quinta-feira, 3 de maio de 2012

ENTREVISTA COM ERNESTO SÁBATO (1)

Janer Cristaldo – Você, que há mais de meio século vem lutando contra as tiranias dos regimes comunistas, como se sente ao final do milênio?
Ernesto Sábato – Não só lutei contra as tiranias comunistas, mas contra toda forma de tirania. Não há ditaduras más e outras benéficas: Todas são igualmente abomináveis. O que me desagrada é quando são feitas em nome de grandes ideais, como foi o caso, precisamente, da stalinista. Pelo mesmo motivo, me repugnam as igrejas estabelecidas que, como no caso da religião cristã, com um Deus onisciente e infinitamente bondoso, torturaram horrendamente ou perseguiram até a morte seitas bondosas.

JC – Estudando sua obra, sempre o vi como um espírito religioso, particularmente pelo fato de ter militado, em sua adolescência, com os anarquistas e logo depois com os comunistas.
ES – Sim, é claro que a maior parte dos adolescentes que se aproximaram destes movimentos eram espíritos religiosos, ou pelo menos para-religiosos. Lutávamos contra a injustiça social, não suportávamos ver crianças morrendo de fome.

JC – Você acredita em Deus?
ES – Sim e não, conforme o momento e as circunstâncias. Pois, como acabo de dizer-lhe, é duro compatibilizar um Deus infinitamente bondoso com a venda por 100 ou 200 dólares de meninos e meninas para a prostituição. Essa notícia saiu aqui, falando de uma região do Brasil. Mas, como diz Santo Agostinho, em suas Confissões, Deus é inacessível à razão, e o que estamos utilizando aqui são meras razões. As grandes verdades –e aquela da qual estamos falando é a grande Verdade– só podem ser alcançadas mediante a intuição mística ou poética. Falo de poesia no sentido mais primigênio e profundo da palavra, não estou falando de versinhos. Só a poesia –que inclui não apenas poemas profundos, ficções memoráveis, pinturas e obras musicais eternas– é capaz de dar uma resposta. Por outro lado, e falo a propósito de sua pergunta, um espírito religioso não é necessariamente alguém que crê firmemente na existência de Deus, mas também –e bastante amiúde– alguém que vive angustiado com este problema. Incluo nestes os que blasfemam ou dizem atrocidades, que formam uma legião majoritária e que, de modo paradoxal, acreditam em Deus. Pois contra quem lançariam então estas blasfêmias? O ateu deve ser ateu e ponto final. Isso eu o disse em meu primeiro livro, faz meio século, Uno y el universo, que você traduziu no Brasil. Pois se se trata de um ateu enérgico, é preciso se pôr em dúvida seu ateísmo. Tampouco se pode acreditar que os anticlericais –ou boa parte deles– sejam ateus: são às vezes autênticos espíritos religiosos que sentem repugnância pela igreja estabelecida, pelo stablishment.
Há um anticlerical bastante conhecido, chamado Jesus, que se rodeava de pescadores analfabetos e prostitutas, que pregava junto aos pobres, que contou aquela parábola sobre o camelo e o buraco de uma agulha, que detestava os fariseus e os escribas. Aquele ser também deve ter duvidado, como demonstra sua última e tremenda frase, quando foi crucificado. Tivesse vivido na Argentina, na última ditadura militar, que teria feito? É evidente, teria pregado para as villas-miseria, que no Brasil são as favelas. Que teria acontecido com ele? O mesmo que ocorreu com muitos de seus discípulos, que foram seqüestrados por comandos militares, logo violentados e torturados selvagemente, e finalmente assassinados. Teria sofrido, efetivamente, esta via crucis e, o que é mais horrendo, em nome dos valores "ocidentais e cristãos", por torturadores que eram assistidos e absolvidos por sacerdotes católicos. E assim teria morrido em Buenos Aires, como morreu tantas vezes em circunstâncias semelhantes em todas as partes do mundo. Pois a maldade é universal e tem a duração da espécie humana. É a frase do Eclesiastes, quando diz que nada há de novo sob o sol. Refere-se, é claro, ao coração do homem, que é o mesmo desde sempre. Esse coração que é o território no qual lutam, pela alma do homem, Deus e o Demônio. Frases, palavras do heresiarca Fedor Dostoiesvski.

JC – O que pensa a igreja argentina a seu respeito?
ES – Alguns gostam de mim e me respeitam, a maioria me acusa de "canhoto", de terrorista, de subversivo, de materialista dialético (os mais filosóficos), de bolche e epítetos semelhantes. Alguns destes são corretos. Outros, sofismas grosseiros.
JC – Quais seriam os justos?
ES – Sou, efetivamente, um subversivo. E um "canhoto", porque propugno a justiça social, a liberação dos povos oprimidos e luto contra toda forma de racismo. Quanto ao epíteto de "materialista dialético", você, que traduziuHombres y Engranajes, meus outros ensaios e meus romances, sabe que é um enorme, grotesco e perverso sofisma. Ganhei, ao longo de meio século, uma bela fama: os reacionários me qualificam como comunista e os comunistas me qualificam como reacionário, porque fui inimigo do criminoso regime soviético e por não participar de seu ateísmo de bairro. Devo esclarecer, no entanto, algo que para mim é importante: sempre respeitei os comunistas que, por sua candidez ou sólida fé acreditaram no regime soviético, os que sofreram prisão e torturas, os que lutaram com boa fé por seus ideais. Por isso – fato que enalteci em dois de meus livros – admiro e continuo admirando Che Guevara, que foi acima de tudo e de seu marxismo, um grande idealista, um personagem quixotesco que, como diria Rilke, teve sua morte pessoal na selva boliviana, após ter abandonado a burocracia cubana. Um herói, e sempre temos de nos erguermos ante um herói que morre por ideais. Não até sua altura, é claro, mas também quis e continuo querendo bem seres como Gerardo Pisarello e Arturo Sánchez Riva, a quem dediquei um livro, e me doía saber que ele lia as coisas que escrevi sobre o horror do stalinismo. Eram pessoas de fé, que acreditavam apesar de tudo. Houve muitos que morreram sob tortura por defender essas idéias nas quais acreditaram. Merecem admiração e respeito.

JC – A queda do muro de Berlim e o desmantelamento da União Soviética, você os previu ou os considerava como fatos impossíveis?
ES – Foram sacrificadas em torno de 20 milhões de pessoas, e a burocracia corrupta e a indigência do povo faziam possível este final. Mas a história não é previsível, já que não obedece a leis racionais, como precisamente pensavam Marx e Engels. A história é sempre novidade, dizia o filósofo norte-americano William James, irmão de Henry, o romancista. Frase brilhante mas que não gozava da admiração destes pensadores que acreditavam nas "leis" da história, como se fossem leis científicas. Marx e Engels não qualificaram seu socialismo como "científico"? Era tão pouco científico que nenhuma das predições de Marx se cumpriram: a revolução social não só não explodiu no país mais desenvolvido do mundo, como ocorreu em um país atrasado. Nem os proletários de todo o mundo se uniram para lutar contra os burgueses do mundo inteiro, mas nas duas grandes guerras mundiais os operários, junto com os burgueses lutaram contra os operários e burgueses unidos do outro lado. Nem os países comunistas não lutariam jamais contra outros países comunistas (lembremos o Camboja), isso para não falar do ódio dos chineses contra a União Soviética. Nem o espírito religioso do povo eslavo desapareceu por obra do ensino anti-religioso.

JC – Pode-se encontrar partes resgatáveis em Marx e Engels?
ES – Sim, penso que Marx foi um dos que mais lutou com seus livros contra a escravidão no mundo capitalista, especialmente na Inglaterra vitoriana com a qual conviveu, e tem partes filosoficamente de valor. Para seus epígonos baratos e, no caso grotesco de Stalin, todas as atividades do espírito foram reduzidas às forças econômicas. Em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, afirma que não é a história que faz o homem, mas sim o homem real e vivo que faz a história. Mas a escolástica stalinista tergiversou e barateou suas ideais. Homens como Labriola, na Itália, foram sufocados pela escolástica oficial. Talvez como resultado da tradição hegeliana que na Itália se manteve por obra de Croce – filósofo idealista – pode surgir um espírito tão admirável como Gramsci, que durante seus seis anos de cárcere escreveu páginas que resplandecem em meio à baixeza filosófica do stalinismo. Lutou contra a obra de Plekanov, que tanto foi predicada em meus anos de estudante, quando defendia que a arte era um "reflexo" da sociedade e que as condições econômicas "explicavam" os sentimentos, as idéias e a arte. Bastaria lembrar que Marx recitava de memória Shakespeare e os líricos ingleses e alemães, muitos deles "reacionários", e ria de L'Insurgé, aquele romance "engajado" de um militante da Comuna de Paris. E o que não teria dito da famosa arte "proletária" incubada pelo stalinismo! 
Também devemos reconhecer, frente ao homem abstrato de Hegel, alheio à terra e ao sangue, a frase de Marx : "O homem não é um ser abstrato, fora do mundo: é o mundo dos homens, do Estado, da sociedade". Sua consciência é uma consciência social, enunciando assim um novo humanismo frente às enteléquias iluministas e racionalistas tipo Voltaire. Nisto, há muito parentesco com o que fariam os existencialistas de forma mais acabada. Mas ele compartilhava com os iluministas o mito da Ciência e da Luz contra as potências obscuras. Essas potências obscuras que constituíam o mais profundo e concreto da condição humana: a alma e suas paixões, o inconsciente e suas verdades, a própria fonte dessa arte que tanto admirava. Por alguma razão ele e Engels chamavam seu socialismo de "científico", frente aos utópicos anarquistas, que são os que finalmente tiveram razão. Demoliu implacavelmente Proudhon, mas agora compreendemos que aquele socialismo não teria incorrido na massificação soviética, típica tanto do capitalismo de massa como do socialismo de massa, ambos herdeiros da ciência e da técnica, que conduziram a esta espantosa catástrofe de nosso tempo.

JC – Em suma, voltar ao anarquismo?
ES – Sem dúvida, senão seremos destruídos minuciosamente pelo desastre talvez irreversível da ciência e de sua filha dileta, a técnica, com suas megalópoles, com a destruição geral da natureza e do próprio homem, massificado, coisificado, que não tem outra saída senão a droga ou o nihilismo destrutivo. Mas isto nos leva muito longe e não pode ser desenvolvido em uma simples entrevista. Em Hombres y Engranajes, que escrevi em 1951, explico em profundidade esta crise colossal. Me encheram de insultos e fiquei dez anos sem publicar uma única linha, até 1961, quando me decidi a editar Sobre Héroes y Tumbas. Agora, tudo o que disse naquele livro está à vista, todo o desastre do famoso progresso.

JC – Quais seriam as conseqüências desta degringolada para os futuros projetos dos escritores?
ES – Depende de que espécie de escritor você fala. Para os profundos, será sempre a mesma coisa, os temas transcendentes que constituem a condição humana, que são sempre os mesmos. Para os escritores de ocasião, para os que se limitam ao anedotário político, não sei, suponho que continuarão escrevendo as mesmas superficialidades.
JC – Você parou de escrever ou vai nos brindar com alguma outra criação?
ES – Você sabe que em 1979 me detectaram uma grave doença nos olhos: não câncer, mas algo irremediável, com o derrame do humor vítreo, com o que as retinas ficam sem proteção, e as lesões decorrentes que naquela época eram muito grandes. O especialista, um grande amigo meu, me proibiu a leitura e a escritura, salvo em quantidades mínimas e empregando minha memória digital.

JC – Está cumprindo esse pedido médico?
ES – Não foi pedido, foi uma ordem terminante, amistosa mas terminante. Claro, como não iria cumpri-la? Para cúmulo, este meu horror sagrado à cegueira...
JC – Como se seus livros, seus romances, tivessem um caráter premonitório...
ES – Sim.

JC – Você agora começou a pintar, precisamente porque está mal de vista?
ES – Claro, vale a piada. Mas a realidade é que o tamanho de um quadro me permite o que não me permite a letra. Quando o oculista me disse, com um rosto muito grave, o que me acontecia e observou que talvez eu não tivesse ficado angustiado, me falou de sua perplexidade. É muito simples, respondi, toda minha vida tive a nostalgia de minha paixão, primeiro pela pintura, desde que era pequeno e depois adolescente. Foi a minha primeira e talvez mais forte paixão. Nesse mesmo instante me senti liberado, porque que cada vez que fazia alguma coisa de pintura, sentia uma espécie de culpa, porque muitos me diziam que devia continuar escrevendo. Na realidade, ao concluir Abaddón, el Exterminador, em 1974, senti que havia dito tudo o que tinha de dizer, a ponto de minha tumba aparecer no romance. Enfim, continuei escrevendo alguns pequenos ensaios. Mas as grandes verdades, pelo menos as que eu não consigo alcançar, já estavam ditas. Essas grandes verdades existenciais, as quais não só escrevemos conscientemente mas, e principalmente, com os ditados que vêm do mais profundo de nosso ser, do inconsciente. A propósito, quero acrescentar algo que considero fundamental: a pintura permite uma transmissão mais direta destas visões inconscientes. Por isso é mais catártica, mais liberadora. Por: Janer Cristaldo

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