quarta-feira, 29 de maio de 2013

SELETIVIDADE

E as pessoas que por Seletividade alimentam suas vidas com sonhos belos, poesia, amor, crescimento existencial, solidariedade? Como entender que muitas delas padecem em coisas ruins, desagradáveis, continuadamente? Que Seletividade é esta que, ao escolher o que há de aprazível e acolhedor para a alma, a pessoa colhe dor e perdas?


Há diversas explicações plausíveis aqui, e veremos algumas delas neste sábado, 20h00 (horário de Brasília), mas uma resposta corriqueira, muito encontrada em elementos de Seletividade, diz respeito a uma vivência panorâmica, superficial, de aspectos que pedem consistência, freqüência, profundidade. Exemplo: muitos do que oram, rezam, cumprem um ritual sem lastro, sem vida, mera formalidade protocolar. Algo como ter decorado as Escrituras, saber citar capítulos e versículos, mas não acreditar, não viver de fato o conteúdo dos verbos. Assim, o que se fortalece é o medo, a dor, aquilo no qual de fato a pessoa coloca sua vivência, reforçada a cada dia. Para muitos, é assim.

De outra forma: a pessoa fala em poesia, em sonho, mas tem fortes experiências subjetivas de dor e misérias. O quadro clínico pode piorar muito se a pessoa ainda esconder de si mesma este fenômeno, pois então poderá chegar ao consultório perguntando coisas como porque uma pessoa, feito ela, que tanto se inspira e busca as poesias da vida tem vivido as desgraças e ruínas existenciais – uma vez que se alienou de si mesma e não compreende o que se passa.

Albert Einstein ilustrou este conteúdo em 1939: “Podemos ter o mais claro e mais completo conhecimento do que é e, contudo, não ser capazes de deduzir daí qual deveria ser o objetivo das nossas aspirações humanas. O conhecimento objetivo fornece-nos instrumentos poderosos para a realização de determinados fins, mas o objetivo último propriamente e o desejo de o alcançar têm de provir de outra fonte. Aqui enfrentamos, portanto, os limites de uma concepção puramente racional da nossa existência”.

Lúcio Packter

terça-feira, 28 de maio de 2013

TRATAMENTOS E EFEITOS COLATERAIS

Preferimos enxergar todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio pode curar


1) No fim dos anos 60, pensávamos que, no fundo, o louco era um rebelde que sofria da repressão que lhe era imposta e das condições horrorosas da internação psiquiátrica.

Mas o que tornou possível o progressivo fechamento dos manicômios não foi esse entusiasmo; foi a chegada de medicações mais eficientes, pelas quais o louco não precisava ser enclausurado, porque podia ser, não digo curado, mas controlado.

Desde então, os remédios psicotrópicos (ou seja, que modificam o funcionamento da mente) fizeram progressos.

2) A descoberta de que o remédio podia substituir as paredes do asilo repercutiu e contribuiu a inaugurar uma era em que preferimos enxergar quase todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio pode curar. Em outras palavras, se os remédios eram formas possíveis de controle social, por que eles não seriam também meios possíveis de autocontrole?

3) A modernidade é sedenta de técnicas de controle de si (dietas, prescrições, treinos, meditações etc.). Há menos controle externo (religioso ou político) sobre nossa vida; aumenta a necessidade de controle que nós mesmos exerceríamos sobre nós. Nessa tarefa, a ajuda de drogas e remédios é bem-vinda --para controlar nossa vida cotidiana, conter a tristeza, as variações de humor, a ansiedade, a preocupação etc.

4) Tendemos a responsabilizar os laboratórios farmacêuticos por essa medicalização crescente da vida. Mas eles apenas se aproveitam de um pedido que é nosso: queremos remédios como formas de controle e poder sobre nós mesmos.

5) Vi o último filme de Soderbergh duas vezes, no último fim de semana. O título original é "Side Effects", efeitos colaterais. Foi traduzido como "Terapia de Risco". Tudo bem --contanto que se entenda que os efeitos colaterais e o risco são tanto para o terapeuta quanto para o paciente.

Sim, o filme denuncia os laboratórios e suas práticas de propaganda. Sim, o filme lembra que a medicação não é nenhum tiro certeiro: sua administração é empírica (tipo: vamos ver o que acontece) e sua eficácia é modesta. Mas, sobretudo, o filme é uma perfeita narrativa da época do higienismo tardio, em que quase tudo é efeito da medicalização da vida. Confira.

6) Uma nota. Alguns psicoterapeutas e psicanalistas se opõem furiosamente à medicação de seus pacientes. Tudo bem, mas a medicalização é hoje uma cultura, um regime, um sistema de controlar e organizar a vida. Os remédios são apenas um dos meios da medicalização; é possível medicalizar a vida adotando práticas "saudáveis" ou frequentando um psicoterapeuta.

7) Nossos mal-estares cotidianos não têm marcadores específicos. Ou seja, não tenho como verificar (com uma análise de sangue, uma endoscopia ou um balanço hormonal) se e quanto alguém está deprimido. Devo me contentar com o que ele me diz.

Eu me formei numa escola de psicanálise em que acreditávamos que fosse possível encontrar, na fala dos pacientes, marcadores clínicos tão seguros quanto o nível de uma proteína no sangue.

Em tese, apostávamos, deveríamos poder diagnosticar um tumor no cérebro sem exames de imagem, porque saberíamos, por exemplo, que tal esquecimento é diferente de um esquecimento histérico, de um começo de Alzheimer, de uma amnésia etc. Mas esse ideal não se realiza (ao menos, não plenamente).

E um bom simulador pode vender qualquer peixe a todos nós, psiquiatras, psicoterapeutas, psicanalistas etc. Ou seja, um sociopata de bom feitio faz gato e sapato não só da lei, da gente também.

8) Se lêssemos as bulas com atenção, não tomaríamos nunca remédio algum. Os laboratórios, para prevenir processos, enumeram qualquer catástrofe.

No fim dos anos 1960, um amigo, J.H., perfeito exemplo de medicalização da vida, procurava seu equilíbrio numa mistura de anfetaminas e barbitúricos. Morreu afogado, de noite. A bula do Nembutal poderia dizer: cuidado, em combinação com simpamina, pode produzir a morte em quem vai surfar sozinho em Big Sur de madrugada.

Na época da medicalização, a lista indefinida (se não infinita) dos efeitos colaterais vale também como lista também indefinida das desculpas. Matou o vizinho, mas não foi intencional; foi porque ele tomava sei lá qual antidepressivo.

9) Assista a "Terapia de Risco" e, na saída do cinema, responda: ao seu ver, o psiquiatra do filme conseguiu ou não cuidar de sua paciente? Por: Contardo Calligaris Folha de SP

AVALIAÇÃO


Se hoje eu lhe convidasse para ser avaliado como pessoa, como profissional, como pai, enfim, fazer uma análise de você nos diversos papeis que você exerce, o que você acharia? A avaliação é uma ferramenta que muitas pessoas usam para saber se estão ou não no caminho certo, para identificar seus pontos problemáticos e mudar. Avaliar tem o significado corriqueiro de determinar o valor de algo ou seu preço (lembrando que preço pode ser entendido como uma avaliação quantitativa enquanto o valor como qualitativo). Sendo assim, algumas pessoas quando param para se avaliar fazem uma avaliação própria tendo em vista valores quantitativos, ou seja, o quanto acumularam, seja dinheiro, títulos, lotes, casas, mulheres. Outros já partem para uma avaliação quantitativa, analisando como eram quando tinham tal idade e como estão agora, como eram quando começaram na empresa e onde chegaram na atualidade. 

Algumas pessoas são muito duras ao se avaliarem e se cobram além do que poderiam alcançar, pode-se dizer que são juízes de si próprias. Outras já se avaliam sempre de maneira positiva, até mesmo atitudes que causaram grandes males na sua vida são entendidos como bem vindos. Enfim, cada um tem uma maneira de se avaliar, o que interessa aqui são as pessoas que não avaliam a si próprias, mas são avaliadas por outras pessoas. São muitos os casos de pessoas que não conseguem se avaliar e ficam a mercê de seus avaliadores, sendo que, o que eles disserem será aceito como verdadeiro. Pessoas assim escolhem alguns ou muitos avaliadores e a eles atribuem o direito de crítica sobre si próprias, sejam elas positivas ou negativas. O problema é que alguns desses avaliadores são muito duros, entendem que avaliar é apenas ver os defeitos, as falhas. Imagine uma criança que pede a opinião de seu pai sobre seu rendimento escolar. O pai olha as notas e vê algo entre sete e oito, vira-se para o menino e diz: “Isso é pouco, existem muitos melhores que você”. O menino acompanha a sua avaliação e entende ser menos que os outros pela nota que tem. 

O exemplo do filho que se submete a avaliação do pai pode ser algo muito próximo de um marido que se deixa avaliar pela família da esposa. Este tipo de avaliação delegada a outros muitas vezes pode se comparar a um bom vinho que é avaliado por aquele que nada sabe sobre o assunto. Quanto você receber a avaliação de alguém observe o quando a pessoa que está lhe avaliando conhece a você, seu trabalho ou seu produto. Deixar-se avaliar não é problema, o problema é ter um avaliador que não conhece o que está avaliando. Muitos pais avaliam os filhos pelos amigos dos filhos, avaliam a esposa pelas amigas da esposa, avaliam seu rendimento pelo rendimento de outras empresas. Uma avaliação comparativa é sempre uma avaliação que precisa de ajustes, ou seja, não existem duas realidades iguais.

Muitos bons profissionais não crescem na organização porque seu “superior” não sabe avaliar e quem é avaliado acredita naqueles dados. Muitos grandes profissionais foram recusados em outras áreas de trabalho, na escola, mas encontraram alguém que os avaliou de acordo com suas capacidades e viu onde poderiam chegar. Se você está sendo avaliado e percebe que há dureza excessiva, que o que dizem não reflete exatamente quem você é, reveja seus avaliadores. Sua esposa talvez não tem a clareza de quem você é no trabalho para avaliá-lo como profissional, assim como seu chefe provavelmente não pode avaliá-lo como pai.

Por: Rosemiro A. Sefstrom

sábado, 25 de maio de 2013

DEMOCRACIA É EDUCAÇÃO

Todo mundo fala em democracia e educação, sem perceber que as palavras têm conotações especiais. No Brasil, a palavra educação não significa somente instrução, mas polidez, calma e delicadeza. O "mal-educado" ou o "ignorante" não é quem não tem saber, mas é o "grosseirão" inclinado ao gesto brusco ou à violência. O "bem-educado" é aquele que - calado consciente e superior - espera a sua vez.


Fazemos uma clara distinção entre o "bem" e o "mal-educado": o fino, o grosso, o sensível e o boçal. Essa representação enlaça o par "educação e democracia". Pois a voz do povo mostra uma dualidade hierárquica. No plano superior, ficam os "bem-educados" (gente instruída e fina). No inferior, estão não apenas os não instruídos, mas os mal-educados. Embaraçamos a ignorância definidora do não saber com a grosseria - esse avatar atribuído aos afoitos e, por extensão preconceituosa, aos subalternos. Seria isso um resíduo explosivo de um passado que combinou numa equação rara, aristocracia branca e escravidão negra?

Imagine o seguinte. Numa festa, chega a cascata de camarões. Os "mal-educados" avançam sobre os deliciosos crustáceos e dão conta do prato. Atropelando a fila, locupletam-se e - porque são "mal-educados" - "pegam" o que podem para seus maridos e filhinhos. Os "bem-educados" olham a cena com o horror dos semissuperiores, confirmando como a sua boa "educação" - que segue princípios igualitários gerais, como o de esperar pelo seu turno, impede tal conduta. Eles confirmam sua "polidez", mas verificam que não comendo os deliciosos camarões são bobocas ou babacas porque simplesmente deixam passar uma oportunidade que era de todos, mas que foi aproveitada pelos mais espertos: os "mal-educados!".

Moral: o conceito de "educação" tem que ser entendido dentro de um sistema sócio-histórico para poder ser aplicado com eficiência. Um dos problemas das escolas públicas numa sociedade com uma concepção hierárquica de educação é que o ensino pode ser bom, mas o ambiente seria marcado pela "má-educação" (significando ausência de "boas maneiras") dos alunos. Sem perceber que, entre nós, a "educação" vai além da instrução, nada fizemos para introduzir uma "educação para a igualdade" e para uma cidadania sem favores e sem os usuais "você sabe com quem está falando?".

No Brasil, uma definição igualitária de educação como um instrumento universal de saberes, é filtrada. Há um toque de superioridade no "ser educado" que aristocratiza paradoxalmente o processo, tornando-o exclusivo. Neste sistema, a instrução seria distinta da "boa educação". Um engenheiro pode ser competente, mas mal-educado. E isso pode fazer com que prédios e pontes sejam construídos por linhas tortas.

Não pode haver projeto real de democracia igualitária, fundada no liberalismo meritocrático e competitivo, sem um sistema educacional universal que busque a todo custo atingir a todos.

Mas como realizar isso sem abrir o embrulho das ideias preconcebidas sobre "educação"? Como, então, reformar esse sistema, tornando-o uma força de internalização de igualdade e de democracia? Convenhamos que para o antropólogo de Marte que escreve essa coluna, isso não deve ser fácil em escolas nas quais as crianças tratam seus mestres por "tias". Ora, o primeiro espaço público que todos experimentamos de modo profundo é justamente o da escola. O drama que testemunhei no rito de passagem do "primeiro dia de aula" dos meus filhos e netos, fala eloquentemente dessa transição dos papéis desempenhados na casa, na qual se é "filho", "sobrinho" e "netinho"; para o papel de "alunos" sem nenhum privilégio, exceto - é claro - quando a "boa educação" interfere, fazendo com que seus mestres os tratem como "sobrinhos", interrompendo uma mudança crítica.

"Ele é filho do ministro" -, disse a professora. Não vai entrar na fila da merenda junto com os outros. Ademais, ele traz a merenda de casa!"

Esse diálogo mostra como uma educação para a igualdade é muito diversa de uma educação para as boas maneiras. Do mesmo modo, e pela mesma lógica, quando se observa os poderes da república tentando uma hierarquia na qual o Executivo seria o mais importante e o Judiciário estaria submetido ao Legislativo, vê-se uma recusa da educação. Da educação como um sistema destinado a estabelecer para cada poder limites e papéis autoimpostos. Essa capacidade de conter-se voluntariamente dizendo não a si mesmo. Esse apanágio do liberalismo que começamos a descobrir lentamente, como insiste o meu lado otimista. Por isso, democracia não depende apenas de educação, como se diz a todo momento. Ela é, sobretudo, um processo penoso de aceitar discordâncias. Democracia é educação. Por: Roberto DaMatta O Estado de SP

sexta-feira, 24 de maio de 2013

CELULAR NO TRÂNSITO E AS POSSÍVEIS CONSEQÜÊNCIAS


VELHARADA DECIDE TECLAR

“Rendo graças aos deuses, por ter nascido grego e não bárbaro; livre e não escravo; homem e não mulher; rendo-as, porém, acima de tudo, por ser contemporâneo de Sócrates” – dizia Platão. Já que não sou contemporâneo de Sócrates, rendo graças por beneficiar-me da era da Internet. Nasci em local e época em que até o rádio era privilégio de fazendeiros e, de lá para cá, vi não poucas maravilhas, desde o telefone ao computador.

Da Internet ninguém mais escapa. Mesmo que você ache que está fora, não está. Sem ir mais longe, declaração de IR, hoje, só por bytes. Fora outra série de circunstâncias do dia-a-dia que o tornam dependente da rede. Independente, só mesmo morando em uma ilha deserta, e aí mesmo é que a Internet se faz necessária.

Há bravos que resistem. Entre meus correspondentes, tenho três neoluditas que mantém uma respeitosa distância do computador. Ou mantinham. Aníbal Damasceno, um bom amigo, partiu de vez no ano passado. Para Maria, minha ex-professora de francês, enviei um computador, sem mais palavras. Acho que entendeu o recado. Resta o Francisco Araújo, já octogenário, meu companheiro de tertúlias na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, daqueles idos em que se podia passear e conversar nas ruas na madrugada.

Se a Internet facilita a vida de todo mundo, isto vale bem mais para o idoso. Pessoas de idade provecta se restringem mais às quatro paredes e perdem muitos de seus contatos. O que é normal. Quando jovens, costumamos ler os anúncios de formatura e casamentos para saber dos amigos. Com o tempo, passamos a consultar os necrológios. É para lá que foram – ou vão – os nossos diletos. A Internet torna-se então um meio eficaz de conversar com pessoas distantes – e mesmo próximas – e de reencontrar outras que há muito tempo perdemos de vista. E pode-se ler jornais sem buscá-los nas bancas.

Minha professora de francês à parte, perdi tempo com meus dois outros correspondentes. Araújo foi contador, ofício bem mais complicado que navegar por um menu. Em uma de suas últimas viagens, chamei-o às falas. Araújo, sabes datilografar, não é verdade? Então compra um computador e faz um e-mail. Estaremos conversando durante toda tua viagem. Quando chegares a uma cidade que me é familiar, te mando o caminho das pedras. Nada feito. O homem se mantém até hoje irredutível.

Há uns dez anos, viajando por Portugal, fiz um despilfarro. Apaixonei-me por um par de estribos além-tejanos, de madeira, pesando uns dois quilos cada um. Me pareceram perfeitos para guardar cartas. Não resisti. O peso dos dois equivalia quase ao de minha bagagem. Mesmo assim os trouxe. Para dar-me conta, desolado, que eu já não recebia mais cartas. Enfim, para guardar algum papel, contas que mais não seja, continuam servindo.

A Internet foi meu grito de independência. Desde os vinte – a bem da verdade, desde os quinze – escrevo em jornal. Mas nunca pude escrever o que queria. Sempre tive de policiar-me. Na rede, sou dono de meu nariz. Não tenho chefe nem editor que me censure. Por isso, parafraseio Platão.

Milagre da era das comunicações, consegui falar com a cidade onde me criei. Afastei-me de Dom Pedrito lá pelos 15 anos. De lá para cá, pouco conversei com os pedritenses. Alguma comunicação de uma mão só até que houve, quando escrevia na Folha da Manhã, de Porto Alegre. Mas lá só chegavam uns cinco exemplares do jornal, se tanto, e era como jogar palavras ao vento. Há alguns anos, uma alma generosa criou a comunidade Pedritenses no Facebook e teve a suma gentileza de convidar-me a dela participar. Hoje, estou charlando com contemporâneos de meus dias de guri, alguns dos quais só conhecia de nome. 

Há pouco houve uma polêmica a cidade, que demonstra um certo neoluditismo dos nativos. Alguém deu um equipamento wi-fi ao hospital local e houve quem protestasse, dizendo que o hospital tinha necessidades mais prementes. Pode ser. Mas a burro dado não se olha o pêlo. Sem falar que um raio X beneficia alguns pacientes, enquanto Internet beneficia todos. Uma boa conexão afasta os miasmas doentios do quarto do paciente e o joga no mundo. Houve quem alegasse que Internet é pão e circo. Para muitos, pode ser que seja. Mas é bem mais do que isso para quem é prisioneiro de um quarto.

Em fevereiro passado, passei mais de mês no estaleiro. Mais ainda, estava mudo. (Em verdade, ainda estou).Tinha meus recursos para fugir do quarto. Lia jornais e recitava mentalmente poemas e trechos de ópera. Mas a Internet foi uma mão na roda. Conversei o tempo todo com amigos que tenho no Brasil e mundo afora, tivesse acesso à imprensa nas línguas que conheço e consegui inclusive postar crônicas e discuti-las na rede. Para quem desconhecia minhas circunstâncias, era como se estivesse “vivito y coleando”, como dizem os espanhóis.

Se Internet é bom, para idosos é uma benção. Foi o que tentei passar a meus macróbios. Se alguns relutam, vejo que a velharada está aderindo ao bom esporte. Recente estudo do IBGE, mostra que a terceira idade está invadindo a Internet. Brasileiros a partir de 50 anos de idade tiveram maior crescimento no acesso à web desde 2005, com aumento que chega a 222,3%.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgados ontem pelo IBGE, “esse avanço está diretamente ligado à maior qualidade de emprego da população, que ao longo desses seis anos conquistou um rendimento mais alto, de forma geral, em razão de uma melhora do cenário econômico de todo o país”, conforme explica Cimar Azeredo, coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE.

Houve crescimento em todos os grupos de idade, em geral acima dos 100%, mas a variação foi muito mais representativa no grupo dos 50 anos de idade ou mais: 222,3% no período de seis anos – um incremento de aproximadamente 5,6 milhões de pessoas.

É uma multidão que invade a web com um objetivo principal: aumentar suas relações sociais, segundo um estudo da Universidade de Brasília de 2009. Seja por meio de redes sociais, salas de bate-papo ou blogs com espaço para comentários, o que eles querem é interagir e reduzir a sensação de solidão. 

Bom ver a velharada teclando. Se um dia os escritores foram os responsáveis maiores pela comunicação entre seres humanos, hoje são engenheiros jovens e anônimos que propiciam este diálogo. Se uma imagem valia mais que mais mil palavras, hoje um computador vale mais que mil livros. Sem falar que pode nos conectar a estes mil – ou mais - livros. 

A velharada decidiu teclar. Bem-vindos sejam ao presente. Por: Janer Cristaldo

quinta-feira, 23 de maio de 2013

ANGELINA E A NEUROSE MÉDICA


A mutilação de Angelina Jolie que, ao amputar os próprios seios colocando próteses no lugar, acredita ter reduzido as chances hereditárias do câncer, é o resultado de um tipo de mentalidade paranóica comum em celebridades. Mas por trás dessa aparente extravagância, está a evolução de um longo processo que atinge grande parte da população por meio da construção de um ideal de saúde desconexo da realidade.

Geralmente é o lado emotivo que fala mais alto quando alguém, por ter perdido um ente querido por causa do câncer, louva Angelina Jolie como heroína da luta contra a doença. As defesas acaloradas são fruto da mesma paranóia que motivou a atriz em seu ato mutilatório e aparentemente inspirador também para outras celebridades.

Nas redes sociais se vê muitos que a atacam e a elogiam pelo ato, mas ambos centram-se no aspecto histórico da atriz ou da suposta inevitabilidade da doença hereditária. Mas este aspecto obstrui a visão do que está por trás do ato paranóico, e que diz muito mais sobre como as pessoas perderam a capacidade emocional de lidar com a possibilidade do adoecimento. Nada disso é novidade para quem leu ‘Nemesis Médica’, de Ivan Illich, que mostra o progressivo pânico gerado a partir da institucionalização da medicina.

Ivan Illich já dizia nos anos 1970 que a medicina institucionalizada era uma grande ameaça à saúde. O termo iatrogenia, que se refere ao estado de doença ou complicação causada pelo tratamento médico, aparece pela primeira vez na obra de Illich e, segundo ele, pode se manifestar de três formas apresentando-se simultâneos na sociedade atual e, ao mesmo tempo, decorrem um do outro quase que inevitavelmente.

O primeiro é a iatrogenia clínica, causada pelo cuidado médico, falta de segurança no uso de equipamento cirúrgico ou determinada tecnologia, uso ou abuso de drogas médicas. O famoso erro médico ou de diagnóstico. Em segundo lugar, há a iatrogenia social, decorrente da crescente dependência da população em relação ao uso de drogas que amenizam o sofrimento, tratamentos prescritos pela medicina em seus ramos preventivos, curativo, ambiental e industrial. Trata-se de um estabelecimento do papel do doente como ser passivo e que aguarda as soluções mágicas do medicamento, enquanto o médico salvador trará a tão sonhada cura. A dependência, neste aspecto, é a da autoridade médica que é uma extensão da autoridade científica. Este fenômeno real e que afeta inevitavelmente quase todo mundo, produz, por sua vez, um terceiro aspecto da iatrogenia que é a de feição cultural.

A iatrogenia cultural é a destruição potencial da capacidade de lidar com a enfermidade ou com a morte. A perda gradual de tudo o que as civilizações criaram como expedientes culturais eficazes para lidar com a vulnerabilidade da condição humana diante do inevitável, das contingências da vida. Todas as práticas culturais e tradicionais antigas foram substituídas pela figura do médico e da técnica profissional. Neste aspecto há o sonho, a perspectiva, da possibilidade da técnica estender indefinidamente a existência corporal humana, da eliminação definitiva de todo e qualquer sofrimento físico.

No final dessa linha está a ideologia do transhumanismo, que propõe libertar o ser humano de todas as suas limitações físicas e biológicas chegando até a propor a eliminação completa da dor e de todo tipo de sofrimento. Illich ressalta que essa mentalidade teria começado na Revolução Francesa, que deu origem ao mito de que os médicos podia substituir os clérigos e que a sociedade poderia voltar a um estado de “saúde original”, onde inexiste o sofrimento. Datam daquele período as primeiras propostas de saúde pública.

Pior do que a idealização da saúde, que em alguns casos pode estar associada a padrões de beleza e moralidade, é o pânico do sofrimento, a neurose causada pela inconformidade extrema com qualquer possibilidade de sofrer e mesmo de enfrentar o risco do sofrimento, como mostra bem o caso de Angelina Jolie.

Hoje o sofrimento é uma cruz por demais ingrata e inútil, afinal, a referência cristã que o laicismo militante considera tão cruel era a única coisa que conferia alguma dignidade ao sofrimento físico do ser humano, que, em certa medida, é inevitável. A dor de muitas pessoas se torna ainda pior e mais insuportável quando, em nome de um ideal de saúde, relaciona-se às doenças todo tipo de impureza, tal como em tempos remotos. Não tardará para que esta sociedade apartada da caridade cristã jogue seus “leprosos” em guetos imundos, para evitar o contágio dos considerados saudáveis ou, mais precisamente, dos que tenham dinheiro para pagar pelo tão sonhado fim de todos os seus sofrimentos.
Por: Cristiano Derosa é jornalista.


terça-feira, 21 de maio de 2013

O MÉTODO DA RAPOSA

Para que servem os cientistas políticos? Para muita coisa talvez, mas não para prever fatos que deveriam ser da sua orçada, nos diz o artigo "Sobre Raposas e Porcos-Espinhos", de Nate Silver, na "Ilustríssima" de 12/5/2013. Neste terreno, pessoas menos obcecadas com sua própria "verdade" teriam mais sucesso.


O autor cita a derrocada da União Soviética como exemplo de fracasso dessa classe. Nenhum "especialista" foi capaz de prever o fim do "socialismo real". O texto aponta o risco de irrelevância da ciência política, pelo menos quando pautada por concepções de como o mundo deveria ser, ou, dito de outra forma, quando pautada por ideologias, praga comum no mundo acadêmico.

Não se trata de dizer que cientistas políticos não servem para nada, mas de perceber, entre outras coisas, o problema que se esconde por detrás de tal fracasso. Logo voltarei a este problema.

O estranho termo que dá título ao artigo citado vem do ensaio de Isaiah Berlin "O Porco-Espinho e a Raposa", da coletânea "Pensadores Russos", entre nós publicado pela Cia. das Letras em 1988. O ensaio não visa falar da irrelevância dos cientistas políticos, mas sim dos diferentes modos como se constituem o pensamento e a vida de um grande autor. Ele mesmo, Berlin, podendo ser elencado entre as raposas.

Shakespeare, Montaigne e Aristóteles seriam raposas (eu acrescentaria o grande crítico Carpeaux a este grupo), Freud, Hegel e Marx, porcos-espinhos, portanto, para Berlin, não se trata de reduzir estes à nulidade.

Para o ensaísta britânico (judeu do Leste Europeu), raposas são flexíveis, não precisam de coerência ou unidade interna entre os elementos e teorias manipuladas pelo pensamento (ou vividas no dia a dia) porque não operam a partir de uma visão de mundo que supõe "um centro de sentido" do mundo.

O "sentido da realidade", título de um dos seus maiores ensaios, é a pluralidade desta, sem nenhuma unidade última descritível por uma teoria da realidade ou da história. Eu posso, por exemplo, concordar com a teoria da mercadoria de Adorno e ao mesmo tempo achar que ela não esgota o entendimento do mundo. O "método" da raposa é não ter método.

O porco-espinho trabalha com a ideia de que ele descobriu o conjunto de teorias que explica o mundo (a "unidade do mundo" foi descoberta por ele), como o inconsciente de Freud, a dialética de Hegel ou o capital de Marx.

Mas, voltando ao problema que leva ao fracasso do modo de agir do porco-espinho (este, segundo Nate Silver, é menos eficaz na análise do mundo, e eu concordo com Silver aqui), é que, como diz Berlin, "os professores simplesmente tendem a exagerar a importância de suas atividades pessoais, como se fossem a 'força' central que impele o mundo".

Portanto, não se trata de negar o valor de porcos-espinhos (como negar o inconsciente, a dialética ou o capital como formas válidas de pensar o mundo?), mas, sim, de revelar o risco quando professores se fazem oráculos da verdade do mundo a partir de sua sala de aula, negando tudo mais que contradiga suas teorias de mundo. O que Silver aponta é este vício na mídia e como ele fica ridículo quando especialistas recusam o mundo em favor de "seu mundinho ideológico".

Outro livro essencial para pensarmos as causas da irrelevância das ciências humanas na lida com o mundo "que desencoraja especulações" (Gertrude Himmelfarb, historiadora americana) é "Envolvimento e Alienação", ed. Bertrand Brasil, 1998, do sociólogo Nobert Elias.

Neste livro, Elias opõe o envolvimento à alienação como modo de ação dos cientistas sociais e defende a alienação como sendo o mais eficaz, e dá uma razão para as ciências sociais não serem capazes de evitar um único massacre étnico.

Claro, alienação, aqui, não é alienação marxista, mas o distanciamento que o cientista social deveria ter de suas preferências teóricas e "afetivas" quando investiga a realidade a sua volta. O envolvimento, seu contrário, infelizmente, é a atitude mais comum em minha casta intelectual: tornar-se oráculo de um "mundinho", aquele que eu tenho na minha cabeça.

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

PERGUNTA INEVITÁVEL?

A passagem do tempo e o fato de que temos consciência dela compõem, talvez, a condição que mais nos define


Nesta semana estive no Brasil dando uma palestra em um evento corporativo. Havia umas 200 pessoas, de várias regiões do Brasil, executivos e administradores.

Minha missão era iniciar uma reflexão macro, tirando as pessoas de sua área de conforto, colocando questões que, na correria da vida, tendemos a deixar de lado.

Como pediram para que eu falasse sobre o homem, o tempo e o espaço, embarquei numa discussão de como a ciência moderna vê a questão da existência humana: suas origens, seu significado, sua incumbência enquanto espécie, seu destino. Nada mais estimulante do que dividir minhas reflexões sobre esses temas tão fundamentais.

Comecei falando de como somos criaturas limitadas pelo tempo, com uma história que começa e acaba; mostrei que, tal como nós, assim são também as estrelas e o próprio Universo, cada qual com a sua história.

A passagem do tempo e o fato de que nós, como espécie, temos consciência dela são, talvez, a condição que mais nos define: a consciência que temos da nossa existência e da sua finitude.

Argumentei que muito do esforço criativo humano, nossos poemas e nossas sinfonias, a literatura, as ciências e a filosofia, enfim, a soma total da produção cultural da nossa história coletiva podem ser vistos como uma resposta a esses anseios, como uma tentativa de compreender a razão de nossas vidas.

Amor, reprodução, poder e relacionamentos, são manifestações de quem somos e de como escolhemos viver nossas vidas.

Passei para a questão das origens: do Cosmo, das estrelas, da vida, mostrando que todas as culturas de que temos registro oferecem uma narrativa da criação, um esforço de explicar de onde veio tudo.

Olhar para o céu e ver milhares de estrelas nos remete, inevitavelmente, à questão da existência de outros mundos, da possibilidade de que não estamos sós no Universo. Mais ainda quando aprendemos que apenas em nossa galáxia, a Via Láctea, existem em torno de 200 bilhões de estrelas, o Sol sendo apenas uma delas.

Mostrei imagens belíssimas tiradas por sondas espaciais, como o telescópio espacial Hubble, explicando como essas máquinas maravilhosas são um depoimento da criatividade humana: esses pequenos robôs atravessam milhões de quilômetros pelo espaço sideral, visitando outros mundos controlados aqui da Terra por pessoas como nós.

Sugeri que devemos celebrar esses feitos tecnológicos como celebramos outras grandes obras da humanidade, das pirâmides às catedrais medievais, da arquitetura de Brasília à Mona Lisa e às sinfonias de Beethoven.

Mostrei que, diferentemente do que a maioria pensa, e como explico no livro "Criação Imperfeita", quanto mais aprendemos sobre o Cosmo, mais relevantes ficamos: aglomerados moleculares de poeira estelar capazes de refletir sobre quem somos, de construir máquinas que nos permitem ver além da nossa percepção tão limitada do real.

Tentei, com palavras e imagens, celebrar a condição humana e a beleza austera do Cosmo.

E, ao fim de tudo isso, tão inexorável quanto a passagem do tempo, veio a pergunta inevitável: "O senhor acredita em Deus?"Por: Marcelo Gleiser Folha de SP

segunda-feira, 20 de maio de 2013

DESTINO

Podem acreditar, o destino vai mandar algumas cartas inesperadas. Boas e ruins. Não há como prever. Está além de nossas capacidades. Como lidar quando estas circunstâncias surgirem? Boas noticias não constituem problema e podem ser aproveitadas e curtidas na sua devida hora. Resta saber o que fazer com as más novas? A imprevisibilidade inerente não permite nenhum conselho, entretanto, podemos trabalhar nossos pensamentos para não ficarmos sem chão quando a hora ruim chegar. 


Ler muito ajuda. Perder-se nas páginas dos livros é um dos instrumentos libertários mais poderosos para a sobrevivência humana. Além da cultura e experiência de outras pessoas, teremos a chance de conhecer mais do mundo e de nós mesmos.

Ao conseguir se projetar e levar para dentro de um texto sua vivência pessoal, emoções, buscas, preconceitos, o leitor mergulha e se confunde com o que lê. O único limite para a amplidão da leitura é a imaginação do leitor. Se este for suficientemente tocado pelo texto, poderá construir imagens, refletir e até mesmo libertar temporariamente seu ego. Mesmo não sendo a intenção original, uma boa leitura proporcionará, consciente ou inconscientemente, a aquisição de ferramentas emocionais capazes de ampliar horizontes e expectativas.

Além da leitura, podemos abastecer pensamentos com informações, sensações, emoções que nos fazem bem no dia a dia, para que fiquem indexadas. Meditando, escrevendo, falando, tocando, ouvindo. Quando as cartas inesperadas chegarem, nossa estrutura de pensamento se encarregará do trabalho de seleção, direcionando as coisas indexadas para o nosso lado e providenciando um descarte para as demais.

Pode parecer complicado, mas não é. Você gosta de escutar música clássica, Vai e volta do trabalho se deliciando com Mozart, Beethoven, Bach, Vivaldi. Alimenta seus ouvidos e sua alma com sinfonias eruditas. O que acontece quando ao ligar o rádio a emissora está tocando uma música popular? Assim como imagino que você deverá trocar de estação, de modo semelhante, suponho que quando o destino enviar algo que lhe seja estranho e desconfortável, seu pensamento logo vai direcionar você para aquilo que lhe faz bem.

Resumindo, quando algo de ruim acontecer, ao invés de manter o foco na adversidade, podemos aproveitar todas as experiências agradáveis adquiridas na leitura e nos bons momentos vividos para tentar descolar esta situação de nosso pensamento. Ela não estará indexada no arquivo daquilo que somos ou gostamos e aos poucos será descartada. Não haverá espaço para estes infortúnios. Cabe a cada um de nós apenas fornecer substratos para que a estrutura de pensamento conheça nossas satisfações e realize o processo de depuração.

Selecionei algumas felicidades pessoais. É um exercício diário. Amanhã posso adicionar outras sensações ou reconsiderar determinado prazer. Serve para minha forma de pensar. Para você, pode e deve ser diferente. De qualquer forma, talvez meus sentimentos, aspirações e expectativas lhe inspirem e façam refletir.

- Que as mentiras pareçam mentiras
- Que um minuto de reconciliação valha mais que toda uma vida de amizade
- Que ser honesto não saia tão caro
- Que ser covarde não valha a pena
- Que mesmo não sabendo onde ir, saiba para onde voltar
- Que meu coração continue falando
- Que meus amores continuem em mim
- Que o beijo não termine
- Que a lua de mel não se ponha
- Que a vontade de ir embora não me alcance
- Que minha cama seja aquecida
- Que as esperas sejam deliciosas
- Que minhas mágoas não tenham âncoras
- Que exista outro amanhã, outros sonhos, outros risos, outras coisas
- Que os porquês se respondam com sentimentos
- Que o fim do mundo me pegue bailando
- Que o destino me chame na hora certa
Por: Ildo Meyer

sábado, 18 de maio de 2013

EUA CRIAM NOVAS DOENÇAS

Sou homem antigo. Da época em que não existiam TPM nem ponto G. Minha mãe nunca teve TPM. Minhas tias e avós muito menos. Minha filha já tem. 

Doenças novas surgem a cada dia, para regozijo dos laboratórios. Ano passado, a Folha de São Paulo trazia um caso interessante sobre como pintar com palavras eruditas o que vulgarmente atende por um nome bem banal, a notícia de um contador de 31 anos que não conseguiu mais pagar a comida nem o passe de ônibus: "Cheguei ao fundo do poço em três anos. Devia cerca de R$ 35 mil quando ganhava R$ 1.000 por mês." O contador, que não quer se identificar, participa de reuniões do Devedores Anônimos em São Paulo, um grupo de apoio a pessoas que sofrem de compulsão pelas compras (oniomania).

Em meus dias de guri, isso tinha outro nome. Quem assim se portava, só por eufemismo chamávamos de irresponsável. Na verdade, era um caloteiro. E merecia ser punido. Hoje é um oniômano. E faz terapia. Desde 2010 – prossegue o jornal - três grupos desse tipo foram abertos na capital paulista, na Grande São Paulo e no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o grupo mais antigo, que funciona nos Jardins desde 1998, aumentou o número de encontros de um para dois por semana desde janeiro.

Pelo jeito, ao lado dos equoterapeutas e bototerapeutas, temos agora os oniomanoterapeutas – comentei na ocasião. Nestes dias de crédito fácil, a profissão tem futuro. Me pergunto como serão as reuniões desses grupos. Vai ver que discutem as melhores fórmulas de como rolar a dívida, de banco a banco, de cartão a cartão.

Na época, comentei ainda o surgimento de um novo profissional neste mundo de doenças novas, os gigolôs do luto. Uma atriz, Cissa Guimarães, optou pela terapia do luto após perder o filho. "A terapia do luto foi fundamental para que eu conseguisse sobreviver à maior dor de um ser humano", disse "Consegui isso com a ajuda terapêutica de Adriana Thomaz. Com ela, entendi melhor a morte, como fazer a conexão com o amor do meu filho e como reaprender a viver."

No início do tratamento, o indicado é visitar o profissional duas vezes por semana. Conforme o progresso do paciente, as sessões se tornam semanais e, posteriormente, quinzenais - até que o paciente receba alta. E isto, obviamente, quem vai decidir é o terapeuta. De acordo com Adriana Thomaz, ainda existem poucos especialistas em luto no Brasil, e a maioria atua na capital paulista. Normal. São Paulo, com sua diversidade e incultura, é berço fértil para todos os engodos e crendices. Aqui nasceram as prósperas igrejas dos bispos Edir Macedo, R. R. Soares, apóstolo Hernandez, bispa Sonia et caterva. Grandes vigarices não vicejam em cidades pequenas.

Pelo jeito, o homem contemporâneo, apesar de milênios de evolução, ainda não aprendeu a lidar como o mais corriqueiro dos fatos humanos. Se a moda pega, os terapeutas do luto vão brotar como cogumelos após a chuva. Se cada vez que morre uma pessoa querida, temos de pagar um analista para enfrentar sua morte, o leitor pode ter uma idéia do baita mercadão que se abre aos gigolôs das angústias humanas.

Cala-te boca. Depois de amanhã, a Associação Americana de Psiquiatria (APA), divulgará a nova edição do manual que define os critérios para diagnóstico de todos os transtornos mentais classificados pela entidade. Conhecido como a "bíblia da psiquiatria", esse documento é resultado de uma década de debates entre 1.500 especialistas e de um compilado de novas descobertas feitas desde a publicação da última versão revisada do manual, há 13 anos. Esta será a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, sigla em inglês para Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders).

A economia é uma bicicleta que não pode parar. As novidades são muitas. Me atenho a algumas delas. Você tem um súbito desejo de empanturrar-se com um churrasco? Cuidado. Se ocorrer uma vez por semana, é doença e das mais graves. Chama-se compulsão alimentar. Estamos cercados de enfermos e não sabíamos.

Quanto à TPM, aquela doença que minhas contemporâneas desconheciam e a chamavam de cólicas, se antes era classificada como um problema que merecia mais atenção (e não como um transtorno psiquiátrico), agora é transtorno mental.

Você é daqueles que adoram tirar umas casquinhas da pele quando elas surgem por qualquer motivo? Pois agora sua inocente mania virou doença. Transtorno da escoriação da pele ou, em inglês, skin-picking. A APA afirmou que a doença será incluída no DSM-5 por haver "fortes evidências para a validação e a utilidade clínica desse diagnóstico." 

Não bastasse isto, dor pela perda de uma pessoa querida agora tem prazo. Se você chorar por muito tempo, é doença. Uma pessoa que está de luto por ao menos duas semanas pode ser diagnosticada com depressão. Está aberto o caminho para a regulamentação da profissão de gigolô do luto. Chorar duas semanas é o máximo permissível. Na terceira semana, você já está precisando de terapeuta.

"As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir; a esfera do normal está encolhendo", disse o psiquiatra Allen Frances, que comandou a comissão responsável pela quarta edição do DSM, em uma carta ao jornal The New York Times.

"Como presidente da Força-Tarefa do DSM-IV, eu devo assumir responsabilidade parcial por essa inflação de diagnósticos. Decisões que pareciam fazer sentido foram exploradas por empresas farmacêuticas em campanhas de marketing agressivas e enganosas. Elas venderam a idéia de que problemas da vida cotidiana são na verdade doenças mentais, causadas por desequilíbrios químicos e curadas com uma pílula", diz Frances, que é professor emérito da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, e um dos maiores críticos do DSM-5. 

Somos todos enfermos. Só não sabíamos disso. Ainda bem que os laboratórios ianques aí estão, onipresentes, para nos fazer retornar à saúde. Por: Janer Cristaldo

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A FAMÍLIA TRANSFORMADA

Curvem-se as nações ante o Brasil. Depois de o STF ter rasgado a Constituição de uma penada e com um neologismo torto – a homoafetividade -, instituído o casamento homossexual, o formato da família continuou evoluindo no país.


A bigamia, por exemplo, foi instituída há cinco anos, através de outro neologismo, o poliamor. Em 2008, em Porto Velho, Rondônia, uma mulher obteve na Justiça o direito de receber parte dos bens do amante com quem conviveu durante quase 30 anos. Ele era casado e morreu em 2007, aos 71 anos. O juiz Adolfo Naujorks, que concedeu à moça o direito de herança, baseou-se em artigo publicado num site jurídico segundo o qual uma teoria psicológica, denominada "poliamorismo", admitia a coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas em que casais se conhecem e se aceitam em uma relação aberta.

Ano passado, uma união conjugal entre três pessoas foi lavrada em um cartório em Tupã, interior de São Paulo. Segundo Claudia Domingues do Nascimento, tabeliã do cartório e redatora do texto, a escritura estabelece regras relativas aos bens dos parceiros, na hipótese de algum deles adoecer, morrer ou mesmo desistir da relação. “É como um contrato particular de compra e venda.”

A tabeliã afirmou que o trio tentou, sem sucesso, formalizar a escritura de união estável em outros cartórios. “Aí eles descobriram que minha tese de doutorado é sobre união poliafetiva [entre mais de duas pessoas] e me procuraram”, disse. Se antes era o Legislativo que determinava o regime legal do casamento, ao que tudo indica hoje tese de doutorado produz legislação. Segundo o UOL, o documento lavrado “pode ser a primeira escritura de união conjugal entre três pessoas no país”.

Já escrevi sobre o tal de poliamor. Apesar de ter vivido muito mais de duas relações paralelas, confesso desconhecer tal teoria. Em meus dias de jovem, chamava-se isto amasiamento, adultério, infidelidade. Ou ainda, vendo a coisa por outro ângulo, de donjuanismo. Ou casanovismo. 

Mais adiante, anos 70 para cá, começou-se a falar em relação aberta. Tudo dependia do consenso do casal. Conheci casais que viveram unidos a vida toda, mantendo este tipo de relação. Era um relacionamento honesto, sem mentiras. Mas o Direito jamais reconheceu direito à herança por parte de quem não fosse a mulher legítima. Neste sentido, o matrimônio funcionava como proteção. O marido podia ser infiel à vontade, sem precisar dividir seus bens com a Outra, como se dizia então.

Poliamorismo soa mais elegante. Procurei a palavrinha nos dicionários. Não encontrei. Nem meu processador de texto reconhece a palavra, sempre a sublinha em vermelho. Fui ao Google. Já está lá. Escreve um jurista: “As relações interpessoais de cunho amoroso, por vezes destoam do padrão habitual da monogamia entre os casais formados por pessoas de sexos diferentes. Assim, encontramos relacionamentos afetivos que envolvem um casal, vale dizer um dos cônjuges e um parceiro ou parceira, os quais se desenvolvem simultaneamente. Ditas relações são denominadas de poliamorismo ou poliamor, e se constituem na coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas ao matrimônio”.

Os muçulmanos são mais práticos. Todo crente tem direito a quatro mulheres e estamos conversados. Não se fala em amor nem poliamor. Mas não precisamos ir até o Islã. No livro que embasa a cultura ocidental, temos o rei Salomão. “Tinha ele setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram o coração”, lemos no I Reis. Poliamantíssimo, o sábio rei. Bem que gostaria de ter meu meigo coração assim pervertido.

Após a morte do empresário de Rondônia, a amante, que por lei não teria direito à partilha de bens, entrou na Justiça com uma ação declaratória de união estável, dizendo que dependia financeiramente dele e que compartilhou com ele esforço comum na formação do patrimônio. O pedido foi contestado pelos dois filhos do casamento, que pediram a condenação dela por má-fé e argumentaram que a lei nacional baseia-se no relacionamento monogâmico. Segundo trecho do artigo usado na sentença, "as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo".

Alvíssaras! Novidade na cultura ocidental. Finalmente o Direito contemporâneo reconhece que o tal de amor não precisa ser monogâmico. Mas minhas dúvidas permanecem. A sentença não estabelece quantas pessoas se pode amar ao mesmo tempo. Só duas? Ou vinte também vale? E o harém do rei Salomão? Pode? Tampouco esclarece se uma mulher pode amar dois ou mais homens. Pelo que se deduz da questão, quando um homem ama duas mulheres é poliamor. Já uma mulher amando dois ou mais homens, vai ver que é puta mesmo.

Segundo a tabeliã de Tupã, o trio é formado por um homem e duas mulheres, todos profissionais liberais, sem filhos, solteiros e residentes no Rio de Janeiro. “Eles se conhecem há muito tempo, e, desde 2009, passaram a viver uma relação estável.”

A tabeliã disse que existem muitas pessoas que vivem nessa situação, mas que não sabem que é possível formalizá-la em documento. “Eu estou surpresa com a repercussão desse fato. Estou sendo procurada por pessoas que vivem em condições semelhantes.” É o milagre dos neologismos. Se amasiamento, adultério ou infidelidade soavam mal, poliamor é louvável, digno e justo. O mesmo aconteceu com homossexualismo. Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, do STF, homossexuais não mais existem. Agora são todos homoafetivos.

Os novos conceitos trarão insuspeitadas conseqüências jurídicas. Homoafetivos já podem casar. Homoafetividade exclui o tal de poliamor? Obviamente não. Se um homem pode amar duas mulheres, por que não poderia amar dois homens? Nada impede. Se obedecermos à boa lógica, em breve teremos três ou mais homens (ou mulheres, por que não?) registrando suas relações estáveis em cartório. O velho casamento católico vai virar partouse. Nada contra. Apenas constato.

Não bastasse este contributo tupiniquim ao Direito de Família, temos agora a filiação tripla. Leio no Estadão de ontem: 

Primeiro documento do brasileiro, a certidão de nascimento tradicional traz a filiação da criança com o nome do pai em cima e, logo abaixo, o da mãe. As relações de afeto, no entanto, têm reconfigurado a estrutura das famílias e também a do documento oficial. Atentas a essas mudanças, decisões judiciais têm aberto caminho para que em um registro civil coexistam, sem conflitos, dois pais e uma mãe ou um pai e duas mães - são as famílias multiparentais.

A idéia defendida por alguns juízes, promotores e advogados é de que disputas entre quem "cria" e a mãe ou o pai biológico da criança podem virar "filiação tripla" no registro civil. A solução já foi implementada em pelo menos sete Estados por meio de ações de adoção ou investigação de paternidade.

Rondônia parece estar inovando em matéria de Direito. Foi também lá que, em março de 2011, a família multiparental emplacou pela primeira vez, em Ariquemes, com um parecer da promotora Priscila Matzenbacher. 

Um homem, cuja identidade não pode ser revelada, havia registrado uma menina como se fosse sua filha, mesmo sabendo que o pai era um ex-companheiro da mulher. Tempos depois, o pai biológico passou a se relacionar com a filha e entrou com ação para ter seu nome no registro. A promotora propôs o afeto: os dois deveriam ser postos na certidão. Em todos os casos, Priscila se baseia em avaliações psicológicas para identificar se a pessoa é tratada pela criança como outro pai ou mãe. "É diferente ser padrasto ou madrasta."

- O “mais” é melhor para a criança. A gente nem sempre tem de pensar em eliminar um pai ou mãe - diz a promotora, que já atuou em cinco casos de paternidade múltipla em Rondônia - dois tiveram autorizada a inclusão de outro pai. Em março passado, mais um precedente para o registro triplo, no Recife. Sem recursos para cuidar do filho, a mãe biológica deixou o encargo à mulher do ex-companheiro. A madrasta exigiu que o menino de 4 anos tivesse seu sobrenome. A saída foi o registro triplo.

Na mesma vara de família, no fim de 2012 um casal de lésbicas incluiu o irmão de uma delas na certidão do filho. A intenção era de que a criança tivesse também uma figura paterna. A advogada Vivian Guardian Medina buscava uma maneira de adotar o enteado sem afastar o nome da mãe, que morreu quando ele era bebê. Isso pareceu viável após o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer a união entre pessoas do mesmo sexo, em 2011. "Se podia haver dois pais e uma mãe em uma certidão, por que não duas mães e um pai?" Em setembro, foi expedida decisão, em caráter definitivo, da dupla maternidade e a certidão será alterada até junho.

Juízes, tabeliães e promotores estão modificando a gosto a legislação de família, sem ligar para esse papelucho supérfluo, a Constituição. Não bastasse isto, a Câmara Municipal de São Paulo promete um novo adendo à instituição. Há dois dias, eu comentava esta perversão urbana, a de considerar cães como gente. Cala-te, boca!

Conforme projeto de lei que já começou a tramitar, cães e gatos poderão ser enterrados em cemitérios públicos da cidade. É o que nos informa hoje Monica Bergamo, da Folha de São Paulo. Segundo o projeto, terão prioridade os "animais de estimação da família do concessionário da campa ou jazigo". 

A proposta, publicada no Diário Oficial há alguns dias, é dos vereadores Ricardo Tripoli (PV) e Antonio Goulart (PSD). Eles afirmam que os bichos são hoje "membros das famílias humanas". Além do "extremo sofrimento da perda" quando eles morrem, as pessoas se desesperam sem saber para onde destinar o cadáver. Cemitérios de animais cobrariam "altíssimas taxas". Mais um pouco e a cachorrada terá direito a herança. 

A família se transforma em Pindorama. Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! não verás nenhum país como este! Por: Janer Cristaldo

quinta-feira, 16 de maio de 2013

DESFECHO

Esta semana lendo o jornal vi uma reportagem que falava de um grande pesquisador americano que se dedica a mostrar como o cérebro nos engana. O exemplo usado pelo pesquisador é da dieta que a pessoa diz que vai começar na segunda, mas que antes do fim de semana come mais que o normal, que compra frutas e verduras na sexta-feira, mas as deixa murchar até a segunda-feira, deixando-as de certa forma menos atrativa. Outro exemplo são de grandes objetivos que temos com relação a nós mesmos que não conseguimos alcançar porque nosso cérebro não nos deixa levar adiante. Os exemplos citados por ele mostram situações em que o cérebro não nos deixa concluir nossos objetivos, realizar uma tarefa que “queríamos” fazer. 

É comum ouvir num consultório de Filosofia Clínica coisas como: gostaria de começar um regime, mas não consigo; queria voltar a estudar; nunca conseguir dizer que amo aquela garota. Cada um destes exemplos são situações em que o que eu quero, preciso, devo, enfim, o que era para ser feito, não foi. Mas o que fez com que não acontecesse o desfecho? O que travou a pessoa a ponto de ela não levar a cabo o que pretendia? Para cada um pode ser um motivo diferente, mas em cada um de nós há o que nos estimula e o que nos trava. Em Filosofia Clínica, ao estudar a história de vida da pessoa, provavelmente vamos saber o que a travou, ou seja, que não deixou a pessoa ir ao desfecho. Lembrando que algumas coisas não devem mesmo ir em direção ao desfecho, são perfeitas quando não acabadas.

Mesmo sem saber o que travou o projeto de alguém, pode-se indicar algumas maneiras de começar o que deveria levar a um fim. Para algumas pessoas o projeto não começou ainda porque não tem uma data, ou seja, a falta de estipular um início e fim faz com que ela nem inicie. Se for este o caso, pode-se ver o projeto de vida e colocar datas, tanto de início quanto de fim, com isso provavelmente ele sairá do pensamento. Alguns podem dizer: “eu já fiz isso”. Talvez sim, mas para alguns as datas não podem vir deles mesmos, precisam vir de fora. Pode-se citar um exemplo da esposa que chega para o marido e diz: “Você tem seis meses a partir da semana que vem para perder 10 quilos”. Pronto, agora, com uma data que veio de fora ele consegue colocar em prática o que há anos sozinho não conseguia.

Em outros casos o problema está no tamanho do percurso que se tem de trilhar para chegar a um fim. É como uma caminhada, enquanto o objetivo final não é visível o caminhante permanece firme e forte, sequer cansa, mas quando vê o objetivo a alguns metros parece que não vai lcançar. Para este tipo de pessoa, normalmente se diz que nadaram, nadaram e morreram na praia. Talvez se para estas pessoas a caminhada fosse dividida em pequenas etapas, é provável que cada pequeno trecho teria um peso muito menor que o todo. É como a faculdade que tem cinco longos anos, sendo que a mesma pode ser dividida em dez curtos semestres. Se o caminho tiver pequenas divisões e for completado em cada parte, ao final a pessoa terá o todo. 

Há ainda as pessoas que precisam de companhia, aquelas que têm seus objetivos, mas concluí-los depende de alguém que possa fazer parte. É o caso das milhares de meninas e meninos que vão para a academia enquanto têm companhia de outros amigos. É o caso daquele rapaz que tem grandes ideias, mas o desfecho delas só acontecerá na companhia daquele amigo mais despachado, mas afoito. O desfecho, o término de um trajeto pode ser importante para algumas pessoas, para tantas outras não. Quando for importante o desfecho, o término, é preciso estudar na pessoa as ferramentas que possam levá-la até lá.

Rosemiro A. Sefstrom

segunda-feira, 13 de maio de 2013

O BANDIDO E O FRENTISTA

A população está entregue às traças, enquanto nos palácios, gente inteligentinha de todo tipo (com o mesmo caráter da aristocracia pré-revolucionária de Versailles) discursa sobre "direitos humanos dos bandidos", toma vinho chileno, paga escola de esquerda da zona oeste de São Paulo que custa 3 mil reais mensais e vai para Nova York brincar de culta.

A inteligência ocidental está podre, mergulhada em seus delírios de reconstrução do mundo a partir de seus três gnomos Marx, Foucault e Bourdieu.

Nós, desta casta de ungidos, desprezamos o povo comum porque pensamos que o que eles pensam é coisa de gente ignorante.

Outro dia fui abordado por um frentista num posto perto da minha casa na zona oeste (perto daquela praça destruída aos domingos pelas bikes -"bicicletas" na língua de pobre). Ele disse: "O senhor não é aquele filósofo da televisão?". E continuou: "Não pense que porque somos proletários, não entendemos o que o senhor fala na televisão".

Quem advinha do que ele queria falar? Este posto sempre foi 24 horas e agora não é mais. Por quê? Disse ele que estavam todos, do dono aos funcionários, cansados de serem assaltados toda noite. Disse ele: "O ladrão vem na sua moto, para, põe a arma na nossa cara, rouba tudo, ameaça nos matar e vai embora. Nada acontece".

E mais: "E fica todo mundo preocupado com o direito dos bandidos. Onde ficam os direitos de quem trabalha todo dia?".

Vou dizer uma blasfêmia, dirão alguns dos meus amigos da casta inteligentinha: se preocupar com direitos dos bandidos é apenas um modo chique de continuar se lixando para o "povo", assim como os coronéis nordestinos sempre se lixaram, a diferença agora é que a indiferença para com o destino das pessoas comuns vem regada a vinho chileno e leituras de Foucault.

A "elite branca letrada" é completamente indiferente para com o destino desse frentista.

Ele pede para que a polícia "acabe com os bandidos para ele poder trabalhar e a mulher e filhos dele não serem mortos". Ingênuo? Simplista? Talvez, mas nem por isso menos verdadeiro na sua demanda "por direitos".

A verdade é que estamos mergulhados num blá-blá-blá pseudocientífico das razões que levam alguém a ser bandido, seja qual for a idade, e enquanto isso esse frentista se ferra.

O que terá acontecido, que de repente a elite letrada e pública ficou tão "sensível ao sofrimento social" e tão indiferente ao sofrimento desta "pequena gente honesta"? Até escuto alguns de nós dizer: "São uns mesquinhos que só pensam nas suas vidinhas". Quem sabe alguns mais anacrônicos arriscariam: "Isso é resquício do pensamento pequeno burguês".

A verdade é que nós estamos pouco nos lixando para o que essa gente que anda de metrô, trem e quatro ônibus sofre. Todo mundo muito "alegrinho" com a PEC das empregadas domésticas, mas entre elas e os bandidos a vítima social são os bandidos.

A pergunta que não quer calar é: por que em países islâmicos, por exemplo, com alto índice de pobreza, não existe criminalidade endêmica? Será que tem a ver com medo da terrível punição corânica?

Dirão os inteligentinhos que a causa da criminalidade é social. Hoje em dia, "causa social" serve para tudo, como um dia foram os astros e noutro a vontade dos deuses.

Não nego que existam componentes sociais de fome e sofrimento na causa do comportamento criminoso, mas ninguém mais leva em conta que a maioria que vira bandido porque não quer trabalhar todo dia como esse frentista.

Ser bandido é, antes de tudo, um problema de caráter. E esse frentista, pobre também, sabe disso muito bem, só quem não sabe é minha casta de inteligentinhos.

O que dirão os inteligentinhos quando esse contingente de verdadeiras vítimas sociais do crime começarem a se organizar e matar os bandidos a sua volta? Pedirão a alguma ONG europeia para proteger os bandidos dessa gente "mesquinha" que só pensa em sua casinha, seus filhinhos e seu dinheirinho?

Acusarão essa gente humilhada e assaltada de não ter "sensibilidade social"? Dirão que soltar bandidos na rua é "justa violência
revolucionária"? Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

domingo, 12 de maio de 2013

QUEM QUER VIVER PARA SEMPRE?

Eu já deveria estar morto. Ou a caminho de. Para alguns leitores, nunca uma frase soou tão verdadeira.

Mas eu falo de história, não de afetos. Se tivesse nascido em Portugal cem anos atrás, já haveria lápide e caixão. Dá para acreditar que, em inícios do século 20, a esperança média de vida para os homens portugueses rondasse os 35-40 anos?

Hoje, andará pelos 80. O que significa que, com sorte e algum bom humor do Altíssimo, eu estou apenas no meio da viagem.

Se juntarmos os progressos da medicina no futuro próximo, é possível que a viagem seja alargada mais um pouco. Cem anos, cento e tal. Nada mau.

Um artigo recente da "Nature", aliás, promete revoluções para a minha pobre carcaça. O segredo está no hipotálamo cerebral e numa proteína do dito cujo que regula o envelhecimento humano.

Não entro em pormenores, até porque eu próprio não os entendo. Mas eis o negócio: se a proteína é estimulada, os ratinhos morrem mais depressa. Se a proteína é inibida, acontece o inverso.

Falamos de ratos, por enquanto, o que significa que a descoberta só terá aplicação imediata entre a classe política.

Mas o leitor entende aonde eu quero chegar. E eu quero chegar à maior promessa de todas: o dia em que seremos finalmente imortais.

Na história da cultura ocidental, esse dia pode estar no passado distante (ler o poeta grego Hesíodo, ler a Bíblia).

Ou pode estar no futuro, como garantem os "transumanistas". Falo de uma corrente bioética perfeitamente respeitável que se dedica a essa causa: o destino da humanidade não está em morrer aos cem. Está em viver indefinidamente depois dos cem. Como?

Através dos avanços da tecnologia, claro. Porque só a tecnologia permitirá aos homens suplantar a sua infantil condição mortal.

O nosso corpo é apenas a primeira casca de todas as cascas que estarão para vir. E quem, em juízo perfeito, não gostaria de viver para sempre?

Curiosamente, há quem não queira. O filósofo inglês Roger Scruton, em ensaio recente, dedica um capítulo específico aos transumanistas. O livro intitula-se "The Uses of Pessimism and the Dangers of False Hope" (os usos do pessimismo e os perigos da falsa esperança). Segundo sei, será publicado no Brasil em breve. Recomendo.

Primeiro, porque é uma súmula perfeita do pensamento de Scruton, escrito com a elegância habitual do autor.

Mas sobretudo porque é a mais brilhante refutação do pensamento utópico --e em particular do pensamento utópico transumanista de autores como o norte-americano Ray Kurzweil ou o britânico Max More--, que me lembro de ter lido.

Isso deve-se, em grande parte, ao fato corajoso de Scruton ter sido capaz de virar o debate do avesso e perguntar: por que motivo a doença e a morte devem ser vistos como males intoleráveis que devemos erradicar? Não será possível olhar para eles como bens necessários?

Certo, certo: ninguém ama a doença e, tirando casos extremos, ninguém deseja morrer. Só que esse não é o ponto.

O ponto é que, sem a doença e a morte, a vida não teria qualquer valor em si mesma.

Os projetos que fazemos; as viagens com que sonhamos; os amores que temos, perdemos, procuramos; e até a descendência que deixamos --tudo isso parte da mesma premissa: o fato singelo de não termos todo o tempo do mundo.

Vivemos, escolhemos, amamos --porque temos urgência em viver, escolher e amar. Se retirarmos a urgência da equação, podemos ainda viver eternamente.

Mas viveremos uma eternidade de tédio em que nada tem sentido porque nada precisa ter sentido. Sem a importância do efêmero, nada se torna importante.

Os transumanistas sonham com um mundo pós-humano. É provável que esse mundo seja possível no futuro, quando a técnica suplantar a nossa casca primitiva.

Mas esse mundo, até pela sua própria definição, será um filme diferente. Não será um filme para seres humanos tais como os conhecemos e reconhecemos.

Viver até os cem? Agradeço.

Cento e vinte também servem. Mas se me dissessem hoje mesmo que o meu futuro duraria uma eternidade, eu seria o primeiro a pular da janela sem hesitar. João Pereira Coutinho Folha de SP

sábado, 11 de maio de 2013

CAI AMPLO O FRIO E EU DURMO NA TARDANÇA

Cai amplo o frio e eu durmo na tardança
De adormecer.
Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança,
Nem desejo de os ter.

E um choro por meu ser me inunda
A imaginação.
Saudade vaga, anônima, profunda,
Náusea da indecisão.

Frio do Inverno duro, não te tira
Agasalho ou amor.
Dentro em meus ossos teu tremor delira.
Cessa, seja eu quem for!

Fernando Pessoa, 19-1-1931.

SOSSEGA, CORAÇÃO! NÃO DESESPERES!

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperença a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Fernando Pessoa, 2-8-1933.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

TROCANDO AS PALAVRAS


Nos dias de hoje, é comum ouvir a palavra colaborador para designar os funcionários de uma empresa. Essa nova palavra é utilizada como forma de ressignificar a posição do trabalhador na organização. Porém, em muitas organizações existe a simples troca das palavras operário, funcionário, peão, empregado, pela palavra colaborador. O próprio funcionário sequer tem a ideia do que vem a ser um colaborador e qual o motivo de ser chamado assim num lugar onde recebe ordens e não pedidos. Ser colaborador é ser co-autor, cúmplice do que está acontecendo e não um marionete que é utilizado de qualquer forma. Trocar o nome não necessariamente troca a forma como o objeto é tratado. Tentando desfazer alguns equívocos pode-se pensar em três palavras: sintoma, problema e oportunidade.

Pense no seu trabalho, na própria vida, quantas oportunidades se têm ao longo da vida, assim também como uma grande quantidade de problemas? Não é, no entanto, fácil assim identificar um problema, visto que a maior parte do tempo se lida com sintomas. Um exemplo são os pequenos males como: dor de cabeça, enxaqueca, insônia, gastrite, afta, entre outros. Esses pequenos sintomas são alterações na normalidade física, sendo que essas alterações indicam que algo está errado, a alteração pode ser apenas um sintoma. Mas muitas pessoas sequer se questionam o motivo da insônia, deste modo, tomam comprimidos para dormir e tocam a vida adiante. Em outras palavras, tratam o sintoma e sequer se aproximam do problema que poderiam resolver. 

Algumas pessoas não se satisfazem com os sintomas, elas vão em busca do real problema, ou seja, daquilo que precisa ser tratado. Para tanto pensam na própria vida, vão ao médico, vão ao terapeuta, enfim, buscam encontrar o que merece ser tratado para eliminar os sintomas. Algumas ao longo da caminhada percebem que sua insônia é causada pela pressão no trabalho, sendo assim, não adianta tomar medicamento se não melhorar o ambiente de trabalho. Outras ainda percebem que sua gastrite é o medo de não dar o resultado esperado, assim, tomar medicamento para aliviar a dor ajuda, mas não resolve o medo de não dar resultado. Sair do sintoma e encontrar o real problema é um passo importante para se chegar nas oportunidades.

Um problema é uma dificuldade que se tem para cumprir determinado objetivo, ou seja, deseja-se algo e não se consegue, aí se encontra problema. De uma forma mais abrangente, qualquer dificuldade pode ser entendida como um problema. Mas, um problema é algo prático, pontual e não necessariamente é uma oportunidade. Quando o motor do carro estraga e tenho que levá-lo à oficina tenho um problema e não uma oportunidade. Trocar uma palavra por outra não muda o fato de que é necessário resolver o problema do carro. Mas como converter esse problema que precisa ser resolvido em oportunidade? Não mudar uma palavra por outra, mas de fato, criar uma oportunidade de um problema. 

Em outras palavras, problema se resolve, oportunidade se aproveita. Para uns o dia de levar o carro na oficina pode ser transformado em oportunidade quando ele percebe que neste dia ele pode melhorar seu casamento, fazendo da ida à oficina um momento favorável para levar a esposa para caminhar. Ou pode conversar com o mecânico e talvez fazer um bom negócio com esse carro. O exame atento do problema pode revelar uma possibilidade de fazer melhor, diferente, um problema pode ser uma ocasião favorável. O sintoma continua sintoma, problema continua problema, mas a oportunidade somente alguns conseguem ver. E o colaborador continuará sendo um funcionário que segue ordens, a menos que a ele sejam realmente dadas oportunidades de participar efetivamente das decisões da empresa. 

Rosemiro A. Sefstrom

quinta-feira, 9 de maio de 2013

OLHE O OUTRO

Fui testemunha de uma cena que considerei comovente. Estava esperando uma colega à porta de uma escola, era a hora da saída dos alunos. Mães, pais e crianças deixavam o espaço escolar com diferentes humores e comportamentos.


Quem já teve a oportunidade de assistir a cenas semelhantes sabe que esse pode ser um momento um pouco confuso e barulhento, mas é sempre muito rico para quem gosta de observar a interação entre pais e filhos.

Uma mulher e seu filho, de uns cinco anos mais ou menos, chamou a atenção do meu olhar. Passei a acompanhá-los logo que passaram por mim. Ela andava um pouco atrás do menino, que estava totalmente focado em algo que levava nas mãos.

De repente, o menino jogou um objeto no chão e continuou a caminhar em direção ao carro que --logo depois percebi-- estava bem próximo ao local onde eles e eu estávamos.

Foi o desenrolar desse acontecimento que considerei comovente e, por isso, compartilho com você, caro leitor. Essa mãe olhou bem para o entorno de onde estavam e, em seguida, chamou o filho. O garoto atendeu ao chamado da mãe de imediato e, assim que ele chegou perto dela, vi a mãe se abaixar e conversar com o filho em um tom bem tranquilo.

Eu imaginei que ela fosse mandar o garoto pegar do chão aquilo que ele jogara e colocar no lixo, que estava próximo. Só essa atitude da mãe, que eu pensei que fosse acontecer, já me surpreenderia porque, vamos convir, essa é uma iniciativa não muito comum de ser observada no espaço público.

Mas essa mãe fez algo bem diferente, como descobri a partir da reação que os dois tiveram em seguida. Depois de uma breve conversa dela com o filho, que eu não pude ouvir, os dois voltaram o olhar para uma servente da escola que limpava as escadas por onde muitos pais saíam com seus filhos. Na sequência, o garoto pegou do chão o que jogara --parecia um pedaço de lápis colorido-- e levou até o cesto de lixo. E, calmamente, os dois entraram no carro e foram embora.

Devo confessar que senti uma imensa vontade de caminhar até essa mãe e parabenizá-la pela sua atitude com o filho. Entretanto, tímida que sou, continuei parada onde estava, mas totalmente envolvida em meus pensamentos com o que eu acabara de presenciar.

Não sei as palavras que essa mãe disse ao filho, mas percebi que ela chamou a atenção dele para a servente, uma pessoa que realizava um trabalho que a criança nem notara e que tampouco respeitara ao atirar no chão aquilo que tinha nas mãos. Eu não sei se essa mãe sabe, mas o que ela fez foi tentar despertar no filho aquilo que chamamos de empatia.

Ter empatia significa ser capaz de se identificar com o que uma outra pessoa sente em determinadas situações, em geral difíceis, que provocam emoções fortes.

Estar aberto para compreender o que se passa com outra pessoa é uma maneira de se colocar disponível para ajudá-la, portanto. E isso sem falar do respeito pelo outro que a empatia provoca.

Sensibilizar o filho para a empatia é parte do que nós chamamos de formação moral. Hoje, não são muitos os pais que se ocupam desse aspecto tão importante da educação dos mais novos, não é verdade?

Na atualidade, a empatia é coisa rara. Estamos muito mais propensos a realizar julgamentos severos sobre outras pessoas do que inclinados a procurar compreendê-las. É que olhamos muito mais para nós mesmos do que para os outros.

A empatia é uma maneira de sair do individualismo e de se abrir para a conexão com os outros. As relações sociais melhoram muito com o desenvolvimento do sentimento de empatia, portanto.

A realidade que temos vivido tem apontado incessantemente para a importância de formarmos crianças e jovens mais sensíveis aos outros. Isso pode tornar a vida deles muito melhor. Por: Rosely Sayão Folha de SP

terça-feira, 7 de maio de 2013

PARA ALÉM DO NIILISMO

O leitor sabe que meu pecado espiritual é o niilismo. Enfrento-o dia a dia como qualquer moléstia incurável. O tema já foi tratado por gênios como Nietzsche, Turguêniev, Dostoiévski, Cioran. Deixo meu leitor em companhia desses gigantes, muito melhores do que eu.

A tragédia também me acompanha em todo café da manhã, essa concepção grega de mundo que julgo a mais correta já pensada. Aqui tenho grandes parceiros como o autor da tragédia ática Sófocles (entre outros), o filósofo Nietzsche, o dramaturgo Shakespeare e os escritores contemporâneos Albert Camus e Philip Roth.

Ambos, niilismo e tragédia, são visões de mundo que arruínam a vida. Diante deles, ateísmo é para iniciantes. O ateísmo só é aceitável quando blasé e sem associações de ateus
militantes. Para niilistas como eu, o ateísmo crente em si mesmo é brincadeira de meninas com fita cor-de-rosa amarrada na cabeça.

Ando de saco cheio do niilismo e da tragédia, apesar de continuar experimentando-os todo dia. Em termos morais, a virtude máxima para ambos é a coragem, e o vício mais a mão, a covardia.

Nos últimos tempos, tenho me interessado por outra virtude, a confiança, essa, tão difícil quanto a coragem, uma vez tomada a alma pelo niilismo e pela tragédia. É sobre ela que quero falar nesta segunda-feira, dia normalmente difícil, acompanhado do "bode" do domingo e da monotonia do dia a dia que recomeça imerso num sono que nunca descansa, porque sempre atormentado pela dúvida com relação ao amor, à família, ao trabalho e à viabilidade do futuro.

Meu maior pecado como escritor é jamais enganar, jamais querer agradar. Essa é minha forma de prestar respeito a quem me lê semanalmente. O caráter de alguém que escreve é medido pela ausência de desejo de agradar a quem o lê.

Amar cães e confiar neles é mais fácil do que amar seres humanos e confiar neles. Por isso, num mundo atormentado pela dúvida niilista, ainda que em constante denegação dela, tanta gente se lança à defesa melosa de cães e gatos e exige carne de frangos felizes na hora de comer em restaurantes ridículos.

Quero propor a você duas obras. Um filme e um livro que julgo entre os maiores exemplos da arte a serviço da confiança na vida.

O filme "As Damas do Bois de Boulogne", do cineasta francês Robert Bresson, de 1945, é uma pérola sobre a confiança na vida e nos laços afetivos. Bresson é um cineasta muito marcado pelo pensamento do escritor George Bernanos, grande anatomista da alma e especialista em nossa natureza vaidosa, mentirosa e, por isso mesmo, desesperada. Coisa para gente grande, rara hoje em dia, neste mundo governado por adultos infantis.

O filme trata da vingança de uma mulher belíssima contra seu ex-amante (que a abandonou), um homem frívolo e covarde por temperamento. Essa vingança se constitui na aposta de que ele e a mulher que ela "contrata" para sua vingança agirão do modo esperado. Sua intenção é fazer com que seu ex-amante se apaixone por essa mulher "contratada", uma prostituta.

O homem é mantido na ignorância da vida pregressa de sua noiva até depois do casamento. O que a mulher abandonada não contava é que a prostituta se apaixonasse pelo covarde, levando-o a transformação inesperada de caráter.

O amor também é personagem central da obra do dinamarquês Soren Kierkegaard "As Obras do Amor", da Vozes. Esse livro é o texto mais belo que conheço sobre o amor na filosofia ocidental.

Segundo nosso existencialista, o amor tudo crê, mas nunca se ilude porque, assim como a desconfiança e o ceticismo, o amor sabe que o conhecimento não é capaz de nada além do que fundamentar o niilismo, o ceticismo e o desespero.

O amor é um afeto moral, não um ato da razão. A razão não justifica a vida. O amor é uma escolha de investimento na vida, uma atitude, mesmo que a razão prove a falta de sentido último de tudo.

Ingênuos são os niilistas e céticos que consideram a desconfiança um ato livre da vontade. A desconfiança é uma escravidão. A aposta na vida é que mostra o caráter maduro de mulheres e homens. Boa semana. Port: Luis Felipe Pondé Folha de SP