terça-feira, 31 de julho de 2012

VIVER MAIS E MELHOR


Querido leitor, aceite o meu fraternal e caloroso abraço. Nosso tema hoje é instigador, é baseado nas ideias de um dos maiores nomes da cardiologia do Sul do Brasil, e talvez de todo o Brasil? Trata-se de Fernando Lucchese, uma referência na medicina do coração que, hoje, tem sua base em Porto Alegre, embora também tenha atendido aqui em Criciúma, acompanhando a realização das primeiras cirurgias cardíacas. 

De acordo com o pesquisador gaúcho, 70% das mortes ocorrem por infarto, acidentes cerebrais - os AVC´s – e câncer. Desse total, as causas todas advêm de cinco pontos básicos que são: as emoções, a genética, o que comemos, o que bebemos e, finalmente, o que respiramos. 

Aristóteles tem uma frase célebre que “nós não somos somente o que pensamos, o que falamos, somos principalmente o que fazemos”. Sim, talvez somos o que fazemos para nós mesmos, como o que fazemos para nossas emoções. Qual o cuidado com nossa alimentação, se selecionamos o que bebemos, qual a qualidade do ar e a forma que respiramos? Claro, tudo isso são variáveis que estão ao nosso alcance, mas a genética, isso está escrito e ainda pouco ou nada se muda. É só aceitar a predisposição. 

Para Fernando Lucchese, portanto, saúde é bem estar em diversos pontos como físico, mental, psíquico, familiar, financeiro, profissional, ambiental e espiritual. Interessante que um médico, um cientista, além de todo esse rol de importância, coloque o espiritual como fonte de equilíbrio saudável. Atentemo-nos para o termo espiritualidade, não religiosidade. 

Mas a grande novidade não está nessas belas palavras do médico, do profissional, do pesquisador. Talvez lá no fundo já tínhamos clareza e até conhecimento sobre tais questões. Mas a grande novidade, de acordo com o Dr. Lucchese, vem de uma pesquisa da Stanford University, dos Estados Unidos. De acordo com ela, existem quatro fatores básicos para prolongar a existência, ou como alguns dizem, a vida. 

Vamos aos números então. O primeiro é assistência médica: SUS, plano de saúde, particular, enfim, aqui nesse ponto, a vida pode ser prolongada em 10%. Sim, 10%. Mas mais importante que a assistência médica, a genética pode contribuir com 17% para a longevidade. Isso não é interessante, pois às vezes podemos lutar contra algo que já trazemos conosco e que a ciência não tem como curar. 

O terceiro fator, de acordo com essa pesquisa da Stanford University, é o meio ambiente, o clima onde vivemos, convivemos, onde crescemos. Esse meio pode ser o ar que respiramos ou até mesmo a energia do clima, seja ele familiar, profissional e até social. O meio ambiente influencia 20% no prolongamento da vida. 

Mas o grande fator decisivo para que tenhamos uma vida mais longa é o estilo de vida, com 53%. Como vimos acima, o que comemos, o que bebemos, o que respiramos, o que pensamos. Enfim, nossos atos passados nos trouxeram e nos fizeram ser o que somos hoje. Para sermos diferentes, então, é necessário atitude a partir de hoje, e atitude que nos leve ao encontro da vida, mas da vida plena e abundante. 

Isso é assim para Lucchese e para mim. E você, o que pensa sobre viver mais e melhor?
Por: Beto Colombo

HISTÓRIAS DA VIZINHANÇA


1. A minha vizinha desapareceu há seis meses. No primeiro mês, estranhei a ausência: ela tinha o hábito de ficar à janela para ver quem passava --um hábito tipicamente lisboeta. Às vezes era eu: dizia "boa tarde", ela respondia com um aceno e pronto. Conversa acabada. No segundo mês, a janela continuava fechada. E no terceiro, e no quarto.

Ao quinto, reparei que o correio se acumulava --uma montanha de cartas que não cabiam mais na caixa postal. Considerando a idade, imaginei o inevitável: morreu, fez-se o funeral, eu não estava na cidade.

Acertei. Mas só parcialmente. Seis meses depois do desaparecimento, um cheiro estranho começou a empestear as escadarias do edifício. Pensou-se em tudo: cano de esgoto furado, inundação, fuga de gás. Ninguém imaginou que a mulher estava morta em casa, há seis meses. E que não houve familiar ou amigo que tenha indagado o seu destino.

Foram os bombeiros que removeram o corpo. O senhorio promete agora limpeza profunda. Ainda bem. Porque o cheiro, esse, continua: um cheiro de solidão, abandono e morte. Um outro vizinho, tapando o nariz, cruzou comigo no elevador e disse: "Esse cheiro é um castigo". Nunca escutei palavras tão sábias.

2. Deve a polícia informar o bairro quando existe um pedófilo por perto? O tema tem sido discutido em Portugal e os argumentos a favor são simples e simplórios: se existe alguém com cadastro nesse crime, as famílias têm o direito de saber para protegerem melhor as suas crianças.

O pensamento sempre me provocou horrores mil: publicitar o nome de alguém que já cumpriu pena por abuso sexual de menores é uma humilhação cruel e potencialmente perigosa, que só incita ao ódio e à violência.

A minha vizinha discorda: conhecer a ficha criminal do bairro inteiro deveria ser "um direito cívico". Depois aponta para as duas filhas --uma com 8 anos, a outra com 11-- e conclui: "Você não acha que eu tenho direito de saber?".

Olho para as meninas, que brincam na calçada. E então reparo que ambas imitam, no vestuário e no comportamento, as celebridades pop que passam na TV. Uma pose debochada e vulgar que deveria horrorizar os próprios pais.

Não horroriza. Depois da conversa sobre os pedófilos, a mãe me informa que a mais nova, com 8 anos, ganhou um concurso qualquer imitando a cantora Shakira.

Moral da história? Razão tem o filósofo Anthony O'Hear no ensaio "Plato's Children", que merecia edição no Brasil: o mundo moderno é paradoxal. Vive aterrorizado com a pedofilia. Convive tranquilamente com a sensualização obscena da infância.

3. Sou um incurável hipocondríaco. Citando os clássicos, nada do que é doença me é estranho. Já pensei em cursar medicina e selar a minha sabedoria acumulada com um diploma formal. Mas para quê?

As aulas seriam provavelmente redundantes para quem já leu todos os manuais da especialidade, em parte por já ter padecido de todas as doenças conhecidas pelo homem desde o início dos tempos.

E, além disso, não é a ausência de um diploma que me impede de exercer a minha arte. Os meus vizinhos, sempre que tombam com uma doença qualquer, batem à porta do dr. Coutinho em busca de cura.

Nunca os desiludi. Receito como posso --oralmente-- e depois é só vê-los, felizes e aliviados, de volta ao reino dos vivos.

Claro que nem todo mundo abençoa o meu labor. Alguns pessimistas dizem que essas brincadeiras podem acabar mal. E citam o caso Michael Jackson, envenenado pelo próprio médico.

Curiosamente, não lhes ocorre que o caso Michael Jackson ilustra o meu ponto, e não o deles: os médicos podem matar. A minha ficha está limpa (acho). E, falando no caso Jackson, quem ministra anestésicos para um insone crônico dormir?

Se o pobre Michael fosse meu vizinho, eu teria aconselhado um coquetel potente de ansiolíticos que o entregariam aos braços de Morfeu.

Por outro lado, existe uma vantagem suplementar em não ser médico, caso exista negligência grave (toc, toc, toc): quem não tem licença para praticar, também não tem licença para perder. 

Tenho o melhor dos dois mundos: o máximo de liberdade com o mínimo de responsabilidade. 

E a vizinhança agradece. Por: João Pereira Coutinho, Folha de SP

segunda-feira, 30 de julho de 2012

IDEOLOGIA DE PRIVADA


Quando eu morava num kibutz em Israel nos anos 80, num dos banheiros masculinos, estava escrito na porta, "fighting for peace is like fucking for virginity"(lutar pela paz é como trepar pela virgindade).

Gays sempre deixaram inscrições nas portas e paredes dos banheiros masculinos, afirmando seus desejos e dotes físicos. Quanto aos femininos, sempre foram objeto de mistério e desejo, afinal, ver mulheres sem roupa sempre foi um sonho de todo cara. Além do fato óbvio de que os órgãos excretores são os mesmos envolvidos no ato sexual. Claro, não apenas eles.

Qualquer iniciado em Freud vê algo de obviamente sexual na nossa relação com banheiros. Fantasias sexuais sempre encontraram nos banheiros um santuário para suas taras. E mais: formas diversas de perversões sexuais envolvendo funções excretoras sempre povoaram o universo das fantasias sexuais mais "heavy".

Talvez alguém ache que eu deva pedir perdão por usar uma expressão como "perversões sexuais" num mundo como o nosso, no qual um sujeito pode gostar de espancar e ser espancado, mas exige seu direito de cidadania "sado-maso". Mas não vou pedir perdão não, tá?

Como já disse antes, hoje em dia todo mundo quer ser "legal" e ninguém quer ser pecador. O cara gosta de transar com cães de grande porte, mas recicla lixo, anda de bike na praça Pan-Americana e come rúcula, e por isso ele é o que chamo de "sado-maso" sustentável, ou seja, "sado-maso" de boutique. Sade vomitaria nele, mas sem nenhum tesão.

Até pouco tempo atrás, isso era tudo que se podia imaginar em termos de metafísica de banheiro. Algo na fronteira do "trash" e do mistério. Imagine quantos meninos já sonharam em se esconder no banheiro das meninas para vê-las sem roupa. Uma "cheerleader" no banheiro é um clássico sonho de consumo.

Mas hoje, metafísica de banheiro é coisa "séria". A cidadania passa pela latrina: rosa ou azul? Logo vão inventar a ideia de que "direitos sanitários" não são apenas o direito a saneamento básico (rede de esgoto, boca de lobo, privadas e similares), mas o direito de invadir o banheiro alheio num movimento, talvez inspirado no MST (as Farc brasileiras), que podemos denominar MSB, "os sem-banheiro".

Há algum tempo que ouço frases (que acho bem bregas, aliás) como "na Europa não existe mais banheiro de homem e mulher". Toda pessoa que faz esse tipo de comparação entre Brasil e "o Primeiro Mundo" revela sua alma de vira-lata metido a chique, um dos piores tipos na galeria de comportamentos esteticamente ridículos. Viajo muito, para minha infelicidade, e continuo vendo banheiros divididos por sexo. Sei também que está na moda falar "gêneros" (sexo é construção social), mas eu que não acredito nisso, continuo falando "sexos".

Normalmente lá, quando não há separação, é porque você está num lugar "chiquinho-cabeça" (antros de mal-educados ideologicamente motivados) ou por miséria de banheiro mesmo. Aliás, quem diz que a Europa é Primeiro Mundo em banheiro é quem não conhece a Europa mesmo, porque lá muitos banheiros são horrorosamente imundos, quando não apenas uma fossa num cubículo.

Quem mais sofre com a invasão ideológica do banheiro alheio são as mulheres, que normalmente são bem preocupadas com privacidade neste assunto, a ponto de muitas vezes, desde pequenas, desenvolverem patologias intestinais ou urinárias devido ao hábito de "se reprimirem" em situações de privação de privacidade sanitária.

Proponho fiscais nos banheiros femininos para assegurarem que os invasores farão xixi sentados para não sujarem tudo.

Vivemos em tempos ridículos (tempos pautados por um acúmulo de conforto e por isso todo mundo fica meio besta): daqui a pouco vão criar editais especiais para fomento cultural e "científico" (o povo da teoria de gênero aplicada à privadas) a favor do MSB, "os sem-banheiro".

E o incrível é que ninguém diz de uma vez que esse papo de crítica de gênero aplicada a privadas é papo furado de quem no fundo quer justificar ideologicamente seus pequeno sintomas, e não respeita a privacidade alheia, principalmente das mulheres.
Por: Luiz Felipe Pondé, Folha de SP

domingo, 29 de julho de 2012

ARISTÓTELES E HIGGS: UMA PARÁBOLA ETÉREA


Aristóteles e Peter Higgs entram num bar. Higgs, como sempre, pede o seu uísque de puro malte. Aristóteles, fiel às suas raízes, fica com um copo de vinho.

"Então, ouvi dizer que finalmente encontraram," diz Aristóteles, animado.

"É, demorou, mas parece que sim," responde Higgs, todo sorridente. "Você acha que 40 anos é muito tempo? Eu esperei 23 séculos!" "Como é?", pergunta Higgs, atônito. "Você não acha que..."

"Claro que acho!", corta Aristóteles. "Você chama de campo, eu de éter. No final dá no mesmo, não?"

"De jeito nenhum!", responde Higgs, furioso. "O seu éter é inventado. Eu calculei, entende? Fiz previsões concretas."

"Vocês cientistas e suas previsões...", diz Aristóteles. "Basta ter imaginação e um bom olho. Você não acha que o meu éter é uma excelente explicação para o que ocorre nos céus?"

"Talvez tenha sido há 2.000 anos. Mas tudo mudou após Galileu e Kepler", diz Higgs.

Aristóteles olha para Higgs com desprezo. "Você está se referindo a esse 'método' de vocês, certo?"

"O método científico, para ser preciso", responde Higgs, orgulhoso. "É a noção de que uma hipótese precisa ser validada por experimentos para que seja aceita como explicação significativa de como funciona o mundo."

"Significativa? A minha filosofia foi muito mais significativa para mais gente e por muito mais tempo do que sua ciência e o seu método."

"É verdade, Aristóteles, suas ideias inspiraram muita gente por muitos séculos. Mas ser significativo não significa estar correto."

"E como você sabe o que é certo ou errado?", rebate Aristóteles. "O que você acha que está certo hoje pode ser considerado errado amanhã."

"Tem razão, a ciência não é infalível. Mas é o melhor método que temos para aprender como o mundo funciona", responde Higgs.

"Nos meus tempos bastava ser convincente", reflete Aristóteles com nostalgia. "Se tinha um bom argumento e sabia defendê-lo, dava tudo certo", continuou.

"As pessoas acreditavam em você, mas não era fácil. A competição era intensa!" "Posso imaginar", responde Higgs.

"Ainda é difícil. A diferença é que argumentos não são suficientes. Ideias têm que ser testadas. Por isso a descoberta do bóson de Higgs é tão importante."

"É, pode ser. Mas no fundo é só um outro éter", provoca Aristóteles.

"Um éter bem diferente do seu", responde Higgs. "E por quê?", pergunta Aristóteles. "Pra começar, o campo de Higgs interage com a matéria comum. O seu éter não interage com nada."

"Claro que não! Era perfeito e eterno", diz Aristóteles.

"Nada é eterno", rebate Higgs.

"Pelo seu método, a menos que você tenha um experimento que dure uma eternidade, é impossível provar isso!" afirma Aristóteles.

"Touché, você me pegou", admite Higgs. "Não podemos saber tudo." "Exato", diz Aristóteles. "E é aí que fica divertido, quando a certeza acaba."

"Parabéns pela descoberta do seu éter", diz Aristóteles.

"Existem muitos tipos de éter", afirma Higgs. "E muitos tipos de bósons de Higgs", retruca Aristóteles.

"É, vamos ter que continuar a busca." "E o que há de melhor?", completa Aristóteles, tomando um gole. Por Marcelo Gleiser Folha de S Paulo

quarta-feira, 25 de julho de 2012

LUZ, CÂMERA, ESCULHAMBAÇÃO


Meu avô de Itaparica, o inderrotável Coronel Ubaldo Osório, não era muito dado a novas tecnologias e à modernidade em geral. Jamais tocou em nada elétrico, inclusive interruptores e pilhas. Quando queria acender a luz, chamava alguém e mantinha uma distância prudente do procedimento. Tampouco conheceu televisão, recusava-se. A gente explicava a ele o que era, com pormenores tão fartos quanto o que julgávamos necessário para convencê-lo, mas não adiantava. Ele ouvia tudo por trás de um sorriso indecifrável, assentia com a cabeça e periodicamente repetia "creio, creio", mas, assim que alguém ligava o aparelho, desviava o rosto e se retirava. "Mais tarde eu vejo", despedia-se com um aceno de costas.

O único remédio que admitia em sua presença era leite de magnésia Phillips, assim mesmo somente para olhar, enquanto passava um raro mal-estar. Acho que ele concluiu que, depois de bastante olhado, o leite de magnésia fazia efeito sem que fosse necessário ingeri-lo. Considerava injeção um castigo severo e, depois que as vitaminas começaram a ser muito divulgadas, diz o povo que, quando queria justiçar alguma malfeitoria, apontava o culpado a um preposto e determinava: "Dê uma injeção de vitamina B nesse infeliz." Dizem também que não se apiedava diante das súplicas dos sentenciados à injeção de vitamina, enquanto eram arrastados para o patíbulo, na saleta junto à cozinha, onde o temido carcereiro Joaquim Ovo Grande já estava fervendo a seringa. (Naquele tempo, as seringas eram de vidro e esterilizadas em água fervente, vinha tudo num estojinho, sério mesmo.)

- Amoleça a bunda, senão vai ser pior! - dizia Ovo Grande, de sorriso viperino, olhos faiscantes e agulha em riste, numa cena a que nunca assisti, mas que não devia ser para espíritos fracos.

- Sim, mas acabo fazendo a biografia de meu avô e não chego ao assunto, que, pelo menos quando me sentei faz pouco para escrever, tinha a ver com fotografia. O coronel não evitava codaques, nome por que chamava indistintamente qualquer máquina fotográfica, mas só admitia ser fotografado se houvesse a preparação que ele considerava essencial. Nada do que então se chamava "instantâneo". Ele fazia a barba, tomava banho, vestia paletó e gravata, botava perfume e posava imóvel como uma rocha, diante da codaque. Daí a um mês, mais ou menos, as fotos voltavam, reveladas e copiadas, de um laboratório da cidade - e sua chegada era uma espécie de festa, que reunia parentes, amigos e correligionários.

Se o coronel estivesse vivo hoje, acho que acabaria tomando o leite de magnésia. Aproxima-se o dia em que seremos filmados, fotografados e monitorados em absolutamente todas as circunstâncias, inclusive no banheiro. Claro, reconheço que deliro um pouco, mas somente um pouco, quando imagino que, num futuro em que a água será escassa, cada morador terá cotas para todo tipo de uso da água e sofrerá penalidades diversas, se ultrapassá-las. Facilmente, a monitorização saberia quantas vezes e com que finalidade o freguês usou o vaso, estatística talvez considerada indispensável para a formulação de políticas sanitárias e de saneamento básico. Não saberemos como teremos vivido sem isso, até então.

Entrando em elevadores, dei para perceber gente olhando para as câmeras e se ajeitando como se fosse entrar no ar dentro de alguns instantes. Algumas moças chegam mesmo a passar a mão na nuca e ajeitar faceiramente os cabelos com um movimento de cabeça, como nos comerciais de xampus. Foi-se a manobra, tão praticada em gerações pretéritas, em que, tendo-se a sorte de encontrar no elevador a dadivosa e adrede acumpliciada vizinha do 703, apertava-se o botão de emergência, parava-se a cabine entre dois andares e davam-se os dois a um furtivo e inesquecível pecadilho da carne. O clipe já estaria no YouTube assim que ambos chegassem em casa, com dezenas de "visualizações", inclusive do marido e da família da vizinha.

Antigamente, a gente só tinha que dizer "que gracinha", "que beleza" ou "muito interessante" umas duas ou três vezes por amigo de boteco, no máximo. Era quando ele mostrava a foto da última neta, o retrato de toda a família junta ou um documento velho. Hoje a gente assiste a várias dezenas de clipes de celulares e sucessões de slides por dia, enquanto todo mundo fotografa e filma todo mundo, o tempo todo.

E outro dia, num noticiário de tevê, apareceu a notícia de um sequestro relâmpago em que um dos sequestradores filmou tudo com seu celular. Fico querendo adivinhar qual a razão para isso e me ocorre que, em muitos criminosos, suas ações talvez despertem um certo orgulho autoral e eles agora têm muitos recursos para documentar seus feitos para a História. De qualquer maneira, presenciamos o primeiro making of de um ato criminoso e espero somente que algum filósofo francês não saiba disso e publique um livro designando essa atividade como uma nova forma de arte, para que depois um porreta de uma agência governamental qualquer ache isso científico e premie com absoluta impunidade qualquer assalto, ou semelhantes, para o qual o seu autor haja preparado um making of de qualidade, gerando empregos e estimulando a arte. É bom viver onde o seguinte diálogo pode ocorrer:

- Então, como se foi de assalto hoje?

- Ah, legal. Só faltou me levar as calças, mas em compensação a crítica considera esse cara o melhor diretor de filmagem de assalto do Brasil, tablete de 12 megapixels, tudo muito profissional. Desta vez eu saio no Fantástico com certeza. Por: João Ubaldo Ribeiro O Estado de S paulo

terça-feira, 24 de julho de 2012

A DIGNIDADE DOS FEIOS


ERNEST BORGNINE morreu há três semanas e nem uma palavra minha nesta Folha. Que injustiça: para mim e para Borgnine, um dos meus atores de eleição.

Sim, a carreira é longa e irregular, com grandes momentos ("A um Passo da Eternidade", de Fred Zinnemann) e péssimos momentos (o pastelão bíblico "Barrabás"). Sem falar dos momentos verdadeiramente sofríveis, quase todos nas últimas décadas -e quase todos, ironicamente, filmes-catástrofe.

Mas, para a posteridade, ficará a sua composição em "Marty", obra de Delbert Mann que valeu o Oscar de melhor ator em 1955. Nada mais justo: "Marty" é um tratado precioso sobre a dignidade dos feios e a coragem da individualidade humana.

Para começar, o mundo é dos belos. Negar para quê? Faz parte da retórica bem pensante dizer que a beleza não é fundamental. Há quem fale até em "beleza interior" para compensar o estrago e atribuir uma espécie de indenização ética ao sujeito.

Não vale a pena mascarar a verdade ou confundir as verdades: a "beleza interior" pode ser relevante, e até mais relevante, do que a superficialidade da carne.

Mas é para essa superficialidade que se olha primeiro -ou que se rejeita primeiro. A ideia pode não ser agradável para quem pensa que todas as desvantagens da vida são produto de uma "construção social" defeituosa.

Infelizmente, a realidade não se ajusta a fantasias. A natureza é um cassino. E nem tudo obedece aos caprichos igualitários do nosso tempo: alguns foram bafejados pelo escopo da beleza -e outros, simplesmente, não.

Marty não foi: ele é gordo e feio. E nem sequer tem fortuna pessoal para cumprir o demolidor aforismo de Nelson Rodrigues sobre o assunto ("Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro").

Aos 34 anos, Marty é um solitário. E todos lhe perguntam, ao balcão do açougue onde trabalha: "Quando casas, Marty?". Pior: todos cobram esse feito, como se existisse um prazer perverso na humilhação perversa dos feios.

Marty escuta e sofre: em silêncio. Os irmãos arrumaram a vida: têm filhos, mulheres, famílias. Casas nos subúrbios.

Ele, Marty, continua a morar com a mãe. Que também lhe pergunta: "Quando casas, Marty?".
De vez em quando, ele sai com os amigos aos sábados à noite. Para ver o mercado e testar a sua baixa cotação na praça. Mas Marty está cansado de procurar companhia. Porque está cansado da rejeição.

"Marty" começa por ser uma pequena pérola sobre esse grande tabu: a rejeição dos feios, a angústia que existe nessa rejeição, e o cansaço de quem tentou uma vez, e outra, e outra ainda, para receber apenas desprezo ou repulsa de volta.

Poucos filmes captaram de forma tão digna e pungente a tristeza da feiura.

Mas "Marty" vai mais longe e mostra como a vida adulta é sobretudo definida pelas escolhas que fazemos: escolhas nossas, radicalmente nossas, mas tantas vezes ensombradas pela opinião dos outros.

Isso sucede quando Marty conhece finalmente um par. Clara (Betsy Blair, no filme) é uma "outsider" como ele -feições modestas, igual desesperança no afeto alheio. Mas é doce, atenta e presente, alguém com quem ele fala sem parar na primeira noite.

Marty encontrou alguém. Marty sabe que encontrou alguém. Mas o exército dos solitários inicia as suas operações: a mãe viúva que teme o abandono do filho, os amigos celibatários que invejam a sorte de um membro do clube, todos eles começam a encontrar defeitos na escolha de Marty. E a dar palpites ou sugestões para o desviar da sua rota.

Marty fica confuso, medroso, melindrado. Mas é quando se encontra novamente só que a epifania acontece: a vida só lhe pertence a ele, não ao coro grego que pretende determinar o seu destino.

Moral da história?

Enganam-se os que pensam que a afirmação da individualidade é sempre um ato heroico e prometeico, como nas óperas de Wagner ou nos textos de Nietzsche.

Grande parte da nossa individualidade joga-se todos os dias nas pequenas decisões anônimas que tomamos. Joga-se, no fundo, nesses momentos em que pesamos a nossa covardia e a nossa coragem.

E decidimos depois seguir em frente.
Por: João Pereira Coutinho, Folha de SP

segunda-feira, 23 de julho de 2012

DO PESCOÇO PARA BAIXO

RIO DE JANEIRO - Na quinta-feira, ativistas ucranianas tiraram a roupa numa praça de Moscou, protestando contra o preço do gás que a Rússia vende à Ucrânia. No mesmo dia, em Oviedo, Espanha, oito bombeiros, usando apenas capacete e botas, protestaram contra as medidas de austeridade impostas pelo governo. Por via das dúvidas, mostraram só os bumbuns -o nu frontal talvez diminuísse a solenidade do ato. 

Em 2007, nos Alpes, 600 suíços tiraram a roupa para alertar contra o derretimento de uma geleira. Em 2008, argentinas vegetarianas se despiram contra o bife de chorizo. Em 2009, alemãs fizeram o mesmo contra a matança das focas. Em 2011, no Piauí, uma professora subiu num trio elétrico e radicalizou: ficou pelada contra o capitalismo. 

Todos os dias, em alguma parte, alguém fica nu em protesto contra alguma coisa. A causa é sempre meritória: protesta-se contra a energia nuclear, o aquecimento, o desmatamento, a inflação, a fome, os políticos, ou pede-se a retirada de tropas americanas ou de invasores de territórios indígenas. Previamente informados, os fotógrafos acorrem e, horas depois, as imagens estão em todos os jornais, TVs e on-lines. Mas, como mostrar as partes ficou carne de vaca e ninguém vai nem sequer preso por isso, é duvidoso que o gesto ainda converta as grandes massas para a causa em questão. 

Em 2010, houve uma linda manifestação: a da mulher que, com o rosto coberto por uma burca, desfilou seu corpo nu, com grande classe e dignidade, por uma praça de Barcelona, em protesto contra a execução por apedrejamento da iraniana Sakineh, acusada de adultério. Não era erótico nem político, só bonito. 

A confirmar a frase de Nelson Rodrigues, segundo a qual "só o rosto é imoral -do pescoço para baixo, podíamos andar nus". 

Por: Rui Castro Folha de SP 


O CANTO DAS SEREIAS


Querido leitor e querida leitora, rogo que você esteja alegre e feliz. Hoje volto novamente à mitologia grega, fonte de inspiração e reflexão tão oportunas quanto atuais. Falo do canto das sereias.
Conta a mitologia grega que em seu regresso de Tróia ao seu Reino Ítaca, Ulisses enfrenta diversas provações. Uma delas foi a passagem pela costa da Ilha das Sereias. Aqui, as sereias eram ninfas marinhas que tinham o poder de enfeitiçar com o seu canto, todos que as ouvissem de modo que os infortunados marinheiros sentiam-se irresistivelmente impelidos a se atirarem ao mar, onde encontravam a morte. 

Aconselhado por Cirne, Ulisses tampou com cera os ouvidos de seus marinheiros, de modo que eles não pudessem ouvir o canto e pediu que o amarrassem no mastro do navio, instruindo seus homens para não libertá-lo até passar pela Ilha das Sereias. Assim o fez e, agindo dessa forma, passaram sãos e salvos. Saíram do outro lado ilesos.

Trazendo essa passagem para o nosso mundo, para o mundo real, enfim, procurando adaptá-la ao universo empresarial, quantos ensinamentos podemos tirar. Hoje em dia, as organizações com filosofia e cultura fazem questão de preencher as vagas abertas com o crescimento da empresa, sempre com profissionais de carreira. Pessoas que iniciaram no chão de fábrica, como telefonistas ou copeiras, mas que, com seu mérito, se aperfeiçoam teórica e praticamente e, com o tempo, se tornam vendedores e vendedoras, gerente e até diretores. 

Depois de anos numa doação de mão dupla, profissionais e empresa fazem uma parceria de crescimento sedimentando uma relação ganha-ganha. Confesso que me orgulho e fico honrado quando profissionais deixam nossa empresa de forma aberta e sincera, olho no olho. Eles vão alçar novos voos, vão caminhar diferentes caminhos, fazer suas histórias. Que bonito!

Mas, às vezes, inadvertidamente, alguns desses profissionais são fisgados pelo canto da sereia que, com seu canto, enfeitiçam e cegam. Despertados por promessas e ganhos vultosos e fáceis, alguns acabam se deixando levar e comprometem uma vida de coerência, entregando-se a uma aventura arriscada.

Ulisses, nessa passagem, pode escolher entre ouvir ou não ouvir o canto das sereias e ele foi dono de seus atos, ele pode optar e escolheu ouvir. Essa, talvez seja uma boa dica para nós. Temos o livre arbítrio, podemos tapar nossos ouvidos na hora que quisermos, ou até nos amarrar aos mastros da vida para não ser tentados pelas armadilhas do canto do ganho fácil.

Nestas horas me vem à mente a história de um amigo, o Pedro. Ele tem deficiência auditiva grave e usa aparelho para ter um contato com os sons externos. Mas quando não quer ouvir a reclamação que também vem de fora, ele não exita, desliga o aparelho.

É assim como o mundo me parece hoje. E você, qual a sua estratégia para enfrentar o canto das sereias? Por: Beto Colombo


NÊMESIS



Nêmesis era a deusa grega da vingança. Ela tinha especial prazer em torturar heróis que caíam em "hybris" (desmedida) e pensavam ser outra coisa que mortais sob o domínio dos deuses e das moiras, senhoras divinas quase cegas que teciam o destino de todos.

Fosse eu religioso, minha espiritualidade seria a trágica dos gregos, apesar da grandiosa beleza do sistema bíblico. Não que eu ache "legal" o politeísmo, mas porque eu acho que a visão de mundo dos trágicos é a melhor. A piedade trágica, aquela despertada pela empatia entre nós e os infelizes heróis do teatro grego, é que levou Nelson Rodrigues a dizer que devíamos assistir ao teatro de joelhos.

A acusação feita aos trágicos é que eles negam o sentido último da vida, porque os deuses gregos eram uns loucos apaixonados e sem projeto moral para o mundo (o destino é sempre cego). Isso é verdade. O Deus de Israel, que para os cristãos encarnou no judeu Jesus, tem um projeto moral para o mundo, mesmo que não saibamos ao certo qual é. E isso nos acalma.

A tragédia marcou a cultura de forma profunda, os exemplos são inúmeros: Shakespeare, Gracian, Schopenhauer, Nietzsche, Camus, Cioran, Nelson Rodrigues, Philip Roth.

É desse último que quero falar hoje. Especificamente de seu livro mais recente, "Nêmesis", a história do jovem professor de educação física Bucky Cantor atravessando o grande surto de pólio nos EUA no verão de 1944.

Os heróis de Roth sempre são esmagados entre a vida pessoal, os vínculos afetivos e ideias, e grandes processos históricos ou "cósmicos" que têm um efeito aleatório na vida deles --e sempre destrutivo.

Como exemplos históricos, vemos a Guerra da Coreia, o macarthismo versus comunismo nos anos 1950 nos EUA, a contracultura, a canalhice do politicamente correto nas universidades americanas. Como exemplo cósmico, o envelhecimento, a perda das funções sexuais ou de memória, as pragas (como a pólio em "Nêmesis").

No caso desse romance, a praga da pólio ocupa o lugar de pragas atávicas que sempre significaram para nossos ancestrais a fúria dos deuses. E é contra Deus que Cantor se revoltará.
Mas Roth é um grande escritor, e a revolta do jovem Cantor será teologicamente sofisticada, e não mero ateísmo militante, porque o ateísmo militante é sempre infantil.

O cruzamento entre as intenções pessoais e o destino, histórico ou cósmico, dá o efeito de esmagamento e negação de projeto moral, na medida em que os heróis de Roth não conseguem discernir qualquer sentido que não seja a cegueira terrível do acaso ou o "terror da contingência", tal como diz o narrador de "Nêmesis".

A expressão "terror da contingência" é comum nos textos do historiador das religiões Mircea Eliade para descrever o que nos moveria ao desejo religioso de um sentido maior. Tememos o acaso porque ele nega qualquer providência sábia por trás das coisas. O acaso é cego.

Para Cantor, Deus é um "demiurgo". Essa expressão era comum em alguns textos heréticos do início do cristianismo (textos gnósticos) e significava que Deus é mal. E se Deus for mal, não há qualquer esperança.

Mas o narrador do romance pensa diferente. Sua hipótese sobre a vida e as decisões que Cantor tomará é mais psicanalítica (ele sofreria de uma "neurose de responsabilidade"), mas nem por isso menos teológica. Para o narrador, Cantor é excessivo em julgar a si mesmo responsável pela desgraça que destrói seus alunos. E por isso sofrerá, porque nenhum homem pode se julgar senhor do destino, já que esse não nos pertence.

Como a deusa em questão é a da vingança, Nêmesis, a desmedida de Cantor em se julgar responsável pelo destino de seus alunos será vista de outra forma: Cantor se julga um justo e um dedicado professor e, por isso, pagará um preço alto pela autoimagem de homem reto. Aí está sua desmedida.

Cantor é o Jó de Roth (o judeu Levov, protagonista de "Pastoral Americana", é outro Jó de Roth): Cantor e Jó se julgam justos. Mas Cantor é um Jó que não encontra, ao final, a piedade de Deus, mas a vingança de uma deusa cega à misericórdia. 
Por: Luis Felipe Pondé    Folha de SP

domingo, 22 de julho de 2012

DOENTE, NORMAL OU EU?


Uma das discussões mais presentes no cotidiano das pessoas é sobre o que é a doença. Pode-se procurar a definição em diversos lugares, inclusive na internet. Doença é, em resumo, um distúrbio das funções de um órgão, da psique ou de um organismo. Então eu posso ter um coração doente, sofrer de uma doença mental ou sofrer de uma doença física. Parece simples, mas não é. Quando olho apenas para um órgão e percebo que ele tem um distúrbio, por exemplo, meu coração funciona incorretamente e eu tenho pressão alta, pode-se dizer que tenho um órgão doente. Quando eu sofro de uma mania repetitiva, faço várias vezes a mesma coisa, nesse caso posso ser diagnosticado como transtorno obsessivo compulsivo. Neste caso, considera-se que estou com uma doença psíquica. Quando tenho um distúrbio sistêmico no meu corpo, como uma infecção, meu corpo está doente. 

O outro lado da discussão é sobre a normalidade. Não há como falar em doença sem falar em normalidade. A definição de normal encontrada em diversos materiais tem a ver com padrão, ou seja, é normal aquilo que segue um determinado padrão. Esse padrão pode ser considerado algo determinado física, psíquica ou socialmente. Na questão física é um tanto fácil dizer o que é doente ou normal, isso do ponto de vista dos padrões que a medicina desenvolveu. O mesmo acontece para a questão psíquica, onde a normalidade é uma questão de a pessoa combinar ou não com o meio onde se encontra. Já na questão social a doença ser normal é seguir um padrão, ser igual ou parecido com as outras pessoas que nos cercam. O diferente, em qualquer aspecto que seja é ou pode ser considerado anormal, geralmente entendido como doente. 

Na Filosofia Clinica estes dois termos nos passam longe dos olhos, ou seja, não sei o que é normalidade, muito menos o que é doença. Digo pelas minhas palavras, entre o normal e o anormal estamos cada um de nós. Pode-se dizer que entre a normalidade e a doença está você, eu e todas as outras pessoas. Quando uma pessoa vem para a terapia não a conheço, não tenho como saber o que é ou não normal a ela. Então, o problema não está em definir ou não a doença ou a normalidade, mas a maneira como se constrói essa definição. 

Pense em você mesmo, nas suas manias, nos seus hábitos. Se eu fosse acompanhar você durante um dia, será que acharia normal tudo o que você faz? É possível achar normal uma pessoa que sai para trabalhar às sete horas da manhã, chega às onze da noite e sonha com dias melhores? É possível achar uma pessoa normal aquela que compra um carro que vale mais do que a casa em que vive? Eu, você e qualquer outra pessoa temos nossas esquisitices, temos nossa própria normalidade, somos normais do nosso jeito. Ser normal do meu jeito significa entender que algumas coisas fazem parte do meu padrão, pensamentos, emoções, sensações, buscas. 

Da mesma forma que sou normal do meu jeito, também fico doente do meu jeito. Minhas doenças podem ser normalidades para muitas pessoas, algumas pessoas realmente estão doentes quando estiverem sentadas na frente da televisão assistindo novela ao invés de ler um livro. Algumas pessoas estarão doentes quando não estiverem trabalhando, outras quando brigarem com os filhos, perderem a mãe. São doenças próprias de cada um, entre a normalidade e a doença está cada um de nós, normal e doente, do seu jeito.

Rosemiro A. Sefstrom


PONTO MAIS ALTO E GELADO DO SUL DO BRASIL

Conheça a rotina dos militares que vivem no ponto mais alto e gelado do Sul do Brasil

Soldados vivem no Morro da Igreja, em Bom Jardim da Serra, a 1,8 mil metros de altitude



O sol nasce com o sargento Wellington Theodoro de prontidãoFoto: Alvarélio Kurossu / Agencia RBS
Danilo Duarte
danilo.duarte@diario.com.br

Um cenário belíssimo, de encher os olhos, com chance de neve ou ao menos de congelamento da água, principalmente no inverno, é onde trabalha o 3º Sargento Wellington dos Santos Theodoro, de 24 anos. O Morro da Igreja, em Bom Jardim da Serra, na Serra catarinense, a 1.822 metros de altitude, é o ponto mais alto e gelado habitado no Sul do Brasil.

No local, trabalham 43 militares em um destacamento da Aeronáutica que mantém dois radares monitorando a rota dos aviões e outro registrando as condições climáticas no Estado. A rotina deles inclui manter e monitorar os equipamentos e ainda aprender a conviver com o tempo adverso, sobretudo o frio.

Militar que atua como técnico de manutenção, Theodoro é um paulista que começou a servir no Morro da Igreja em dezembro de 2008. Desde então, ele é um dos responsáveis por prestar atenção nas rotas de aviões que cruzam o espaço áereo do Sul do Brasil. Quando entra para o serviço do dia, ele faz a vistoria de sete equipamentos, incluindo um radar meteorólogico que está entre os mais modernos do Brasil.

Theodoro também assegura a transmissão do sinal de rádio para que pilotos e controladores de voo possam se comunicar graças às torres instaladas no alto do morro. A localização das aeronaves é transmitida para o Controle Integrado de Dados e Controle do Tráfego Aéreo (Cindacta II), sediado em Curitiba. E em meio a estas tarefas, o militar tem de suportar o clima no local.

— A gente procura amenizar a sensação usando roupas especiais, calçados térmicos e aquecedores nas instalações, mas ninguém consegue se habituar muito com o frio que faz aqui — confindencia ele, entre uma olhada e outra nas telas de computadores instalados no terceiro andar do prédio principal do destacamento.

Confira o vídeo com imagens do Morro da Igreja

A convivência com as temperaturas sempre perto ou até abaixo de 0ºC durante o outono e o inverno, o vento que parece querer cortar a pele e o quase completo isolamento fazem do Morro da Igreja um lugar pitoresco. Embora contemplar a natureza e poder ver a neve sejam dois motivos fortes para trabalhar na instalação militar, aprender a suportar as condições meteorológicas é uma luta diária para os únicos seres humanos a frequentar o topo do Morro da Igreja diariamente.




1º Tenente Sérgio Paulo Rocha, comandante do destacamento, enfrentou ventos de 100 Km/h semana passada
Foto: Alvarélio Kurossu/Agência RBS
Até 12ºC mais frio
A batalha de enfrentar a adversidade térmica no Morro da Igreja também é travada por gente como o soldado Robson Stange, 22 anos, que presta serviço militar há três anos no destacamento como motorista.

Apesar de ter nascido na cidade de Urubici, onde fica o acesso ao Morro da Igreja, ele conta que a diferença de temperatura em relação aos pés da montanha é muito grande.

— Principalmente quando está ventando muito. Lá embaixo até é gelado, mas nem tem como comparar.

De fato, os ventos são um problema para habitar o cume do morro. De acordo com o 1o Tenente Sérgio Paulo Rocha, comandante do destacamento, todos os dias há ventos de pelo menos 50 Km/h, mas que chegaram a 100 Km/h há poucas semanas. Junte a isso a altitude em que fica a instalação e prepare-se para sentir as pontas dos dedos de pés e mãos mais geladas, assim como o nariz e os lábios.

— A altitude do Morro da Igreja corresponde a cerca de 5 mil pés na escala da Aeronáutica. A estimativa é que a temperatura diminui 2ºC a cada 1 mil. pés. Ou seja: a temperatura no alto é de pelo menos 12ºC a menos em relação ao nível do mar.




Entre as jornadas de turno, os militares dormem em alojamentos montados no topo do morro
Foto: Alvarélio Kurossu/Agência RBS

Quando a noite cai, o frio aperta ainda mais

Durante o dia e em períodos com poucas nuvens, aumenta a sensação de calor e as temperaturas ficam agradáveis, mesmo durante o inverno. Mas basta o fim de tarde se aproximar para que tudo mude.

O horizonte ganha tons alaranjados por onde o sol se põe e acinzentados no lado oposto. A pele começa a arrepiar, as extremidades do corpo reclamam por estarem desprotegidas e o rosto assume um tom de vermelhidão. À noite, tudo ganha um novo contorno: quem presta serviço administrativo se prepara para descer e ir para casa; as lebres e os graxains — espécie de mamífero parecido com a raposa — se sentem à vontade para circular no pátio e farejar o rastro de comida; Na Vila Militar, ficam apenas cinco de plantão.



Soldado Mailoe enfrenta o frio para fazer rondas durante a noite
Foto: Alvarélio Kurossu/Agência RBS

Lanternas em punho, três militares fazem a ronda noturna cobrindo toda a área do destacamento. São cerca de dois quilômetros em que o facho da luz artificial ajuda a perceber se há algo estranho no local. Na noite em que o DC acompanhou a rotina destes homens, o trabalho foi feito à pé, mas nem sempre é assim.

— Quando o frio é muito intenso, fazemos o deslocamento com um carro, mas usamos uma roupa que suporta temperaturas polares e botas canadenses que têm isolamento térmico e — diz o sargento Theodoro.
Até hoje, poucas ocorrências foram registradas. A mais recente foi no ano passado, quando dois homens e seus filhos faziam uma trilha contornando o terreno militar em direção à Pedra Furada e acabaram acampando. Os quatro tiveram que explicar o caso à Polícia Civil.



Marco da divisa entre os três municípios
Foto: Alvarélio Kurossu/Agência RBS
Um morro entre três cidades

O Destacamento funciona no alto do Morro da Igreja há 25 anos e o acesso é uma estrada construída pela Aeronáutica para garantir o acesso de militares. Ao longo do percurso, feito de muitas curvas e uma subida não muito íngreme de 900 metros, a vista vai variando de mata fechada até o platô de formações rochosas vizinhas. Dentro do terreno há um marco que mostra o ponto de encontro entre Bom Jardim da Serra, Urubici e Orleans. Quase no portão de entrada, a vista para a Pedra Furada atrai todas as semanas centenas de turistas.

— Apesar de ser feita para uso da Aeronáutica, a possibilidade de ver a Pedra Furada e a sequência de vales tem criado um problema que é o excesso de veículos na rodovia. Para resolver isto, estamos projetando para estar pronta até o inverno do próximo ano uma reforma no espaço, criando a capacidade de absorver até 30 carros e quatro ônibus estacionados ao mesmo tempo, além de criar uma área de retorno, que hoje não existe — explica o comandante Rocha.

Ao abrir as cortianas ele vê, todos os dias, a paisagem que é objeto de desejo de muitos turistas.
DIÁRIO CATARINENSE

SEARA SC, TERRA DAS BORBOLETAS


Museu na região Oeste reúne a maior coleção de insetos da America Latina

Sozinho, o pesquisador Fritz Plaumann ajudou a trasnformar Seara na Terra das Borboletas



Museu na região Oeste reúne a maior coleção de insetos da America Latina Sirli Freitas/Agencia RBS
Borboleta Morpho anaxibia mede 10 centimetros e virou símbolo na cidade de SearaFoto: Sirli Freitas / Agencia RBS
Sozinho, Fritz Plaumann, provocou uma pequena revolução. Ajudou a trasnformar Seara, município do Oeste de SC, na Terra das Borboletas. A coleção invejável tem 80 mil insetos — a maior da América Latina. No museu montado na casa construída em estilo alemão, 95% das espécies são da região do Alto Uruguai. Motivo suficiente para atrair curiosos de todos os cantos e despertar interesse de professores da Europa e professores japoneses.

Há 100 anos, nascia um homem que transformou Seara, no Oeste de SC, na Terra das Borboletas. Graças a Fritz Plaumann, milhares de alunos, professores da Europa, cientistas do Japão e também curiosos vão anualmente até o distrito de Nova Teutônia para ver o maior museu Entomológico da América Latina.

É até difícil acreditar que um único homem é o responsável por uma coleção de 80 mil insetos. Se ele coletasse apenas, identificasse e catalogasse um inseto por dia, levaria 219 anos para montar a coleção.

A missão foi ainda mais difícil: Plaumann começou tudo num ambiente inóspito, de mata virgem, que passou a ser desbravado no início do século 20. Isso sem apoio de órgãos governamentais ou centros de pesquisa. A rede elétrica só chegou em Nova Teutônia na década de 1970. O asfalto, só em março do ano passado.

O distrito onde está localizado o museu ainda guarda traços da arquitetura da colonização alemã. Ainda este em pé uma casa de 1925, construída um ano após a chegada da família Plaumann a Seara. Há ainda um antigo hotel que virou museu e guarda objetos das famílias de imigrantes. Lá, dá pra entender um pouco como era a realidade vivida pelo jovem cientista.

Cerca de 95% dos exemplares são do Alto Uruguai Catarinense. Ainda é fácil observar as borboletas que encantaram Fritz Plaumann fazendo voos imprevisíveis em volta do museu. Mas muitas espécies só podemser observadas dentro do casarão. Há mosaicos de cores e estampas que poderiam inspirar muitos estilistas.Há borboletas de dois centímetros a até 11 centímetros de envergadura.

Uma dos exemplares mais famosos é a Morpho anaxibia. O macho é todo azul mas a fêmea, para se tornar mais atraente, ganhou tons em preto e amarelo na borda das asas. Ela virou uma espécie de símbolo de Seara.

Símbolo espalhado por toda a cidade

Dentro do museu, ela parece imóvel e delicada. Mas ganhou o gigantismo e a robustez de concreto nas paradas de ônibus do município. Também transformou-se em metal nas placas indicativas das ruas. Há até lembrancinhas em crochê inspiradas no formoso inseto.

Tudo em Nova Teutônia lembra borboleta. Há esculturas em madeira, enfeites de plástico, adesivos e casulos. Até o túmulo de Fritz Plaumann, que fica próximo ao museu, tem uma borboleta em granito.

Os gregos acreditavam que, quando uma pessoa morria, seu espírito saía do corpo em forma de uma borboleta. Talvez por isso ela seja símbolo de renascimento. Assim foi com o trabalho de Fritz Plaumann. As borboletas sempre estiveram em Nova Teutônia. Mas se não fosse Fritz Plaumann, dificilmente as pessoas iriam até lá para vê-las.

Muito menos para observar besouros, percevejos, abelhas, vespas, formigas e até baratas. Plaumann reuniu um exército de insetos, de 17 mil espécies diferentes. Somente ele descobriu 1,5 mil espécies novas. E foi homenageado em 150 delas. Como o besouro Homelocerus plaumanni.

Plaumann deu a esses seres muitas vezes desprezados uma aura nobre, de ciência e até atração turística. Como homenagem, deu nome a um museu, a um parque ambiental em Concórdia e tem seu trabalho reconhecido mundialmente.


A guardiã das memórias
Uma senhora grisalha que gosta de servir café e biscoitos para as visitas é a guardiã de outra riqueza, tão atraente quantos os insetos no museu. Gisela Plaumann, filha adotiva do pesquisador, guarda tesouros: os materiais utilizados para montar o acervo de 80 mil espécies.

Gisela ainda mora na casa reformada e ampliada em 1954, quando Fritz Plaumann mudou-se para o local com a mulher Klara Anamaria Links. As paredes duplas de madeira em tom verde escuro com janelas vermelhas compõem um cenário com um quê europeu. Dá para imaginar Fritz Plaumann catalogando os insetos perto da janela e observando os morros cobertos de mato, que muitas vezes ficam encobertos pela neblina.

Nas inúmeras gavetas, há estoques de lâminas que nunca foram utilizadas. Há também linotipos com letras menores do que a cabeça de um alfinete, utilizados para catalogação.

Em armários de madeira maciça, estão as enciclopédias de entomologia, que serviram de base para a pesquisa. Em outro armário, que foi construído pelo próprio Plaumann, estão os químicos utilizados para deixar os animais incoscientes. Até o chapéu dele está pendurado na sala.

Gisela conta que, às vezes, acordava às 3h e preparava frango e outros alimentos para o lanche, nos dias de coleta. Depois, saía com o pesquisador e suas redes catar o insetos pela região, até voltar, no início da noite.

–Tem uma espécie de um besouro no museu que fui eu que encontrei!


Calor da chaminé ajudava a atrair os insetos
Com carinho, ela mostra os cômodos: calor da chaminé do fogão servia para secar os insetos; outra armadilha, com lâmpada, ajudava na coleta. Tem até um galpão construído para guardar tocos de madeira e atrair insetos para a pesquisa.

Gisela conta que trabalhou como empregada na casa de Fritz Plaumann em 1924, aos 21 anos. Com seus pais biológicos já falecidos, foi adotada como filha. Como o pesquisador não teve herdeiros, ela é quem cuida de tudo, como sempre cuidou. E sente-se realizada por ter dedicado sua vida ao pesquisador, que carinhosamente chama de pai.

Vida dedicada à ciência

A imagem de Fritz Plaumann na maioria das fotografias do museu entomológico, mostram um senhor de idade, com óculos e bigode. Falecido em 1994, Fritz Plaumann dedicou toda a sua vida ao estudo dos insetos.

De acordo com uma das guias do museu, Elfride Freyer, ele era um senhor calmo. Sua filha adotiva Gisela, lembra que quando ele ia a uma festa de aniversário, ficava pouco mais de uma hora e depois ia para casa.

Quando não coletava e catalogava os insetos, arrumava alguma coisa na casa ou no jardim. Ele fez alguns móveis, instalação elétrica e até na cozinha ajudava.

Tinha como hobby tocar violino e harmônio. Quando chegou em Seara, em 1924, começou a trabalhar como agricultor. A partir de 1925 deu início às suas pesquisas. Deu aulas de português e alemão, até montar um pequeno comércio. Todo o dinheiro era revertido para a compra de equipamentos para a sua pesquisa. 

Esse teria sido um dos motivos para a separação de sua esposa Klara, que voltou para a Alemanha. Nos finais de semana viajava para fazer fotos das famílias da região, também para angariar recursos. Plaumann mostra um certo desgosto com a burocracia brasileira, pois chegou a ser impedido de coletar insetos sob alegação que estava dizimando a fauna. 

A mágoa está revelada num trecho do livro Diário de Fritz Plaumann, organizado por Mary Bortolanza Spessatto: "...tudo isso que fiz foi para o proveito do nosso Brasil, que tornou-se a minha segunda pátria e realizou-se sem que fosse necessário gastar um único cruzeiro dos cofres públicos. Creio que no Brasil não se encontra outra pessoa que fez o mesmo por conta própria e de único punho."

O interesse pelos insetos começou no primário, na cidade de Preussich Eylau, cidade da Prússia Oriental, na Alemanhã, onde nasceu em 2 de maio de 1902. Lá ele catava os besouros e perguntava o que era para seu professor. Somente ao final de sua vida, teve o trabalho reconhecido, recebendo diversas honrarias, como o Mérito Universitário da UFSC e a Grã-Cruz de Mérito da Alemanha.

Como chegar

— Saíndo de Chapecó, ir pela SC-283 em direção à Seara, percorrendo cerca de 35 quilômetros até o trevo de acesso a Nova Teutônia, antes de chegar na cidade.
— Daí, são mais 10 quilômetros em estrada pavimentada até o museu. Quem vem do litoral pode ir até Xanxerê e pegar a SC-466, que passa por Xavantina, até a SC-283. Vira à direita e vai até o trevo de acesso à Nova Teutônia.
— Outra opção é ir por Concórdia, pegar a SC-283, passar a cidade de Seara e ir até o trevo de acesso de Nova Teutônia.

Horários de visita

— Segunda à quinta-feira, das 8h30min às 17h
— Sábado, das 9h às 16h
— Ingresso: R$ 3 (adulto) e R$ 2 (estudantes até o ensino fundamental)
— Telefone: (49)3453-1191, Ramal 214

KENNY G THE MOMENT


sábado, 21 de julho de 2012

O MITO DA CAVERNA DE PLATÃO


SOBRE ARMAS, LEIS E LOUCOS


Como sempre acontece, o mais recente ataque contra um grupo de vítimas indefesas, desta vez em um cinema nos EUA, onde 12 pessoas foram mortas, reacende a sanha dos desarmamentistas americanos, dentre os quais o prefeito de Nova Iorque, Mike Bloomberg, um dos expoentes políticos americanos que acham terem nascido com o dom de saber o que é melhor para mundo todo.
No Brasil, via de regra, aqueles que pregam o desarmamento como forma de impedir tais massacres se assanham rapidamente ao sentirem o cheiro de sangue inocente, impelidos quase sempre pelo antiamericanismo tupiniquim, mas invariavelmente esquecendo - ou fazendo questão de esquecer - que tais acontecimentos não são, nem de longe, exclusividade norte-americana.
Em 1999, um louco invadiu um cinema de São Paulo e abriu fogo usando uma submetralhadora comprada poucos dias antes em uma favela da capital – arma ilegal, evidentemente. Matou três pessoas e feriu outras 5. Só não houve mais vítimas porque um herói anônimo pulou sobre ele e o desarmou antes que recarregasse sua arma. Em 1997, Fernando Henrique Cardoso havia transformado o porte ilegal de armas em crime, aumentando muito as restrições relativas à posse e ao porte de armas no Brasil.
Japão, 2001. Um homem com problemas mentais invade uma escola, mata oito crianças e fere outras 13 usando uma faca. O massacre que assustou o Japão não foi o primeiro e não seria o último. A posse e o porte de armas para civis são proibidos no Japão desde o século XV.
Em 2010, em Naping (China), um desequilibrado mental invadiu uma escola primária e, também usando uma faca, matou oito crianças e feriu gravemente outras cinco. Entre 2010 e 2011, outras 116 crianças e adultos seriam vítimas de ataques semelhantes na China Comunista, fazendo com que o governo proibisse a divulgação de outros ataques para evitar os chamados “copiadores”. Na China, as armas de fogo são terminantemente proibidas para os cidadãos.
Cumbria, Inglaterra, 2010. Um homem, durante um surto psicótico, mata aleatoriamente 12 pessoas e fere outras 11. Foi acompanho por quilômetros por uma viatura de polícia, cujos policiais estavam também desarmados e não puderam fazer nada. Em 1997, a Inglaterra praticamente proibiu as armas particulares para seus cidadãos. 
Em 2011, mais um massacre. Desta vez um louco invadiu uma escola no Rio de Janeiro e assassinou friamente 12 adolescentes. A carnificina só parou quando ele foi baleado por um policial que invadiu a escola. Sete anos antes era aprovado o chamado “Estatuto do Desarmamento”, que proibia o porte de armas e criava restrições quase intransponíveis à compra de uma arma legal.
Casos semelhantes aconteceram em diversos outros países, entre eles os pacíficos Canadá e Finlândia. Em todos, houve premeditação e, como autores, viram-se pessoas com distúrbios mentais, que utilizaram as armas que tinham à disposição ou foram capazes de colocar às mãos. Também em todos os casos, a lei, mais ou menos restritiva, de acesso às armas não foi capaz de impedir as mortes, simplesmente porque nenhuma das armas foi usada legalmente.
Recorrer ao desarmamento quando um caso assim acontece é fugir para o simplismo, é apelar, muitas vezes, para o confortável discurso fácil que joga nas armas o poder sobrenatural de agir por conta própria. Ao mesmo tempo, é enterrar a cabeça no chão e negar a existência de pessoas más e insanas, capazes de matar crianças inocentes sem qualquer remorso ou arrependimento. É negar a maldade, negar a existência de lobos no meio das pacatas ovelhas. É, em última análise, balir discursos pacifistas, na defesa pueril de leis restritivas, enquanto os lobos-loucos ignoram sua existência e se preparam para o banquete sangrento.
O primeiro ministro inglês, após o citado ataque de Cumbria, resumiu magistralmente sua posição ao ser inquirido sobre mais restrições às armas: “não é possível legislar sobre a loucura”. E não é, mesmo.


Bene Barbosa é Presidente do Movimento Viva Brasil, bacharel em direito e especialista em segurança pública.


MUITA ÁGUA SOB A QUILHA


Kafka tem um belo apólogo. Fala de um homem que busca a Lei. Diante da Lei está um porteiro. Um homem do campo acerca-se dele e pede-lhe que o deixe entrar na Lei. Mas o porteiro diz-lhe que agora não pode deixá-lo entrar. O homem reflete e pergunta se poderá, então, entrar mais tarde. «É possível», diz o porteiro, «mas agora não». Como o portão da Lei se encontra, como sempre, aberto, e o porteiro se afasta para o lado, o homem inclina-se e olha para dentro através do portão. Assim que o porteiro repara nisso, ri-se e diz-lhe: «Se te atrai assim tanto, experimenta então entrar, apesar da minha proibição. Mas repara: eu sou forte. E sou apenas o porteiro mais ínfimo. De sala para sala há, porém, outros porteiros, cada um deles mais forte do que o outro. Até eu próprio já não consigo suportar o aspecto do terceiro porteiro». 

Resumindo: o camponês espera a vida toda. O porteiro reconhece que ele já está próximo do seu fim. Para alcançar o seu ouvido moribundo, berra-lhe: "Aqui mais ninguém poderia ser admitido, pois esta entrada era apenas destinada a ti. Agora vou-me embora e fecho-a." 

Este apólogo marcou-me fundo e sempre tive medo de estar diante de minha porta, de minha única porta, e de não ter a coragem de forçá-la. Camponês e filho de camponeses, terá sido este medo que me impeliu deste cedo a viajar. Via uma porta aberta? Entrava logo, bem que podia ser a minha. Assim, sem ser rico, tive a ventura de conhecer o melhor do Ocidente e viver em suas cidades mais esplendorosas. Quem faz esta opção acaba perdendo empregos, cargos, carreira e patrimônio. Paciência. Ganhei o mundo e sua memória. 

Recebo mail de uma amiga, viajada e cosmopolita, que há horas mora nos Estados Unidos. Para minha surpresa, confessou-me não conhecer Paris nem Roma. Em um primeiro momento, manifestei minha perplexidade. Paris e Roma, hoje, já não são distantes. Já no segundo momento, pensando melhor no assunto, uma pontinha de inveja começou a corroer-me por dentro. Lembrei-me de quando não conhecia a Europa e da excitação com que vi o continente cada vez mais perto de meus pés. 

Explico. Minha primeira viagem foi de navio. Ao final de dez dias de navegação, no horizonte foi-se delineando a silhueta do litoral português. Mais algumas horas e já se via a ponte sobre o Tejo. A ponte foi-se se tornando cada vez mais nítida e mais próxima e eu, Colombo às avessas, mesmo vendo a velha e boa terra, não conseguia acreditar que dentro de mais outras horas estaria pisando solo europeu. Devo confessar que só acreditei mesmo depois de fincar os pés no porto. Esta sensação, só temos uma vez na vida. Colombo que o diga. 

Outras há que também não se repetem. Entrar lentamente de trem em Paris, vendo cruzar na janela aqueles telhados e chaminés que sempre repousaram nalgum escaninho de nossa memória. Ouvir o chiado dos próprios pés numa viela noturna e silente em Veneza. Quebrar pela primeira vez a crosta de um mar congelado rumo ao Norte. Perfurar pela primeira vez um deserto branco, pleno de neve e silêncio, para cair finalmente, também pela primeira vez, numa densa noite ao meio-dia. Penetrar em um fiorde em uma meia-noite clara como dia. Atravessar as pontes sobre o Neva nas noites brancas de São Petersburgo. 

Ouvir o silêncio da noite gelada, no pico de uma montanha enluarada no Sahara. É um silêncio estridente, que fere os ouvidos acostumados aos ruídos urbanos, só entrecortado pelas escassas palavras dos tuaregues contando lendas ao redor de uma fogueira. Se os deuses houveram por bem conceder-me a ventura dessas paragens, hoje tudo isto adquiriu um ar de déjà vu. Certo dia, atravessando o Pont Saint Michel, minha mulher me alertou: notaste que aquilo ali à direita é a Notre Dame? Eu sequer a havia visto. Residira quatro anos em Paris e já não mais a via. Se hoje deploro a condição de quem ainda não passou por estes momentos mágicos, ao mesmo tempo a invejo. Este deslumbramento, eu o perdi para sempre.

Ante as urbes prodigiosas, os viajores do século XIX sofriam uma reação física semelhante a dos peregrinos perplexos ao nelas entrarem. Os visitantes caíam de joelhos em Florença, Roma e Atenas. No caso dos peregrinos, recorria-se à histeria e à doença de San Vito para explicar as convulsões. O mesmo não se diria de hordas mais sensíveis. Em 1817, quando ia entrar na igreja de Santa Croce, em Florença, Stendhal foi tomado por uma espécie de pasmo, teve o pulso acelerado e lhe tremeram as pernas... isso só de antever o que veria lá dentro. A esta experiência, que o escritor francês narra em sua correspondência, convencionou-se chamar de síndrome de Stendhal, a perturbadora agitação do viajante ante a contemplação da beleza. 

Esta crise acometeu-me em Cuenca, quando a beleza das cidades da Espanha já começava a saturar-me. Subindo a encosta do penhasco, ao olhar para o alto vi os prédios inclinados que pendiam sobre minha cabeça. Aos poucos, fui perdendo o sentido da verticalidade. Para não cair, olhava só para baixo. Ao chegar, de pernas bambas, à frágil ponte que varava o abismo, não consegui mais manter-me em pé. Sentei no chão e enrolei-me em posição fetal. Crianças saltitavam sobre o vazio, sem medo algum ou espanto. Haviam nascido ali. Para minha satisfação, vi outros estrangeiros apoiando-se nas paredes de rocha para não cair. Isto também só se vive uma vez. Dia seguinte, após tomar um bom vinho na sacada de uma das casas colgadas, enveredei pela ponte e saltitei como as crianças. Vencera Cuenca. 

A moça que não conhece Paris não deixa de ser pessoa afortunada: tem ainda síndromes pela frente. A ela, repasso esta saudação de marujos: muita água sob a quilha. Que vasto é o mundo e breve nossa passagem. Santé, Milla! Por: Janer Cristaldo





A CHAVE EGÍPCIA



pequeno
 normal grande
A democracia turca evidencia que o Islã não é incompatível com a liberdade


O Egito tem, hoje, dois poderes. O presidente Mohammed Mursi, eleito pelo povo, representa a democracia, que é o poder novo. A cúpula das Forças Armadas, que dissolveu o Congresso e avoca para si prerrogativas legislativas e constituintes, representa o estamento militar, que é o poder velho. O confronto inevitável entre os poderes rivais moldará a evolução política do país. Como Mursi emanou da Irmandade Muçulmana, o confronto também deixará marcas profundas no mais antigo e influente partido islâmico do mundo árabe. De certo modo, no Egito se esculpe o futuro da Primavera Árabe.

A Irmandade Muçulmana e o estamento militar são os atores centrais da História do Egito moderno. A Revolução Nacional de 1952, conduzida por Gamal Abdel Nasser e seu grupo de oficiais militares, fundou um Estado nacionalista, pan-arabista e modernizante. O partido islâmico, criado em 1928, apoiou a revolução, mas logo se afastou de Nasser, que enxergava no Islã político um desafio à unidade do poder revolucionário. O conflito alcançou o ápice em 1964, quando Sayyd Qutb, líder da ala radical dos Irmãos, foi preso e executado sob falsa acusação. Os seguidores de Qutb exilaram-se, então, na Arábia Saudita, iniciando um longo intercâmbio ideológico com os teólogos da seita fundamentalista Wahab. Duas décadas mais tarde, desse caldo de cultura emergiria, no campo da jihad afegã, a organização terrorista Al-Qaeda.

De Nasser a Anuar Sadat, e daí a Hosni Mubarak, a revolução degenerou em ditadura militar corrupta e burocrática, enquanto a Irmandade, proscrita, se libertava da sombra de Qutb e se reformava lentamente. O levante popular do início de 2011 não decorreu de um chamado do partido islâmico, mas seguiu consignas laicas e democráticas. Na hora das eleições, porém, a força social dos Irmãos relegou as demais correntes oposicionistas a papéis secundários. O segundo turno da eleição presidencial foi um embate entre o partido islâmico e o estamento militar.

O novo presidente expressa, ao mesmo tempo, a raiz fundamentalista dos Irmãos e a vontade popular canalizada nas urnas. Mursi dá sinais de saber distinguir uma da outra, e dá prioridade à segunda sobre a primeira: vitorioso, anunciou sua desfiliação do partido islâmico e convidou figuras da oposição democrática a integrar o governo. A derrubada do antigo ditador, nas manifestações populares da Praça Tahir, foi apenas o primeiro ato de uma complexa transição política.

Durante a “era Mubarak”, que durou três décadas, a cúpula das Forças Armadas assumiu o comando de empresas estatais monopolistas, convertendo-se numa “burguesia de Estado”. Os chefes militares pretendem conservar os privilégios herdados moldando uma democracia de fachada e reservando a si mesmos as prerrogativas de um “poder moderador”. Realista, a Irmandade Muçulmana tece compromissos táticos com a Junta Militar que, às vezes, enfurecem as lideranças laicas da Primavera Egípcia, mas revela uma clara consciência de que a difusão de sua própria influência depende da extensão da democracia – e, portanto, da progressiva subordinação das Forças Armadas ao poder civil.

Inspirados pela tese do “choque de civilizações”, analistas ocidentais observam com pessimismo o desenvolvimento do drama egípcio. O mundo do Islã não se preparou historicamente para a democracia, dizem eles, e o triunfo eleitoral do partido fundamentalista seria a prova de que tudo se resumirá à substituição de uma ditadura militar pró-ocidental por uma ditadura teocrática hostil aos Estados Unidos, à Europa e, sobretudo, a Israel. As proclamações democráticas da Irmandade Muçulmana não passariam de um ardil destinado a iludir os incautos, na etapa intermediária da transição de poder. O Irã dos aiatolás, que também emanou da queda de um regime ligado ao Ocidente, prefiguraria o futuro do Egito.

Ninguém conhece o futuro – e, obviamente, uma revolução é sempre um enigma. Imaginar, contudo, que Mursi não seja mais que a máscara circunstancial de um Qutb eterno corresponde a um exercício radical de negação da História. Os Irmãos renunciaram ao terror há mais de quatro décadas e tentam, nem sempre com sucesso, moderar os impulsos do palestino Hamas, que nasceu de sua costela. Eles denunciaram a cooperação de Sadat e Mubarak com Israel, porém admitem uma solução de dois Estados na Palestina. Continuam a dizer que o Corão deve formar a base da vida egípcia, mas se declaram comprometidos com os princípios do pluralismo político e da liberdade de religião. Tudo isso forma um conjunto doutrinário incoerente, pleno de tensão, pontilhado por contradições. A História é assim mesmo: não cabe no molde das narrativas cartesianas.

Bernard Lewis, o autor original da tese do “choque de civilizações”, sugeriu que a Turquia aponta o caminho da salvação do mundo muçulmano. Seu modelo era o regime de Mustafá Kemal Ataturk, fundador da República laica e autoritária, assentada sobre o “poder moderador” dos militares, que substituiu o Império Turco-Otomano. No fundo, ele queria dizer que o Islã se redimiria pela negação radical do Islã.

A História pregou uma peça em Lewis: a Turquia libertou-se há pouco do autoritarismo, sob o governo de um partido islâmico reformado que cortou suas próprias raízes fundamentalistas. A jovem democracia turca ainda não está isenta de tentações repressivas, mas evidencia que o Islã não é incompatível com as liberdades políticas. A Turquia atual, não o Irã dos aiatolás, parece ser a fonte de inspiração para o Egito de Mursi – e da Praça Tahir.

Uma evolução democrática do Egito deflagraria uma segunda etapa da Primavera Árabe. Nessa hipótese, a chave egípcia abriria os cadeados que prendem o mundo árabe no alçapão do fundamentalismo religioso. Por: Demétrio Magnoli - Convidado


Fonte: O Estado de S. Paulo, 19/07/2012