É assim que uma minoria ínfima, estrambótica e grotesca adquire, artificialmente, foros de respeitabilidade, no instante mesmo em que se avilta a si própria com micagens dignas de doentes mentais e violações ostensivas do Código Penal (art. 280, "vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso") e da lei federal 7716/89, art. 20 ("praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito de religião").

Essa legitimação forçada vai espalhando entre as vítimas o sentimento de inibição que as impede de reagir contra a ofensa e as vai habituando, pouco a pouco, mas cada vez mais velozmente, a curvar-se caladas ante os mais cínicos e despudorados, até reconhecê-los, por fim, como únicas encarnações concebíveis do bem e da autoridade moral. É esse processo de autocastração voluntária induzida que a socióloga alemã Elizabeth Noëlle-Neumann descreveu como "Espiral do Silêncio".

Quando Dona Dilma, com a mesma prótese de sorriso inócuo encaixilhada na boca, posa para fotografias ao lado do Papa e das "Vadias", ela nos ensina que na democracia a fé e o crime são igualmente valiosos e dignos de respeito. E ela faz isso com plena consciência de que algum gemido de protesto, por mais discreto e inaudível que seja, será imediatamente estigmatizado como "terrorismo de direita", anunciando para breve – muito breve, nas esperanças do sr. Mauro Santayana – o encarceramento do impudente e imprudente reclamão.

Mas o aparente indiferentismo democrático, por mais asqueroso que seja em si mesmo, é uma pura camuflagem provisória. Por baixo dele, Dona Dilma e seu governo já mostraram de que lado estão. Para sabê-lo basta perguntar: quanto se esforçaram pela cristianização do povo e quanto pela vitória de tudo o que as "Vadias" representam?

A lógica aí subentendida é a mesma que enaltece a prática do aborto em massa, mas pune como obscena incitação ao ódio a divulgação de vídeos que simplesmente descrevem o que é um aborto. Assim, gradativamente, tudo o que é abjeto e monstruoso vai-se transformando primeiro em coisa permitida, em seguida protegida, por fim obrigatória.

Essas tendências começam a germinar nos bas fonds da classe universitária e do ativismo organizado, quase inconscientemente de início, mas a velocidade da sua transformação postiça em "clamor público" é cada vez maior. O próprio elemento caricatural e grotesco que carregam em si inerentemente protege-as contra qualquer reação inicial, de modo que elas vão crescendo até o ponto em que toda reação se torna inviável. 

Tudo o que os conservadores e a população em geral consideram demasiado absurdo, demasiado louco para ser verdade, acaba acontecendo precisamente porque julgavam que era impossível.

A transmutação do criminoso em vítima e do denunciante em criminoso torna-se por fim regra geral, até que o país inteiro se transforme numa societas sceleris onde só criminosos psicopatas são admitidos nas altas esferas da fama e do poder.

As grandes mudanças da mentalidade das massas são, por definição, invisíveis e insensíveis para as próprias massas. Tanto mais invisíveis e insensíveis quanto mais velozes. Apenas o recuo no tempo permite ao historiador, depois do fato consumado, retraçar a transmutação violenta e radical que levou milhões de pessoas a aceitar passivamente aquilo que de início lhes parecia não só horroroso como impensável. 

Alguém, no Facebook, lembrou o contraste entre dois Brasis: aquele que anos atrás protestou em massa quando um único fanático anticatólico chutou diante das câmeras de TV uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, e aquele que agora contempla inerme e passivo o espetáculo das "Vadias" num canto da praia de Copacabana lotada de fiéis.

O povo brasileiro que expressa entre gritos e lágrimas o seu amor ao Papa e a Nosso Senhor Jesus Cristo já é também o mesmo que emudece, com um sentimento que se aproxima do temor reverencial, diante do ataque mais brutal já desferido contra a religião católica neste país. 

Talvez Dona Dilma, não sem alguma perspicácia, considere que este segundo aspecto é, entre os resultados do plebiscito de Copacabana, a parte mais significativa.

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

"PENSAMENTOS SIMPLES"

O papa Francisco foi-se embora do Brasil, levando consigo a sensacional simpatia que promete fazer dele uma estrela internacional. Deixou para trás aquele sorriso capaz de desmanchar uma pedreira de granito, e lembranças que muita gente guardará para o resto da vida. O mais importante para o futuro, porém, são as primeiras pistas que Francisco foi colocando aqui e ali, muito discretamente, sobre suas ideias gerais a respeito de como enfrentar a ameaça mais perigosa que a Igreja Católica tem pela frente hoje: a perda lenta, gradual e segura de fiéis pelo mundo afora, cada vez mais desinteressados em questões de fé religiosa como um todo, e da fé cristã em particular. Essa vazante é mundial ─ inclusive no Brasil, o país que a tradição diz ser o mais católico do mundo. Ano após ano, a Igreja de Roma vem perdendo fiéis brasileiros para religiões concorrentes, como os chamados cultos evangélicos, ou para a indiferença de um público muito mais interessado nas coisas materiais, que podem ser compradas com dinheiro e consumidas de imediato, do que nas coisas do espírito. Os seminários andam com taxas de ocupação abaixo do necessário, e em alguns dos países mais católicos da Europa já começa a haver mais igrejas do que padres.


Francisco, em sua visita ao Brasil, não tem uma solução clara para isso, nem para o caminhão de outros problemas que a Igreja Católica carrega hoje nas costas ─ da pedofilia, que leva cada vez mais famílias a não colocar seus filhos em colégio de padre, à corrupção vulgar de qualquer república bananeira. Nem Jesus Cristo em pessoa, se pudesse descer hoje à terra, conseguiria destrinchar a horrorosa variedade de estorvos que seus pastores foram criando ao longo de vinte séculos ─ não nos sete dias que Deus precisou para construir o mundo. O que pode fazer, diante disso tudo, um homem só, por mais papa e mais infalível que seja? Pode, para começo de conversa, mostrar uma qualidade preciosa em situações como essa: a capacidade de encarar situações complicadas com pensamentos simples. O papa Francisco parece capaz de fazer isso.

“Se uma pessoa é gay, procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”, disse Francisco pouco depois de deixar o Brasil. Ele reclamou, é verdade, dos grupos gays que se formam para influir no Vaticano. Mas o que vale, mesmo, é a essência de sua convicção: sim, afirmou o papa, a pessoa pode ser gay e cristã ao mesmo tempo. Por que não? É o contrário do que sustenta há séculos a doutrina da Igreja, numa resistência teimosa, mesquinha e inútil à liberdade de costumes no mundo de hoje. Mas Francisco parece estar avisando que não pretende rezar exatamente por esse catecismo ─ e que não considera inteligente estreitar a porta de entrada na Igreja num momento em que o catolicismo perde um número cada vez maior de seguidores. Não parece fazer muito sentido, de fato, ficar com tanto enjoamento, numa hora dessas, para dizer quem está ou não qualificado para ser católico. Pelos critérios vigentes, um católico não pode ser gay, nem divorciado, nem casado com uma segunda mulher. Não pode usar camisinha. Não pode casar se quiser ser padre, e tem de casar se quiser viver com uma pessoa de outro sexo. Não pode aceitar o aborto, trabalhar em pesquisas com células-tronco ou descrer de milagres e de outras coisas que ofendem a lógica mais elementar. Não pode achar que o homem vem do macaco, nem que as espécies evoluem e se transformam com o passar do tempo. Não pode isso, não pode aquilo — são exigências demais. Pior: todas essas exigências não têm absolutamente nada a ver com nenhum valor moral. Uma pessoa pode levar uma vida perfeitamente exemplar, do ponto de vista moral, e ser divorciada, por exemplo. Por que, então, deveria estar excluída do catolicismo?

Eis aí o desafio real para a Igreja Católica de hoje: aceitar como cristã toda pessoa que viva com decência, tenha valores e se comporte segundo um código moral. Está tudo explicado no Sermão da Montanha, o texto mais importante do Evangelho e o primeiro guia de conduta apresentado à humanidade, junto com os Dez Mandamentos; é nele que Cristo ensina que o homem tem de ser honesto, tolerante e generoso, tem de dizer a verdade, saber perdoar e buscar a justiça, viver em paz e amar o próximo. Basta fazer o que está escrito lá ─ o que, por sinal, é muito difícil. Lembrar o Sermão da Montanha, que a Igreja jamais seguiu, poderia ser um bom começo para salvar o catolicismo no século XXI.
Por: J. R. Guzzo Publicado na edição impressa de VEJA





terça-feira, 13 de agosto de 2013

VAI FAZER O QUÊ?


No artigo anterior faltaram muitas questões que poderiam ser elaboradas como forma de reflexão sobre o programa que tenta mostrar como “as pessoas” se comportam diante de “injustiças”. Pretendo desta vez provocar um questionamento: quando uma atriz ou ator consegue separar o seu papel na representação do seu papel na realidade? O programa do domingo anterior, dia 04.08.2013, apresentava uma menina acima do peso, a qual era agredida verbalmente pela mãe devido a isso. As agressões eram diretas, a mãe dizia barbaridades à filha que chorava diante das desmedidas palavras. Até onde aquela criança, acima do peso, realmente consegue separar e entender que tudo o que a “mãe” dizia era de mentirinha? 

De modo um tanto jocoso, imagine que você está de fato acima do peso, ou seja, está gordo. Por um motivo qualquer é escolhido para representar uma pessoa acima do peso em uma peça de teatro. Na mesma dizem coisas realmente absurdas sobre o seu peso, a sua forma de se alimentar, sem lembrar que o seu peso e a sua forma de se alimentar podem ser você. Em outras palavras, você pode ser seu hábito alimentar, pode ser o peso que tem. Aristóteles costumava dizer que “você é o que você faz repetidamente”. Nas novelas existem muitos beijos cinematográficos, com separações tão cinematográficas quanto os beijos. Existem sim pessoas que conseguem separar uma coisa da outras, mas são todas? Pode-se dizer com certa segurança que um mínimo destas pessoas consegue fazer a separação entre o papel que exercem e a vida real. É fato que boa parte incorpora o que vive nas telas e acaba levando para a vida, alguns de modo muito ruim. 

O mais interessante na reportagem foi a mãe da menina atriz dizer que sofreu realmente quando criança por conta de seu peso. Mesmo assim expôs sua filha ao mesmo papel: ser ridicularizada em frente às câmeras para ver o que os outros fariam a respeito. Sei que parece um tanto duro, trágico, contundente, mas acho que se seu filho fosse orelhudo não acharia nem um pouco engraçado que ele fosse convidado para fazer papel de Dumbo numa peça da escola. Pode até ser engraçado, legal, naquele momento, mas e o que vem depois? No filme Donnie Darko o personagem ouve uma frase que lhe deixa preocupado: “Nos momentos mais importantes da vida estamos sempre sozinhos”. É claro que não é assim, mas é muito provável que aquela menina terá que lidar com o que foi dito ao longo do programa sozinha.

Separar o mundo real e o de mentira não é para todos, existe uma quantidade considerável de pessoas que leva os problemas do trabalho para casa, assim como os que levam os problemas de casa para o trabalho. Entender que cada Personagem tem seus conteúdos já não é tão simples, isolar um conteúdo de um papel de modo que não interfira nos outros, para muitos é impossível. Eu posso fazer papel de pai, papel de mãe, mas o que eu viver lá pode ter efeito em todos os outros papeis, e como saber o efeito? Só vou saber se uma pessoa realmente separa uma coisa da outra e consegue distinguir de maneira cirúrgica o estar acima do peso do fazer de conta que está a acima do se eu conhecer a pessoa. No mais, é tudo loteria. 

E você, vai fazer o que? Deixar seu filho ou filha se colocar na posição de cobaia de experimento social? Fazer aos outros e a si próprio de cobaia atestando que é só uma brincadeira não faz com que a atitude seja menos real. Brincar de bola na rua de casa quando era pequeno era uma brincadeira, mas era real.

Rosemiro A. Sefstrom  Do site www.filosofiaclinicasc.com.br

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O HEREGE VIAJANTE

Tempos atrás, as Nações Unidas deixaram uma sugestão para acabar com a fome no mundo: comer insetos. Segundo a ONU, gafanhotos, formigas ou besouros são altamente nutritivos, combatem a obesidade e têm a vantagem de existir em quantidades apreciáveis.


Aliás, com o tempero certo, esses pitéus são indistinguíveis dos vulgares camarões, das sofisticadas ostras ou dos repugnantes caracóis que os meus compatriotas gostam de comer nos meses de verão pelas esplanadas de Portugal.

Não sei o que pensou o leitor dessa sugestão gastronômica e assaz ecológica da ONU. Provavelmente, escutou com respeito e, em nome do Ambiente (com maiúscula), não fez comentários.

Eu, confesso, também não fiz nenhum. Preferi correr para o vaso sanitário e despejar os três últimos jantares só com a ideia de transformar as baratas da cozinha em guisado. Estarei sozinho no meu vergonhoso eurocentrismo?

Pelos vistos, não estou. Os comediantes Ricky Gervais e Stephen Merchant, criadores do brilhantíssimo "The Office", produziram uma série para a Sky que só agora assisti.

E assisti por conselho de uma amiga que, depois de provar primeiro, disse que o prato tinha a minha cara. O nome do produto é "An Idiot Abroad" (um idiota no estrangeiro) e ainda hoje não sei se o comentário dela era um elogio ou um insulto.

Tomo como um elogio. Até porque não me lembro de ter rido tanto e tão alto nos últimos tempos com uma premissa tão simples: Ricky Gervais e Stephen Merchant enviam um amigo para viajar pelo mundo com uma reduzida equipe de filmagens.

O amigo chama-se Karl Pilkington e é o típico "Little Englander" para quem a civilização só existe no nosso bairro e o resto do planeta é a mais pura barbárie. O lado brilhante do documentário é que Pilkington não é um ator; viajar para ele é mesmo uma forma de tortura; e as opiniões sobre o mundo que ele visita são genuínas e hilariantes.

Essa autenticidade começa logo no primeiro episódio, quando o destino é a China e a gastronomia local é apresentada ao viajante Pilkington.

O viajante confronta-se com o cardápio --uma longa lista de seres rastejantes-- e depois filosofa: "O problema da China é não haver uma separação rigorosa entre comida e bichos". Continua: "Na Inglaterra, quando se descobre uma coisa dessas na cozinha, as autoridades sanitárias fecham o restaurante; na China, servem de aperitivo". E conclui: "Se uma chinesa acorda e vê uma aranha no banheiro, não é de excluir que ela pense para si própria: 'O croissant fica para amanhã, vou comer já isso'".

"An Idiot Abroad" é esse estranho paradoxo: um documentário sobre viagens apresentado por alguém que detesta viajar e para quem o exotismo do Outro é uma fonte constante de suplícios.

Não interessa se o cenário é milenar ou, para usar a palavra cafona da indústria do turismo, "paradisíaco". Viajando pela muralha da China, pelas pirâmides do Egito ou até pelo Rio de Janeiro em pleno Carnaval, Pilkington tem um talento único para encontrar o aberrante e o assustador. Para dissertar sobre o assunto com graça natural. E para suspirar constantemente pelo regresso a casa.

Escusado será dizer que o programa teve um sucesso imediato e que Pilkington virou uma das maiores estrelas televisivas no Reino Unido. Já existem livros sobre o assunto. A série já teve três temporadas. E ainda ninguém conseguiu explicar ao certo como é que alguém sem "superego" consegue conquistar não só o gosto do público, mas também da crítica.

Arrisco uma hipótese: porque a crítica tem "superego" a mais. E, afogada pelas cartilhas que gostam de impor um único código de pensamentos e comportamentos sobre o Outro, talvez ela sinta uma secreta admiração por alguém que destrói todos os códigos.

Porque, contas feitas, é indiferente saber se concordamos ou discordamos do viajante, embora eu concorde que o turismo de massas é o inferno na Terra e a água canalizada, uma das grandes conquistas do homem.

O que interessa é ver Karl Pilkington em ação (e em sofrimento) para recordarmos apenas como era a liberdade e mesmo a idiotia antes da fogueira das inquisições laicas.
Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A ESPIRITUALIDADE DAS PEDRAS

Meu Deus, como ter um "eu" cansa! Os místicos têm razão. Não é necessário ser um "crente" para ver isso, basta ter algum senso de ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o "eu". E a modernidade é toda uma sinfonia (ou melhor, uma "diafonia", contrário da sinfonia) para este pequeno "eu" infantil.


Outro dia, contemplava pessoas num aeroporto embarcando para os EUA com malas vazias para poder comprar um monte de coisas lá.

Que vergonha. É o tal do "eu" que faz isso. Ele precisa comprar, adquirir, sentir-se tendo vantagem em tudo. O "eu" sente um "frisson" num outlet baratinho em Miami. O mundo faz mais sentido quando ele economiza US$10. E o pior é que, neste mundo em que vivemos, faz mesmo sentido. Qualquer outra forma de sentido parece custar muito mais do que US$ 10.

A filosofia inglesa tem uma expressão muito boa que é "wants", para se referir a nossas necessidades a serem satisfeitas. Poderíamos traduzir de modo livre por "quereres". O "eu" é um poço sem fundo de "wants". Isso me deprime um tanto.

Como dizia acima, a modernidade é toda feita para servir ao pequeno autoritário, o "eu": ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais consumo, mais direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção, mais reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro.

Outra demanda do "eu" que enche o saco é querer se conhecer. Você conhece coisa mais chata do que alguém que tira um final de semana para fazer um workshop de autoconhecimento e aí vai para jardins "fakes" na Raposo? E pior, quem tira seis meses para se conhecer depois dos 40 anos e acha legal? O autoconhecimento só é sério quando deságua em autoironia.

O império do "eu" se revela quando vivemos pela angústia de torná-lo "resolvido". Nada é mais típico dessa angústia estéril do que alguém sempre atento às próprias dores.

Outra armadilha típica do mundinho do "eu" é a idolatria do desejo. A filosofia sempre problematizou o desejo como modo de escravidão, e isso nada tem a ver com a dita repressão cristã (que nem foi o cristianismo que inventou) do desejo. Problematizar o desejo tem mais a ver com um conhecimento sutil, fruto da experimentação que a realização do desejo sem idealizá-lo traz. A idealização do desejo é marca da condição adolescente ou reprimida.

O "eu" falante inunda o mundo com seu ruído. O "eu" mais discreto tece um silêncio que desperta o interesse em conhecê-lo. Mas hoje vivemos num mundo da falação de si, como numa espécie de contínuo striptease da alma. O corpo nu é mais interessante do que a alma que se oferece. Por isso toda poesia sincera é ruim (Oscar Wilde). O "eu" deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.

A alta literatura espiritual, oriental ou ocidental, há muito compreende o ridículo do culto ao "eu". Uma leveza peculiar está presente em narrativas gregas (neoplatonismo), budistas (o "eu" como prisão) ou místicas (cristã, judaica ou islâmica).

Conceitos como "aniquilamento" (anéantissement, comum em textos franceses entre os séculos 14 e 17), "desprendimento" (abegescheidenheit, em alemão medieval) e "aphalé panta" (grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do "eu" por si mesmo.

A leveza nasce da sensação de que atender ao "eu" é uma prisão maior do que atender ao mundo, porque do "eu" nunca nos libertamos quando queremos servi-lo. Ele está em toda parte como um deus ressentido.

Por isso, um autor como Nikos Kazantzakis, em seu primoroso "Ascese", diz que apenas quando não queremos nada, quando não desejamos nada é que somos livres. Muito próximo dele, o filósofo epicurista André Comte-Sponville, no seu maior livro, "Tratado do Desespero e da Beatitude", defende o "des-espero" como superação de uma vida pautada por expectativas.

Entre as piores expectativas está a da vida eterna. Espero que ao final o descanso das pedras nos espere. Amém.
Por: Luiz Felipe Pondé  ponde.folha@uol.com.br  Folha de SP

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O OUTSIDER FRANCISCO, O LEITOR DE DOSTOYEVSKI


Bergoglio, no portenhíssimo “subte” (metrô) da linha A em 2008. Meia década antes de ser Francisco.

Direto. Outsider. Este é Jorge Bergoglio, um portenho do bairro de Flores que poucos dias antes de tornar-se o papa Francisco em Roma pegava o metrô em Buenos Aires como qualquer habitante da capital argentina. Ao aparecer na sacada da basílica de São Pedro, em seu primeiro discurso mostrou outra característica – o humor – ao afirmar que os cardeais “haviam ido buscá-lo no fim do mundo”, em alusão aos confins meridionais onde está localizada a Argentina.

Nas horas seguintes ficaram claras outras características do novo santo padre, quando os telespectadores em todo o mundo viram o anel de prata (em vez de ouro) na mão. No peito, uma cruz de prata escurecida pela ferrugem. Nos pés, os sapatos pretos portenhos que levou à Roma com seu clergyman de jesuíta e que agora despontam por baixo dos brancos hábitos de sumo pontífice.

Leitor do autor russo Fiódor Dostoyevski, fã e amigo do escritor argentino Jorge Luis Borges, Bergoglio, é adjetivado de “sóbrio” e “frugal” por seus mais fiéis colaboradores. No entanto, seus inimigos preferem defini-lo como “calculista”, “frio”, “traiçoeiro” e “autoritário”.

Aqueles que o conhecem bem sustentam que só mostra intensa paixão quando fala de Fiodor Dostoyevski, seu escritor preferido. “É um jesuíta até a medula. Ele fala pouco. Ouve o dobro do que fala. E pensa o triplo do que ouve”, disse ao Estado um ex-embaixador argentino em Roma. O diplomata sustenta que jamais desejaria ter Bergoglio como inimigo. Com ironia, explica: “Quem vive, como Bergoglio, só à base de frango cozido e verduras, só pode ser um cara perigoso…”.

Mas, para os argentinos, Bergoglio é o novo ídolo. As pesquisas indicam que mais de 75% dos habitantes do país simpatizam com ele, inclusive os integrantes de outras religiões e os ateus. Sua imagem é vendida em posters, figurinhas e stickers.

Bergoglio é idolatrado pelo clero jovem argentino que aprecia sua proximidade com o povo. Quando morava na cidade, o cardeal mantinha conversas com os portenhos enquanto se deslocava em metrô ou ônibus. Seus admiradores afirmam que o fazia “para estar perto do povo”. Os críticos sustentam que era “puro populismo”.

Os parlamentares da esquerda, que se confrontaram com freqüência com Bergoglio por questões como a legalização do aborto, o definem como “o pior dos inimigos, porque é um inimigo muito inteligente”. No entanto, o cardeal também os desconcerta ao realizar furiosos ataques contra o neoliberalismo.
Fiódor Dostoyevski, escritor russo, é o autor preferido do novo papa.

GESTOS - O sociólogo Alberto Quevedo, da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) ressalta que nos últimos meses que Francisco fez uma série de pequenos gestos muito bem calculados, desde pagar a conta do hotel após ser eleito papa; alternar o italiano e o latim em sua primeira missa; e sua decisão de se locomover em um jipe branco em vez do papa-móvel blindado utilizado por seus dois antecessores.

Diversos vaticanólogos afirmaram nos últimos meses que estes gestos de Francisco poderiam debilitar o poder simbólico da Igreja Católica, já que aproximam o papa da população. No entanto, Quevedo argumenta que a estratégia utilizada por Bento 16 de “aproximar-se de Deus e afastar-se do mundo terrenal foi um fracasso. O problema é que o catolicismo disputa o terreno com figuras do cristianismo que tentam estar com o povo na Terra sem tanta solenidade na doutrina”.

QUÍMICO E JESUÍTA – Filho de um imigrante italiano, o ferroviário Mario Bergoglio e de uma neta de imigrantes da Itália, Regina Sívori, Jorge Mario Bergoglio nasceu no dia 17 de dezembro de 1936 em uma área conhecida como “Bonorino”, dentro do bairro de classe média de Flores, em Buenos Aires. Foi batizado no natal daquele ano. Dos quatro irmãos que teve, uma ainda está viva, Maria Elena Bergoglio, que decidiu não viajar ao Brasil ver seu irmão durante a JMJ para não atrapalhar sua atarefada agenda.

Desde criança, foi torcedor fanático do time de San Lorenzo, fundado por um padre no início do século. Mas nunca pôde aspirar a jogar futebol além da praça do bairro. Seu físico, quando adolescente, era franzino. Aos 20 anos, passou por uma operação que implicou na retirada de uma porção de um de seus pulmões.

Sua juventude transcorreu em Flores e nos bairros vizinhos, onde saía com os amigos e apreciava dançar o tango. Ele ainda ouve os tangos de Carlos Gardel, Julio Sosa, Ada Falcón e Azucena Maizani (a quem administrou a extrema-unção em 1970).

Em 1957 formou-se como técnico químico. De forma quase simultânea Bergoglio entrou como noviço para a Companhia de Jesus, ordem caracterizada por sua obediência e disciplina ascética que historiadores preferem definir como militar. Em 1969 foi ordenado sacerdote, aos 33 anos. Aos 36, em 1973 já era o comandante dos jesuítas na Argentina.

Nos anos que se seguiram – o período 1976-83, a ditadura militar argentina –, é um período da vida de Bergoglio com controvérsias. O jornalista investigativo argentino Horacio Verbitsky, do jornal ”Página 12″, sustenta que ele colaborou ativamente com a última ditadura (1976-83), delatando os jovens sacerdotes, que foram seqüestrados pelos militares. No entanto, dois referenciais mais à esquerda de Verbitsky, o frei brasileiro Leonardo Boff e o Nobel da Paz de 1980, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, negam as acusações e sustentam que Bergoglio não delatou sacerdote algum. Na contra-mão, teria ajudado discretamente vários perseguidos políticos a escapar do país.

Nos anos 80 Bergoglio foi estudar na Alemanha. Ao voltar à Argentina teve uma atividade acadêmica e pastoral low profile. No entanto, em 1992, o poderoso cardeal Antonio Quarracino o convocou para ser seu bispo auxiliar em Buenos Aires. “É um jesuíta sereno e preciso. Ele tem uma capacidade e uma velocidade mental fora do comum”, comentou na época.

CARDEAL - Após ter consolidado seu espaço dentro da Argentina Bergoglio deu um salto internacional em 2001, quando ocupou o posto de relator-geral do Sínodo dos Bispos em Roma.

Em dezembro daquele ano Bergoglio viu como milhares de pessoas passavam marchando na frente da catedral para ir na direção da Casa Rosada protestar. Era o final do governo do presidente Fernando De la Rúa e o surgimento da maior crie econômica e social da História da Argentina. Na época – e em 2002 – Bergoglio foi crucial para evitar a fome de dezenas de milhares de pessoas ao criar uma rede de refeitórios populares para alimentar os empobrecidos argentinos.

Embora fosse o cardeal portenho, Bergoglio só começou a ser uma figura conhecida de forma nacional pelos argentinos quando a partir de 2003 manteve uma série de confrontos com o casal Néstor e Cristina Kirchner, que governaram a Argentina ao longo da última década. Sem papas na língua, o cardeal não vacilou em criticar a retomada do crescimento da pobreza, a corrupção, a divisão da sociedade e a falta de tolerância política.

PAPÁVEL - Em 2005 Bergoglio ficou mais conhecido quando passou a ser um dos papáveis da América Latina. Mas, na ocasião Bergoglio ficou em segundo lugar, com 40 votos, sendo superado por Joseph Ratzinger, que foi entronizado Bento XVI.

Bergoglio permanecia cotado como “papável” para um eventual novo conclave. Mas, em 2010 sofreu um duro revés político quando o Parlamento argentino aprovou um projeto de lei do Partido Socialista (mas respaldado pelo governo da peronista Cristina Kirchner) de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Bergoglio, na véspera da votação, deixou de lado seu estilo sóbrio e, perdendo as estribeiras de uma forma ostensiva (o conservador jornal “La Nación” até criticou o ato do cardeal) desferiu um furioso sermão contra o projeto, que foi aprovado com ampla maioria. Muitos integrantes do clero acharam que esta derrota implicaria na perda de pontos como “papável” em um seguinte conclave.

PECULIARIDADES - Ao ser entronizado como o papa Francisco, Bergoglio, além de se transformar no primeiro latino-americano (e habitante de todas as Américas) a ocupar o trono de São Pedro, também quebrou a restrição – implícita – de que um jesuíta seja transformado em papa. Desde que foi criada, há quase cinco séculos, a Companhia de Jesus jamais havia conseguido que um representante seu chegasse a líder da Igreja Católica, principalmente pela oposição de outras congregações que temiam seu crescimento. É também o primeiro papa não-europeu desde Gregório III, nascido na Síria em 690 e santo padre entre 731 e 741.

É também o único papa da História declaradamente fanático do futebol o primeiro que admite dotes de dançarino em sua juventude (gostava de dançar tango), além de ser o primeiro que escreveu um livro em conjunto com um rabino (Abraham Skorka, com quem preparou “Sobre o Céu e a Terra”). Por: Ariel Palácios  Estadão

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O DIA EM QUE O PAPA "AUTORIZOU"O TANGO (E QUASE UM SÉCULO DEPOIS, UM PARA TANGUEIRO)

Pio X quis ver o tango de perto para avaliar se era apto para a cristandade



“Demasiado sensual!”. “Obsceno!”. “Satânico!”. Estas eram algumas das duras expressões emitidas pelos bispos franceses ao referir-se ao ritmo sul-americano em 1913, quando arrasava nos salões da burguesia parisiense. Os arcebispos de Paris, Cambray e Sens, junto como o bispo de Poitiers atacaram ferozmente esse ritmo “pecaminoso” desde seus púlpitos, pedindo que a Santa Congregação da Disciplina dos Sacramentos analisasse o caso e considerasse sua proibição.

Diante da polêmica que ameaçava tornar o tango alvo de uma proibição da Igreja Católica, a embaixada argentina em Roma decidiu demonstrar ao papa Pio X (1903-1914) que a dança de forma alguma ameaçava os bons costumes cristãos. Os diplomatas argentinos estavam respaldados por diversos jovens da aristocracia italiana, ansiosos por dançar o tango no carnaval de 1914. Tudo indicava que se a Igreja o proibisse, as Forças Armadas da Itália impediriam que seus oficiais o dançassem nos elegantes bailes que estavam sendo preparados para essa festividade.

Poucas semanas antes do carnaval, em fevereiro desse ano, o Sumo Pontífice encarregou-se de julgar, pessoalmente, os eventuais “perigos” do tango. Os encarregados de defender o ritmo perante o supremo chefe da cristandade foi um casal de irmãos da aristocracia italiana. Os jovens “enganaram” o papa Pio X, dançando uma versão “light”, que fosse o suficientemente “inofensiva” para os padrões morais do Santo Padre.

O cuidado dos dançarinos em evitar qualquer tipo de “obscenidade” obteve resultados exagerados. Pio X, após a exibição do tango no Vaticano, ironizou sobre essa moda proveniente da Argentina: “ela obriga seus escravos (os dançarinos) a dançar um baile tão pouco divertido”. O papa aproveitou a ocasião para recomendar a “furlana”, dança camponesa do século XIX, que considerava mais“animada”.

Com o prestígio obtido nos salões da aristocracia européia e certa neutralidade papal, o caminho estava aberto para que o tango voltasse à Buenos Aires. Não sendo mais visto como um ritmo do lumpen, conquistou a classe média e expandiu-se, permitindo, dessa forma, o sucesso de cantores como Carlos Gardel. O tango começava a conquistar os corações e mentes dos argentinos.

Mas, a má fama do tango ainda permaneceu pairando sobre a Europa em certos setores da sociedade. Uma década depois, no dia 1 de fevereiro de 1924, outro papa, neste caso, Pio XI (1922-39), quis analisar pessoalmente aquilo que Pio X havia autorizado.

Nesta ocasião, o tango foi dançado – novamente em versão “diet” – pelo bailarino argentino Casimiro Aín. A melodia escolhida foi um raro tango com nome religioso, o “Ave María”, do compositor Francisco Canaro.

Para conquistar o coração do papa, Aín fez um malabarismo no fim do tango que o deixou em posição de genuflexão diante do Sumo Pontífice. Pio XI retirou-se do salão em silêncio. A reação papal foi interpretada como um sinal de aprovação. Nunca mais o tango teve que passar pelo crivo da Santa Sé.
Pio XI – os tangueiros interpretaram que, quem cala, consente

PAPA TANGUEIRO – Quase um século depois da autorização de Pio X para o tango um argentino de Buenos Aires tornou-se sumo pontífice. O portenho em questão, o cardeal Jorge Mario Bergoglio, entronizado como papa Francisco, afirma que o tango é seu ritmo musical preferido (além de gostar de ópera e música folclórica argentina). Bergoglio também declara-se fã da “milonga”, que é uma espécie mais acelerada do tango.

Durante sua juventude Bergoglio foi um bom dançarino de tango, segundo os amigos. Ele dançava com sua namorada nos bailes em Flores – seu bairro natal – e outros lugares da cidade.

Mas, o romance concluiu quando descobriu sua vocação religiosa. Bergoglio não dançou mais o tango. Mas, continua ouvindo o gênero musical.

E falando em paqueras, tango e religiosidade, há um tango imortalizado por Gardel que é o “Missa das onze”, no qual o intérprete indica que vai à missa para paquerar uma moça que freqüenta o culto nesse horário:


Os cantores preferidos do papa Francisco: Carlos Gardel, Julio Sosa, Ada Falcón e Azucena Maizani (a quem administrou a extrema-unção em 1970).

Bergoglio também gosta de óperas, gênero musical que sua mãe, Regina Sívori, costumava ouvir quando ele e seus irmãos eram pequenos.

Em sua biografia “O Jesuíta”, de 2010, que após sua eleição como papa foi rebatizada de “Papa Francisco – conversas com Jorge Bergoglio” – ele diz que gosta muitíssimo do tango. Segundo afirma, esse ritmo musical sai de “dentro da alma”.

Sua orquestra preferida era a de Juan D’Arienzo, a.k.a., “El rei del compás” (O rei do compasso) famoso pelo compasso marcado. E também aprecia Astor Piazzolla.


Bergoglio, no portenhíssimo “subte” (metrô) da linha A em 2008. Meia década antes de ser Francisco.

E o Ave Maria (Tanti anni prima), de Astor Piazzolla: