segunda-feira, 30 de abril de 2012

A palavra feia

A primeira causa do impulso eugênico é o fato de que a vida é um escândalo de sofrimento Anos atrás, tive o prazer de conhecer o filósofo alemão Peter Sloterdijk. Encontrei com ele algumas vezes em sua casa em Karlsruhe, Alemanha. Partilhamos o gosto pelo charuto cubano, pelo vinho branco em grandes quantidades, pelo frango que sua esposa faz, pela visão trágica de mundo, pela heresia cristã pessimista conhecida por gnosticismo e pela pré-história. E também por usar palavras feias na filosofia e no debate público. Cheguei a entrevistá-lo para esta Folha duas vezes. Em uma delas, em 1999, a pauta era a acusação que outro filósofo alemão, Jürgen Habermas, fazia a ele de retomar a palavra "eugenia" em solo alemão. Eugenia quer dizer criar jovens belos, bons e perfeitos. Esta controvérsia chegou até nós e ficou conhecida com o título do livro causador dela, "Regras para o Parque Humano", publicado entre nós pela editora Estação Liberdade. "Parque Humano" aqui significa parque num sentido quase zoológico. Nesta peça filosófica, Sloterdijk dizia que o projeto eugênico ocidental é filho de Platão ("A República", por exemplo), e que se ele não deu certo nas engenharias político-sociais utópicas modernas, nem na educação formal propriamente, estava dando certo na biotecnologia e nas tecnologias de otimização da saúde. Alguém duvida que academias de ginástica, consultoras em nutrição, espiritualidades narcísicas ao portador (como a Nova Era e sua salada de budismo, decoração de interiores e física quântica), cirurgias e tratamentos estéticos, checkups anuais, ambulatórios de qualidade de vida, pré-natal genético e interrupção aconselhada da gravidez de fetos indesejáveis sejam eugenia? E a primeira causa do impulso eugênico é o fato de que a vida é um escândalo de sofrimento, miséria física e mental. Mas, a reação a Sloterdijk na época não foi propriamente uma negação de seus postulados (difíceis de serem negados), mas sim uma reação pautada pela covardia filosófica e política diante da palavra feia que ele falava. Esta palavra feia era sua recusa em negar nossa natureza eugênica e a opção contemporânea pós-nazismo por realizar a eugenia no silêncio de uma razão cínica que nega suas motivações morais: tornar a vida perfeita sem dizer que está fazendo isso. Ao tentar por "na conta do nazismo" a fala de Sloterdijk, Habermas e seus discípulos fugiam do debate, negando a fuga da agonia humana diante do sofrimento via nossa decisão (silenciosa) de tornar a vida perfeita a qualquer custo, mesmo que esta decisão venha empacotada em conceitos baratos como "qualidade de vida", "felicidade interna bruta" ou "direito a autoestima". Mas, engana-se quem pensar que Sloterdijk está querendo "aliviar" a intenção eugênica ao remetê-la a miséria estrutural da vida. Sloterdijk é um filósofo trágico, e por isso ele parte da aporia (impasse) da condição humana para pensar sua história, sua moral, sua política. Sua intenção é trazer à luz aquilo que não se quer trazer à luz, ou seja, que nossa cultura e nossa ciência são eugênicas apesar de dizer que não são. A palavra feia aqui é um grito contra o cinismo dos que negam a intenção eugênica. Mesmo que alguns intelectuais de esquerda tentem afirmar que o projeto político utópico revive nas mãos dos árabes e suas eleições islamitas, ou da crise do Euro, ou de desocupados que ocupam os espaços públicos dos que têm o que fazer, intelectuais estes que se apropriam de modo quase oportunista das constantes crises que acometem o mundo, sejam elas capitalistas, sejam elas de qualquer outra natureza, a verdadeira "esquerda" hoje é a afirmação do direito humano a ser mestre do seu destino através das ciências biotecnológicas e seu inegável impacto sobre as condições imediatas da vida cotidiana: longevidade, cirurgias transformadoras do corpo "original", vacinas, antibióticos, psicofármacos, contraceptivos, Viagras, terapias genéticas preventivas. Diante do cinismo, Sloterdijk me disse uma vez que nos restava o "terrorismo pedagógico": dizer palavras feias que as pessoas não querem ouvir em seu sono dogmático.Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

sábado, 28 de abril de 2012

Porque confiar?

Faz tempo que tenho vontade de escrever sobre confiança. Alguns bloqueios e muitas dúvidas seguraram meu ímpeto de colocar no papel o que pensava. Precisei conversar com pessoas, testar níveis de confiança, fazer pesquisa de campo até decidir compartilhar minhas idéias. Para uns, confiança é um ato de fé e dispensa raciocínio; para outros, confiança não é inata e precisa ser conquistada. Seja como for, confiança é algo a ser dado ou emprestado a alguém como crédito ao bom comportamento. Funciona como um presente que é ofertado em determinado momento da relação e sinaliza uma expectativa de que esta pessoa ou entidade está orientada para decidir nossos interesses tão ou melhor que nós mesmos faríamos se estivéssemos em seu lugar. Resumindo, confiança é a previsibilidade de valores comportamentais em qualquer situação, até mesmo diante do imponderável. Cabe uma indagação: é possível prever o comportamento do outro? Uma das características do inconsciente coletivo brasileiro é a cultura do “levar vantagem em tudo”. A malandragem implícita neste conceito inevitavelmente cria uma rede de desconfiança que coloca em risco todos os tipos de relacionamento, pois a qualquer momento podemos ser passados para trás. Desta forma, hoje em dia confiar é como caminhar no escuro, sempre vai existir a possibilidade, mais ou menos remota, de tropeçar. Como devem então se comportar os casais? Ao conhecer uma pessoa é recomendável dar um voto de confiança ou inicialmente deve-se desconfiar de tudo e todos? Depois de quanto tempo um namorado(a) pode saber se confia no outro e se entregar totalmente? Confiança é um sentimento quantitativo ou qualitativo? Pode haver confiança seletiva, ou seja, confiar que o companheiro(a)o nunca vai deixar de prover a família e estar presente nos momentos importantes, mas desconfiar da fidelidade conjugal? É possível amar e não confiar? Qual a graça do amor quando há ausência de confiança? Por que conviver com uma pessoa sabendo que ela não merece nossa inteira confiança? A resposta para a maioria destas perguntas poderia começar com a palavra “depende”, e talvez ai esteja a chave da questão, dependemos de algumas coisas para depositarmos nossa confiança. Nem sempre o problema da falta de confiança é culpa do outro. O ciúme é um bom exemplo, pois representa uma demonstração muito maior da falta de confiança em si, do que no comportamento do outro. Podemos eventualmente ser traídos por nossos próprios julgamentos. Se você não confia no outro, este não lhe retribuirá a confiança e a traição será apenas consequência da confiança não depositada. Nem sei se podemos chamar isto de traição, pois quando não se deposita confiança, não se configura traição. Outra forma de pensar seria depositarmos no outro a mesma medida que nos sentimos confiáveis, ou seja, se me julgo leal, o mesmo crédito vale para o outro. Claro que existe o lado inocente de confiar cegamente para depois descobrir que foi enganado(a). Você dá abertura, alguém entra na sua vida, rouba seu tempo, destrói sua confiança, agride sua auto-estima, estilhaça o pouco que resta da sua esperança no amor e depois vai embora. Qual o tamanho da mentira ou traição para que se perca a confiança? Uma vez perdida, jamais poderá ser recuperada? Nem sempre fazemos as escolhas mais sensatas, por vezes uma voz interior aponta um caminho enquanto outra grita dizendo que devemos ir para o lado oposto. Confiar socialmente ou entrega total? A escolha é individual, envolve riscos e recompensas. Cada um sabe até onde quer ir ou pode chegar. Dá para entender a dificuldade em escrever sobre o assunto? Afinal de contas, qual a serventia de confiar? Por que entrar num jogo onde as chances de perder são reais? Não é melhor ficar sempre com “um pé atrás”? Confiar é apostar tudo, mesmo correndo o risco de não dar certo. Poucos são capazes deste desprendimento. Confiar é dar espaço, abrir portas, entregar um cheque em branco. Confiar é acreditar em si e no outro. Confiar é ir atrás, mesmo que digam não querer mais. Confiar é perdoar antes mesmo do erro acontecer. Confiar é escutar aquela voz interior dizendo que apesar da escuridão, podemos amar sem medo, pois a única forma de o amor fluir, é confiando totalmente em seu brilho. E se falhar? Não perca a confiança!Por: Ildo meyer

Preparado para morrer

Querido leitor, paz! Nosso tema hoje é sobre decidir morrer. Há meses venho acompanhando um partilhante em Florianópolis. Está em estado bastante avançado de câncer e tem consciência de que tem poucos meses de vida. Um exemplo de garra e de determinação no que se refere a enfrentar sua questão de vida e de morte. Aposentado com uma confortável tranquilidade econômica, ele se diz um católico, apostólico, romano e praticante. Durante o tempo em que ainda tinha saúde, sempre se doou à religião e aos trabalhos como catequeses, grupos de casais, retiros, ministro da Eucaristia. Realmente uma pessoa do bem, da luz. Depois que descobriu o câncer ele me disse que se transformou em outra pessoa. Na verdade, confidencia, acessou uma outra pessoa que estava latente nele. “Transformei-me num bicho acuado que busca alimento, só que aqui, nesta situação, busco a cura”, explicou-me. Até aí, tudo bem, tudo certo. Se não fosse a ideia errônea, na sua cabeça, de buscar vida em outras possibilidades oferecidas pela sociedade em geral que não seja a recomendada pela sua religião. Ele me disse meio que se penitenciando que havia viajado longe em busca da sua cura, sem sucesso até então. Foi, inclusive, fazer cirurgias espirituais fora do país. “Queria tentar me reconectar novamente com a vida, queria uma nova chance”, repetiu meu partilhante várias vezes. Diante do fato concreto de que os exames comprovavam que o câncer aumentava e ele sentia o resultado na sua saúde física, em sua performance diária, rendeu-se a realidade e estava administrando seus dias de vida sem pensar na morte. “Um dia de cada vez”, vibrava ele. Mas o fato dele ser católico praticante era o que mais lhe incomodava, já que saiu da sua conduta para buscar esperança em outras fontes. Depois de vários encontros, ele mesmo lembrou que mais do que algumas religiões, alguns religiosos ameaçam caso a exclusividade seja questionada. Ele fez uma retrospectiva de sua vida e do que está escrito no livro Sagrado: “Existem muitas moradas na casa de meu Pai”. Depois de passar pelos processos de negação, revolta, busca e conforto pela situação, ele agora já fala que a vida lhe deu muitas coisas boas e está preparado para passar para outra existência, já aceita a morte como algo natural. Isso se deu, principalmente, depois dele perder o medo do que fez na busca pela vida, indo atrás de outras curas. Isso ocorreu em seguida ao entendimento de que o que ele fez não é pecado, não avilta suas crenças e nem depõe contra sua história. Ele, mais leve e puro, decidiu que já pode morrer. O que há de se fazer a não ser respeitar sua decisão? “Não quero morrer”, alerta ele, explicando que “a morte vai me encontrar assim mesmo. Mas sei que, agora, já estou preparado para ela”. “Eu perdi o meu medo da chuva, pois a chuva voltando pra terra pras coisas do ar; aprendi o segredo da vida, vendo as pedras morando sozinhas no mesmo lugar”. É assim como o mundo me parece hoje. E você, o que pensa sobre já estar preparado para morrer?Por: Beto Colombo

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Grécia em toda parte


Provavelmente a maior parte do que viria a ser a  influência grega para o mundo até os nossos dias está situada entre Homero e Aristóteles, um tempo que se espalha por aproximadamente quatro séculos. As comunidades gregas alcançavam na época de Heródoto desde onde hoje é a Turquia até o sul da Itália, do leste do Mar  Negro até Marselha, e mesmo as ilhas que se estendiam junto à península grega. Para entendermos a influência grega é oportuno considerarmos que a maneira como as pessoas se relacionavam levava em conta principalmente a comunicação verbal, a conversa direta, o encontro. Além disso, a cultura chegava à maior parte das pessoas, algo complexo em nossos dias, ainda que com o advento da Internet.Os gregos não entabulavam esforços consistentes em suas relações, no sentido do estabelecimento das melhores afinidades. Por exemplo, não manifestam disposições para aprender outras línguas; conquistados pelos romanos, mantiveram esta disposição intacta. Não era exatamente cômodo ao grego comum, com suas crenças e cultos religiosos do mundo helênico, compreender a extensão do cristianismo. Mesmo assim, desenvolveram uma cultura sólida, de tal maneira a formar bases perenes. Os cuidados, as minúcias, o capricho dos arquitetos gregos impressionam e encontram poucos similares na história.Fazem lembrar o preciosismo do Barroco francês. Nas artes plásticas o mundo pareceu acatar a determinação greco-romana até o século XVIII. O ideal, a harmonia, o equilíbrio reinaram nestas artes como em poucos segmentos do saber humano. Isso não deixa de surpreender, pois  até Homero muito pouco ou quase nada dessas artes havia de significativo; um início tardio e que instiga arqueólogos. Roma, Egito, Ásia Menor, Síria levaram inicialmente a herança  grega aos povos.No século VII, o norte da África e o Oriente Médio são conquistados pelos árabes. Assimilaram em duzentos anos o legado grego e tiveram êxito em adaptar práticas bizantinas.O islã não tinha então uma teologia desenvolvida; o aprofundamento veio da mesma fonte onde o cristianismo buscara sua inspiração; o pensamento grego. Já entre as tradições que chegam ao ocidente, o direito ao voto é um dos elementos mais notórios. Na Renascença, encontramos comunas inspiradas no modelo de cidade-Estado. A Teoria Política grega se expressa com vigor em Platão e Aristóteles. A Ilíada e a Odisséia, de Homero, dão início à literatura grega escrita. Santo Agostinho, mais confortável com o latim e menos com o grego, preferia Virgílio a Homero_ acentuando uma inclinação que se espraiaria por todas as gentes.Ainda mais  que o grego de Homero trazia diferenças significativas em relação ao grego clássico. O latim homenageara, mas enfraquecia Homero, golpe que a partir de Goethe seria aparentemente definitivo. Harry Potter, de J. K. Rowling, faz renascer alguns dos melhores momentos de Ilíada. A s Crônicas de Nárnia, escrita pelo irlandês C.S.Lewis,vai na mesma direção. Georg Lukács, se junta a uma gama de especialista em teatro que atribuem à tragédia e à comédia grega o que temos nos palcos europeus. Também a História nos deixada por Heródoto como mais uma contribuição grega. Sua obra usa de diálogos e descrições na primeira pessoas, narração direta, semelhante à dos jornalistas de hoje.Os gregos inovaram nas ciências e na matemática conferindo um rigorismo pouco usual se os compararmos com a matemática babilônica, por exemplo. A herança grega afeta em diferentes graus desde o modo como hoje pensamos, nosso vestuário, nossas relações com religião e religiosidade, a ciência, a Filosofia, a cultura, as relações sociais, a educação, e avança em direção a elementos como Arquitetura, Física, Biologia. Dificilmente encontraremos uma área das atividades humanas que seja deserta das inclinações gregas.Por: Lúcio Packter

Ir ao mundo do outro

Querido leitor, paz! Desde que passei diariamente a falar na Rádio Som Maior, muitas pessoas que me encontram debatem na rua, fazendo suas ponderações, assim como também fazem sugestões de temas e, geralmente, os acolho. Hoje, por exemplo, vou falar de um tema sugerido pela xará Albertina Manenti Silvestrini. Refiro-me ao livro “Operação Cavalo de Tróia”, de JJ Benitez, lançado em 1984, que conta que no fim da vida, em seu refúgio no México, um militar e cientista da Força Aérea estadunidense confia a ele documentos que, surpreendentemente, revelam a execução de uma experiência que lhe permitiu voltar no tempo. Na verdade, retornar quase dois mil anos e ser testemunha ocular e participante dos últimos dias de Jesus Cristo na terra. Ele foi testemunha de sua entrada em Jerusalém, de sua prisão, julgamento, crucificação e ressurreição. Esta experiência, batizada pela NASA de “Operação Cavalo de Tróia”, teria sido realizada sigilosamente em 1973, em pleno coração de Israel. O major chamava esta experiência prodigiosa de “a grande viagem”. Esta viagem exigia a aceitação e cumprimento de algumas regras na qual pretendo refletir com vocês, meus ouvintes: A primeira regra era que os exploradores não podiam, sob nenhum pretexto, nem sequer de sobrevivência, mudar ou influir nos homens, grupos sociais ou circunstância. Resumindo: a história não poderia ser modificada. Já a segunda regra era de que os “grandes viajantes” não poderiam levar nem trazer nada do mundo do outro. Afinal de contas, suas missões não eram julgar as pessoas ou os acontecimentos, mas sim, observar e ser testemunha. Boa parte dos meses anteriores à viagem, o major se dedicou a estudar a língua falada por Cristo, o aramaico ocidental ou galileo. O major não quis se aprofundar muito nos textos bíblicos, para enfrentar os fatos sem ideias preconcebidas e de espírito aberto, com a obrigação de observar e transmitir a verdade daqueles dias, conservando uma atitude limpa e desprovida de pré-juizos. Tanto a nave chamada de “berço”, quanto o major foram revestidos com uma película protetora para evitar que germes fossem ingressados em outro tempo e em outras pessoas. Durante a releitura desta obra, agora com o olhar filosófico clínico, me peguei pensando nas vezes que vamos ao mundo do outro com a pretensão de influenciar na sua história de vida, às vezes com conselhos, fofocas. Quantas vezes vamos ao mundo do outro com a pretensão de torná-los a nossa imagem e semelhança. Das vezes que vamos ao mundo do outro como juízes e, pior, com a sentença pronta. Que direitos temos de ir ao mundo do outro levando nossos germes? Será que temos o direito de ir ao mundo do outro levando nossos problemas, nosso mau humor, nossas queixas? Lembro-me dos meus primeiros dias de estágio como aprendiz de filósofo clínico o quanto foi difícil exercitar o ouvido atendo, me dedicando em apenas ouvir a história de vida do partilhante sem interferir, sem agendar, sem julgar, sem interromper para simplesmente não mudar o curso da história do meu partilhante. Para mim como pai, para você como mãe, como vamos ao mundo dos nossos filhos? Você professor, empresário, comerciante, político... Quem é o outro e como vamos aos seus mundos? O outro, para Emanuel Lévinas, é solo sagrado e não podemos adentrar nesse solo levando as sujeiras de nossas sandálias. É assim como o mundo me parece hoje. E você, o que pensa sobre ir ao mundo do outro? Por: Beto Colombo

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Caro Mestre


Acho que arranjei "sarna pra me coçar". Acabo de ler duas vezes sua exposição acerca do que se convencionou chamar "futuro espiritual".

De fato, não esperava um ensaio a respeito do assunto, e sim, uma definição pessoal de como você vê o aludido conceito. Lembro-me de que lhe disse da minha antiga e crescente dificuldade em lidar com a idéia da sobrevivência independente do espírito, como se fosse uma entidade com essência e natureza próprias. E isso, até onde pude perceber, não foi enfocado. Em suma, a seu ver, o homem, como ser vivo individual, sobrevive à morte do corpo?

Sua alusão a Rumi, místico persa do século XIII, é muito interessante, considerando sua antiguidade, pois, naquele tempo, ninguém, ou muito pouca gente, seria capaz de perceber o sentido organizacional ascendente dos três estádios da matéria macroscópica - mineral, vegetal e animal - que culminaram no homem e sua crescente complexidade mental.

Entretanto, não sinto por que entrever, a partir desse máximo estado, outro, ainda mais alto, que sobreviva conscientemente sem substrato físico. Quem sabe, esse sábio, diante da constatação de que sua consciência era a última que poderia testemunhar como pessoa viva, resolveu deixar no ar, para seus pósteros, uma indagação instigante a respeito de um quarto e eventual estágio? Sim, porque, até onde ficou dito, ele não definiu nada, não previu nada; só deixou a interrogação para que outros pensassem a respeito.

Quanto àquela que hoje ocupa as mentes angustiadas de tantos cientistas - a matéria/energia subatômica da mecânica quântica - acho que, pela sua própria complexidade, tem dado margem a especulações tendenciosas, nem sempre científicas, por parte de gente despreparada que quer, a todo custo e se aproveitando das incertezas (de Heisenberg & Cia), meter o bedelho num território ainda pouco explorado e tirar dali, com propósitos proselitistas, o elo com a espiritualidade, a ponto de tentar despudoradamente conferir ao elétron e eventuais partículas menores, com seus complicados nomes, alguma forma de consciência. Tudo o que li a respeito me cheira a impostura, a fraude, a oportunismos desavergonhados. E acho que o grande elo para o entendimento disso que se convencionou chamar de "espiritualidade", ao contrário do que sonham os tais místicos, não está lá. Mas quem sou eu para garantir? 

Como você, com a vivência e, sobretudo, o acesso às antigas fontes habitualmente guardadas nos alfarrábios, privou, além disso, da convivência com mentes privilegiadas que, até onde suponho, dedicavam seu tempo e reservas mentais a tais cogitações, imaginei que tivesse desenvolvido sua própria visão dessa dúvida atroz e inefável que aflige a todos nós, os comuns.

De fato, se a ciência evoluísse a ponto de podermos retroceder no tempo - sonho que, por enquanto, não passa de ficção e não parece viável na opinião dos maiores físicos da atualidade, incluindo Stephen Hawking - teríamos, no mínimo, meios infalíveis de desmoralizar todos os testamentos religiosos que vêm embromando a verdade, confundindo e subjugando o homem crédulo com dogmas falaciosos e condicionando o comportamento das massas desde os tempos mais remotos. Veríamos - estou convencido disso - tombar à beira do caminho, um a um, todos os ídolos erigidos pela prepotência e pela mentira institucionalizada.

No que me custa acreditar é que, "mesmo desvestidos todos os mitos fabricados pelos sistemas religiosos" – palavras suas – viesse esse fantástico salto fazer perder a humanidade o medo do aniquilamento pessoal pela morte.

O que me fascina é o aparente paradoxo de ser o tal espírito tão poderoso e independente a ponto de sobreviver à morte sem perda de todos os seus talentos e, ao mesmo tempo, ser tão frágil e impotente para curvar-se, em termos de manifestação, às injúrias cerebrais agudas produzidas por um mero AVC ou à devastação progressiva da identidade, causada pela caduquice do envelhecimento, que hoje adotou o pomposo nome de doença de Alzheimer, capazes, ambos, de transformar um gênio num lastimável imbecil que perde a fala, urina e defeca nas próprias calças e dá os maiores vexames. Caso de um papa recente, que, apesar de não ser gênio, foi lúcido. Caso de tantos conhecidos nossos, que foram e deixaram de ser espíritos agudos. Conheci vários. Você também.

E, uma vez morto o cérebro – que a meu ver é sua sede indiscutível – essa misteriosa e impalpável entidade readquire, na mais absoluta imaterialidade, como por milagre, por passe de mágica, toda a sua grandeza e potência.
Isso não faz o menor sentido, e não há sábio persa nem lama tibetano que me convença do contrário. Na minha modesta opinião e na minha lamentável ignorância, nada sobrevive à morte física. Morreu, acabou! C'est fini, se é assim que se escreve.

O homem, único animal que lembra o passado e prevê a morte, não quer morrer, o que é muito justo e compreensível. E, alimentando esse sonho por se considerar a figura central do espetáculo da vida, projetou toda essa parafernália de crenças para dar sustentação à sua ânsia de permanência, a ponto de fantasiar a hipótese de que o universo foi feito para seu desfrute. Ele nada mais é do que o pináculo atual da evolução biológica na Terra, mas, como todas as outras espécies, mesmo progredindo ainda mais, vai acabar um dia. O próprio planeta será devorado pelo Sol, quando este, esgotadas as reservas de sua atividade termodinâmica, queimar sua última molécula de hidrogênio e explodir numa luminosa Gigante Vermelha, como já aconteceu em Antares, a estrela mãe da constelação do Escorpião. A astrofísica afirma isso e ela dificilmente se engana porque lida com dados concretos e previsíveis. E estamos nós aqui a sonhar com eternidades, quando a única coisa realmente eterna é o ser – no sentido cósmico – ao contrário do nada, do não-ser. 

Estou convencido de que, se o chimpanzé pensasse com a mesma qualidade, também teria criado o próprio Deus, construído igrejas e feito proselitismo da própria imortalidade. Seria inevitável. Veríamos, por aí, bandos e bandos de primatas contritos indo à missa dominical e enganando-se uns aos outros. Por que não os vemos? Simplesmente porque não cogitam de nada disso...

E tem mais: - se nós temos o aludido direito à imortalidade, eles, por questão de justiça e equidade, também têm. A rigor, até as amebas têm, pois obedecem ao mesmo ciclo vital: nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Que fazemos nós além disso? Nossa primazia é apenas quantitativa, mas, orgulhosos, não nos envergonhamos de negar a tais seres seu igual direito individual à permanência. E, cheios de empáfia, com a maior cara-de-pau, fantasiamos...

O que sobra, no fim, a meu ver, é o sonho; o sonho que nos embala as esperanças vãs. E que termina no aniquilamento definitivo de cada vida. Se estiver errado, meu caro, estarei. Mas sou honesto em minha descrença. E, se algum dia, morto e enterrado, eu tiver, de novo, consciência de mim mesmo e me vir diante de algum tipo de julgamento divino, também serei honesto. Direi, simplesmente:

"Desculpe-me, senhor, mas a culpa é mais sua que minha: - nunca me acenou com sinais suficientemente evidentes para crer".
(*)Mario Gentil Costa é médico, escritor e artista plástico com destaque para o desenho, pintura e escultura.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Redes e aquários

Há um novo crime na praça. E eu sou culpado aos olhos de amigos, colegas, até leitores. Não respondo a e-mails de imediato. Só passados alguns minutos -ou algumas horas. Defendo-me como posso. Digo, a sério, que só consulto a internet duas vezes por dia -ao acordar e ao deitar. Questão de higiene -mental. Curiosamente, quase sempre estou a escovar os dentes. Ninguém acredita. E, quem acredita, diz que isso não é desculpa: existem uns celulares que recebem e-mails em tempo real e permitem respostas em tempo real. Agradeço a informação, mas não era preciso: eu próprio já recebi e-mails do gênero, que terminam com a declaração solene "esta mensagem foi enviada por iPhone". Nunca sei que responder: mostrar-me abismado com a proeza e aplaudir a grande honra que o sujeito me concedeu? Às vezes, há situações bizarras. Alguém envia um e-mail. Minutos depois, envia outro, só para perguntar se eu recebi o primeiro. Duas ou três horas depois, vem mais um -dessa vez, uma repetição do inicial, para o caso de eu não ter lido. Essa comunicação unilateral termina com um quarto ou um quinto, em que sou acusado das maiores baixezas (indiferença, preguiça, hostilidade etc.). Em poucas horas, alguém iniciou e terminou uma comunicação comigo sem que eu jamais estivesse presente para dizer "presente!". Que se passa com o mundo? Os especialistas no assunto, psicólogos e sociólogos que pesquisam os paradoxos da internet, afirmam que estamos cada vez mais ligados e exigimos respostas cada vez mais rápidas uns dos outros. Certo, especialistas do óbvio, certíssimo. A questão, porém, deve ser outra: que tipo de gente a internet está a produzir no século 21? Foi precisamente essa pergunta que o escritor Stephen Marche formulou em artigo para a revista "The Atlantic" ("Is Facebook Making Us Lonely?"). As conclusões não são otimistas: estamos todos ligados, mas essa sensação de contato permanente não significa que o nosso isolamento (e a nossa solidão) decresceu. O Facebook é, inevitavelmente, um caso clássico: que significa esse imenso continente virtual onde "existem" 845 milhões de pessoas, onde se publicam bilhões de comentários diários e onde se postam 750 milhões de fotos por semana? Stephen Marche não faz parte dos luditas modernos para quem o Facebook é a "bête noir" da civilização ocidental. A resposta dele, depois de ler os últimos estudos sobre o fenômeno, é de uma sensatez que arrepia: a internet é um meio, não um fim. O que somos como seres sociais depende da forma como usamos as redes sociais. Que o mesmo é dizer: quem usa o Facebook para substituir a realidade não aumenta o seu "capital social". Pelo contrário, pode mesmo sentir o isolamento típico de um peixe que contempla o mundo através do vidro do aquário. Paralisante. Angustiante. No artigo, o autor cita um neurocientista da Universidade de Chicago, John Cacioppo, que oferece uma metáfora ainda melhor: podemos usar o carro para ir ao encontro de amigos; ou podemos dirigir sozinhos pelas ruas da cidade. O mesmo carro, duas atitudes distintas. A internet, e as redes sociais que ela comporta, é apenas um instrumento para, não um substituto de. O desafio, leitor, não está em quebrar o aquário. Está em sair dele de vez em quando. Sair. Desligar. Não estar disponível. Ou, como escreve Stephen Marche, "termos a oportunidade de nos esquecermos de nós próprios". Eis, no fundo, a observação mais luminosa do ensaio: a nossa constante disponibilidade para os outros é apenas uma manifestação mais profunda do nosso insuportável narcisismo. E o narcisismo, como sempre, nasce de uma insegurança que procuramos preencher com o culto doentio do ego. Pensamos que somos tão imprescindíveis que temos de estar presentes 24 horas por dia na vida alheia. E vice-versa: pensamos que somos tão importantes que os outros têm de estar permanentemente disponíveis para nós. Lamento, amigos. Lamento, colegas. Lamento, leitor. Os meus silêncios não têm nada de pessoal. Nem eu nem você somos assim tão importantes. Por:João Pereira Coutinho, Folha de SP

A inveja das moscas

SOU UMA personalidade atormentada e dada a arroubos. Noites insones me levam a terras distantes onde nossos ancestrais vagam arrancando a vida e seu sentido das pedras. Com o passar dos anos, cada vez mais me encanta a luta desses nossos patriarcas perseguidos pelos elementos naturais, por seus próprios demônios e por deuses de olhos vermelhos cheios de sangue e dentes afiados. Construímos sonhos de autorrealização profissional, afetiva e material. A expectativa com nossa própria grandeza ocupa grande parte de nossos devaneios. O sentimento da fragilidade do mundo sempre me perseguiu desde a infância. Se os psicanalistas estiverem certos, e tudo que é primitivo é indelével, esse sentimento constitui minha substância mais íntima. Que inveja eu tenho das moscas! Livres, voando pelo mundo, sem saber de si mesmas. Li nas últimas férias a coletânea de ensaios "The Best American Essays of the Century", editada por Joyce Carol Oates e Robert Atwan, Houghton Mifflin Company, Boston. Destaco dois ensaios: "The Crack-Up" (a rachadura), de F. Scott Fitzgerald, de 1936 e "The Old Stone House" (a velha casa de pedra) de Edmund Wilson, de 1933. Edmund Wilson foi, segundo Paulo Francis, o último grande crítico literário de uma tradição na qual o crítico não se escondia atrás de algum teórico, tipo Blanchot ou Derrida, para repetir o que todo mundo diz e com isso não correr riscos. Wilson enfrentava o autor cara a cara, dizendo o que pensava dele, sem se preocupar com o que a "indústria da crítica acadêmica" diria. A coragem nunca foi um valor na academia, Francis tinha razão. Nesse ensaio, Wilson fala de uma casa de pedra na qual sua família viveu por muitos anos. Sua família era do tipo de família que aqui chamaríamos de quatrocentona falida. Mãe fria, pai, homem letrado e melancólico, ele, Wilson, parecido com seu pai, e também um bêbado. Estou convencido de que pessoas sem algum vício terrível permanecem em alguma forma de infância moral. Apenas quem perdeu qualquer esperança de ser virtuoso deveria falar sobre moral. Pessoas sem vícios falando sobre moral é como virgens dando aula de sexo. Wilson, entre outros parentes, fala de uma tia, infeliz no casamento, obrigada a ser uma mulher normal quando na realidade era uma filósofa schopenhauriana amadora. Segundo ele, ela enfrentou virtuosamente seu fardo criando um sistema filosófico pessoal pessimista e, quando ficou viúva, se mudou para Nova York e gastou seus últimos dias indo a livrarias e vendo teatro. Quando ainda casada, sua tia lia à noite, sobre o fogão, sozinha, em seu único momento de paz. F. Scott Fitzgerald, autor de "O Grande Gatsby", nesse ensaio descreve a sua maior crise existencial (a rachadura que dá título ao ensaio), que o acometeu por volta dos 50 anos. Escritor famoso, Fitzgerald afirma: "Identifiquei-me com meus próprios objetos de horror e compaixão" e "passei a ter uma atitude trágica em relação à tragédia e melancólica em relação à melancolia". Em síntese, foi inundado por seus próprios objetos literários e se tornou, ele mesmo, um deles. O efeito foi devastador e libertador. Na abertura, ele define o que entende por uma pessoa inteligente: conseguir viver com duas ideias opostas sobre a vida e não desistir de nenhuma delas. E exemplifica: saber que não há esperança para nós e ainda assim viver buscando provar o contrário. O resultado seria uma vida combativa em nome da esperança. Uma vida pautada pelo controle de si mesmo e do mundo a sua volta. Ao final do ensaio, ele volta a definir, agora, o que é, após sua rachadura, o estado natural de um adulto que tem consciência e sensibilidade: infelicidade qualificada (e não banal). Uma condição com a qual convivemos, mas que ao assumi-la, uma espécie de libertação acontece: em suas palavras, não mais desejar ser um homem bom, não mais ser simpático com o marido de sua prima, nem responder a cartas de escritores jovens medíocres que não deveriam aborrecer os outros. Ser apenas um escritor e não querer agradar a ninguém, nem a si mesmo.Por: Luiz Felipe Pondé, Folha de SP

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Lembranças e Mudanças

Para quem já viveu algumas décadas, os eventos da infância dizem respeito a um passado distante, que as novas gerações desconhecem, ou pouco conhecem, principalmente se aconteceu fora das grandes cidades. Vida cotidiana sem energia elétrica, televisão, bicicleta, motocicleta, automóvel, telefone, internet, celular e sem computador. Vida simples em casa de madeira sem trancas, onde atos de violência e insegurança eram uma exceção. As roupas que usávamos, apesar de escassas e que passavam de irmão para irmão, eram separadas em três categorias; roupa para o trabalho, para a missa e o uniforme para a escola. Um par de sapatos de borracha e usado apenas para ir a missa. As roupas do trabalho quando desgastavam eram remendadas com tecido, geralmente de outra cor, mais parecia um mosaico. Homem com calças remendadas na altura do joelho e coxas era considerado trabalhador. Homem com calças remendadas na altura da bunda era considerado preguiçoso, visto que a mesma sofria desgaste por sentar com frequência. Fumar cigarro de palha e usar um facão com bainha na cinta, sinal que o menino virou homem. Ferramentas de trabalhos eram a enxada, machado, foice, facão, canivete e foice de mão. O trator da época era uma boa junta de bois. Nosso pai era mestre em domar bois novos. Lembro de uma junta que marcou época em nossa fazenda de 18 hectares, chamados, Salino&Sereno. Nós que estamos entre 40 e 60 anos somos a última geração que obedeceu regiamente nossos pais e também a primeira a obedecer nossos filhos. As mudanças foram bruscas. O que impressiona é a capacidade de nos adaptarmos rapidamente. Senão vejamos; o computador e o celular, talvez os que mais impuseram mudanças, hoje fazem parte da vida de cada um como se sempre estivessem disponível. Nos permitem falar com pessoas de todo o planeta vendo seus rostos, acessar todo e qualquer informação gratuita e instantaneamente. Caminham para fundir-se com a televisão. Outras mudanças menos evidentes, porém não menos importantes estão ocorrendo, como a valorização da futilidade. Em outras épocas admirávamos pessoas cultas, a boa música, o canto coral, o professor sabia e sabia transmitir conhecimento, o padre era visto com respeito e era conselheiro familiar e da comunidade. Pais e avós eram conselheiros de toda hora. Nos dias atuais a música sacra e o canto coral foi substituído pelo bate-estaca e congêneres. Surgem e desaparecem como relâmpagos. Quem não ouve a música ou cantores da moda, como o Michel Teló, “esta por fora”. Os livros mais vendidos, tem importância econômica pelo volume vendido, porém de valor literário duvidoso. Encontrar bons livros esta cada vez mais difícil. Cantores decadentes em suas terras de origem, lotam estádios no Brasil. Ou gostamos do que a maioria gosta, ou logo somos taxados de querermos ser superiores aos demais, como se crime fosse não estar alinhado com a maioria. Um amigo professor me informou que a literatura mundial foi substituída nas escolas por autores nacionais. Nada contra autores nacionais mas como ficamos sem ler clássicos como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Agostinho, Cervantes, Nietzsche, dentre muitos outros? Existe vida inteligente fora da leitura, principalmente leitura de boa qualidade?  Nossas vidas sofrem transformação por vários motivos, mas a leitura transforma e liberta de forma definitiva. Impossível conhecer o mundo sem leitura, mesmo para um viajante contumaz. Com o advento da internet a leitura ficou extremamente facilitada e o acesso aos grandes clássicos da literatura mundial estão a poucos clics. Será que é isto que a juventude anda fazendo, ou estão apenas acessando filmes, músicas e navegando nas redes sociais, onde no entanto as futilidades tem expressão maior. A comunicação predomina através da imagem. O grande avanço, ao que parece ocorreu apenas na tecnologia e esta pode libertar ou aprisionar, depende como cada um lida com isto, lembrando que isto é assim para mim. Por Aloysio Tiscoski

Assim na Terra como no Céu

Ouve-se por aí que o ano produtivo no Brasil começa depois do carnaval, ou seja, que nós brasileiros nos focamos realmente na jornada de trabalho somente depois de passar as festas de final de ano e que esse tempo se encerra no carnaval. Para algumas pessoas é assim que funciona. Hoje nosso tema é trabalho. Já falamos sobre esse mesmo tema, só que, nesta oportunidade, vamos dar um upgrade ou então um enfoque diferente, ou como dizemos em filosofia clínica, vamos enraizar, aprofundar. Antes disso, lembro que em 2011 escrevi que alguns de nós temos a concepção de trabalho ligada a um ato negativo. Você, como eu, já deve ter ouvido a expressão: “Lá vou eu de novo para a luta”, referindo-se a mais um dia de trabalho. Talvez pela origem da palavra tripalium, que nada mais é do que um aparelho de tortura formado por três paus, ao qual eram amarrados os condenados ou os animais difíceis de ferrar. Mas hoje quero refletir sobre uma nova visão de trabalho. E vamos beber na tradução do espanhol, onde trabalho é “trabajo”, consequentemente, “trabajo” é trazer “abajo”. Aqui, podemos perceber que trazer para baixo pode significar trazer o sutil para o denso, trazer o imaterial para o material, trazer algo do alto para a terra, ou seja, assim na terra como no céu. Um exemplo são os arquitetos, você mostra o terreno e ele que, no campo das ideias planeja e depois com as técnicas que aprendeu põe no papel. Geralmente é assim. Dentro da linha do trazer para baixo, pode-se ainda perceber que nossa luz interna, dos mais de sete bilhões de seres humanos, geralmente é de buscar materializar o que provavelmente temos em comum, que é a centelha divina. Somos, talvez, seres espirituais com experiência material. Nossa meta, quem sabe, seja trazer o intangível para o tangível numa experiência única neste plano tridimensional. Mas as novidades não param por aí. Ainda temos um complemento muito interessante, na medida em que a partir deste conceito de trazer para baixo, podemos ver que há uma complementariedade com ele que é o serviço. Diante desta nova visão, podemos assim interpretar serviço como “viçar” o “Ser” – ser-viço -, ou seja, tornar a planta viçosa, oportunizar para que o ser cresça e dê bons frutos. Fala-se no exemplo do mestre Jesus Cristo, que foi o grande servidor, que contribui sobremaneira com seu exemplo de líder servidor. Lembra-se dos líderes que se busca no chão de fábrica, tão importantes quanto escassos nos dias de hoje. Trabalho: trazer abaixo. Serviço: viçar o ser. Palavras tão importantes, mas ambas nos levam ao verbo, não ao substantivo, nos remetem a ação, não ao conceito estático. Que tenhamos todos um bom ano de trabalho. Mãos à obra. É assim como o mundo me parece hoje. E você, o que pensa sobre viçar o ser? Por: Beto colombo

Galileu Galilei (1564 - 1642)

Galileu propõe a renovação da ciência de sua época abandonando a confiança na autoridade, no senso comum e na tradição. Busca uma ciência livre de tudo aquilo que a prende tanto a cultura como a teologia. Para ele os textos da tradição filosófica ou teológica não devem servir para responder as questões científicas. As questões científicas devem ser confirmadas ou refutadas através da experiência e da observação feitas diretamente sobre o objeto que está sendo examinado. Não podemos desprezar o conhecimento que a natureza nos oferece de forma direta em benefício de textos sagrados ou filosóficos que discordam dessa observação. A natureza é o livro da ciência e para ler esse livro necessitamos da experiência direta sobre a natureza, é nessa experiência que encontraremos a verdade. A natureza não nos engana, nós é que podemos nos enganar se não a observarmos de forma correta e com os instrumentos necessários a essa observação. A experiência não é somente a observação da natureza a experiência para conhecer a natureza tem que ser um experimento, uma experiência construída, programada, organizada, com um objetivo próprio, que é o de confirmar ou refutar uma hipótese. A construção do experimento depende de uma teoria que vai fundamentá-lo. Através da razão o homem poderá interpretar e transcrever em forma de conceitos o fenômeno que ele observou na natureza. A matemática é o grande auxílio da razão nesse trabalho de interpretação. Com a colaboração da matemática poderemos formular teorias científicas que explicarão os fatos demonstrados pela experiência. A matemática aplicada à experiência e à demonstração serve para tornar evidente ou refutar as hipóteses formuladas. A matemática é o instrumento de investigação da natureza. A experiência é o limite do nosso conhecimento. A razão não tem a capacidade de conhecer a essência das coisas. A natureza é organizada por uma única estrutura que não muda nunca, para conhecermos essa estrutura sobre a qual se fundamenta a natureza a ciência tem que construir um conjunto de elementos que possam medir essa natureza de forma precisa. Galileu procura também separar ciência da religião. Ciência e fé não interferem uma na outra, pois ambas trabalham em planos diferentes. A fé trabalha e fala de um plano metafísico do mundo, enquanto que a ciência age sobre o mundo físico. Galileu faz a comparação de que no mundo existem dois livros com o objetivo de revelarem a mesma verdade, mas de forma diferente. O primeiro livro á a Bíblia que busca a salvação e a redenção das almas e cujos escritos científicos são simplificados e próprios para o entendimento do povo. A natureza é o segundo livro que para ser interpretado tem que ser lido de forma cientifica e objetiva. Os dois livros são obras de um único Autor e por isso mesmo não podem ser contraditórios. Sentenças: - Quanto mais meios usamos para imitar algo, mais diferente esse algo se torna da coisa imitada, e mais maravilhosa é a imitação. - A discussão dos problemas naturais deve começar pelos experimentos e não pelas escrituras. - Existem dois tipos de mentes: uma que inventa fábulas e outra que acredita nelas. - Meça o que pode ser medido e faça medível o que ainda não é. - Se Deus nos dotou de inteligência e razão, porque ele nos privaria do seu uso? - Duas verdades não podem se contradizer mutuamente. - As verdades são fáceis de entender, o difícil é descobri-las. - O Espírito santo ensina como se vai a céu e não como os céus vão. - Com o alfabeto da matemática Deus escreveu o universo. - Qualquer um fala obscuramente, mas claramente poucos. Galileu Galilei Responsável: Arildo Luiz Marconatto

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O Brasil de todos nós

Todos nós somos fadados a falar do Brasil. O Brasil é o todo que nos engloba e nós somos a parte que, sem esse todo, perde o chão ou a terra. Terra é um conceito arcaico. Desterrar foi uma punição tão tenebrosa quanto a morte. Que falem os exilados de todos os calibres. Em inglês ainda se usa land (jamais earth), mas você tem que assistir a um velho filme de John Ford, como "O Homem que matou o Facínora", para ouvi-la claramente na expressão the law of the land, porque, nesta película, trata-se de estabalecer o governo da lei numa "terra" sem regras impessoais: num sistema, as normas que não dependem das pessoas que governam as condutas individuais. No filme, vemos uma sociedade onde as relações pessoais com seus sentimentos particulares de simpatia, dívida, ousadia como poder e o poder da ousadia, são dominantes e inventam a figura de um facínora cujo nome é significativamente Liberty Valance. É justamente para regular essa liberty que existe a regra da lei geral, com suas instituições e agentes. No filme, a ausência da lei se faz por meio da violência cara a cara, cujos símbolos são o revólver e o chicote. Neste Brasil de todos nós, as tramoias são feitas - eis o que constrange e revolta - indiretamente, com a lei. No Brasil a lei é onipresente, mas ela não tem alma porque nela a autoridade vê apenas a letra, deixando de fora o espirito dos valores da sociedade da qual ela faz parte. Ora, uma lei sem alma é o que vemos, revoltados, em todos os poderes da República onde se prefere atuar mecanica (ou retoricamente) deixando de lado a alma que levaria a um controle dos interesses apaixonados - coisa que os liberais clássicos conheciam bem. Assim, temos testemunhado muita letra e pouca alma, muito direito e pouca ética. Muita técnica legal e pouco sentimento de justiça igualitária. Seja no julgamento absurdo das menores violentadas, seja na reação às roubalheiras do dinheiro público pelas pessoas justamente encarregadas de administrá-lo. O conceito de "terra" está enraizado e jamais foi estudado criticamente entre nós. Pois se a "terrinha" fala de um Portugal da origem, a "terra" é o Brasil: aquele lugar onde o gorjeio das aves distinguem o "lá" (do exílio) do "cá" como o lugar plano do aqui e agora. A terra que me recebeu neste teatro. Que me obriga a ter saudade e que, um dia - queira Deus -, vai me receber novamente no seu doce seio. Ainda sentimos mais saudade do Brasil como terra do que como país, para ampliar um estudo magistral que José Guilherme Merquior faz da poesia "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias. Mas quem é que hoje em dia assiste a filmes de John Ford e lê Gonçalves Dias, interrogaria o leitor abarrotado de titanics, rambos e da poesia inefável das musicas sertanejas? O mundo - seu cronista reacionário - mudou! Mas, respondo eu: de fato não temos mais as aves gorjeando, nem John Fords. Mas continuamos a sofrer a vergonha das roubalheiras promovidas por um sistema que insiste em não admitir que um "homem público" não tem e nem pode ter - dentro dos limites do bom-senso - vida privada! Não passamos uma semana sequer sem alguma novidade negativa relativamente ao campo público, ao mesmo tempo que o mundo todo vai ficando cada vez mais transparente para cada um de nós. E a nossa novidade é velha: alguma pessoa pública tirou vantagem pessoal de algum cargo governamental, seja na contratação superfaturada de alguma obra ou na compra de um produto; seja numa aposentadoria indevida, na qual a lei é ampliada para o seu caso; seja na obtenção - vejam o surrealismo - de um doutoramento no qual todos os membros da banca fazem tudo, menos examinar o canditado-ministro, o que envilece gente como eu que, para obter o mesmo grau, fiz pesquisa, escrevi tese inédita, e como professor, examinador e eventual coordenador de um programa de pós-graduação no Museu Nacional jamais confundi pessoa e papel na esfera do poder com a vida intelectual. Tudo foi dentro do regimento, mas foi ético? Pergunta esse pateta reacionário que vos escreve. Alguns cargos públicos, sobretudo os de presidente, papa, rei, governador e prefeito, que o jurista inglês Henry Maine, chamava de "instituições solitárias", são papéis ocupados exclusivamente por um ator que, neles, torna-se um "personagem", uma "figura" ou um "figurão" (quando fazem inocentes malfeitos como roubar alguns milhões de reais de catástrofes). Sua característica básica é que eles englobam totalmente o ator e não permitem que ele possa sair dos seus requisitos legais e estruturais. Quando investido nesses papéis, o ator tem que pesar cada palavra, gesto ou relação. Dai a ética e o viés de sacrifício que os cerca, pois que exigem do ator uma disciplina que nem sempre é seguida porque em sociedades marcadas pela desigualdade, pelo aristocratismo oculto e resistente dos "homens bons" e de suas múltiplas elites (inclusive as populares), como ocorre justamente no caso deste Brasil de todos nós. Aqui arremato, não é o papel que ocupa a pessoa, mas é pessoa quem domina, apropria-se e, mais das vezes, avilta o papel. Falta esse debate nas nossa esfera política que adora os gregos como Demócrito e Platão, mas carece de Tocqueville, de Weber, de Arendt e de Jaspers. De gente capaz de dizer: isso eu não faço! O Brasil de todos nós - ROBERTO DaMATTA O Globo - 18/04/12

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Suicídio

Já estive envolvido em muitas conversas sobre suicídio, na maior parte delas surge uma pessoa que afirma: “A pessoa que se suicida, nada mais quer do que matar alguma coisa em si”. Para quem diz isto, o suicida na verdade quer apenas se desfazer de algo em si mesmo. No entanto, como o ser humano é um todo e não há a possibilidade de separar apenas a parte que a pessoa não suporta mais, o suicídio acontece. Estas pessoas, por não saberem como matar, ou seja, retirar de si aquilo que as aflige, acabam por retirar a vida corporal. Em Filosofia Clínica, o entendimento é de que o ser humano é um todo, mas este todo é constituído de partes, algumas mais e outras menos divisíveis. Quando um filósofo clínico interage com uma pessoa no consultório ele a observa como um todo, ou seja, como uma pessoa que lhe procurou. Mas, ao longo do processo ele coleta a história de vida da pessoa e com esta história monta o que chamamos de Estrutura de Pensamento. Esta estrutura nada mais é do que o conteúdo da história compartimentado segundo sua peculiaridade. Desse modo, o que a pessoa diz de si mesmo é o tópico 02. O que a pessoa disser no consultório a respeito de medo, amor, ódio, alegria, etc., são conteúdos, por exemplo que serão categorizados por emoções. A montagem a Estrutura de Pensamento leva em conta trinta tópicos, ou seja, trinta identidades diferentes que o conteúdo da história de vida da pessoa pode ter. Esses trinta tópicos podem estar em relação harmoniosa, quando a pessoa sente-se bem, vive um bem estar subjetivo. Mas, estes conteúdos também podem estar em choque e quando isso acontece diz-se que há choque entre tópicos. Seria o caso de uma pessoa que tem medos terríveis de ficar sozinha, mas não consegue manter o casamento. O mal estar subjetivo vai ser mais ou menos evidente de acordo com cada pessoa, algumas podem estar morrendo por dentro, mas nem a pessoa mais próxima perceberá. Quando dois tópicos entram em choque, em algum tópico da Estrutura de Pensamento a pressão aparecerá. O exemplo mais corriqueiro é aquele em que o empresário tem uma série de decisões para tomar, mas não sabe se o resultado será bom ou ruim à empresa. Isso o incomoda por alguns dias e logo lhe aparecem aftas na boca, outros têm gastrite, alguns emagrecem e assim será diferente para cada pessoa. No exemplo acima, o choque entre dois tópicos causou uma pressão nas sensações que apareceram em forma de afta, gastrite ou emagrecimento. Retomando o caso do suicídio, agora conhecendo um pouco mais de Filosofia Clinica, a pessoa pode sim, querer tirar apenas uma parte dela e por isso acaba tirando a própria vida. Mas, assim como um cirurgião corta e retira do corpo um nódulo, também é possível que o filósofo ao longo de um trabalho terapêutico retire da pessoa aquilo que tanto lhe faz mal. Para algumas pessoas, a terapia parece não ser a solução para o seu problema, mas pedir ajuda, significa entender que muitas vezes na vida é preciso caminhar acompanhado. Tudo o que está escrito acima sobre o suicídio é apenas uma das possibilidades, faço questão de deixar claro que não existem duas pessoas iguais. Para muitas pessoas, o suicídio será totalmente diferente do que está acima, podemos lembrar o caso de Getúlio Vargas que em carta deixou registrado o que foi o suicídio para ele: “Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.” Por: Rosemiro A. Sefstrom
Querido leitor, que você esteja bem. Há alguns dias, ouvindo uma entrevista com a deputada federal na Som Maior FM, sobre um projeto para conseguir recursos para um bairro pobre de Criciúma, ela disse uma frase que me fez refletir muito. Ainda ecoa dentro de mim. Suas palavras foram fortes, radicais e fez de seu pré-juízo algo universal. A fala dela foi a seguinte: “Ninguém pode ser decente, ter atitudes decentes, em um lugar indecente”, referindo-se aos moradores desse bairro que irá ganhar uma área de lazer. Congratulo-me com a deputada por esta conquista para o bairro em questão, mas preciso falar sobre o equívoco de sua fala. Recentemente estive em Israel e tive a oportunidade de ir até o deserto Negev, onde Jesus ia meditar, e andei por onde Ele andou. Lá, se olha para esse deserto e não se vê nada, só um vapor ou poeira subindo. Além disso, Jesus vivia no meio de uma guerra civil, um lugar muito pobre e miserável, leprosos, coxos, gente faminta pedindo esmolas... A Sagrada Escritura descreve bem a situação política, econômica e social da época de Jesus, no entanto, as atitudes dele foram decentes. Jesus era decente no meio da raiva, rancor, ódio, fome, doença, morte... “Como pode alguém ter atitudes decentes vivendo na indecência?”, afirmava a deputada. “Ora, Ele é filho de Deus e nós não somos deuses”, podia ser a resposta de alguns. Mas não foi só Ele. Maria, Lázaro, João Batista... Outro caso é o da Madre Tereza de Calcutá. Ela viveu para servir, pregava o amor ao próximo e vivia em lugares indecentes, com miseráveis, no meio da fome e da doença. E ela era decente. Ao nosso redor e também longe de nós, muitos são os exemplos de pessoas com decência, que escolhem viver para o outro. Você lembra da Dra. Zilda Arns? Sua dedicação às crianças pobres, com o objetivo de salvá-las da desnutrição e diminuir a mortalidade infantil? Esse ambiente era decente? E as atitudes da médica? Conheço muitas pessoas que nasceram, cresceram e ainda vivem nos grotões da sociedade, vivem e convivem com o sofrimento, com a pobreza e nem por isso transformaram-se em marginais, apesar de viver a margem da sociedade. Para ter atitudes descentes, talvez não seja necessário viver na fartura somente, isso pode contribuir sobremaneira, mas para ter atitudes descentes é fundamental ter caráter, personalidade, exemplos. É necessário ter uma atitude mental de luz, de vida, não de sombra, não de morte. E assim são também várias pessoas anônimas que, com decência, não importa onde vivem e o que buscam, trabalham para um mundo melhor. Talvez a frase da deputada poderia ser "algumas pessoas só conseguem ser decentes se forem criadas em ambientes decentes", mas garanto à vocês que são algumas pessoas, apenas algumas. O que temos visto é que existem pessoas decentes e indecentes em qualquer lugar. É assim como o mundo me parece hoje. E você, o que pensa sobre ser decente? Por: Beto Colombo

terça-feira, 17 de abril de 2012

A praga do politicamente correto

O filósofo Luiz Felipe Pondé sempre desperta da sonolência o senso comum. Sem medo de colocar o dedo em certas feridas, ele liga sua metralhadora giratória para todos os alvos que representam os mascotes preferidos dos politicamente corretos. Povo bondoso, pobre mais honesto que rico, índios virtuosos, todos aqueles grupos de "minoria" que servem para enaltecer a imagem (hipócrita) dos supostos altruístas, gente com "consciência social", são dissecados no terceiro volume do Guia Politicamente Incorreto, desta vez da Filosofia. Com uma escrita direta, por vezes divertida, Pondé não poupa ninguém. Muitos pingos são colocados nos is, retirando a máscara da hipocrisia que campeia nos tempos modernos, uma era de covardia moral provavelmente acima dos padrões passados. A praga do politicamente correto, resultado, em parte, da descoberta pelos idiotas de sua superioridade numérica, precisa ser combatida, pois ela tenta destruir aquilo que temos de mais importante: o pensamento individual. Nem todos terão a coragem de usá-lo, mas os poucos que usam fazem toda a diferença do mundo. E levam os demais nas costas, mesmo que sem o devido crédito por isso (ao contrário, são atacados com virulência pelos politicamente corretos). Abaixo selecionei os 20 trechos do livro que mais gostei. Mas não deixem de comprar o livro e ler o conteúdo na íntegra. Trata-se de leitura rápida, que pode ser feita em um voo entre Porto Alegre e Rio de Janeiro, como foi meu caso. O tempo da digestão do conteúdo é que possivelmente será maior para muitos leitores, pois Pondé não liga para as suscetibilidades das "almas sensíveis" que evitam a todo custo escutar certas verdades. E, convenhamos, alguém precisa dizê-las. Lá vai então: Uma das coisas que os politicamente corretos mais temem é a ética aristocrática da coragem levada para a vida cotidiana, porque ela desvela o que há de mais terrível no ser humano, a saber, que ele é o animal mais assustado e amedrontado do mundo. A sensibilidade democrática odeia esta verdade: os homens não são iguais, e os poucos melhores sempre carregaram a humanidade nas costas. A diferença entre a velha esquerda e a nova esquerda é que, para a velha, a classe que salvaria o mundo seria o proletariado (os pobres), enquanto, para a nova, é todo tipo de grupo de 'excluídos': mulheres, negros, gays, aborígines, índios, marcianos... Os melhores lideram, os médios e medíocres seguem. Qualquer professor sabe disso numa sala de aula. Uma das maiores besteiras em educação é dizer que todos os alunos são iguais em capacidade de produzir e receber conhecimento. Uma das qualidades supremas de [Ayn] Rand é ter percebido ainda em meados do século 20 que o mundo se preparava para desvalorizar aqueles mesmos graças aos quais os outros vivem, sob o papinho da 'justiça social'. Se ela tivesse conhecido Obama, vomitaria. A distopia descrita por [Ayn] Rand é a melhor imagem do mundo dominado pelo politicamente correto: inveja, preguiça, mentira, pobreza, destruição do pensamento, tudo regado pelo falso amor pela humanidade. O povo é sempre opressor. Quando aparece politicamente, é para quebrar coisas. O povo adere fácil e descaradamente (como aderiu nos séculos 19 e 20) a toda forma de totalitarismo. Se der comida, casa e hospital, o povo faz qualquer coisa que você pedir. No fundo, o indivíduo fracassado e o homem-massa invejam a liberdade do indivíduo verdadeiro porque ela lhes parece um luxo. Na realidade são primitivos demais para entender a maldição que é ser indivíduo e a dor que é ser livre sem pertença a bandos. Achar que podemos transformar terroristas muçulmanos em membros do partido democrata americano, como pensa o atual presidente dos Estados Unidos de origem muçulmana Barack Hussein Obama, é uma piada. Basta se perguntar como, por exemplo, eles aceitariam o casamento gay em seus países. Quando você começa a pensar que tribos que não conheciam a roda até ontem, como alguns índios brasileiros e alguns povos africanos, podem ser nossa esperança, poderá acordar sendo um romântico idiota. Os idiotas românticos de hoje em dia esquecem que câncer é tão natural quanto os passarinhos e pensam que a natureza seja apenas os passarinhos. Toda tentativa de proibir a exibição da beleza feminina é um ato nascido da inveja. Nada é mais temido por um covarde do que a liberdade do pensamento. A mídia muitas vezes parece uma reunião de centro acadêmico de ciências sociais na forma de simplificar o mundo ao nível de uma menina de 12 anos. Se você bate foto dentro do avião, é porque não há esperanças para você. Ficar feliz por sair de férias de avião é brega. Uma coisa simples que aparentemente muita gente não entende: lindos são apenas seus filhos para você, para os outros são pequenos seres humanos mal-educados fazendo barulho. Não conheço ninguém que adote o politicamente correto e não seja mau caráter, fora aqueles que têm idade mental de 10 anos. Dizer que se é budista (ninguém deixa de ser católico ou judeu e vira budista em três semanas num workshop em Angra dos Reis ou num centro budista nas Perdizes, em São Paulo) pega bem em jantares inteligentes, porque dá a entender que você não é um materialista grosseiro, mas sim um espiritualista sustentável. Basicamente, uma religião sustentável não precisa sustentar nada a não ser uma dieta balanceada, uma bike importada e duas ou três latas de lixo de design em casa, para reciclagem de lixo. Se você quiser acertar numa análise que envolva seres humanos, continue a usar o pecado como ferramenta para compreender o comportamento humano: orgulho, ganância, inveja e sexo continuam a mover o mundo (a luta de classes nada mais é do que um caso de ganância e inveja). Apesar de hoje já sabermos que pobre pode ser tão ruim quanto rico, e que índios estão muito longe de ser sábios cultivadores de virtudes morais e naturais, a praga PC ainda insiste em dizer que a farsa de Rousseau, o tipo de pessoa que ama a humanidade, mas detesta seu semelhante, é verdade. O fato é que todo mundo gosta de ouvir que é bom e que os outros é que o fazem ser mau e infeliz. Por Rodrigo Constantino

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Narcisismo no "Face"

Não estou a menosprezar os medos humanos; muito pelo contrário, o medo é o meu irmão gêmeo Cuidado! Quem tem muitos amigos no “Face” pode ter uma personalidade narcísica. Personalidade narcísica não é alguém que se ama muito, é alguém muito carente. Faço parte do que o jornal britânico “The Guardian” chama de “social media sceptics” (céticos em relação às mídias sociais) em um artigo dedicado a pesquisas sobre o lado “sombrio” do Facebook (22/3/2012). Ser um “social media sceptic” significa não crer nas maravilhas das mídias sociais. Elas não mudam o mundo. Aliás, nem acredito na “história”, sou daqueles que suspeitam que a humanidade anda em círculos, somando avanços técnicos que respondem aos pavores míticos atávicos: morte, sofrimento, solidão, insegurança, fome, sexo. Fazemos o que podemos diante da opacidade do mundo e do tempo. As mídias sociais potencializam o que no humano é repetitivo, banal e angustiante: nossa solidão e falta de afeto. Boas qualidades são raras e normalmente são tão tímidas quanto a exposição pública. E, como dizia o poeta russo Joseph Brodsky (1940-96), falsos sentimentos são comuns nos seres humanos, e quando se tem um número grande deles juntos, a possibilidade de falsos sentimentos aflorarem cresce exponencialmente. Em 1979, o historiador americano Christopher Lasch (1932-94) publicava seu best-seller acadêmico “A Cultura do Narcisismo”, um livro essencial para pensarmos o comportamento no final de século 20. Ali, o autor identificava o traço narcísico de nossa era: carência, adolescência tardia, incapacidade de assumir a paternidade ou maternidade, pavor do envelhecimento, enfim, uma alma ridiculamente infantil num corpo de adulto. Não estou aqui a menosprezar os medos humanos. Pelo contrário, o medo é meu irmão gêmeo. Estou a dizer que a cultura do narcisismo se fez hegemônica gerando personalidades que buscam o tempo todo ser amadas, reconhecidas, e que, portanto, são incapazes de ver o “outro”, apenas exigindo do mundo um amor incondicional. Segundo a pesquisa da Universidade de Western Illinois (EUA), discutida pelo periódico britânico, “um senso de merecimento de respeito, desejo de manipulação e de tirar vantagens dos outros” marca esses bebês grandes do mundo contemporâneo, que assumem que seus vômitos são significativos o bastante para serem postados no “Face”. A pesquisa envolveu 294 estudantes da universidade em questão, entre 18 e 65 anos, e seus hábitos no “Face”. Além do senso de merecimento e desejo de manipulação mencionados acima, são traços “tóxicos” (como diz o artigo) da personalidade narcísica com muitos amigos no “Face” a obsessão com a autoimagem, amizades superficiais, respostas especialmente agressivas a supostas críticas feitas a ela, vidas guiadas por concepções altamente subjetivas de mundo, vaidade doentia, senso de superioridade moral e tendências exibicionistas grandiosas. Pessoas com tais traços são mais dadas a buscar reconhecimento social do que a reconhecer os outros. Segundo o periódico britânico, a assistente social Carol Craig, chefe do Centro para Confiança e Bem-estar (meu Deus, que nome horroroso…), disse que os jovens britânicos estão cada vez mais narcisistas e reconhece que há uma tendência da educação infantil hoje em dia, importada dos EUA para o Reino Unido (no Brasil, estamos na mesma…), a educar as crianças cada vez mais para a autoestima. Cada vez mais plugados e cada vez mais solitários. Na sociedade contemporânea, a solidão é como uma epidemia fora de controle. O Facebook é a plataforma ideal para autopromoção delirante e inflação do ego via aceitação de um número gigantesco de “amigos” irreais. O dr. Viv Vignoles, catedrático da Universidade de Sussex, no Reino Unido, afirma que, nos EUA, o narcisismo já era marca da juventude desde os anos 80, muito antes do “Face”. Portanto, a “culpa” não é dele. Ele é apenas uma ferramenta do narcisismo generalizado. Suspeito muito mais dos educadores que resolveram que a autoestima é a principal “matéria” da escola. A educação não deve ser feita para aumentar nossa autoestima, mas para nos ajudar a enfrentar nossa atormentada humanidade.Por:LUIZ FELIPE PONDÉ

Quando o rosto do outro muda

Nestes últimos dias tive oportunidade de aprofundar meus conhecimentos em um pensador e filósofo contemporâneo chamado Emmanuel Levinas. Alguns conceitos importantes podem destacar a obra deste estudioso, como “o outro” e seu “rosto”. O outro que Levinas conceitua diz respeito ao universo infinito e intocável que temos diante de nós quando contemplamos o ser humano em sua forma autentica. Por exemplo, quando você olha sua esposa, seu marido, filho ou seus pais e amigos, você está vendo uma fração deste outro em sua individualidade rica e dinâmica. Simplifiquei aqui o conceito de “outro”. Caso o outro olhe pra você e convide você a fazer parte de seu mundo, ao entrar em seu convívio, convida-o a estender sua mão a ele e ampliar seu conhecimento a respeito deste mesmo que o convida. Este convite é feito através de seu “rosto”. O rosto é como o outro se mostra a nós, e como nós mesmos também nos mostramos ao outro. Muito bem, e o que muda a partir disto? É aí que a filosofia clínica nos auxilia a relacionar conceitos importantes como os de “rosto e o outro” com o nosso dia a dia. Pensando a respeito, lembrei de um fato que me ocorreu em uma empresa onde trabalhei alguns anos a atrás. Na oportunidade tinha assumido um cargo de liderança, e estava empenhado em formar uma boa equipe de trabalho, capacitar meus liderados e é claro, corresponder às expectativas da empresa que havia me dado àquela oportunidade. Acreditava, e continuo acreditando, que para uma equipe alcançar resultados permanentes, precisamos desenvolver as pessoas envolvendo-as nas decisões, fazendo-as se sentir parte do trabalho, e fundamentalmente tratando-as com respeito. Tal foi minha surpresa quando percebi que o conceito de “respeito” que procurava ter pelas pessoas da equipe, seu significado foi confundido por uma delas com o de “bondade”, na minha visão talvez de “condescendência”. Provavelmente esta pessoa julgou que poderia fazer seu próprio horário, portar-se como lhe conviesse, cumprir as atividades no prazo que quisesse. Talvez pela minha forma de trabalhar, ela acreditava que acima de tudo, eu iria “respeitá-la”. Na verdade a situação me incomodava porque pela minha percepção ela estava aproveitando-se da situação. Chamei-a algumas vezes para conversar, procurei entender o que estava acontecendo, manifestei meu aborrecimento com as atitudes e os fatos que presenciava na relação dela comigo e com a equipe. Infrutífero! Certo dia precisei tomar a decisão que já me era inevitável: Demitir aquele profissional. Naquela oportunidade, ouvi: “...é... um dia as pessoas sempre mostram a sua verdadeira cara...” Aqui vêm à relação que podemos fazer do rosto e do outro que Levinas nos ensina. Supostamente para o profissional demitido, o rosto que eu mostrei no início de nosso trabalho juntos mudou, pois tinha tomado uma decisão que lhe foi dura e naquele instante o prejudicou. Se eu fosse questionado lá naquele dia, diria que o rosto dele é que mudou, que tinha se mostrado um bom funcionário, depois quis se aproveitar de alguma forma das circunstancias em benefício próprio. Hoje, refletindo sobre este ocorrido, penso que nem eu e nem ele mudamos o rosto. Provavelmente o que encontramos foi um pouco do “outro” que também realmente existia dentro de nós. Quando isso ocorre, uma reação comum para alguns é de surpresa, para outros, motivo de mágoa ou decepção e por vezes de rupturas de relacionamentos, de amizades. Por vezes, a convivência intensa e a intimidade nos relacionamentos proporcionam diversas oportunidades de conhecermos as pessoas que nos cercam, porém muitos têm o hábito de achar que as pessoas são aquilo que elas nos mostram. Pode ser que algumas pessoas se mostrem para nós, durante algum tempo, da forma como entende que gostaríamos que elas fossem, não como realmente são. Podem fazer isto por muitos motivos: por carinho e amor, por admirar alguém e projetar a si mesmo nela, ou ainda por medo de serem rejeitadas. Algumas até por interesse próprio e outras por nenhum motivo proposital ou lógico, entre tantos outros. É sábio entender que muitos de nós também funciona assim com os outros. Quantas vezes olhamos para as pessoas em nossa volta e achamos que são elas que mudaram conosco. O amigo que nos esqueceu, o patrão que parece ter nos eleito para “pegar no pé”, a filha ou filho que não nos liga, enfim, o rosto do outro mudou. Será?! Talvez estejamos entrando em contato com parte daquilo que o outro também é, e não estamos gostando do que estamos descobrindo, porque suas opiniões podem ser diferentes e não conseguimos lidar com as diferentes opiniões?! Ou ainda posso pensar: Talvez, será que a mudança não ocorreu em mim e o que percebo é a reação das pessoas a minha mudança? Para adentrar neste terreno rico da auto descoberta e da descoberta do outro, no meu ponto de vista, precisamos exercitar a humildade e o diálogo. Para Levinas isto é tratar o outro como Sagrado. Agir com humildade procurando entendê-lo, e neste processo de abertura, estar preparado para se descobrir também. Para mim, vale a pena tentar.Por Andre Topanotti

O otimismo da jabuticaba

O brasileiro é antes de tudo um otimista. Ele acredita que as coisas vão melhorar, sempre. Se estão ruins, ele aposta na virada. Se já estão boas, ele crê que vão melhorar ainda mais. Essa característica se acentuou nos últimos tempos, fruto da percepção da maioria da população de que andou para frente. O otimismo é, portanto, uma projeção do passado recente. Mas não precisávamos exagerar. Segundo pesquisa do Gallup, o Brasil é onde há proporcionalmente menos pessoas "sofrendo" no mundo. A sondagem foi feita em 146 países, ao longo de 2011. Juntos, eles representam mais de 95% da população mundial. Computadas as dezenas de milhares de entrevistas, o instituto concluiu que só no Brasil menos de 1% da população se enquadra na categoria "sofrimento". Para comparar, na média mundial, 13% estão "sofrendo". Em 18 países, pelo menos 1 em 4 habitantes está nessa situação. São aqueles pintados de verde claro no mapa que ilustra este texto. O pior é a Bulgária: 45% da população está "sofrendo". Se não "sofrem", como estão os brasileiros? Segundo o Gallup, 59% estão "prosperando", e os demais 41%, "batalhando". O Brasil é o 9º colocado na proporção de "prósperos", empatado com a Áustria. Só perde para Dinamarca (74% "prosperando"), Holanda e Canadá (66% ambos), Israel e Suécia (65%), Austrália e Finlândia (64%) e, por pouco, para a Nova Zelândia (60%). Segundo o instituto, há proporcionalmente mais brasileiros "prosperando" do que norte-americanos (56%), sul-coreanos (50%), britânicos (50%), franceses (46%), alemães (42%) e japoneses (26%). Todas essas nações aparecem muito à frente do Brasil tanto no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) quanto na renda per capita. Mesmo em comparação com outros países ditos emergentes o Brasil aparece muito mais bem colocado na pesquisa. Tem 37 pontos porcentuais de "prosperidade" a mais do que a Rússia (22% "prosperando", 58% "batalhando" e 19% "sofrendo), 41 pontos mais do que a China (18%, 70% e 12%, respectivamente) e inacreditáveis 48 pontos a mais do que a Índia (11%, 66% e 24%). O Brasil é, portanto, um ponto muito fora da curva. O que explica esse resultado literalmente excepcional? O otimismo. Para compreender o porquê, só entendendo com funciona a metodologia do índice de bem-estar. Um dos maiores institutos do mundo, o Gallup desenvolveu seu indicador a partir da tradicional escala Cantril de auto-avaliação, e o vem usando há décadas. Pioneiro no estudo da opinião pública, Hadley Cantril desenvolveu um método que se tornou referência. Ele permite a cada indivíduo estabelecer sua própria escala de valores sem, todavia, abrir mão da capacidade de compará-las. A "escada de Cantril" também elimina o viés provocado pelas diferenças de significado que o mesmo conceito tem para diferentes pessoas, ou que uma expressão tem em diferentes idiomas. Escala. O grau de "sofrimento" no indicador de bem-estar do Gallup não é fruto de uma pergunta direta do entrevistador, mas de uma combinação de resultados. O entrevistado é convidado a imaginar uma escada de 0 a 10, onde o topo representa a melhor condição de vida possível, e o zero, a pior. Em seguida, o pesquisador pergunta em qual degrau o entrevistado se encontra e em qual ele estará daqui a cinco anos. A divisão em três grupos ("prosperando", "batalhando" e "sofrendo") é obtida pela combinação das respostas. Para entrar no grupo da "prosperidade", o entrevistado tem que estar hoje no degrau 7 ou acima dele, mas não só. Ele tem também que enxergar um futuro melhor, ou seja, deve projetar estar no mínimo no degrau 8 daqui a cinco anos. Já para cair no grupo "sofrendo", o entrevistado tem que se ver em má situação hoje (degrau 4 ou inferior) e achar que o futuro permanecerá ruim (abaixo do 5º degrau). Quem não se encaixa em nenhuma dessas categorias está "batalhando". Os 59% de brasileiros classificados pelo Gallup como "prosperando" não estão hoje no topo da escada, nem a um passo de chegar lá. Estão concentrados entre o 7º e o 8º degraus. Porém, quando indagada onde estará daqui a cinco anos, a grande maioria afirma que chegará ao último degrau, ou seja, à melhor condição de vida que podem imaginar. Mesmo aqueles brasileiros que estão abaixo do 7º degrau acham que chegarão, no futuro próximo, ao topo da escada, ou muito perto disso. Quase ninguém acha que está mal (abaixo do 5º degrau) e vai continuar assim ou piorar. Por isso menos de 1% est "sofrendo". Essa auto-avaliação otimista dos brasileiros é exagerada? Só o futuro dirá. Mas certamente é uma jabuticaba. Só tem aqui.Por: JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO - O Estado de S.Paulo

domingo, 15 de abril de 2012

O nosso jeitinho frouxo e cretino de ser

Lá se vai mais um ano, e a cada dia torna-se impossível não ser mais orgulhoso de ser brasileiro. Estamos em paz com a nossa consciência (?), pois não importa se vivemos sob a ditadura da corrupção, e que o peculato não é crime, mas sinal de inteligência (gostou do elogio Lupi?), e o que interessa é que vivemos despreocupados, e que o problema é dos outros, não nos interessando se os outros são VOCÊS. Depois que do nada viramos um tudo, e passamos a usufruir de carros, mulheres, riquezas, poder e impunidade. Nós atingimos o panteão da esbórnia institucionalizada sem o menor esforço. Não importa que o País esteja estratificado, o que importa é que vivemos em êxtase. No País, testemunhamos um verdadeiro milagre em andamento, que promete durar mais vinte, trinta anos. Não adianta falar que a carga tributária do brasileiro está próxima de 40% do PIB, e que o país tem um dos piores índices de qualificação e eficiência de seus serviços públicos. Não importa que o país acumule troféus de incompetência, seja no IDH, o 84º lugar; no analfabetismo, o 95º; na mortalidade infantil, o 106º; na renda per capita, a 71º; e ocupe apenas o 52º lugar entre 110 países da América Latina melhor para se viver, e que estamos no primeiro lugar no mundo em corrupção, com mais de R$ 80 bilhões desviados do bolso de VOCÊS. Se alguém afirma que o metrô de Brasília é o mais caro do mundo, não podemos deixar de falar com a boca cheia, que nada devemos às mais avançadas nações do mundo. Sim, quantos países atingiram tal situação? Quantos países podem taxar os remédios, e o brasileiro é um doente crônico, com 33,9% de impostos, que pagamos sem o menor muxoxo? O que importa, se temos apenas 3% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, e uma participação no comércio mundial em torno de 2%, e que a nossa d¬ívida interna está só em um trilhão e 500 bilhões de reais? Sem contar, que patrocinamos uma bolsa-família que paga para cinco filhos, e até os quinze anos de idade. E, conforme a necessidade de cooptação de votos, o atual benemérito desgoverno pode ampliar o leque, pois sabe que alguém sempre pagará a conta. Devemos apedrejar os que soltam vitupérios contra esta maravilhosa gestão, alegando que no período de janeiro a outubro de 2011, o Governo Federal já gastou R$ 197,7 bilhões de juros da dívida pública. Esse valor astronômico é superior à soma dos orçamentos anuais da saúde e da educação, que somaram R$ 143 bilhões. Não importa que a presidenta no exterior, impossibilitada de negar-se a dar uma entrevista não diga coisa com coisa e, para piorar, tropece nas palavras, que soam com gritante incoerência. No País, atém-se a um texto pobre, elaborado para não colocar em circuito sua imensa teia de neurônios mortos (provavelmente, durante as sessões de tortura) Não importa que nada de grandioso tenha sido construído nos últimos dez anos para sedimentar necessidade futuras, seja na infraestrutura seja na educação, pois acreditamos piamente que Deus é brasileiro, e ele nos proverá. Não temos escolas, nem hospitais, mas teremos imensos e majestosos estádios de futebol, pois nossa sede de circo é imensurável. Quanto ao pão, haverá sempre uma bolsa com uma cesta fornecida por ELES, às suas expensas. Com a inflação subindo, para 2012, modifiquemos os índices dos seus componentes e, ela diminuirá. Viram como é fácil? Sim, estamos orgulhosos, pois apesar de tudo, aumentamos o nosso já elevado índice de aceitação, tanto do EX como da atual presidente. Sim, somos calhordas, mas quem não é, somos jeitosos, somos coniventes, malandros, aproveitadores e, sabiamente, mandamos o futuro para o inferno. É isso aí gente, ninguém vive de valores, ninguém está preocupado com honestidade, com princípios, com justiça, abdicamos de pruridos que na prática tolhem espertezas. Por tudo, estamos eufóricos, que se preocupem com o amanhã aqueles que vierem no futuro. A vida atual é boa, não a estraguemos lendo jornais e revistas aos serviços da fajuta oposição. O nosso espelho é a metamorfose ambulante, exemplo de que tudo se pode, e no espelho, refletimos a imagem de nosso mestre, e como a dele, as nossas faces enchem-se de orgulho. Nós somos os caras. De fato, somos honoris em causa própria, em patifarias, em malandrices; o que trocando em miúdos, nos eleva aos píncaros do gênero cafajeste de ser dos vivaldinos. Brasília, DF, 02 de dezembro de 2011 Por:General Valmir Fonseca Azevedo Pereira

Monteiro Lobato: um combatente entre nós

Monteiro Lobato parece um personagem do realismo mágico. Assemelha-se ao coronel Aureliano Buendía, de "Cem Anos de Solidão", que "promoveu 32 revoluções armadas e perdeu todas". Lobato foi um intelectual que criticou violentamente as elites e o marasmo do povo brasileiro. Foi também um empresário capitalista, nacionalista, profundamente antiestatista. Escreveu, polemizou, combateu, foi preso, mas nunca adulou o poder, algo raríssimo entre os nossos intelectuais. Quis mudar o Brasil alterando os nossos hábitos, incentivando o culto do trabalho e do progresso material; não suportava viver em um país que era um "pântano com 40 milhões de rãs coaxantes, uma a botar a culpa na outra do mal-estar que sentiam". Quando herdou do Visconde de Tremembé a fazenda Buquira, Lobato iniciou sua trajetória de empresário agrícola: abandonou a monocultura do café, importou cabras, galinhas e porcos, diversificou a plantação, construiu um lago, enchendo-o de marrecos e gansos. Seu entusiasmo inicial, a esperança de transformar a propriedade em uma fazenda-modelo -chegou a tentar criar uma nova raça de galinhas-, lembra Policarpo Quaresma, mas, ao contrário do personagem de Lima Barreto, logo cai em si. O desânimo acabou entusiasmando-o a entrar na política local, porém logo desistiu. Em carta à irmã contou: "Ontem aturei uma visita de três horas dum eleitor. Enquanto ele comentava a minha entrada na política, eu cá comigo ia estudando meios de sair dela e ver-me livre de visitas semelhantes". Em 1917, cansado da vida monótona da fazenda, vendeu-a por 120 contos. No ano seguinte comprou a "Revista do Brasil", que se transformou também em editora e publicou seu primeiro livro, "Urupês", um grande sucesso de crítica e público: em menos de um ano vendeu 12 mil exemplares. Em 1919 fundou a "Monteiro Lobato & Cia", que em pouco tempo lançou 15 livros com tiragens muito superiores às rotineiras: "A Menina do Narizinho Arrebitado" teve uma edição de 50 mil exemplares. Lobato publicou Menotti del Picchia, Oliveira Viana, Lima Barreto, Oswald de Andrade, Francisca Júlia, João Ribeiro, Gilberto Amado, Visconde de Taunay, entre tantos outros. Criou centenas de pontos de venda de livros, escreveu dezenas de livros infantis e traduziu vários autores clássicos. Renovou nossa indústria editorial com ilustradores do porte de Di Cavalcanti e Wasth Rodrigues. Com o crescimento das vendas, acabou se instalando, em 1924, em um grande edifício no Brás, com 5.000 m2 de área construída. Mas o período de prosperidade foi interrompido pela deflagração do segundo 5 de julho, quando os tenentes, liderados pelo general Isidoro Dias Lopes, ocuparam São Paulo durante um mês, a fim de derrubar o presidente Artur Bernardes. Logo em seguida, a Light diminuiu drasticamente o fornecimento de energia elétrica para a cidade devido a uma seca prolongada, prejudicando a operação da gráfica. Para complicar ainda mais a situação, Bernardes suspendeu as operações de redesconto no Banco do Brasil, gerando um pânico financeiro. A editora acabou sendo obrigada a abrir falência. Mas Lobato não desistiu: no ano seguinte, junto com Otales Marcondes Ferreira, fundou a "Companhia Editora Nacional". Em carta ao amigo Godofredo Rangel escreveu: "A vida agora é material, estúpida -e se não volto às letras ou à pintura é por me parecer grotesco pensar em tais coisas em tal terra. Meu ideal hoje é um só. Assegurar a independência econômica e emigrar para uma terra bem diferente". Após breve passagem pelo Rio de Janeiro -onde acabou tendo problemas com os militares depois que escreveu, em "Mr. Slang e o Brasil", que o "Exército, Marinha e todas as criações do Estado só existem para justificar a extorsão de impostos e a manutenção de um bando imenso de parasitas"- foi mandado pelo presidente Washington Luis aos Estados Unidos como adido comercial em Nova York. O fascínio pelo modo de vida americano já era grande. Tinha acabado de traduzir "Minha Vida e Minha Obra", de Henry Ford, e ficara impressionado com a eficiência e o culto ao trabalho. Já em 1922 tinha escrito que gostaria de "viver num país vivo, como o dos americanos! Isto não passa dum imenso tartarugal. Tudo se arrasta". Visitou várias cidades, foi a Detroit conhecer Ford, leu tudo o que lhe caiu nas mãos, conversou com empresários e não parou de realçar, nas cartas enviadas ao Brasil, o nosso atraso comparativamente ao progresso norte-americano: "Sinto-me encantando com a América! O país com que sonhava. Eficiência! Galope! Futuro! Ninguém andando de costas!". Desanimado, exclama: "O mundo já na era do rádio, e o Brasil ainda lasca pedra. Ainda é troglodita. O Brasil dorme. Daqui se ouve o seu ressonar. Dorme e é completamente cego". Nas viagens pelos Estados Unidos interessou-se pela siderurgia. Quando conheceu o processo "spong-iron", concebido por William Smith, escreveu ao seu amigo Rangel que "perto do spong-iron, todos os livros de Camilo e Machado de Assis só valem materialmente pelo papel, e o papel contém carbônio e o carbônio é necessário à reação diante da qual todos devemos nos ajoelhar porque é a mãe da civilização". Mas a prosperidade americana acabou sendo atingida pela crise de 1929. Lobato, impressionado com o dinamismo da economia, tinha investido o pouco dinheiro que tinha poupado na Bolsa de Valores. O "crack" acabou levando todas as suas economias, deixando-o em situação difícil, tendo de vender a sua participação na "Companhia Editora Nacional". Insistiu em comprar mais ações na Bolsa novaiorquina e acabou perdendo tudo. Mesmo assim, manteve o fascínio pelos Estados Unidos. Para Lobato o Brasil não passava de um "imenso tartarugal", onde tudo se arrastava Seu melhor biógrafo, Edgard Cavalheiro, comentando o livro "América", com impressões dos quatro anos nos Estados Unidos, publicado em 1932, escreveu com propriedade: "São raros os momentos de crítica ou censura. Transforma-se num autêntico Pangloss; não vê defeitos ou desgraça nem mesmo quando, em consequência do "crack' da Bolsa de Nova York, 13 milhões de desempregados tornam a situação catastrófica. Passa, também, por cima do problema racial, pouco ou nada dizendo do negro ou dos brancos linchadores". Curiosamente, quando visitou Salvador, em 1948, ficou encantado com a cultura negra: "A grande coisa da Bahia é o negro, e das manifestações da civilização negra, tão profundamente africana, o candomblé é o produto supremo". Ao retornar ao Brasil, a grande luta de Lobato é pela exploração de petróleo, considerado como a razão da soberania dos Estados modernos e indispensável à libertação econômica. Debate pelos jornais e em conferências com aqueles que achavam absurdo o Brasil ter petróleo. Criou diversas empresas para iniciar a exploração do "ouro negro", mas sempre esbarrou na burocracia oficial e nos interesses dos trustes, em especial da Standard Oil. Quando publicou em 1936 "O Escândalo do Petróleo", o livro causou um grande impacto: em alguns meses vendeu quatro edições. Porém, com a chegada do Estado Novo, o livro foi retirado das livrarias e proibidas novas reedições. Lobato não desistiu. Da mesma forma como atacou duramente o Código de Minas de 1934 -considerado pelos getulistas como uma manifestação nacionalista- por criar inúmeros embaraços à exploração do subsolo por empreendedores privados brasileiros, fez criticas severas ao Conselho Nacional de Petróleo (CNP), criado em 1938 e para muitos considerado um símbolo da defesa das riquezas naturais do Brasil. Para Lobato, o CNP impediu "as empresas nacionais até de gemer"; o seu diretor, o general Horta Barbosa, era leigo no assunto, autoritário e incompetente. Na época falava-se muito em "economia dirigida", certamente por influência dos planos quinquenais soviéticos, mas o nacionalismo de Lobato sempre foi antiestatal. Atacou o governo, reputando-o inepto para dirigir uma simples estrada de ferro, mas apesar disso queria normatizar todas as atividades econômicas, acabando por "transformar a complexíssima economia da nação numa vasta Central do Brasil". Desanimado, desabafou: "Os nossos estadistas dos últimos tempos positivamente pensam com outros órgãos que não o cérebro -com o calcanhar, com o cotovelo, com certos penduricalhos-, raramente com os miolos". Na defesa do petróleo fez questão de não ser confundido com um chauvinista. Ao contrário, reconheceu a necessidade de contar com a colaboração das empresas estrangeiras e de suas técnicas, pois "nada faremos de positivo, se teimarmos em afastar o estrangeiro e ficarmos a mexer na terra com as nossas colheres de pau". A questão central era manter o controle nacional do subsolo explorado pela iniciativa privada em associação com empresas estrangeiras, sem a participação estatal na esfera da produção. Mesmo com o Estado Novo, Lobato continuou a fazer críticas à política governamental. Em maio de 1940, quando a França estava sendo conquistada pela Alemanha nazista, escreveu longa carta a Getúlio Vargas. Atacou o CNP e pediu a Vargas que "pelo amor de Deus ponha de lado a sua displicência e ouça a voz de Jeremias", pois "se vai generalizando a opinião de que a política oficial obedece, mais do que nunca, aos interesses do imperialismo da Standard Oil". Segundo Lobato, para o CNP "as palavras "pátria' e "nacionalismo' dançam um fox-trot no palco dos "considerados' justificatórios -mas no fim da dança só saem ganhando as companhias estrangeiras que nos vendem petróleo". Meses depois o governo deteve Lobato e o condenou a seis meses de prisão. Foi indultado, mas mesmo na prisão não perdeu a oportunidade de escrever uma carta ao general Horta Barbosa, seu velho inimigo: "Passei nesta prisão, general, dias inolvidáveis, dos quais sempre me lembrarei com a maior saudade. Tive ensejo de observar que a maioria dos detentos é gente de alma muito mais limpa e nobre do que muita gente de alto bordo que anda solta". Em todos os empreendimentos faltou a Lobato paciência e uma visão utilitária e de longo prazo, típica do capitalismo americano, que ele tanto admirou, quer como fazendeiro, dono de editora e representante comercial do governo brasileiro, quer como propagandista-empresário do petróleo. Lembra Galeão Coutinho que Lobato foi o primeiro escritor brasileiro que não sentiu vergonha de ser um homem de negócios, afastando-se do padrão do intelectual que vive à sombra do Estado. Pouco antes de morrer, escreveu que tinha passado a "vida querendo fazer dinheiro com a indústria para escrever por distração. Acabei ganhando dinheiro com a literatura para perdê-lo na indústria". Marco Antonio Villa é professor de história da Universidade Federal de São Carlos e autor de "A Queda do Império", "O Nascimento da República" e "Canudos - O Povo da Terra" (Ática).

Singularidade

Recebi um e-mail de um amigo empresário depois da aula sobre Filosofia Clínica nas Organizações. Nessa aula, estudamos Schopenhauer, principalmente na parte de seus escritos, quando ele nos diz que o mundo é a nossa representação: “O mundo é a minha representação (...) tudo que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro apenas é objeto em relação a um sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que percebe numa palavra, é a representação”. Sendo assim, existem tantas representações de mundo quanto pessoas existem sobre a Terra. “Como vou me posicionar diante de um ponto problemático como esse em minha empresa?” – perguntou o empresário. Veja só, disse-me ele: “Eu tenho uma visão de mundo que não é a mesma visão de meu diretor, que por sua vez tem uma visão diferente de seus subordinados, que por sua vez tem visões diferentes entre si, sendo às vezes impossível estabelecer uma única representação de mundo até mesmo num pequeno departamento em nossas empresas. Em Filosofia Clínica se aprende a respeitar a representação do outro, o que não significa aceitá-la, vivenciá-la, mas compreender que o outro pode não ver o mundo da mesma maneira que eu vejo ou outra pessoa qualquer vê, que ninguém deve ter o monopólio da palavra e muito menos da verdade, que as pessoas não têm sempre as respostas e que a resposta provavelmente estará ligada ao seu acervo, a seus aprendizados durante sua história de vida. Em Filosofia Clínica, não há conceito de normalidade, anormalidade, rótulos, teorias. Para nós, Filósofos Clínicos, o ser humano é plástico, flexível e está inserido num contexto muito específico que é o seu contexto. Ele é único e sem a sua historicidade não é possível compreendê-lo. Assim, a Filosofia Clínica molda-se ao indivíduo através de uma relação dialógica, de um a posteriori, fornecido pela historicidade. Antes disso, nada sabemos diante do ser que se encontra diante de nós. Se mais pessoas soubessem disso, muitos conselhos, agendamentos, dicas que fazem tanto estrago na malha intelectiva poderiam ser evitados. É assim como o mundo me parece hoje. E você, o que pensa sobre singularidade? Por: Beto Colombo

sábado, 14 de abril de 2012

A HISTÓRIA DO GRANDE RACIONAMENTO DE PALAVRAS

Um dia disse Nosso Senhor à sua mulher: - Ouve, Elvira, é algo absolutamente incrível o que os homens falam e falam sem parar. Acho que a situação piorou nos últimos tempos com tagarelices cada vez mais sem sentido. Para alguém como eu que tudo vê e tudo ouve, devo confessar que isso se torna um pouco irritante. - Não seja idiota, Karl-Ragnar - disse a mulher de Nosso Senhor -. Uma conversinha de quando em quando, podes muito bem permitir aos pobres coitados. - Besteiras aqui, besteiras lá, besteiras por todo lado - disse Nosso Senhor - mas agora vou terminar com este eterno blá-blá-bá. Acho que vou racionar um pouco as palavras. - Então faz o favor de te limitar aos teus homens - atalhou a mulher de Nosso Senhor -. Não te mete com minhas colegas, lembra-te bem disto. - Não vamos brigar por uma coisinha destas - disse Nosso Senhor, conciliante -. Se todos os homens se tornam um pouco mais silenciosos, a coisa já melhora. Nosso Senhor sentou-se e pensou: "Não será agora que vou ser parcimonioso, mas, pelo contrário, fartamente generoso. Vou dar-lhes dez mil palavras por dia, isto certamente lhes será suficiente. Vejamos... isto dá três milhões e seiscentas e cinqüenta mil palavras ao ano... acho que posso deixar de lado um acréscimo extra para os anos bissextos, este dia eles podem muito bem calar a boca em nome da paz... e assim em 78 anos teremos... bem, se ofereço a cada um cem milhões de palavras, contadas desde o nascimento, eles têm em todo caso uma boa margem para conversa fiada". Nosso Senhor expediu uma circular com este conteúdo a todos os seres humanos do sexo masculino. Comunicava ainda que cada ocasião que alguém ultrapassasse a cifra exata de um milhão de palavras, soaria uma pequena campainha no ouvido do próprio. E quando a provisão de palavras estivesse quase esgotada e restassem apenas dez palavras, a campainha emitiria sinais curtos durante um minuto. Nosso Senhor calculara certo, como sempre. A consciência de que a provisão de palavras era racionada fez com que muitos dos mais loquazes senhores na terra se pusessem a pensar um pouco mais cada vez que soava a campainha. Talvez eu tenha falado demais, pensavam. Talvez eu deva pensar um pouco mais e falar um pouco menos. E assim pensavam um pouco antes de continuar a falar. Para suas alegrias, observaram que suas conversas dali por diante se tornaram mais coerentes e interessantes de serem ouvidas, e tiveram grande sucesso na vida graças à sábia decisão de Nosso Senhor. Até aqui, apenas três pessoas deram cabo de suas cem milhões de palavras. O primeiro foi um sacerdote que durante muitos anos de serviço desfiava as escrituras em tão longas prédicas que a campainha lhe tilintava freqüentemente no ouvido. Ele no entanto não se preocupava muito com aqueles avisos da campainha, pois achava que na condição de servidor de Nosso Senhor, certamente teria direito a uma reserva extra de palavras caso sua quota chegasse ao fim. Um dia, justo quando havia começado sua prédica dominical, ouviu os curtos e insistentes sinais que significavam que agora ele tinha apenas dez palavras. Mas nem ligou para isso. "O chefe certamente me fornecerá um acréscimo extra, bom como ele é", pensou despreocupadamente. Encontrava-se em meio a um raciocínio que começara com a caminhada de Jesus sobre as águas e continuava com uma comparação entre o passeio divino e o comportamento ímpio que dão prova muitos escravos do pecado em nossos tempos dissolutos ao banharem-se embriagados e nus, à noite, nos chafarizes em frente a nossos museus e instituições de cultura. E continuou como se nada tivesse acontecido em seus ouvidos: - Objetará então o pecador: não é pecado gozar a vida. Um silêncio divino inundou a igreja. Os paroquianos despertaram surpresos de suas semi-sonolências. Terminaria a prédica com estas palavras? Sim, pelo jeito, pois o pastor mantinha o rosto entre as mãos e nada mais dizia. Após alguns instantes, um órgão perplexo começou a soar. Naquele dia todos chegaram alegres da missa em bom tempo para escutar programas da velha guarda, fortalecidos na alma pelas palavras finais do pastor que diziam não ser pecado gozar a vida. - Foi uma prédica extraordinariamente linda - diziam os paroquianos um para o outro, e ninguém entendeu porque depois daquele domingo o pastor foi conduzido para um silencioso serviço na secretaria da paróquia. O segundo pela ordem a ser atingido pelo racionamento de palavras foi um relações-públicas do ramo de detergentes. Sua profissão consistia em ser excepcionalmente gentil, da manhã à noite, e em especial durante o almoço e a janta, com todas as pessoas que sua firma entrava em contato. Então vocês podem imaginar que o relações-públicas conhecia todas as histórias engraçadas sobre detergentes que existiam e mais algumas ainda, e além disso dominava a arte de sorrir todo o tempo com seus dentes alvíssimos enquanto falava, de forma que as pessoas ficavam loucas por ele e por seus detergentes. - Cada vez que eu abro a boca, um par de meias é jogado em nosso detergente em alguma parte do mundo - costumava dizer com seu sorriso irresistível e, como isto havia sido calculado pelo departamento de estatística de sua firma, era indubitavelmente verdade. Para um tal relações-públicas, a campainha evidentemente soava com freqüência. Após cada sinal ele ficava algo pensativo e naquele dia não tomava nenhum Dry Martini, pois Dry Martini lhe soltava de tal modo a língua que lindas palavras e lindos slogans lhe fluíam da boca sorridente como um lindo rio onde as associações de donas-de-casa e revendedores se afogavam prazerosamente. Quando soaram os últimos e repetidos sinais curtos em seus ouvidos ele estava almoçando, por custa de sua firma, com uma delegação do Instituto de Pesquisas Domésticas. Já havia tomado seu Dry Martini aquele dia, e antes de perceber exatamente que soara o último sinal, deixou escapar: - Apanhem o detergente que quiserem e comparem-no ao nosso. Então controlou-se. Por Deus, a campainha das dez palavras. E nove já haviam sido ditas! Uma única palavra, pensou ele, uma única! Enfiou a mão no elegante bolso de seu casaco e apanhou um pacotinho com o deteergente de sua firma, que sempre carregava consigo. Despejou uma dose mortal do detergente em sua taça de vinho, ergueu com seu sorriso alvíssimo a taça ante os encantados delegados do Instituto de Pesquisas Domésticas e disse: - Delicioso. Bebeu e caiu, elegantemente morto. Pois um relações-públicas não pode viver sem a possibilidade de dizer sem cessar coisas lindas. Naturalmente agora vocês se perguntam quem foi o terceiro homem a dar cabo de suas cem milhões de palavras. Pois bem, vou dizer-lhes, foi um político. Ele desenrolava textos e conversava fiado e lançava acusações e sofismava e esbravejava tanto que antes mesmo de ter chegado aos cinqüenta a campainha já havia soado em seus ouvidos noventa e nove vezes. E agora se aproximavam as eleições e nosso político sentou-se em uma mesa em companhia de seus adversários e de um apresentador, para um debate na TV. O político do qual falo olhava fixamente para a câmara e disse no seu minuciosamente ocupado espaço onze mil quinhentas e sessenta e três palavras, entre as quais podemos escolher, ao azar: segurança, todos, aposentadoria, vocês mentem, padrão de vida, conspiração, eleitores querem saber, aposentadoria, besteiras, 1956, orçamento, homens do povo, grupos de baixo salário, confiança e aposentadoria. Ao chegar ao apelo final soaram os pequenos sinais curtos nos ouvidos daquele político. Ficou tão estupefato que disse espontaneamente a todo mundo: - Já disse tantas bobagens que agora eu calo a boca. Graças a este apelo final aquele político foi escolhido para ministro e governou por muitos anos. Como não podia mais dedicar-se a cacetear os eleitores com conversa fiada, dispunha então do dia inteiro para pensar um pouco e executar uma série de medidas, de modo que se tornou um dos melhores ministro de Estado que este país teve, como consta nos Anais do Partido. E se não estivesse morto, estaria governando ainda. Enquanto vocês lêem isto, Nosso Senhor fez um levantamento para sua mulher do resultado de seu grande racionamento de palavras. Podes notar que tudo ficou significativamente mais silencioso agora, Elvira - disse ele -. Seria agora o caso de pensarmos em estender as determinações de racionamento inclusive ao campo das mulheres, não achas? Hás de convir, tu que falas a todo instante de emancipação e dessa papagaiada toda. (Lá no fundo, Nosso Senhor pensou que seria melhor se inclusive sua mulher fosse submetida ao racionamento, mas evidentemente nem tocou no assunto). - Emancipação aqui, emancipação acolá - disse a mulher de Nosso Senhor -. Mas um racionamento desses para mulheres tu só vais estabelecer em cima de meu cadáver, Karl-Ragnar. E o fato é que a mulher de Nosso Senhor nunca morre. Esta é a sorte de vocês, adoráveis tagarelas. * Conheci Tage Danielsson (1928-1985) em Estocolmo, em 1982, quando visitei a Suécia a convite do Ministério de Relações Exteriores sueco. Jovial e sempre irônico, me recebeu com fidalguia em sua casa. Danielsson foi um dos mais importantes escritores suecos do século passado, dividindo sua criatividade entre a literatura e o cinema. Crítico mordaz de sua própria sociedade, a Suécia cosmopolita e superdesenvolvida, seus contos continuando ecoando no mundo contemporâneo. O conto traduzido pertence à coletânea Sagor för barn över 18 år (Histórias para crianças de mais de 18 anos). Conto de Tage Danielsson Tradução do sueco de Janer Cristaldo