segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A FILOSOFIA DE LAVAR A LOUÇA

Fala-se muito de como o "Primeiro Mundo é isso e aquilo". Acho isso papo de vira-lata. Toda vez que você ouvir alguém falando que a Europa "é outra coisa", você está diante de um vira-lata rondando a lata de lixo dos outros. A mesma coisa vale para os EUA, ainda que, nesse caso, vira-latas de esquerda jamais elogiem os EUA, mesmo que comprem iPads lá.

Mas independentemente dessa breguice de vira-lata querendo fingir que entende de vinhos, há um detalhe na vida europeia e norte-americana que vale a pena discutir: a vida doméstica e suas tarefas.

Mas, sintomaticamente, os vira-latas nunca falam disso, porque a própria condição de vira-lata os impede de entender ou mesmo enxergar esse detalhe. O sonho do vira-lata é fingir que é llhasa apso e por isso acha que ser um llhasa é desfilar bolsa Prada no JK Iguatemi.

O Brasil é terra de atrasado, corrupto, esculhambado, inculto, novo rico e por aí vai. Tudo isso é verdade. A prova disso é que aqui luxo é ostentação. Suspeito que grande parte do que há de fato de bom na Europa e nos EUA em termos de hábitos e costumes (portanto, estamos falando de moral) se deve ao fato de que nesses lugares as pessoas se movimentam de modo diferente no cotidiano das suas tarefas.

Sempre ouvi os mais velhos dizerem que "o costume de casa vai à praça" e isso é a mais pura verdade. Além de fazerem sexo melhor, suspeito também que os mais velhos entendiam bem melhor do que é essencial, principalmente porque não tinham essa parafernália de ideologia e outros quebrantos bobos como ferramenta de análise do mundo.

Eles observavam a vida sem a presunção de ter descoberto a chave do mundo, como nossos contemporâneos viciados em "teorias de gabinete", como dizia Edmund Burke.

Lembro-me bem que minha filha, chegada à França com cerca de dois anos de idade, chorava porque não podia lavar louça como meu filho, seu irmão, mais velho do que ela nove anos. Isso é sintomático de muitos outros pequenos detalhes: para ela, lavar a louça era parte de ser da família. Meu filho, minha mulher e eu partilhávamos todo o cuidado com a vida cotidiana, inclusive o cuidado com a caçulinha.

Em países como a França, Alemanha, Israel, EUA e outros semelhantes, você é responsável por tudo que acontece na sua casa. Roupa, comida, limpeza, compras, resolução de pequenos problemas logísticos, enfim, da sustentação da vida.

As casas (menos nos EUA, mas ainda assim a ocupação de espaço é diferente da nossa) são menores e mais simples, mesmo que com mais parafernália tecnológica, quando você tem condição de tê-la.

O que me chama atenção em relação às casas não é só seu tamanho, mas a ocupação do espaço. No Brasil temos a famosa sala de visita que, se você "está bem de vida", deve ser completamente inútil e parecer desocupada. Por isso, sempre suspeito que manter uma parte da casa sem uso é signo de vira-lata.

As aristocracias antiga e medieval, as únicas verdadeiras, também não tinham castelos sem uso. Burguês, e aristocracia falida, com "castelo" na zona leste ou nos Jardins é coisa de "wannabe", como dizem meus alunos.

Goethe, em seu maravilhoso "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", descreve o que é a casa de um burguês: ter mais coisas do que precisa e não ter uma relação de uso e necessidade real com os objetos da casa.

Este é o caso. Uma sala de visitas imaculada faz você parecer rico o bastante para manter parte da sua casa sem uso e, com isso, você trai sua breguice burguesa. Acho que grande parte de nossas agruras vem do fato de que não lavamos louça com frequência e de que temos cômodos dissociados de nosso cotidiano e necessidades.

Basílio Magno (século 4) criou a regra da vida monástica: estudar, contemplar, trabalhar. Uma atividade alimenta a outra, e as três formam o espírito. A sabedoria monástica é uma das maiores criações do espírito humano.

Entre nós, dar "tudo" para os filhos até os 40 anos de idade é signo de sermos bons pais. E com isso preparamos adultos retardados e com futuras salas de visita cheias de fantasmas de nossa pobreza de espírito. Por: Luis Felipe Pondé  Folha de SP

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

COMO MUDAR O PASSADO



Em diversas aulas de Filosofia Clínica aparece a pergunta: “É possível mudar o passado?” A resposta para essa questão é simples: “Não sei”. Quando um professor de Filosofia Clínica ouve essa pergunta, a primeira ideia que lhe vem a cabeça é: “De quem estamos falando?” Para a Filosofia Clínica, não é possível saber se é possível mudar ou não o passado sem saber de quem se está falando. Para um filósofo clínico quem conta a história é uma pessoa e tudo o que ela contar depende da representação de mundo dela. Essa representação pode ou não sofrer alterações de acordo com cada pessoa.

Para entender melhor é preciso antes fazer uma diferenciação. Quando os alunos dizem não ser possível mudar o passado estão falando em história, esta palavra segundo Borges (1993) “é uma palavra de origem grega, que significa investigação, informação”. Esse entendimento de história vai de encontro com o mesmo entendimento que tem o historiador francês Jacques Le Goff. Para ele a história é escrita a partir de investigações realizadas acerca do que aconteceu, tal como aconteceu. Quando um historiador conta uma história deve ter provas, chamadas de documentos. Esse entendimento de história torna o acontecido imutável, uma vez que tudo o que foi dito pode ser provado. 

No entanto, em Filosofia Clinica não se trabalha com a ideia de história, mas historicidade. A palavra historicidade surgiu na França em 1872. Diferente de história que tem compromisso com a verdade, a historicidade é uma história contada por um homem comum acerca de um evento qualquer. Segundo Michel Foucault, quando uma pessoa conta uma história ela deixa a sua marca nela. Isso acontece pelas palavras que usa, pelas expressões que faz, pelo modo como organiza os fatos e até mesmo de acordo com a maneira que descreve o lugar. Ainda de acordo com Foucault, essa marca faz com que seja possível ver a pessoa por trás da narrativa. Na metodologia da Filosofia Clinica faz-se uso da historicidade, onde a pessoa conta sua história de acordo com o que lembra de sua vida. Essa narrativa feita pela pessoa mesma faz com que ela se coloque na narrativa, ou seja, enquanto ela conta sua história está falando dela mesma. 

Retomando a questão de mudar o passado: para algumas pessoas o que elas contam de suas vidas é um documento, como em Le Goff, um monumento, ou seja, fala por si. Nestes casos, o que a pessoa conta de sua história está dado, não tem como mudar, é assim. Noutros casos a pessoa, quando conta sua historicidade, faz com liberdade criativa, aumentando, invertendo, tirando ou colocando elementos. Para algumas dessas pessoas, pela forma plástica como narram sua história, dão a possibilidade ao terapeuta de mudar o passado delas. Muitas delas já o fazem por si só.

Isso pode acontecer no seguinte caso, apenas uma das muitas maneiras de se fazer. Pense na sua casa de pequeno, em como você lembra dela, paredes, telhado, estrutura, momentos que você viveu lá. Depois de feito isso, vá até lá, veja se os seus registros são exatamente como as coisas eram. Algumas pessoas ao fazer esse movimento atualizam as informações, inserem novas medidas, novas cores, aromas e a nova lembrança se sobrepõe a antiga. Pronto, mudamos o passado. 

Num último exemplo pode-se pensar nas pessoas que se foram. Havia um vizinho que perdeu sua mãe há alguns anos, para ele sua mãe nunca o tinha amado, tinha só lembranças tristes com sua mãe. Para ele a história de sua vida foi de dor e sofrimento, isso por causa da dura cobrança da mãe. Chegando ao terapeuta, este descobriu pela sua história que era possível alterar o significado das palavras. Depois de muito trabalho o filósofo ressignificou a palavra cobrança como amor. Depois desse dia, ele refez todo o seu passado. Agora, a qualquer um que lhe perguntasse, o seu passado tinha sido de muito amor e carinho, uma nova história.

Rosemiro A. Sefstrom

terça-feira, 23 de outubro de 2012

MINIATURA DE PERIGUETE

Que as crianças têm cada vez menos infância é um fato já constatado e conhecido por muita gente.

Há mais de 20 anos que teses, ensaios e livros produzidos por estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento alertam para essa questão tão importante.

Não há dúvida de que foi o mundo que mudou. Muitas pessoas acreditam que as crianças da atualidade são diferentes porque já nascem assim: mais conectadas com o que acontece à sua volta, mais cientes do que querem, mais sabidas e muito menos afeitas à obediência.

Mas não. O que acontece, na verdade, é que elas são estimuladas desde o primeiro minuto de vida, e os adultos que as cercam estão ocupados demais consigo mesmos e com sua juventude para ter a disponibilidade de construir autoridade sobre as crianças.

Além disso, os adultos estão muito orgulhosos com os feitos dos filhos que aí estão, cada vez mais, simplesmente para satisfazer os caprichos dos pais.

Tudo -absolutamente tudo- o que acontece no mundo adulto está escancarado para as crianças.

Estão escancarados aos mais novos crimes e castigos, corrupção na prática política, desumanidades, destruição e violência de todos os tipos, desde a mais pesada à mais cotidiana (que nem sempre é reconhecida como uma forma de violência).

E as crianças sofrem e sofrem com tudo isso, mas sem saber. Ainda. Elas ainda não sabem que mais de dez por cento de suas vidas -a parte que corresponde ao período chamado de infância, no qual poderiam se dedicar a brincar de maneira infantil- está se esvaindo em consequência dos caprichos dos adultos. Para ilustrar esse ponto, vou citar aqui dois fenômenos recentes.

Creio que você já ouviu, caro leitor, a palavra "periguete". Já está até no dicionário.

É uma expressão da linguagem informal, surgida na periferia da capital baiana, que tem diversos significados, dependendo de quem a usa e em que contexto.

No quesito aparência, o termo se refere a mulheres que se vestem com roupas curtas, decotadas e muito justas, deixando muito corpo em exposição.

Os trajes usados por essas mulheres são considerados vulgares, mas há quem não aceite esse sentido. Hoje, temos estilistas dedicados a criar linhas de roupas com esse perfil, tamanho é o sucesso que o estilo tem feito com o público feminino.

Pois é: agora muitas mães estão vestindo suas filhas como "periguetes".

A garotada gosta de aderir ao personagem principalmente porque papéis com esse estilo, em novelas, têm tido bastante destaque e seduzido a criançada.

Pudera: corpo à mostra, expressão corporal exagerada, voz demasiadamente alta tem tudo a ver com criança, não é verdade?

O que as crianças desconhecem é o caráter extremamente erotizado dessa fantasia que elas andam vestindo.

Claro que, para as crianças, é apenas o chamado "look periguete" que importa e não o comportamento de mulheres adultas que assim se reconhecem. Mas precisamos entender que erotismo é coisa de gente grande para gente grande.

Agora, como se não bastasse travestir crianças pequenas como "periguetes", muitos pais também as levam a "baladinhas" com direito a DJ, muita dança, muita gente, pouca iluminação etc. Igualzinho ao que acontece no mundo adulto.

Enlouquecemos ou o quê?

Com a expectativa de vida em torno dos 75 anos, por que não deixamos nossas crianças em paz para que possam viver sua infância? Afinal, depois de crescidas, elas terão muito tempo para fazer o que é característico do mundo adulto. Adiantar por quê?

Em nome de nossa diversão, só pode ser. Por: Rosely Sayão, Folha de SP

O QUE É UMA VIDA DECENTE?

Quando se fala de corrupção, todo mundo mente. Quase todo mundo prefere um pai ou marido corrupto a um honesto, mas pobre. Para resistir à corrupção, você tem que ser radical, ou religioso, ou moral ou político.


Parafraseando Hanna Arendt em seu "Eichmann em Jerusalém", quando ela disse que os nazistas estavam preocupados com a aposentadoria e chamou isso de banalidade do mal, eu diria que existe uma "banalidade da corrupção" inscrita na perversão do que seria uma vida decente.

Não quero "desculpar" a corrupção, quero trazer à tona uma causa ancestral de corrupção da qual não se fala no silêncio do cotidiano.

O julgamento do mensalão não significou nada para o eleitor, mesmo para aquele que se julga "crítico". Ninguém dá bola para a corrupção do seu partido do "coração". Também foi importante para ver o modo de operação da corrupção ideologicamente justificada inventada pelo PT: só faltava dizer que foi a direita de Marte que inventou tudo.

Já se falou muito que quando classes sociais mais baixas ascendem socialmente e tentam imitar os hábitos da aristocracia ficam ridículas. Isso é descrito como "novo rico". Mas o "novo corrupto" é tão ridículo quanto. Que "saudade" dos corruptos clássicos do coronelismo nordestino, que negavam, mas não apelavam para uma inocência ideologicamente justificada, ou simplesmente não se davam ao trabalho de negar. Os mensaleiros continuam a agir como um clero de puros de coração.

Mas não é disso que quero falar. Quero falar do fato de que, para além do debate político --que acho chatinho e quase sempre um circo--, a corrupção se alimenta de algo muito mais profundo.

Damos pouca atenção a esse fato porque a substância da moral pública é a hipocrisia, por isso é melhor brincar de dizer que a causa é só política, quando na realidade é mais banal do que isso.

Quase ninguém quer ter um pai ou marido pobre, e sim prefere um pai ou marido corrupto, mas que dê boas condições de vida. Esta é a verdade que não se fala.

Imagine que você é uma jovem mulher que vai casar com um jovem rapaz. Antes que me acusem de "sexista" (mais um termo usado para quebrar a espinha dorsal do debate público, semelhante a acusar alguém de pedófilo), o que vou descrever pode acontecer também com um homem, mas é mais comum ser mulher, porque elas ainda são mais financeiramente dependentes e continuam execrando homem sem sucesso profissional, apesar das mentiras das feministas.

Agora imagine que seu marido será um policial honesto até o fim da vida. A chance de ele acabar pobre é enorme. O mesmo pode acontecer, ainda que num grau mais alto em termos financeiros, com qualquer um que venha ocupar um cargo nos variados escalões do governo.

Agora imagine que, no começo, ele seja honesto e com ereção e vigor, e você também seja uma jovem mulher cheia de vida e expectativas. Agora imagine que se passaram 20 anos... 30 anos... O que importa? A honestidade dele ou ele pensar "no bem-estar da família"? Espere, não responda em voz alta, guarde para si a resposta, senão você mentirá na certa.

Por "pensar no bem-estar da família", quero dizer: roupa, comida boa, escola dos filhos, melhor casa para morar, ajudar os sogros doentes e idosos, viajar para Miami e Paris, apartamento na praia, iPhone, no mínimo para as crianças, carro novo, uma bolsa de marca, ainda que "em conta", sair com amigos para jantar, levar as crianças para comer pizza no domingo, poder mostrar para os cunhados que você está melhor de vida (isso às vezes vale mais do que tudo na escala da miséria moral de todos nós), viajar de avião, comprar coisas nos EUA, ter TV de 200 polegadas, iPads, enfim, "ter uma vida".

Em situações de risco, em guerras, a covardia é a regra --ao contrário dos mentirosos que até hoje se dizem filhos de "la résistance française".

No dia a dia, isso tem outro nome: honestidade não vale nada, o que vale é ter uma "vida decente": segurança para os filhos, uma esposa feliz porque pode comprar o que quiser (dentro do orçamento, claro, mas quanto menor o orçamento menor o amor...), enfim, um "futuro melhor". Por: Luis Felipe Pondé Folha de SP

domingo, 21 de outubro de 2012

LEGISLAÇÃO RACIAL SEMPRE TEM FRUTOS NEFASTOS

Cotas raciais, em minha opinião, são ilegítimas.

A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial é uma instituição que desequilibra os princípios democráticos por entronizar a "raça", quando a única maneira de enfrentar o racismo e combatê-lo é destruir a própria ideia de "raça".

Continuo advogando que o país é feito de cidadãos com direitos universais sem distinção de "raça", credo, condição social e demais atributos especificados na Constituição de 1988.
Em 2012 o STF decidiu, por unanimidade, a constitucionalidade das cotas raciais. Depois desta resolução, abriu-se a porta para que o país instituísse a "raça" como critério de distribuição de justiça.

O Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Igualdade Racial, com a aquiescência de todos os partidos. Este, ao lado da decisão do STF, foi o passo mais radical no sentido de mudar o estatuto legal da nação. Determinaram-se aí cotas raciais em todas as esferas da vida dos cidadãos, que agora são definidos por sua "raça" com direitos diferenciados.

Não somos mais brasileiros, legalmente somos negros, brancos ou indígenas.

Seguindo os ditames do Estatuto Racial, além da obrigatoriedade das cotas no ensino superior para egressos de escolas públicas com renda inferior a um salário mínimo e meio per capita e para pretos, pardos e indígenas, o governo anuncia que instituirá cotas raciais no serviço público federal, inclusive em cargos comissionados.

Quer, ainda, obrigar empresas privadas a adotarem essa política. É absolutamente transparente a intenção de afastar-se dos consagrados princípios universais que regulam a vida das nações.

Se já é triste ver o país caminhar para a racialização das políticas para o ensino superior, mais triste ainda será ver o povo brasileiro ter de lutar por vagas no mercado de trabalho segundo esse critério.

Em nome da luta contra o racismo, estão produzindo uma política de alto risco porque, historicamente, todas as vezes que um Estado legislou com base na "raça", as consequências foram funestas.

O mais estranho de tudo é saber que os EUA --que em muito influenciaram as políticas raciais aqui adotadas-- se afastam cada vez mais da preferência racial na adoção de políticas públicas e enfatizam o critério social ou de classe.

Como noticiou o "The New York Times" do dia 13 de outubro, os juízes da Corte Suprema americana estão repensando a constitucionalidade das ações afirmativas.

No caso da estudante Abigail Fisher, que alega ter sido prejudicada no acesso a uma vaga na Universidade do Texas por ser branca, o argumento de seus opositores não é mais a justiça --ou seja, o tratamento desigual para aqueles que tiveram seus direitos negados por tanto tempo (os afro-americanos), pedra fundamental da política de ação afirmativa nos EUA.

Passados quase 50 anos da instituição das ações afirmativas, a alegação passou a ser a necessidade de intensificar a diversidade nas salas de aula.

Porém, segundo os juízes da Corte Suprema, a verdade é que as ações afirmativas beneficiaram os mais ricos entre os afro-americanos, em detrimento dos pobres tanto brancos quanto negros. Para os juízes, elas contribuíram para o aprofundamento da separação entre os grupos de diferentes "raças", legalmente definidos em função delas.
Por isso, a Suprema Corte americana caminha para adotar critérios de classe no combate às injustiças, e não critérios raciais.

O Brasil, cego ao debate internacional, marcha célere no sentido inverso, criando leis que dividem os brasileiros. Leis que, em vez de erigir pontes e aproximar as pessoas, trazem no seu bojo o ovo da serpente da discórdia, da luta entre aqueles que se pensavam iguais.

YVONNE MAGGIE, 68, doutora em antropologia social pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é professora titular da mesma instituição

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

QUANTO VALE UMA VIRGEM?

Uma catarinense de 20 anos, Catarina Migliorini, está leiloando sua virgindade. Isso acontece no quadro de um programa da televisão australiana, "Virgins Wanted" (procuram-se virgens), "mezzo" documentário "mezzo" reality show (a Folha de 26 de setembro publicou o depoimento da moça,http://acervo.folha.com.br/fsp/2012/09/26/15/). Os lances são dados pela internet; quem ganhar o leilão receberá seu lote durante uma hora, dentro de um avião que sobrevoará o Pacífico.


O leilão devia terminar na segunda passada, mas foi prorrogado até 25 de outubro. Hoje, a virgindade de Catarina está valendo mais de R$ 500 mil. Concordo com Hélio Schwartsman (na Folha de domingo passado): a questão interessante, nessa história, não é a conduta da moça, mas a extraordinária valorização da virgindade.

Schwartsman foi procurar respostas em Paul Bloom, um psicólogo evolucionista, que eu não levo muito a sério, mas que acho engraçado (o que já é um ponto a favor).

Segundo Bloom (e outros evolucionistas, mas não todos --por sorte da disciplina), nossa maneira de pensar (no caso, nosso apreço pela virgindade) é um resto da maneira de pensar de nossos antepassados do Pleistoceno (que é quando o homem apareceu na Terra).

Não sei como Bloom sabe das ações e dos pensamentos do homem pré-histórico, mas, segundo ele, o homem do Pleistoceno queria sobretudo propagar SEUS genes, não os dos outros; portanto, ele preferia mulheres virgens. Aviso prático ao leitor: cuidado, casar com virgem não garante que a dita virgem engravide só da gente --a vida é longa. Fora isso, o homem do Pleistoceno, segundo Bloom, se preocupava muito com a sobrevivência dele mesmo, de seu clã e de sua espécie. Ou seja, por determinação biológica, ele era parecidíssimo com um ocidental do século 19. Por que será?

Enfim, meus informantes do Pleistoceno (diferentes dos de Bloom), além de não saberem o que é um gene, tampouco sabem que é transando que se engravida uma mulher. Os poucos com os quais conversei confessaram, aliás, que eles preferiam mulheres que não fossem virgens, pois, percebendo que corticoides e antibióticos levariam tempo para serem inventados, eles estavam com muito medo de esfolar seu membro.

Bom, trégua de ficção científica e vamos para a experiência concreta.

A virgindade feminina era um bem apetível no interior da Itália central, quando eu era criança, e o código de honra mandava pendurar na janela o lençol manchado de sangue depois da primeira noite de núpcias. Havia desonra na ideia de que a mulher, tendo amado outro homem, fosse a aliada de um grupo diferente do clã do marido e do dela (traição mais séria do que qualquer brincadeira carnal ou amorosa); e havia desonra na suposição de que o marido não tivesse sido capaz de deflorar sua esposa. O lençol resolvia a questão.

O código de honra é aquela coisa pela qual é preciso estar disposto a morrer. Ele não é do Pleistoceno, mas é muito mais antigo do que o século 19, onde floresceu a ideia de que os indivíduos, os grupos e mesmo as espécies só querem evitar a extinção e onde parecem viver os homens do Pleistoceno de Paul Bloom.

Código à parte, a virgem tem uma série de atrativos. 

1) Para ela, por mais que sejamos medíocres, seremos inesquecíveis. 

2) Diante dela, em tese, seremos sem rivais (doce ilusão e mais um conselho prático: em matéria de amor, melhor rivalizar com um outro real do que com a idealização de outros apenas sonhados). 

3) A ignorância sexual da virgem alimenta a ilusão de que podemos lhe ensinar alguma coisa e que, portanto, sabemos algo sobre o sexo.

Mas os atrativos da virgem empalidecem diante dos atrativos da virgem prostituta --requisitadíssima: há leilões de virgens prostitutas pelas zonas do Brasil inteiro. Por quê?

Muitos homens vivem divididos entre dois tipos de mulher: a "puta", que eles desejam, mas que não conseguem amar, e a virgem, que eles amam perdidamente, mas que eles não conseguem desejar (ela é linda, pura e intocável, como a mãe).

A figura da virgem prostituta carrega em si essa contradição: como virgem, ela é parecida com a mãe, intocável e apenas amável, mas, por ser prostituta, ela é desejável e acessível.

Comprando uma hora com a virgem prostituta, alguns talvez sonhem juntar, por uma vez, amor e concupiscência; é uma fantasia poderosa: a de conseguir, enfim, reverenciar amorosamente um corpo ilibado, mas sem renunciar a sujá-lo com seu desejo. A esses alguns, boa sorte no leilão!
Por: Contardo Calligaris, Folha de SP

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

ELA É INFIEL?

Em Filosofia Clinica, uma das recomendações iniciais da clinica é que tudo o que a pessoa disser deve ser entendido a partir da história de vida dela. Essa recomendação também vale para os termos que a pessoa usa. Quando ela fala, tudo deve ser entendido de acordo com os significados que ela dá aos termos. O significado usual de dicionário que utilizamos vale para escrever um livro, poema ou até mesmo um artigo, mas para as pessoas não. Assim como qualquer outra palavra, infidelidade também é uma palavra que tem sentido só de acordo com a pessoa que a pronuncia. 

No entanto, para ter um ponto de partida podem-se usar as definições dos dicionários e a partir delas continuar. Infidelidade, de acordo com dicionários online, pode ser entendida como deslealdade, traição. A palavra infidelidade tem uma conotação mais religiosa, por isso, ao longo do tempo entra cada vez mais em desuso, a palavra que ganha seu lugar é a traição. A palavra traição, de acordo com o Wikipédia, é “como uma forma de decepção ou repúdio da prévia suposição, é o rompimento ou violação da presunção do contrato social”. Veja que a palavra traição é entendida primeiro como uma decepção e depois como o rompimento de um contrato social.

Antigamente o contrato social do casamento era regido única e exclusivamente pela igreja, era ela quem dizia o que era fidelidade e o que era traição. Nos dias de hoje tanto a fidelidade, uma questão de fé, quando a traição, uma questão de contrato ganham significados diferentes em cada união. Pense que uma mulher jovem uniu-se à um homem pelo seu dinheiro, assim como ele uniu-se a ela pela beleza que ela tem. No contrato social estabelecido entre os dois a fidelidade acontecerá enquanto ele for o provedor do dinheiro e ela da beleza. Se, por acaso, por algum motivo ele não tiver mais dinheiro para alimentar o relacionamento, ele está traindo ela. O mesmo acontecerá se ao longo do relacionamento ela não cuidar de si mesmo e ficar feia.

Até aqui os exemplos foram distantes e bastante caricaturais, mas agora, imagine o relacionamento que você começo com sua esposa. O contrato que cada um de vocês aceitou no dia que resolveram se unir, o que dava a cada um de vocês os critérios de fidelidade? Aquele critério que se um homem é casado e por acaso mantiver com outra mulher fora do casamento ser considerado traição, esse pode não ser um critério. Não é difícil de saber de casais que vivem o que chamam de relacionamento aberto, mesmo nesses relacionamentos há critérios de fidelidade. Em muitos casamentos como este a fidelidade está em cada um continuar ligado ao outro por amor, o dia em que um dos dois amar outra pessoa, aí aconteceu a infidelidade.

Pegue por exemplo o filme Ray, que conta a história de vida do cantor Ray Charles. Ao longo de sua vida ele jamais traiu sua mulher e ela, ao menos pelo que passa no filme nunca sentiu-se traída. Há uma cena muito bonita quando ela pede que ele deixe na estrada o que é da estrada, referindo às drogas. Pelo filme, provavelmente ela sentiu-se muito mais traída pelas drogas que ele utilizou e escondeu dela do que pelas mulheres com que teve relações.

Na relação entre marido e mulher, pais e filhos, patrão e empregados, amigos, os critérios que definem a fidelidade são definidos na relação. Assim como os critérios são definidos na relação, também é a partir da relação que se pode saber se alguém foi traído. Seria interessante saber quais foram os critérios que escreveram o seu contrato social de união com o outro. Só assim se saberá quando está sendo traído.
Por: Rosemiro A. Sefstrom

terça-feira, 16 de outubro de 2012

DO JEITO QUE O DIABO GOSTA

Querido leitor, que sua existência esteja plena. Hoje vamos refletir sobre verdades, tanto as absolutas quanto as relativas.


Inicio meu artigo nesta oportunidade lembrando que a Sagrada Escritura nos conta que Josué mandou o sol parar, note que não foi a terra, para que ele ganhasse a batalha. Convém, aqui, trazer também Nicolau Copérnico que atribuiu a terra, um movimento diário ao seu próprio eixo e um movimento anual em torno do sol estacionário.

Provavelmente, quando Copérnico fez esta afirmação, não imaginava a profunda implicação para a ciência moderna. Depois disso, a terra já não podia ser considerada o centro do universo, isso contrariava os escritos bíblicos que usavam o sistema de Ptolomeu, que colocava a terra no centro do universo. Ainda no Livro Sagrado, no salmo 93, Davi, dirigindo-se a Deus, escreveu: "Tu fixastes a terra imóvel e firme". 

Imagine a confusão que o astrônomo e matemático, Nicolau Copérnico, criara com a igreja católica no século XVI quando afirmou que era a terra que girava em torno do sol (heliocentrismo) e não o contrário, o sol que girava ao redor da terra (geocentrismo), como estava escrito na bíblia. Vale lembrar que o cientista polonês escreveu sua obra confrontando com a verdade católica e a dedicou ao Papa; como sabia do seu estado de saúde, faleceu no mesmo ano, em 1543. Já Galileu Galilei estava bem vivo e para não ir para a fogueira da Santa Madre Igreja precisou desdizer o que havia dito.

Marthin Lutero, que também confrontou o status quo da Igreja Católica, tinha posição diferente do matemático e ficou com a versão da Igreja Católica. Disse ele: “O povo dá ouvidos a um astrólogo principiante que se empenhou em mostrar que a terra se move, e não o céu, o firmamento. Esse tolo deseja inverter toda a ciência da astronomia e também da sagrada escritura. Isso é um sacrilégio". João Calvino, outro líder protestante, também deixou claro sua posição: "Quem ousaria colocar a autoridade de Copérnico acima da do Espírito Santo”?

A confusão e o conflito estavam criados e o mundo ocidental ficou "do jeito que o diabo gosta", conforme afirmavam alguns pensadores da idade média. Esse novo sistema que séculos mais tarde teve que ser incorporado pela Igreja Católica à visão cristã do mundo só ganhou as academias, ruas e praças, anos mais tarde e, quando isso aconteceu, não apenas negava algo que a igreja vinha ensinando havia mil anos, como simplesmente contradizia e contradiz a própria bíblia.

Com esta nova teoria, mais aceita e verdadeira, as pessoas passaram a questionar as mais veneradas das autoridades: a Bíblia, a Igreja e os maiores sábios do mundo antigo. Todos estavam errados. E, se eles estavam errados quanto a isso, podiam estar igualmente errados em relação a outras coisas, ameaçando toda a ordem estabelecida e a própria ideia de autoridade.

Queridas e queridos leitores, antes de encerrar nossa reflexão de hoje, vale a pena refletir sobre a quantidade de pré-juízos que ainda estão aí cristalizados, agendados em nosso intelecto a espera de uma abertura maior. Abertura de nossas mentes para novas ideias, para novas verdades. São filósofos e profetas modernos que estão pregando e suas pregações não fazem ecos, ainda. Lembrou-se de alguma?

É assim como o mundo me parece hoje. Como será que vai nos parecer amanhã? 
Por: Beto Colombo

domingo, 14 de outubro de 2012

PROFETA GENTILEZA

Nascido José Datrino, o homem que pregou nas ruas de 1961 a 1995, quando morreu, hoje é tema de artigos em revistas de arte internacionais


RIO - O profeta Gentileza tinha uma maneira própria de definir o sistema econômico baseado no comércio de produtos com objetivo de auferir lucros: “capeta-lismo”. Empresário do setor de transporte de carga em Niterói, José Datrino (1917-1996), nascido em Cafelândia, no interior paulista, tornou-se Gentileza após uma epifania à véspera do Natal de 1961. Teve a visão do que acreditou ser o fim dos tempos, vendeu todos os bens e virou pregador de rua. Costurou um manto branco, pintou nele dizeres sobre bondade e beleza, deixou a barba crescer e decidiu cruzar o país. Foi chamado de louco e tomou eletrochoque, porque repetia que “o mundo é uma escola de amor”. No viaduto do Caju, Zona Portuária do Rio, resistem, em verde, amarelo e azul, pintados sobre o concreto cinza, 56 aforismos, entre eles o de número 44, que diz: “Não pense em dinheiro. Ele é o capeta. Cega a Humanidade e leva para o abismo”.

O capitalismo, como o demônio, também se imiscui nas menores coisas. Peças produzidas a partir de frases e da criação gráfica do profeta Gentileza se multiplicam cada vez mais no comércio e são até exportadas. Geram mais riqueza do que gentileza, porque não pagam nenhum centavo à família daquele que criou uma sentença quase onipresente. Pode-se ver a inscrição “Gentileza gera gentileza” em sandálias, tênis, camisetas, cangas, guarda-sóis, canetas, bolsas, bonés, “mousepads”, ímãs e adesivos, entre dezenas de produtos. São vendidos ou customizados por empresas de pequeno porte ou artistas alternativos, como se a obra fosse de domínio público. Sem pagamento de direito de autor ou de marca. Estão tanto em lojas do Leblon e de Ipanema, na Zona Sul, como em bancas do camelódromo da Rua Uruguaiana ou na estação do metrô da Cinelândia, no Centro. A família nunca entrou na justiça.

Os produtos, os produtores e os preços são tantos e em tal volume que se torna impossível dimensionar o tamanho do mercado. Uma sandália com a inscrição “Gentileza gera gentileza” pode custar R$ 40. Uma loja de Ipanema, daquelas que vendem a moda de rua requintada, comercializava por R$ 100 um tênis All Star com a expressão do profeta customizada, ou seja, aplicada por meio de tela na lona do original de fábrica. Uma saída de praia ou camiseta pode ser comprada na Rua Uruguaiana por R$ 15, uma bolsa por R$ 10, um adesivo por R$ 6 e um ímã de geladeira por R$ 5. No shopping Leblon, uma caneta sai por R$ 5.

— Outro dia um rapaz chegou no nosso bar e disse que queria cerveja com desconto. Eu disse que não podia dar desconto, porque o preço da cerveja já é o mais barato da região. Ele insitiu, mostrou a cueca e lá estava escrito: “Gentileza gera gentileza” — conta Maria Alice Datrino, 68 anos, a mais velha dos cinco filhos de Gentileza, que mora e administra um bar em Guadalupe.

Os herdeiros legais do profeta já passam de três dezenas.

— Outro dia vi uma camiseta e disse para a dona da loja que era criação do meu pai. Ela respondeu que eu não devia me preocupar, já que era uma fábrica de fundo de quintal — diz Maria Alice.

Biógrafo, autor do livro “Univvverrsso Gentileza” (Mundo das Ideias, 2009) e professor do Departamento de Artes da UFF, Leonardo Guelman aponta como um “contrassenso” a assimilação das obras de Gentileza pelo comércio:

— Não foi à toa que ele falava do capeta-capital. Porque a gentileza à qual o profeta se refere não se opõe à violência. É claro nos escritos dele que a violência é um fenômeno superficial da exclusão. Ele acreditava que o dinheiro fazia com que as pessoas perdessem a fraternidade. Gentileza, na obra dele, opõe-se à ganância.

A filha mais velha afirma que, por diversas vezes, a família pensou em entrar na Justiça para pedir compensação econômica em defesa do direito autoral da obra do pai:

— Mas ele sempre dizia que o dinheiro era um mal. Nunca recebemos um tostão de ninguém. Só em 2009, quando foi ao ar a novela “Caminho das Índias”, cada um dos cinco filhos recebeu R$ 3.850, porque havia o personagem do Paulo José, que foi inspirado em meu pai.

A família Datrino está protegida em tudo o que for relacionado ao direito de autor, no entender de Vinicius Bogéa Câmara, diretor de Marcas do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI):

— Pela Convenção de Berna, o direito do autor independe de qualquer tipo de registro.

Assim, a obra de Gentileza, apesar de ser em locais públicos, sem ter sido registrada, tem autor reconhecido. Qualquer uso de sua produção pode ter exigida a citação do autor e o pagamento de direitos autorais. Os Datrino nunca foram à Justiça tentar alguma indenização, nem exigir que Gentileza seja identificado como o autor da frase que se prolifera por aí.

Questão diferente é a tentativa da transformação das letras e da frase de Gentileza em uma marca registrada, definida nas leis que regem a propriedade industrial. Um dos netos do profeta, Vagner Datrino, entrou com um pedido de registro no INPI de marca registrada de produto para exploração no setor de comércio de roupas e publicidade. Se obtivesse o registro da marca, ninguém poderia usá-la sem sua licença ou sem o pagamento dos devidos royalties nesses setores. O processo foi arquivado porque não tinha a participação de todos os herdeiros legais de Gentileza.

— No caso da marca, quem registrá-la primeiro para um fim específico tem o direito de usá-la — esclarece o diretor de marcas do INPI, Vinicius Bogéa Câmara.

A designer e consultora editorial Eliane Stephan diz que a obra de Gentileza tem de ser entendida como um conjunto:

— O trabalho de lettering (desenho da letra) é interessante enquanto composição, sempre usando faixas horizontais nas cores verde e amarela, para separar cada linha dos seus textos, além de alguns símbolos criados para separar ou pontuar palavras. São uma espécie de tábua de mandamentos. Não podem ter seu entendimento reduzido à criação de letras somente, desvinculado da mensagem. O globo

sábado, 13 de outubro de 2012

JUÍZA CATARINENSE CRIA FIGURA DE PAI À REVELIA



Estamos vivendo dias de fúria legiferante ... do Judiciário. Há alguns meses, comentei a decisão inédita no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que condenou um pai a pagar indenização de R$ 200 mil por abandono afetivo. De acordo com a assessoria de imprensa do STJ, a filha entrou com uma ação contra o pai após ter obtido reconhecimento judicial da paternidade e alegou ter sofrido abandono material e afetivo durante a infância e adolescência. A autora da ação argumentou que não recebeu os mesmos tratamentos que seus irmãos, filhos de outro casamento do pai. Como não existe lei que contemple este tipo de ação, a Terceira Turma decidiu legislar.

Judiciário legislar está virando moda. Alega-se que o Legislativo demora demais para elaborar leis, deixando vácuos legais. Pode ser. O fato é que elaborar leis nunca foi função do Judiciário. A Constituição de 88, que desde o berço foi concebida como uma colcha de retalhos, está virando um variegado patchwork. Casamento é entre homem e mulher? Pode ser. Mas pode também não ser. Todos são iguais perante a lei? Talvez sim. Mas talvez não. Tudo depende de interpretação. No caso das cotas, o STF tirou da manga o exótico conceito de “igualdade material”, para justificar a oficialização do racismo. 

Na última década surgiu aos poucos, no seio do Judiciário, a tese do abandono afetivo. Que impõe a um pai a obrigação de amar seu filho, como se fosse possível amar por decreto. Várias ações provocaram o Judiciário. Mas atenção: sempre é o pai que tem obrigação de amar. Não vi, até hoje, esta ação impetrada contra uma mãe. A razão é simples. O filho que se julga abandonado, em vez de exigir carinho ou afeto, se contenta com uma gorda indenização. Como em geral o provedor é o pai, é sempre contra ele que se propõe a ação. Ainda mais se for um empresário bem sucedido. Filho algum vai acionar por abandono afetivo um pai que vive de salário mínimo.

No caso da moça que pediu indenização, uma professora de Votorantim (SP), a ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, determinou uma indenização de 200 mil reais. O caso havia sido julgado improcedente em primeira instância, tendo o juiz entendido que o distanciamento se deveu ao comportamento agressivo da mãe em relação ao pai. A autora recorreu, e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reformou a sentença, reconhecendo o abandono afetivo e afirmando que o pai era “abastado e próspero”. Na ocasião, o TJ-SP condenou o pai a pagar o valor de R$ 415 mil como indenização à filha. A ministra Andrighi achou por bem tabelar o amor paterno pela metade do preço. Amor virou inciso do Direito das Obrigações.

O caso não é novo. Em setembro de 2003, o juiz Mário Romano Maggioni, da comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, condenou o advogado e vereador Daniel Viriato Afonso a reparar sua filha em R$ 48 mil por abandono afetivo. Esta teria sido a primeira ação brasileira de filho contra pai por abandono que transitou em julgado.

Pior ainda, a sentença obrigava o pai a “passar a visitar a filha, no mínimo a cada 15 dias, levando-a a passear consigo, comprometendo-se, também, em acompanhar seu desenvolvimento infanto-juvenil, prestando assistência, apresentando a criança aos parentes pelo lado paterno”. Imagine um pai que recusa o filho sendo obrigado a fingir que o adora. Se antes só havia uma recusa, a convivência forçada abre as portas para a raiva ou ódio. O juiz Maggioni encontrou a fórmula mais rápida de fazer um pai odiar um filho.

Várias ações neste sentido foram impetradas de lá para cá, tendo os juízes se pronunciado ora a favor, ora contra a pretensão da parte impetrante. Leio na revista Consultor Jurídico que, ano passado, a juíza Laura de Mattos Almeida, da 22ª Vara Cível de São Paulo, negou indenização a uma filha que foi gerada fora do casamento.

Aos 37 anos, a recepcionista desempregada conta que, filha de pai “riquíssimo”, atravessou uma vida de privações. Enquanto seus irmãos viajavam à Europa, ela começou a trabalhar aos 14 anos para engrossar as finanças da casa. Na tentativa de reaver os prejuízos financeiros, psíquicos e morais causados pela ausência do pai, a mulher ajuizou um pedido de danos morais no valor de R$ 6 milhões. Valor que, certamente, cobre qualquer carência de afeto. Mas a recepcionista não levou. “Não há como obrigar uma pessoa a amar outra”, argumentou a juíza.

Os juízes que condenam pais por abandono afetivo estão contaminados pelo ranço cristão do “amai-vos uns aos outros”. Este é um dos mais perversos momentos do cristianismo. Ninguém pode obrigar ninguém a amar, como disse sensatamente Mattos Almeida. Sem falar que, como perceberam Nietzsche e Kierkegaard, esta ordem exclui o sentimento de amizade. Amizade é eleição, afinidade eletiva. Se tenho de amar o próximo, não sobra espaço para o amigo.

Em 3 de março do ano passado, chegou à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado o Projeto de Lei 700, 2007, que pretendia caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal, de autoria deste impoluto pastor evangélico, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ). Até agora, a matéria aguarda julgamento e esteve sob a relatoria ... do também impoluto senador Demóstenes Torres. 

Tem um pai ou mãe obrigação de amar um filho? – me perguntava eu então. Esta seria a normalidade das coisas, mas os fatos são teimosos. E se o filho é um celerado, assassino ou drogado, como tantos que existem neste mundinho, apesar dos esforços paternos em educá-lo para a vida? E se o filho matou a mãe, como tantos matam? E se o filho – por uma ou outra razão – tornou-se inimigo do pai? Vivemos em um mundo em que milhares de adolescentes odeiam os pais. Devem os pais responder com amor e carinho?

Os jornais de hoje nos trazem mais um achado no campo do Direito. Em decisão inédita, a Justiça de Santa Catarina determinou que um engenheiro de 54 anos pague pensão à filha de sua ex-companheira. A jovem, de 16 anos, é filha do primeiro casamento da mãe e conviveu com o padrasto por dez anos. A decisão, em caráter liminar, endossa uma nova visão do Direito de Família: pai é quem cria, independentemente do nome que consta na certidão de nascimento. 

Até há bem pouco, pai era quem gerava. Velharias da biologia. Para os novos juristas-legisladores, pai é quem sustenta, ainda que sustente filho de outro. Para justificar sua sentença, a juíza Adriana Mendes Bertoncini, da 1.ª Vara de Família de São José, presumiu o que chama de "paternidade socioafetiva", pelo fato de o engenheiro ser o responsável pelo contrato escolar da adolescente. A tese não é nova e há horas anda pipocando no Direito de Família.

Hoje, nada mais fácil para um juiz legislar. Basta criar uma palavrinha nova – homoafetividade, por exemplo – e em nome do neologismo pode mandar a Constituição às favas. Foi o que aconteceu no caso da união entre pessoas do mesmo sexo. A meritíssima criou agora esta exótica figura jurídica, a paternidade socioafetiva. De seu bestunto – e não da vontade do legislador – surgiu uma nova lei. Que, em falta de melhor denominação, eu chamaria de a lei do pai-chupim. Chupim, para quem não sabe, é aquele passarinho que põe seus ovos em ninho alheio, e delega o sustento de seus filhotes aos donos do ninho.

A mãe, Madalena (nome fictício), de 41 anos, conta que o engenheiro arcou com as despesas da família, incluindo colégio particular, alimentação, viagens e presentes, desde que a filha tinha seis anos. As duas constam como dependentes no Imposto de Renda do engenheiro. O valor estipulado pela Justiça é de 20% dos rendimentos do padrasto, cerca de R$ 1,5 mil. A jovem já recebe pensão do pai biológico, de um salário mínimo. A mãe se separou do primeiro marido quando a menina tinha dois anos.

O Estado vem invadindo cada vez mais – e abusivamente – a vida privada dos cidadãos. Hoje, até ao namorar você corre o risco de ser considerado, para efeitos judiciais, casado. Fomos todos enquadrados. Que história é essa de ser solteiro? Você é que acha que é. Basta que você mantenha um relacionamento amistoso por um ou dois mais anos e a lei o considera casado. Você encetou relações com uma mulher separada e com filhos? Está achando que é padrasto? Nada disso. Você é pai, com todas as obrigações daí decorrentes.

Em suas alegações, a mãe ajunta as despesas de uma viagem, pagas pelo engenheiro, que ela e filha fizeram à Disney. As duas viajaram em março do ano passado, um mês depois do fim do relacionamento. "Desde fevereiro, quando nos separamos, ele nunca mais fez nenhum contato com ela, nem mesmo pelo telefone. Foi uma separação brusca, que deixou minha filha desorientada", diz Madalena.

A moça aceita a separação, desde que o antigo companheiro herde sua filha. Aviso aos navegantes: se você se relacionar com mãe com filha, afaste-se da filha. Se quiser viajar com seus filhos, deixe a filha dela na praia a ver navios. Melhor nem levá-la a teatro, cinema ou restaurantes. Se levar, você está constituindo uma paternidade socioafetiva. E vai acabar pagando pelo sustento de filho alheio. Para preservar seu patrimônio, melhor até mesmo manifestar certo asco pela menina.

Já há juízes condenando avós ao pagamento de pensão alimentar. Mais um pouco, em nome da novel paternidade, e os pais do padrasto terão de prover o sustento do enteado do filho. Em sua obstinação de mensurar o imensurável, os juízes estão criando barreiras intransponíveis entre pessoas. E as varas de Família estão virando varas de Piranhas. 

Cabe recurso da liminar. Se for dado provimento à sentença, estará legalmente consagrada a figura do pai à revelia. Por: Janer Cristaldo

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O QUE QUEREMOS PARA NOSSOS FILHOS?

Essa é uma pergunta que nos fazemos quando nos angustiamos com o futuro e a partir do desamparo que experimentamos como sujeitos. Mais um adolescente morre tão precocemente, seria possível evitar essa tragédia? Isso jamais se saberá. O que não nos exime de refletir sobre as razões que levam um jovem a viver os limites do que é suportável.

Haverá hoje uma educação pautada nos resultados, no desempenho ou na adequação, que subtraia a singularidade de uma existência? Somos o que desejamos ser ou o que devemos apresentar como sucesso? Sim, vivemos numa sociedade altamente competitiva que anula a noção de amizade ou solidariedade. Os treinamentos propostos sob o eufemismo de “recursos humanos” são na verdade maneiras de estimular fórmulas de sucesso pessoal que estão longe de levar em conta a diferença e a criatividade.

A criatividade e a emergência de uma diferença são possibilidades pensadas por Freud como alternativas à sonhada felicidade. Se não podemos ser felizes integralmente ou definitivamente, talvez possamos experimentar uma pequena margem de liberdade, quem sabe a de um desejo próprio e singular? O remédio de Freud contra a neurose não era a felicidade, mas o humor e a criatividade. Ele era cético quanto a um estado duradouro da tal felicidade.

JP era um aluno do São Bento como eu fui. Um colégio rigoroso quanto à disciplina e quanto ao desempenho de cada aluno. Eu reconheço todos os benefícios que a formação nesta instituição de ensino me proporcionou. Lembro com muito carinho de colegas e professores. Porém, é um colégio cujo ensino, em pleno século XXI, está restrito aos meninos. Talvez uma questão para ser levantada. Se algumas meninas frequentassem o cotidiano de JP, se ele tivesse um convívio com o jeito feminino de ser, será que alguma coisa pudesse se dar de outra maneira? Talvez sim, talvez não. Mas é um fato, o de que, nos dias de hoje, um homem não só se encontre com o sexo oposto no santo altar. As mulheres estão na cena do mundo e não mais restritas ao lar. Esta é uma das questões particulares desse colégio que frequentei e tenho saudades.

Há hoje um ranking de escolas, o São Bento, tanto quanto algumas outras, é sempre destaque. Eu conheci Homero, Sófocles, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade nesse colégio. Minha querida e inesquecível professora Dona Amélia recitava em lágrimas versos de Drummond. Eu não estudava para o vestibular, estudava para ser gente.

Contudo, há outro aspecto polêmico: os dogmas religiosos. Devo dizer que os valores cristãos influenciaram minha educação e o meu pensamento. Não digo o mesmo da Igreja Católica Apostólica Romana e, muito menos, da Igreja Evangélica cuja institucionalização do cristianismo, suas práticas e discursos me despertam muitas críticas e restrições. Mas, Lacan adiantou que a religião triunfará sobre a ciência. Vou aqui parafraseá-lo quando fala das psicoterapias: “Não é que não ajude, é que leva ao pior”.

Fazer o bem acima de tudo é o que há de pior, pois Freud nos fala do impossível desse mandamento. “Quero o teu bem à imagem do meu”. É isso que queremos para os nossos filhos, que eles sejam aquilo que não fomos. Em outras palavras, desejamos para nossos filhos os nossos fracassos, o que não conquistamos.

Não preparamos nossos filhos para serem sujeitos de um mundo que nos transcenda, queremos que eles realizem nossas frustrações. Pais que somos no desamparo de nossa existência errante, descontínua e faltosa. “Senhor, tende piedade de nós”. Seres que dormem sonos perturbados, enquanto as crianças de nossos sonhos se perdem no desafio de sobreviver neste mundo cão, neste mundo do sucesso material e do sacrifício da diferença_ de uma maneira própria de existir.

O que queremos para os nossos filhos quando os matriculamos numa escola não para aprenderem o novo, a novidade, mas para serem números de uma estatística bem sucedida? 

“O Colégio PhD....(Sei lá o que?) obteve 90% de aprovação no Vestibular”. É isso que realmente importa? Isso garantirá o futuro de seu filho? Vamos abrir os olhos, pois crianças e adolescentes caem da janela de seus próprios sonhos e fantasias.

Responsabilidade, empenho e estudo são elementos necessários para alcançar metas, objetivos e etc. Alguns conseguem mais, outros nem tanto. O potencial humano não se mede pela quantidade, mas se apresenta na forma particular como cada um lida com seus limites e dificuldades. O mercado é competitivo, mas não podemos negligenciar valores como respeito e tolerância.

JP se foi precocemente. Poderia ser o meu filho, o seu filho. Poderia estudar em diversas escolas desse mundo altamente competitivo que não quer saber da diferença. Quem sabe haverá um Blade Runner quando nos tornarmos máquinas rebeldes e incapazes de amar? Por: Abílio Luiz Ribeiro Alves * Escola Lacaniana de Psicanálise - RJ


SEM TESÃO, A VASTIDÃO

Anos atrás, tive o meu primeiro contato com a mortalidade. E a mortalidade, para um homem, começa sempre pelo telhado: durante semanas, o meu cabelo caía sem razão aparente.


Acordava e ele jazia no travesseiro. Tomava ducha e ele escapava pelo ralo. Usava o pente e o pente ficava parecido com a escova do gato. Consultei um médico.

Primeiro choque: o médico, um respeitável sábio em matéria dermatológica, era mais calvo do que uma bola de bilhar. O pensamento é fatal: se esse desgraçado não conseguiu salvar as suas posses, por que motivo irá salvar as minhas?

O choque deu lugar à compaixão --e à boa educação: não será ofensivo pedir ajuda a alguém que já cruzou definitivamente o capilar Rubicão?

Timidamente, explanei o problema que me trouxera ao consultório. O homem escutou-me, analisou as clareiras como um estratego militar e depois aconselhou ataque farmacológico imediato. Com um aviso: o tratamento acarretava uma certa frouxidão nas partes íntimas.

Eis o dilema que a medicina, em pleno século 21, tem para oferecer a um homem assombrado pela calvície: sexo ou cabelo?

Um cínico diria: sem cabelo, não há sexo. Mas confesso que preferi não arriscar: recusei o tratamento, comprei todos os filmes com o Yul Brynner (para me inspirar, para me consolar) e preparei-me para essa longa viagem sem retorno.

Foi então que o milagre aconteceu: o cabelo, da mesma forma que começara os seus comportamentos suicidas, terminou com eles. Às vezes, penso que foi tudo um teste do Altíssimo, uma espécie de provação de Jó (versão Vidal Sassoon), só para ver se a vaidade era mais importante do que o mandamento "crescei e multiplicai-vos!".

Pois bem: se lembro essa história, hoje, é por ter lido com o café da manhã as espantosas descobertas de cientistas sul-coreanos sobre os eunucos da dinastia Chosun (1392 - 1910). O leitor não leu?

Eu conto: após estudos dos arquivos genealógicos da corte imperial, os cientistas concluíram que os eunucos viviam, em média, mais 20 anos do que os homens do seu tempo. Alguns furavam mesmo a barreira dos 100 anos, fenômeno raríssimo para a época.

A lição que fica é inspiradora: se o leitor deseja viver tanto como os eunucos, a solução é transformar-se em um. Que o mesmo é dizer: pegar na tesoura, remover os testículos e abraçar a impotência como forma de vida. Sem os hormônios masculinos para atrapalhar, o céu é o limite. Ou, se me permitem o hai-kai: "Sem tesão, / a vastidão".

Eu próprio, em meu ordálio capilar, já tinha sido confrontado com a tentação. Renunciei a ela. Mas, aqui entre nós, quantos homens não preferiram já a castração química para terem uma juba leonina no topo da cabeça?

Aliás, a castração não é apenas química. É, sobretudo, comportamental. Sim, podemos rir dos pobres eunucos da dinastia Chosun e lamentar o destino deles, condenados a viver em haréns onde não podiam participar da festa.

Mas a nossa sociedade, no seu culto doentio e obsessivo da saúde e da eterna juventude, também promove as suas pequenas castrações cotidianas.

Do fumo à bebida; das gorduras aos açúcares; sem esquecer os calvários deprimentes nas academias do bairro, onde pateticamente declaramos guerra ao corpo e à boa e velha preguiça, as sociedades higienizadas do Ocidente são uma versão coletiva dos pobres eunucos orientais.

Também nós, do alto da nossa suposta superioridade civilizacional, estamos dispostos a renunciar aos prazeres mundanos por uma promessa fátua de longevidade.

A pergunta, inevitável, é tão válida hoje como era no século 14: valerá a pena uma vida mais longa quando se perdem pelo caminho as transgressões pecaminosas que dão a essa vida o seu tempero deliciosamente humano?

Ou, para citar a piada, haverá coisa mais deprimente do que morrer impecavelmente saudável?

Talvez haja: morrer com excesso de cabelo em cima e um deficit de atividade em baixo.
Não vale a pena. E se os eunucos ensinam alguma coisa é que, pela imagem clássica que nos chegou deles, nem em cima nem em baixo. Por: João Pereira Coutinho, Folha de SP

terça-feira, 9 de outubro de 2012

SERRA DO RIO DE RASTRO

Um vídeo com belíssimas fotos da Serra do Rio do Rastro e da Serra do Corvo Branco.
A Serra do Rio do Rastro liga as cidades de Lauro Muller e Bom jardim da Serra e a Serra do Corvo Branco liga as cidades de Grão Pará e Urubicí.
Um pouco da beleza do sul de Santa Catarina.







domingo, 7 de outubro de 2012

CIÊNCIA E FÉ: REALIDADES PARALELAS


No perene debate entre a ciência e a religião, algo que costuma irritar os cientistas, ao menos aqueles que se consideram ateus, é a insistência dos que têm fé em acreditar numa realidade paralela, inacessível à razão. Vejamos isso num diálogo fictício entre um cientista ateu e uma pessoa de fé bem versada nos avanços da ciência.

Cientista: "Uma causa sobrenatural não faz sentido: se for sobrenatural, isto é, além dos limites do espaço e do tempo, das leis da natureza, do material, como podemos saber da sua existência?

Afinal, o que existe tem de ser detectado. Caso contrário, essa existência é uma fabricação, uma fantasia. Pior ainda, se essa causa se manifestar naturalmente, através de uma 'visão' ou de um fenômeno qualquer, vira uma causa natural, que pode ser estudada pelos métodos da ciência. Ou seja, se algum deus existe, é impossível saber da sua existência de forma concreta. E não existe outra forma de saber".

Pessoa de fé: "A coisa não é assim tão simples, preto ou branco, existe ou não existe.

Entendo que, dentro do método científico, algo precisa ser detectável para que se comprove que é real. Ninguém sabia da existência de Urano até sua detecção por William Herschel em 1781. Mas, antes da detecção, Urano existia ou não? Claro que sim, mesmo que não soubéssemos disso. A ciência não pode determinar com firmeza o que não existe, apenas o que existe".

Cientista: "Mas você não pode, não deveria, comparar Deus a um objeto celeste. Pelo que entendo, Sua existência não passa pelas leis da natureza. Se passasse, Deus seria um fenômeno natural e deixaria de ter essa transcendência de que vocês tanto gostam e que ajuda a crença. Se Deus se 'esconde' numa realidade paralela, jamais fará parte do cânone da ciência".

Pessoa de fé: "Sem dúvida, Deus jamais fará parte do cânone da ciência. Esse é o seu problema, tudo tem de ser parte desse cânone. E eu já não penso assim.

Existem coisas que estão além da ciência, coisas que a ciência não tem como e nem deveria tentar explicar. A ciência tem um método bastante claro de estudo, separando o objeto a ser estudado do todo. Esse método supõe que a separação pode ser feita. Isso funciona muito bem no laboratório, ou quando um astrônomo observa uma galáxia.

Mas como explicar, por exemplo, o Universo como um todo, a questão da origem de tudo? Como olhar para o Universo como um objeto de estudo, se não podemos sair dele?".

Cientista: "Esse é o problema mais complicado, que os filósofos gostam de chamar de Primeira Causa, e os físicos, de 'condições iniciais'. Verdade, temos sempre de supor um contexto para oferecer uma explicação. Não temos ainda uma lei que explique como selecionar uma condição inicial dentre as várias possíveis. Mas nem por isso devemos supor que a explicação é sobrenatural, obra de uma entidade que não podemos saber se existe. Que tipo de explicação é essa?".

Pessoa de fé: "Essa é a explicação pela fé, além da ciência".

Cientista: "Eu prefiro continuar tentando entender do meu jeito".

Pessoa de fé: "Boa sorte, que Deus te inspire".

Cientista: "Eu prefiro me inspirar sozinho mesmo".

Por: Marcelo Gleiser

AQUÉM DA RAZÃO


Longe de mim o propósito de desconsiderar a crença religiosa das pessoas, muito embora não seja eu religioso. E não a desconsidero porque sei a importância que tem para elas. Se quisermos constatá-la, bastará observar que os últimos séculos, marcados pelo domínio da ciência e do pensamento objetivo, não lograram pôr fim à religiosidade dos povos que, em sua maioria, mantêm-se fiéis às suas convicções religiosas.

Haverá para isso várias explicações, mesmo porque são muitas as religiões que existem, algumas delas milenares, e cada uma com características específicas e modo próprio de explicar a existência e entender os valores espirituais. Creio, porém, que todas elas respondem a uma necessidade humana fundamental: dar sentido à existência.

E aí reside a explicação de sua sobrevivência, muito embora a cultura tenha mudado tanto e tenha o homem descoberto as leis que regem tanto a matéria inorgânica quanto as dos organismos vivos, tanto as leis do mundo infra-atômico quanto do macrocosmo.

Há, porém, algumas perguntas para as quais a ciência não tem resposta, como, por exemplo, por que existe algo em vez de nada? Teve o mundo começo ou ele sempre existiu? Que sentido tem a vida humana, se todos nós acabamos para sempre? No entanto, para quem acredita em Deus, todas essas perguntas estão respondidas. Ou sequer são formuladas.

No entanto, uma coisa é a consideração conceitual dessas questões e outra é como elas se colocam na realidade. Agora mesmo assistimos, no mundo islâmico, a sucessivas manifestações de fúria, como reação a um vídeo idiota, que ridiculariza o profeta Maomé.

É compreensível que as pessoas que professam o islamismo tenham se sentido agredidas e desrespeitadas no que mais prezam e cultuam. Não obstante, a tradução dessa indignação em atos de vandalismo --incêndio de embaixada, consulados, morte de pessoas-- parece exceder todos os limites razoáveis.

A verdade, porém, é que aconteceram e não se limitaram a um ou dois episódios incontroláveis. De fato, essa indignação furiosa se estendeu por várias semanas e por vários países. Mas por que o objetivo da fúria são embaixadas norte-americanas, se o vídeo não foi obra do governo dos Estados Unidos?

Parece impossível ter uma resposta única para essa pergunta. Uma coisa, porém, parece óbvia: o ressentimento de certas camadas islâmicas contra os norte-americanos. Isso é um fato, uma vez que o apoio dos Estados Unidos a Israel é visto como uma demonstração de hostilidade, não apenas ao povo palestino, como a toda a nação árabe muçulmana. Esse ódio aos ianques os levaria a admitir que o vídeo terá sido fruto de uma iniciativa governamental para desmoralizar o islamismo. Ninguém, com um mínimo de lucidez, acreditaria nisso. Tampouco justificaria a fúria e o número daqueles protestos.

A nosso ver, o que pode explicá-los é o fundamentalismo religioso que transforma uma indignação razoável numa fúria sagrada implacável, sem qualquer respeito pelo outro, desde que seja visto como antagonista a minha crença. Destruir e matar, se feito em nome de Deus, estaria certo.

Isso me faz lembrar uma afirmação de Bin Laden, pouco depois da destruição das Torres Gêmeas. O jornalista que o entrevistava, perguntou-lhe se não estava errado um atentado como aquele que matou milhares de inocentes, quando o Corão considera o assassinato de inocentes um grave pecado. A sua resposta foi: "Os inocentes que morreram eram os inocentes deles". Ou seja, segundo essa visão fundamentalista, basta não acreditar em Alá para ser culpado. Só que ali morreram, inclusive, muçulmanos.

Certamente, essa não é a opinião da maioria das pessoas que professam a religião islâmica e que, respeitando a opção religiosa, admitem a diversidade de crenças. Não são elas que vão para as ruas incendiar embaixadas e matar infiéis. Mas a religião, nesse particular, por lidar mais com a crença do que com a razão, pode ser campo propício à indignação sem limites.

Aqui no meu canto, sem nada que me proteja da bala perdida, não tenho dúvida de que avaliar os fatos com isenção e lucidez nos torna modestamente mais humanos.Por: Ferreira Gullar, Folha de SP

HOMENS CASTRADOS VIVEM MAIS


Homens castrados têm vida mais longa, diz estudo



Um estudo feito com base em dados históricos na Coreia do Sul revelou que homens castrados vivem em média 19 anos a mais do que os demais homens da mesma camada social.

A pesquisa, publicada nesta semana na revista científica Current Biology, analisou dados de centenas de anos de eunucos na Coreia do Sul.

Os eunucos tinham funções especiais nas sociedades orientais da China e da Coreia, em especial na dinastia Joseon, que reinou o império coreano do século 14 ao 19. Eles guardavam os portões dos castelos, administravam a comida e eram os únicos homens fora da família real com acesso aos palácios à noite.

O pesquisador Cheol-Koo Lee, da Korea University, em Seul, analisou dados de 81 eunucos que viveram 1556 e 1861. A idade média de vida deles era de 70 anos, 19 a mais do que os não-castrados da mesma casta social. Um dos eunucos estudados chegou a viver 109 anos.

A média de anos de vida dos homens da família real coreana, no mesmo período, era de apenas 45 anos. Muitos nobres coreanos alcançavam, no máximo, entre 50 e 60 anos.
Testosterona

A castração feita antes da puberdade impede que meninos se transformem totalmente em homens, em termos biológicos.

"Os históricos mostram que os eunucos tinham aparência feminina. Eles não tinham bigodes, possuíam seios grandes, quadris largos e vozes finas", diz Cheol-Koo Lee.

Uma das hipóteses levantadas pelo estudo é que os hormônios masculinos, como a testosterona, podem ter efeitos nocivos ao corpo dos homens. Os pesquisadores acreditam que os hormônios masculinos debilitam o sistema imunológico e causam danos ao coração.

A castração seria uma forma de "proteger" o corpo masculino destes efeitos. Os pesquisadores não conseguiram levantar dados sobre as mulheres no mesmo período.

"Os dados trazem indícios convincentes de que o hormônio do sexo masculino reduz a longevidade dos homens", disse à BBC o professor Kyung-Jin Min, da Inha University, também na Coreia do Sul, que participou da pesquisa.

Ele acredita que há alternativas modernas à castração para aumentar a longevidade masculina.

"É possível fazer uma terapia de redução de testosterona que aumente a longevidade entre os homens, no entanto, é preciso considerar os efeitos colaterais disso, o principal deles sendo a redução no desejo sexual dos homens."

Para David Clancy, da universidade britânica de Lancaster, os resultados são "persuasivos, mas, certamente, não conclusivos".

Ele aceita o argumento de que o alto número de pessoas centenárias entre os eunucos é um sinal de que a testosterona, de fato, tem um papel importante na longevidade masculina. No entanto, ele diz que o estilo de vida dos eunucos – que possuem hábitos mais reservados – também é um fator importante a ser considerado.

Muitos dos eunucos na sociedade coreana adotavam meninas ou outros garotos eunucos.

"Neste estudo, os eunucos foram educados por eunucos ao longo de diversas gerações, e estilos de vida diferentes podem ter sido passados adiante", diz o pesquisador, que citou outro estudo sobre o assunto.

"Uma comparação entre cantores castrados e não-castrados provavelmente é uma amostra melhor, e essa comparação mostrou que não há diferença na longevidade", disse Clancy. Ele afirma que, neste caso, os estilos de vida eram bastante semelhantes entre os dois grupos.
Por: James Gallagher

Repórter de ciência da BBC News

sábado, 6 de outubro de 2012

A FAMÍLIA EM BUSCA DA EXTINÇÃO



Não por coincidência, o esfarelamento da sociedade em unidades familiares pequenas permanentemente ameaçadas de autodestruição veio acompanhada do fortalecimento inaudito de umas poucas famílias patriarcais, justamente aquelas que estavam e estão na liderança do mesmo processo.

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A “família tradicional” que os cristãos e conservadores defendem ardorosamente contra o assédio feminista, gayzista, pansexualista etc., bem como contra a usurpação do pátrio poder pelo Estado, é essencialmente a família nuclear constituída de pai, mãe e filhos (poucos). O cinema consagrou essa imagem como símbolo vivente dos valores fundamentais da cultura americana, e a transmitiu a todos os países da órbita cultural dos EUA.

Mas esse modelo de família nada tem de tradicional. É um subproduto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. A primeira desmantelou as culturas regionais e as unidades de trabalho familiar em que habilidades agrícolas ou artesanais se transmitiam de pai a filho ao longo das gerações; as famílias tradicionais desmembraram-se em pequenas unidades desarraigadas, que vieram para as cidades em busca de emprego. A Revolução Francesa completou o serviço, abolindo os laços tradicionais de lealdade territorial, familiar, pessoal e grupal e instaurando em lugar deles um novo sistema de liames legais e burocráticos em que a obrigação de cada indivíduo vai para o Estado em primeiro lugar e só secundariamente – por permissão do Estado – a seus familiares e amigos. A sociedade “natural”, formada ao longo dos séculos sem nenhum planejamento, por experiência e erro, foi enfim substituída pela sociedade planejada, racional-burocrática, em que os átomos humanos, amputados de qualquer ligação profunda de ordem pessoal e orgânica, só têm uns com os outros relações mecânicas fundadas nos regulamentos do Estado ou afinidades de superfície nascidas de encontros casuais nos ambientes de trabalho e lazer. Tal é a base e origem da moderna família nuclear.

Max Weber descreve esse processo como um capítulo essencial do “desencantamento do mundo”, em que a perda de um sentido maior da existência é mal compensada por sucedâneos ideológicos, pela indústria das diversões públicas e por uma “religião” cada vez mais despojada da sua função essencial de moldar a cultura como um todo. Nessas condições, assinala Weber, é natural que a busca de uma ligação com o sentido profundo da existência reflua para a intimidade de ambientes cada vez mais restritos, entre os quais, evidentemente, a família nuclear. Mas, na medida mesma em que esta é uma entidade jurídica altamente regulamentada e cada vez mais exposta às intrusões da autoridade estatal, ela deixa de ser aos poucos o abrigo ideal da intimidade e é substituída, nessa função, pelas relações extramatrimoniais.

Separada da proteção patriarcal, solta no espaço, dependente inteiramente da burocracia estatal que a esmaga, a família nuclear moderna é por sua estrutura mesma uma entidade muito frágil, incapaz de resistir ao impacto das mudanças sociais aceleradas e a cada “crise de gerações” que as acompanha necessariamente. Longe de ser a morada dos valores tradicionais, ela é uma etapa de um processo histórico-social abrangente que vai em direção à total erradicação da autoridade familiar e à sua substituição pelo poder impessoal da burocracia.

Não por coincidência, o esfarelamento da sociedade em unidades familiares pequenas permanentemente ameaçadas de autodestruição veio acompanhada do fortalecimento inaudito de umas poucas famílias patriarcais, justamente aquelas que estavam e estão na liderança do mesmo processo. Refiro-me às dinastias nobiliárquicas e financeiras que hoje constituem o núcleo da elite globalista. Quanto mais uma “ciência social” subsidiada por essas grandes fortunas persuade a população de que a dissolução do patriarcalismo foi um grande progresso da liberdade e dos direitos humanos, mais fortemente a elite mandante se apega à continuidade patriarcalista que garante a perpetuação e ampliação do seu poder ao longo das gerações. Com toda a evidência, a família patriarcal é uma fonte de poder: a história social dos dois últimos séculos é a da transformação do poder patriarcal num privilégio dos muito ricos, negado simultaneamente a milhões de bocós cujos filhos aprendem, na universidade, a festejar o fim do patriarcado como o advento de uma era de liberdade quase paradisíaca. O desenvolvimento inevitável desse processo é a destruição – ou autodestruição -- das próprias famílias nucleares, ou do que delas reste após cada nova “crise de gerações”.


A “defesa da família” torna-se, nesse contexto, a defesa de uma entidade abstrata cujo correspondente no mundo concreto só veio à existência com a finalidade de extinguir-se. A ameaça feminista, gayzista ou pansexualista existe, mas só se torna temível graças à fragilidade intrínseca da entidade contra a qual se volta.

feminaziOu as famílias se agrupam em unidades maiores fundadas em laços pessoais profundos e duradouros, ou sua erradicação é apenas questão de tempo. As comunidades religiosas funcionam às vezes como abrigos temporários onde as famílias encontram proteção e solidariedade. Mas essas comunidades baseiam-se numa uniformidade moral estrita, que exclui os divergentes, motivo pelo qual se tornam vítimas fáceis da drenagem de fiéis pela “crise de gerações”. A família patriarcal não é uma unidade ético-dogmática: é uma unidade biológica e funcional forjada em torno de interesses objetivos permanentes, onde os maus e desajustados sempre acabam sendo aproveitados em alguma função útil ao conjunto.

Em últimas contas, se o patriarcalismo fosse coisa ruim os ricos não o guardariam ciumentamente para si mesmos, mas o distribuiriam aos pobres, preferindo, por seu lado, esfarelar-se em pequenas famílias nucleares. Se fazem precisamente o oposto, é porque sabem o que estão fazendo.

Fotos: família Rockefeller e feministas alemãs.

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.


DE VOLTA AO PASSADO

Os remorsos são injustos: esquecemos as razões que nos fizeram decidir nas circunstâncias passadas

ADORARIA QUE fosse possível viajar no tempo e voltar para épocas anteriores de minha vida.

Ingenuamente, imagino que, em vários momentos do passado, eu teria me beneficiado de algo que sei só agora. Quem melhor do que eu aos 50 ou 60 anos para aconselhar uma versão mais jovem de mim, a de dez, 20, 30 anos atrás?

Hoje, enfim, meço as consequências de algumas escolhas antigas. Sei (ou imagino) que teria sido melhor me separar logo daquela pessoa e nunca me afastar de outra, que era insubstituível e que eu perdi; sei (ou imagino) que poderia ter evitado riscos inúteis e me exposto a outros dos quais fugi; sei (ou imagino) que deveria ter insistido quando desisti e desistido quando insisti. E, para quem pode viajar no tempo, nunca é tarde para salvar Inês.

Voltar ao passado para nos dar conselhos em momentos cruciais parece ser uma maneira racional de endireitar nossa vida, a única que leve em conta as consequências confirmadas de nossos atos.

Mas um ditado italiano ("del senno di poi son piene le fosse" -da sabedoria do depois as valas estão cheias) sugere que esse saber das consequências, além de chegar atrasado, talvez seja inútil.

Concordo: as escolhas da gente são quase sempre as melhores, se não as únicas possíveis na hora em que tivemos que decidir. E os remorsos são quase sempre fajutos: quando reavaliamos e censuramos nossas decisões passadas à luz de suas consequências presentes, estamos esquecendo as razões que nos fizeram decidir naquele momento e naquelas circunstâncias. Mesmo assim, a vontade é grande de voltar atrás e alterar o passado.

Quando era mais jovem, depois de qualquer crise (embate, briga, acidente), revivia mil vezes o que acabava de acontecer, corrigindo ou aperfeiçoando imaginariamente minha reação (o que eu "deveria ter feito").

Hoje, mais velho, quando volto a lugares do passado, sempre os encontro assombrados, como se minha história ainda estivesse por lá, suspensa, na espera de uma solução alternativa à que se realizou na época.

Me dei conta disso quando, pela primeira vez, morreu alguém que tinha sido minha companheira. O luto foi violento, igual ao que seria se minha história com ela nunca tivesse acabado.

Como podia ser? Se passaram tantos anos sem eu pensar nela... Por que esta dor agora? Era como se, com a morte dela, acabassem as chances de dar àquela história um desfecho outro, como se só com a morte dela o passado se tornasse realmente passado.

Seja como for, por ser um fã das viagens no tempo, não podia perder "Looper - Assassinos do Futuro", de Rian Johnson, que estreou na sexta passada. No filme, daqui a 30 anos, as viagens no tempo serão possíveis e proibidas. A máfia instalará seus assassinos, os "loopers", no passado (ou seja, numa época mais permissiva); e para esses assassinos ela despachará as pessoas que deseja eliminar, para que sejam mortas.

Um dia, um assassino descobre que o condenado, que ele recebe do futuro, é a versão mais velha dele mesmo. Será que o jovem "looper" vai querer poupar sua própria vida? Não é óbvio: afinal, matar a nós mesmos daqui a 30 anos é parecido com fumar e comer toucinho.

Esse cara, 30 anos mais velho do que eu, será que ainda sou eu? E será que alguém aos 20 ou aos 30 escutaria o que sua versão de 60 anos tentasse lhe dizer? Ou será que, para mim aos 20, eu seria hoje apenas mais um velho chato qualquer? Questão antiga: fora nossa identidade jurídica, que permanece igual, será que, ao longo da vida, somos a mesma pessoa?

Nesse fim de semana, no festival de cinema do Rio, assisti a "Camille Outra Vez", de Noémie Lvovsky, título original "Camille Redouble" (não sei quando o filme será distribuído no Brasil, mas conto com o cinema Reserva Cultural, que, em São Paulo, para quem aprecia cinema francês, é uma dádiva).

No filme, Eric e Camille ficaram juntos a vida toda. Mas Eric acaba de deixar Camille por uma mulher mais jovem (e talvez menos beberrona). No Réveillon, Camille desmaia e acorda aos 16 anos. Ela reencontra seus pais, as amigas da escola e, sobretudo, Eric, pois é bem naquela época que eles se encontraram.

Claro, Camille quer mudar o curso de sua vida (não namorar Eric) para evitar a dor futura da separação. Mas o fato é que muitos amores são como a vida: eles valem a dor que seu desfecho triste nos dará eventualmente um dia.Por: CONTARDO CALLIGARIS Folha de SP