sexta-feira, 4 de maio de 2012

Fanatismo e submissão

“Anseio ardentemente por aquela condição psíquica em que, livre de toda responsabilidade, sentirei a estupidez do mundo como um destino.” (Karl Kraus)Em 1951, Eric Hoffer escreveu um livro que logo se tornaria um clássico.The True Believer disseca as principais características que levam alguém a aderir a uma seita de forma fanática, dando início a um movimento de massa. O livro ainda é bastante atual, e serve como alerta para as diferentes formas de fanatismo, que acabam sendo bastante semelhantes entre si.

Os movimentos de massa produzem em seus adeptos a disposição de sacrifício pela causa santa, assim como um impulso à ação em conjunto. O entusiasmo, a esperança, a intolerância e o ódio aos que são diferentes representam sintomas deste tipo de fenômeno. Tais movimentos demandam fé cega de seus membros. A submissão é infinitamente mais importante do que o pensamento individual, o questionamento racional. Vale lembrar que Islã quer dizer justamente submissão, e que os dogmas católicos sempre tiveram que ser aceitos por seus crentes sem questionamento (creio porque absurdo).

Segundo Hoffer, todos esses movimentos distintos apelam ao mesmo tipo de mente. Talvez esta tenha sido a principal contribuição de seu livro: mostrar como são parecidos, no fundo, movimentos que na aparência são tão díspares. Apesar de vivermos em uma época “sem deus”, o fato é que vivemos em tempos bastante “religiosos”, onde inúmeras seitas fanáticas proliferam. Por isso é tão importante mergulhar mais na mente típica do fanático.

Os principais tipos de movimento de massa que atraem estas pessoas são religiosos, revolucionários e nacionalistas. Dentre estes, Hoffer considerava o nacionalismo aquele com maior capacidade de duração nos tempos modernos, citando como exemplos as revoluções francesa e russa, que desembocaram no nacionalismo para sobreviver. Nem sempre o advento de tais movimentos será totalmente maléfico. O caso de Ataturk na Turquia demonstra que estas mudanças oriundas de movimentos nacionalistas podem deixar algum legado positivo também. Mas os riscos são sempre enormes.

E o que levaria tanta gente a aderir a tais movimentos? Para Hoffer, um dos principais motivos é a angústia que a autonomia traz consigo para o indivíduo. Temos uma tendência de culpar forças exógenas pelos nossos fracassos, e as pessoas frustradas com suas vidas acabam desenvolvendo um fervor por mudanças radicais. O sentimento profundo de insegurança em relação ao presente faz com que estas pessoas abracem alguma boia de salvação que prometa um futuro melhor. Os movimentos de massa oferecem a sensação de um poder irresistível do grupo monolítico de moldar este futuro maravilhoso.

A liberdade de escolha deposita no próprio indivíduo o peso de seus fracassos. Quanto maior forem as alternativas de escolha, mais espaço há para frustrações. Para Hoffer, muitos se unem aos movimentos de massa para escapar da responsabilidade individual. Como disse um jovem ardente defensor do nazismo, a meta era ficar “livre da liberdade”. Movimentos de massa fornecem aos fanáticos uma forma de dissipar sua individualidade até o ponto de anulá-la por completo. A paixão pela igualdade é também a paixão pelo anonimato. O fanático se transforma em uma massa amorfa igual a todos os demais membros da seita, disfarçando então seu complexo de inferioridade.

Para uma massa dessas, o principal alvo de catequização e conversão é o indivíduo que se sustenta por conta própria, que não depende de algum corpo coletivo que lhe ofereça apoio. A mente independente, blindada de rótulos simplistas e avessa a seitas, o indivíduo criativo que não necessita de um movimento de massa para encontrar algum sentido em sua existência, este é o foco de inveja e ódio dos fanáticos de todas as matizes. Eles precisam destruí-lo, se não forem capazes de convertê-lo. Hoffer aponta que movimentos de massa podem nascer sem deus, mas não sem um demônio: são os bodes expiatórios das seitas, culpados pela desgraça que é o presente. Os judeus dos nazistas, os kulaks dos bolcheviques, os ímpios dos crentes.

Não se comunica com estes fanáticos por meio da razão, e sim da fé extravagante. Eles precisam ser ignorantes acerca das dificuldades envolvidas nesta tarefa vasta e hercúlea, muitas vezes utópica, de criar um novo mundo. A experiência de casos passados atua como um inibidor aos revolucionários, e por isso o desconhecimento da história costuma ser crucial na seleção dos adeptos. Os envolvidos na Revolução Francesa, no bolchevismo e no nazismo eram em sua grande maioria pessoas sem experiência política.

Uma classe média em crise, que acaba de perder parte de seus bens e se encontra frustrada com o presente, representa um terreno fértil para movimentos de massa. Foi assim na Itália fascista e na Alemanha nazista. Um movimento em ascensão prega a esperança imediata, um futuro róseo logo depois da esquina, uma “boa nova” para os escolhidos, que impele seus membros à ação. Movimentos de massa já estabelecidos contam com a promessa de um futuro fantástico, porém distante, para manter acesa a chama da esperança. O Stalinismo era o ópio do povo russo assim como religiões estabelecidas.

O núcleo familiar representa um grande obstáculo a tais movimentos coletivistas. Por isso quase todos eles combateram a família em suas origens. O Cristianismo inicial, segundo o autor, foi um dos movimentos de massa mais hostis ao núcleo familiar. Jesus teria dito que aquele que ama seu pai e sua mãe mais do que a ele não seria digno de ser seu seguidor. O mesmo para aquele que amasse mais seus filhos. Abraão seria o ícone perfeito deste tipo de fanático, ao se mostrar disposto a sacrificar o próprio filho em nome de sua fé. A causa santa vem em primeiro lugar, a família fica em segundo plano.

O ser humano em geral clama pela sensação de pertencimento a algum grupo maior. Suas frustrações alimentam ainda mais o desejo de sumir em meio a uma massa uniforme. O tédio diante da vida, a falta de sentido na existência, tudo isso joga mais lenha na fogueira, empurrando o indivíduo na direção da massa. Um movimento de massa representa o pacote completo que exime o sujeito da responsabilidade de desejar e arriscar por conta própria.

A submissão ameniza o fardo de sua autonomia. Seu fanatismo retira a necessidade de pensar e questionar por conta própria. A “certeza absoluta” da doutrina infalível fornecida pelo movimento conforta a angústia da hesitação. A aventura revolucionária lhe estimula e reduz o tédio de sua vida vazia. A causa fanática alivia seu sentimento de culpa e pecado. O futuro fantástico lhe dá forças para enfrentar o presente medonho, um fardo temporário, um vale de lágrimas e sofrimento até o oásis por vir. O ideal glorioso e indestrutível oferece a força que lhe falta como indivíduo, a eternidade que acalenta sua inexorável mortalidade e aniquilação.

Eric Hoffer não era otimista quanto à possibilidade de persuasão de um fanático. Para ele, o apelo à razão não surtia tanto efeito sobre um fanático. Seus medos e inseguranças lhe comprometem, e sua causa santa é uma necessidade de se segurar a alguma coisa para aguentar a vida. O mais provável seria um fanático se converter, não se convencer. Por isso é comum ver fanáticos pulando de seita em seita. Para Hoffer, é mais fácil para um comunista fanático se converter ao fascismo, chauvinismo ou Catolicismo do que se transformar em um liberal sóbrio com mente aberta. Os ateus fanáticos, que encontram sua razão de ser em deus da mesma forma que os crentes, pois vivem em função de sua negação, entravam para o grupo dos fanáticos de Hoffer.

A propaganda se faz importante para a ascensão do movimento de massa, mas sua sustentação só será possível com base na coerção. Foi apenas após Constantino que o Cristianismo conseguiu se estabelecer. A espada foi crucial para a sobrevivência do movimento, e onde o Cristianismo não foi capaz de dominar o poder estatal, ele raramente conseguiu se manter de forma permanente. O mesmo vale para o Islã. Seu crescimento se deu por conquista no começo, e a conversão foi um subproduto disso em muitos casos. A Reforma deslanchou quando ganhou o apoio de príncipes e governos locais. A ameaça comunista era infinitamente maior quando tinha o suporte de um dos exércitos mais poderosos do planeta.

Além disso, a conquista e a conversão de outras pessoas acabam dando legitimidade ao fanático. Trata-se do conhecido argumentum ad populum. Bilhões de pessoas que acreditam em algo, isso quer dizer que essa crença não pode estar errada! Eles ignoram o alerta de Anatole France, de que “se 5 bilhões de pessoas acreditam em uma coisa estúpida, essa coisa continua sendo estúpida”. Isso também explica porque os fanáticos, apesar de desejarem exterminar uns aos outros, odeiam ainda mais aqueles que não compartilham de fanatismo algum. Um fascista fanático pode até nutrir algum respeito pelo comunista fanático, mas ambos desprezam o homem “sem fé”, sem uma causa santa que o faz disposto aos maiores autossacrifícios, incluindo seu martírio.

Estes fanáticos demandam um líder, alguém que assuma por eles o fardo da responsabilidade. Este líder, segundo Hoffer, deve ter audácia, uma fé fanática na causa santa, e a habilidade de despertar a devoção fervorosa no grupo. A qualidade das idéias em si tem menor relevância. O que importa é o gesto arrogante, o completo desprezo pela opinião dos outros, o desafio ao mundo. Algum grau de charlatanismo é fundamental para a liderança do movimento de massa. Os fatos precisam ser deturpados sempre a favor da seita, tarefa facilitada pela necessidade de crença dos fanáticos. Os fanáticos estão ávidos por obediência ao guru da seita. O crente deve ser acima de tudo uma pessoa obediente e submissa.

Normalmente, o movimento de massa joga descrédito e suspeita sobre o governo estabelecido, mas acaba adotando as mesmas práticas ou até piores uma vez que consegue chegar ao poder. Os revolucionários franceses adotaram o Terror, fazendo a monarquia parecer suave. Os bolcheviques mataram milhões em poucos meses, mais do que o regime dos czares em toda a sua existência.

O filósofo John Stuart Mill lamentou sobre o Cristianismo: “Que os cristãos, cujos reformadores pereceram na masmorra ou na fogueira como apóstatas ou blasfemos – os cristãos, cuja religião exala em cada linha a caridade, liberdade e compaixão... que eles, depois de conquistar o poder de que eram vítimas, exerçam-no exatamente da mesma maneira, é demasiado monstruoso”. A Igreja, uma vez estabelecida e cristalizada, soube ser autoritária e pegar emprestado do Império Romano sua hierarquia e burocracia.




O que todos os fanáticos condenam em conjunto é a democracia liberal do Ocidente, acusada de decadente e pusilânime. Os indivíduos sob tal regime não estariam mais dispostos ao sacrifício por uma causa santa. A perda de vigor, de fé cega, seria sinal de podridão moral. Sem dúvida há alguma verdade nisso. De fato, as democracias modernas dão sinais de covardia, ainda mais quando comparadas às teocracias islâmicas e seus terroristas fanáticos dispostos a tudo pela causa. Falar em reformas nunca tem o mesmo apelo emocional que falar em revolução, em derrubar todo o sistema podre, passar uma borracha no presente injusto e criar um novo mundo maravilhoso, ou então em resgatar um passado idealizado, um jardim do Éden sonhado.

Mas, como espero ter deixado claro acima, com base no excelente e importante livro de Eric Hoffer, a troca deste marasmo imperfeito por um movimento de massa revolucionário é algo extremamente perigoso. Talvez o mundo precise de alguns fanáticos de vez em quando, que abraçam causas santas com fé cega. Talvez alguns desses movimentos tenham tido efeitos líquidos positivos ao longo da história. Só que é fundamental ter em mente o risco que eles representam. Quando muitos sucumbem ao fanatismo e à submissão sem questionamentos racionais, então a liberdade individual corre sério perigo. Os fanáticos podem querer justamente fugir desta liberdade. Mas ela é crucial para o avanço da civilização. Por: Rodrigo Constantino.

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