sábado, 29 de junho de 2013

O ZEITGEIST FINANCEIRO

Sofremos todos os sintomas da Antiguidade decadente. Estamos perdendo nossa religião, nos desprendendo dos nossos valores morais e já perdemos nosso senso comum. Assim como na Roma antiga, nossa taxa de natalidade está decaindo e nossas legiões estão reduzidas em tamanho e número enquanto os bárbaros se multiplicam.

Ralph Nelson Elliott apresentou a teoria do Grande Superciclo, que por sua vez representa um período de crescimento relativamente firme do mercado financeiro seguido de um colapso. Ainda assim, é possível visualizar uma perspectiva mais abrangente, tal como a de Brooks Adams (o famoso irmão de Henry Adams e neto de John Quincy Adams), que visualizou um ciclo ainda mais abrangente de crescimento e declínio econômico. Em seguida, veio o alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que interpretou o movimento da história como algo mais que apenas ciclos repetitivos. Hegel descreveu uma “fenomenologia do espírito” que produz sucessivas mudanças nas "verdades" que nos guiam; por exemplo, podemos ir de Adam Smith à atomização e depois reagirmos contra a atomização.

Mas primeiro comecemos vendo a perspectiva do ciclo maior. Peter Chardon Brooks Adams (nascido em 24 de junho de 1848) sugeriu que as civilizações mercantis estão sujeitas a ciclos previsíveis. Em 1900, Adams previu que Nova York se tornaria eixo central das finanças globais; ele também acreditava que isso sinalizaria o começo do fim da civilização americana. Em 1895, Adams escreveu um livro intitulado The Law of Civilization and Decay com a intenção de provar que a história é cíclica, sendo que o foco do livro era a história econômica.

Adams demonstrou como algumas tendências de decadência econômica das antigas civilizações (nomeadamente a greco-romana) já estavam afligindo a humanidade na década de 1890. Dentre essas tendências estava a centralização política, a desvalorização da moeda, o aparecimento de grandes cidades com pequenas fazendas sendo transformadas em grandes produtoras de alimentos, aumento da dívida interna, a ascensão do poder monetário e a sobreposição dos interesses monetários acima de todos os outros. Para Adams, a destruição da civilização necessariamente coincide com a ascensão das elites financeiras. Banqueiros e financistas inevitavelmente substituíram a aristocracia rural e as eminências pardas. Isso indicou o colapso dos velhos valores em prol de um materialismo cru.

Adams parecia estar falando que quanto mais buscamos os bens materiais, mais superficiais e cruéis nos tornamos; eventualmente, essa superficialidade e essa crueldade resultariam em um colapso econômico. Curiosamente, nossa obsessão econômica pode de fato ser a base da nossa queda; a ideia de os homens darem mais e mais importância em fazer dinheiro em uma sociedade cada vez mais dependente de dinheiro acaba por se tornar loucura. Isto é dizer que a base de uma sólida economia é fundada em algo mais profundo e mais fundamental que a economia. Aristóteles, talvez, argumentaria que o sucesso vem da busca pelo bem. Ao se conseguir alcançar o bem, o dinheiro vem como consequência. Mas hoje em dia revertemos a própria ordem. E essa reversão diz-se que acontece ciclicamente.

Mas a história é meramente cíclica? É evidente que há algo mais complexo envolvido. Foi a filosofia da história de Hegel que propôs a existência de um espírito (Geist) guiador subjacente por trás da ascensão e queda das civilizações. Isso pode parecer algum tipo de perspectiva supersticiosa da história, mas Hegel não estava oferecendo espiritismo ou propondo algo na linha de ‘O Nosso Planeta Assombrado’ de John A. Keel. Em vez disso, ele estava sugerindo que a história do mundo representa o progresso da consciência da liberdade através daquilo que ele chamou de “fenomenologia do espírito”. A proposta de Hegel refere-se à ideia de que toda ação dá origem a uma reação diametralmente oposta – uma simplificação da terceira lei de Newton, exceto pelo fato de que Hegel estava falando da consciência e não da matéria. Considere a seguinte simplificação: cada época supõe ingenuamente ter achado ‘A Resposta’; e cada época acaba descobrindo que sua resposta não está de todo correta, levando assim àquilo que Hegel chamou de “negação determinada”.

Acredite ou não, podemos rastrear a emergência de uma negação determinada na Roma Antiga. Edward Gibbon insinuou que essa negação determinada destruiu o Império Romano de uma vez por todas. E não devemos ficar surpresos ao sabermos que Karl Marx ofereceu seu “materialismo dialético” como uma negação determinada da modernidade capitalista. Pode ser dito que o século XXI carrega uma proeminente semelhança ao século IV. Em ambos os séculos, vemos uma nova religião emergindo nas cidades a despeito do “nativo ignorante” (i.e., pagãos no século IV e cristãos atualmente). Hoje, a religião secular (o socialismo) está varrendo para longe o cristianismo da mesma forma que o cristianismo varreu para longe o paganismo 17 séculos atrás.

O iminente declínio em longo prazo na nossa economia, coincidindo com a destruição da velha religião, também se reflete na arte e na poesia. “Nenhum poeta pode florescer no árido solo moderno”, escreveu Adams, “o drama morreu e os patronos da arte não percebem mais o quão vergonhoso é a profanação de ideais sagrados. O sonho extático, esculpido em pedras por alguns monges do século XII, que então ficavam no santuário sagrado junto da presença do Deus deles, foi reproduzido como adorno de um armazém; ou mesmo a planta de uma abadia (...) é adaptada para construir uma estação de trem.”

Há um tipo especial de inspiração que propicia uma grande economia. O produtor não é simplesmente uma pessoa que corre atrás do dólar todo-poderoso. O verdadeiro produtor é inspirado a construir algo com cuidado e fidelidade. Ele não quer fazer algo inferior para poder enganar seus compradores. Ele se orgulha da sua produção em toda sua mestria. Não se trata de dinheiro, embora ele tenha um papel importante a desempenhar. Trata-se da mente ou espírito que anima o homem que trabalha e constrói. É isso que precede o derradeiro sucesso de uma geração ou era.

Eu diria que há, de fato, um ciclo ou passagem do espírito. Eu diria, além disso, que esse ciclo é marcado é marcado por um ponto crítico. Também acredito que estamos entrando na mira do maior ponto crítico de todos os tempos. Sofremos todos os sintomas da Antiguidade decadente. Estamos perdendo nossa religião, nos desprendendo dos nossos valores morais e já perdemos nosso senso comum. Assim como na Roma antiga, nossa taxa de natalidade está decaindo e nossas legiões estão reduzidas em tamanho e número enquanto os bárbaros se multiplicam. Estamos sendo comandados por demagogos e manipuladores da comunidade. O núcleo familiar está corrompido, o aborto prevalece, o adultério é um lugar-comum, a paternidade está denegrida e as autoridades ridicularizadas.

Não é de se surpreender que os prognósticos cambaleiem de uma incerteza para outra de modo que todas as grandes mentes acabaram por adotar o pessimismo. É o Zeitgeist, o espírito de época.

Por: Jeffrey Nyquist  Publicado no Financial Sense.

Tradução: Leonildo Trombela Júnior

quinta-feira, 27 de junho de 2013

IMEDIATISMO

O imediatismo hoje é, na maior parte dos casos, tido como um problema que envolve grande parte das pessoas. Imediatismo, de acordo com o dicionário, é um sistema que funciona sem mediação, sem um termo de passagem. Isso indica que aqueles que desejam resposta imediata querem sair de onde estão e chegar ao objetivo sem percorrer o caminho, sem mediação. A mediação é o caminho que se deve percorrer para sair de onde está e chegar ao objetivo final. Esse caminho prevê tempo, e, quanto maior o objetivo, provavelmente maior será o tempo para alcançá-lo. No entanto, na sociedade atual, é desejado que o caminho seja cada vez mais curto, para praticamente tudo, inclusive para as terapias.

Pesquisas e mais pesquisas se colocam diante do desafio de produzir resultados cada vez maiores em menos tempo. A questão do imediatismo é típica de sociedades que têm como tônica o aumento da velocidade, onde o tempo parece cada vez menor para uma possibilidade cada vez maior de uso do mesmo. Se entendêssemos que a rapidez das motos, carros, aviões, trens, é apenas um dos sintomas de uma sociedade que está vivendo em alta velocidade, ficaria fácil perceber o imediatismo como sintoma. 

É isso que acontece com um pai que procura uma escola de inglês com um método super revolucionário que ensina o conteúdo em três meses. O mesmo acontece com a mãe que procura uma clínica que faça com que ela fique com o visual de menina de academia em dois meses. O pai também entra na roda quando compra o carro que permite a ele fazer trechos cada vez maiores em menos tempo. A criança entra na velocidade dos pais ao pedir o vídeo game último lançamento, mas que em seis meses já está ultrapassado pois o console novo é dez vezes mais rápido. 

Mas como perceber se eu estou vivendo rápido demais? Alguns, muito provavelmente nem leem artigos tão longos, dizem que se pode dizer mais em menos linhas, é provável, pois estes mesmos querem viver mais em menos dias. São pessoas de vida resumida, sexo resumido, alimentação resumida, carinho resumido, onde o todo é muito longo e enfadonho. Para saber se estão indo rápido demais olhem para a velocidade do passo na rua: caminham rápido? É muito provável que estejam muito mais rápidos no pensamento, e o corpo tenta em vão acompanhar o pensamento. Você percebe o caminho entre sua casa e o trabalho? A estrada, os carros, as pessoas, a belíssima serra que é parte marcante de nossa paisagem? Posso ainda perguntar se tem feito caminhadas, é provável que diga que sim, mas falo de caminhadas a passos lentos, sentindo o friozinho do inverno, ouvindo o cantar dos pássaros. Este tipo, provavelmente não.

Desacelerar, acalmar as ideias, para muitas pessoas é a cura para problemas como ansiedade, depressão, pânico. Desacelerar pode trazer a pessoa de volta ao corpo, ao espaço onde provavelmente a maior parte dos problemas desaparece. Pergunte-se a você mesmo: onde estão seus maiores problemas? No corpo? É provável que não. O pensamento, pelas possibilidades que apresenta, pode tanto criar grandes maravilhas como causar grandes estragos. O aumento de velocidade, assim como num carro, pode causar grandes problemas. 

Para que isso não lhe aconteça preste atenção ao seu limite de velocidade: se estiver sendo imediatista, pode ser que seu limite tenha chegado. Ao observar o mundo se vai perceber que entre um bom inverno e o verão há a bela primavera. Se pulássemos direto do inverno para o verão perderíamos toda a beleza das flores.

Por: Rosemiro A. Sefstrom 

terça-feira, 25 de junho de 2013

ESTUDOS PORNOGRÁFICOS

A atriz Sylvia Kristel morreu em outubro passado. Senti a notícia como uma perda pessoal. E nostálgica.

Lembro-me bem: teria uns 12 ou 13 anos quando a conheci. Moça simpática. Foi na casa de um colega de turma que, por razões nunca suficientemente explicadas, conseguira cópias em VHS dos filmes "Emmanuelle".

Todas as sextas à tarde havia uma peregrinação à casa do cavalheiro. E ele, qual um Grande Gatsby pré-adolescente, recebia os convidados no portão e depois cobrava ingressos à pequenada. Com o dinheiro do lanche, era possível assistir ao filme e, por gentileza do anfitrião, beber ainda um copo (de limonada). No final, os cinéfilos abandonavam a sala e caminhavam rápido na mais profunda clandestinidade. Rumo a casa.

Assim foi durante semanas: enquanto os pais imaginavam as crianças em estudos demorados, as crianças dedicavam-se a outro tipo de aulas. Até o dia em que um delator resolveu contar o esquema à diretora da escola depois de ter sido barrado na entrada daquele clube privado. Os pais foram avisados. Houve castigos para todos os gostos e feitios -e eu, com as orelhas a arder, despedi-me de Sylvia Kristel com um beijo imaginário.

Claro que, olhando para trás, os filminhos de "Emmanuelle" eram quase exemplos líricos de castidade. Sobretudo quando comparados com a pornografia que abunda na internet e que tem provocado discussão séria na Grã-Bretanha.

Não será hora de ter uma profissional da indústria a ministrar aulas de educação sexual nas escolas? Aulas teóricas, entenda-se, não práticas. A sugestão foi feita por Mark Slater, 59, responsável por um colégio de elite em Cambridge.

Diz o prof. Slater ao "Sunday Telegraph" que as crianças estão cada vez mais expostas a cenas violentas e, pormenor fundamental, irreais. Uma professora de educação sexual com conhecimento de causa poderia explicar a natureza fantasiosa das cenas, preparando os jovens para vidas de maior respeito mútuo --e, acrescento eu, sem lesões físicas desnecessárias.

O prof. Slater não está sozinho nessa batalha. A editora Routledge, que em tempos mais bárbaros editava Karl Popper ou Friedrich Hayek, prepara-se também para lançar a primeira revista científica sobre estudos pornográficos. "Porn Studies", eis o título. Objetivo?

Estudar o fenômeno da pornografia "sob todos os ângulos", uma ambição que já rendeu polêmica entre a comunidade científica, e não necessariamente pelas razões mais literais. Conta o jornal "Observer" que vários estudiosos da matéria criticam a revista por adotar um tom neutro sobre o assunto.

Pornografia é coisa séria. Ela é responsável pela degradação das mulheres, pelo comportamento violento dos homens e, atendendo ao funcionamento hormonal da espécie, talvez pelo aquecimento global.

Aliás, por falar em aquecimento global, os críticos da revista comparam o conselho científico da dita aos "negacionistas climáticos" que não concordam com o sr. Al Gore sobre o destino dos glaciares. A polêmica promete continuar.

Não tenciono contribuir para ela. Se as melhores escolas e editoras entendem que é sua função conceder à pornografia estatuto intelectual respeitável, eu não passo de um lamentável dinossauro. Que, logicamente, nasceu no tempo errado.

No distante século 20, eu e os meus amigos éramos uns incorrigíveis devassos. Hoje, no século 21, teria sido possível evitar todos os castigos. E sustentar, com cara séria e erudita, que aquelas tardes passadas com a sra. Sylvia Kristel eram visitas de campo -ou, melhor ainda, deveres de casa.

Imagino mesmo os nossos pais, cobertos de orgulho, comentando uns com os outros o amor dos filhos pelo estudo e os dias inteiros passados no quarto.

P.S.: Leitores, eu amo vocês. Depois do artigo "O colunista apodrece", da semana passada, recebi centenas de e-mails com votos de melhoras e alguns conselhos sábios para não apodrecer precocemente. Prometo seguir alguns, embora confesse que a opção vegetariana ainda não está no meu cardápio. A situação não é tão desesperada. De resto, uma palavra em especial para os médicos que partiram de vários sintomas --pedra no rim, queda de dente, dores musculares etc.-- para chegarem a diagnósticos vários, alguns deles contraditórios. Na qualidade de hipocondríaco, o meu muito obrigado. 
Por: João Pereira Coutinho Folha de SP

segunda-feira, 24 de junho de 2013

A PÓS-LOLITA

A sensualidade pode ser mortal. Em tempos de vida higiênica como o tempo em que vivemos, talvez, em algum momento, a sensualidade venha a ser mesmo posta fora da lei.

Sim, a sensualidade pode ser mortal, basta ler "Lolita", de Vladimir Nabokov. Hoje, o livro seria proibido, mas, claro, em nome das boas intenções. Agora acreditamos que inventamos uma nova forma de censura (antes a censura tinha uma motivação diferente, creem os semiletrados): "A censura em nome do bem".

O novo filme do diretor coreano Park Chan-wook, com Mia Wasikowska (no papel de Índia, uma Lolita que completa 18 anos) e Nicole Kidman (sua atormentada mãe), é uma pérola de estetização do lado sombrio do ser humano.

Mas, não se trata de uma estética suja (até o sangue é de um vermelho encantador), por isso a sofisticação nele nos lembra que mesmo que não sejamos seres "do bem", ainda somos seres belos.

Na filosofia, abordagens como essa são chamadas de "estetização da moral": a estética seria mais essencial do que a ética. Nietzsche é comumente acusado desta forma sofisticada de pecado.

Acima eu falava da beleza do vermelho sangue no filme. Aliás, o sangue na narrativa acompanha a iniciação de nossa heroína e poderia muito bem ser o sangue de sua primeira menstruação escorrendo pelas pernas ou da perda de sua virgindade manchando o lençol.

Em alguns momentos, lembramos dos bons momentos de David Lynch na sua série cult de TV dos anos 80, "Twin Peaks". A saia xadrez da colegial mortal de "Twin Peaks" é trocada pelo vestido "de menina" da estranha Índia, a filha pós-Lolita de Kidman no filme de Park Chan-wook.

Às vezes, esquecemos que a sensualidade feminina pode simplesmente brotar do chão, como uma força esmagadora da natureza.

"Segredos de Sangue" discute o eterno dilema do que em nós é herdado e do que em nós é "cultivado", ou, dito de outra forma, do que em nós seria passível de ser transformado ou criado pela educação ou pelo meio a nossa volta. Em inglês, o dilema "nature x nurture".

No filme, os "segredos" do sangue de Índia (que não vou contar, pode ficar tranquilo) são o que nela seria herdado. E assim, uma forma de destino do qual ela não escapará.

Sou daquele tipo de pessoa que acredita que temperamento é destino. Vejo isso todo dia em sala de aula. Mas, para muitos dos meus colegas, dizer isso seria ir contra "nosso mercado", a educação, infelizmente umas das áreas mais devastadas por bobagens pseudocientíficas e pseudofilosóficas no início deste século 21.

O filme se abre com a morte inesperada do pai de Índia, "seu grande amor". Ela detesta a mãe. Não gosta de ser tocada e aprendeu com o pai as delícias da caça. No momento do enterro do pai (morto num estranho acidente de carro), surge seu desconhecido tio Charlie, irmão mais novo de seu pai. O filme narra as aventuras de Índia descobrindo sua sexualidade e muito mais.

Mas sua sexualidade, "herdada" de alguma forma pelo tronco paterno, é a "sexualidade de Freud", não a sexualidade que hoje escorre pelas paredes do mundo, essa cadeia em céu aberto (Kafka ficaria espantado como as coisas pioraram de sua época para cá...). A sexualidade em voga hoje é uma sexualidade que pode ser posta a serviço da "boa política". A "biopolítica da libertação" nos deixará todos brochas.

O que é a "sexualidade de Freud"? Sim, devemos cuidar para não esquecermos o Freud enterrado em conceitos pseudofreudianos como "pulsão política".

O homem freudiano é uma pedra no sapato dos reformadores contemporâneos, e, nesse sentido, Freud terá que ser "esquecido" mesmo por aqueles que se dizem freudianos, mas que não suportam o que Freud nos ensinou: que a sexualidade é um abismo. Em uns, mais do que nos outros.

Como dizia o psicanalista francês Michel de Certeau, falando de mística, "um lugar para se perder".

O "homem freudiano" só civiliza às custas de muita dor. E não há do outro lado uma civilização curada de sua raiz sombria, como querem os freudianos das luzes.

Claro, nem todos somos Índias ou defloramos Índias. Mas ela continua bela.
Por: Luiz Felipe Pondé  Folha de SP

quinta-feira, 20 de junho de 2013

DEMAGOGIA

A palavra demagogia está presente em meus pensamentos faz um tempo, e com cada vez maior freqüência e força é possível identificar o uso do recurso que ela significa. Segundo o dicionário, Demagogia pode ser considerada “a arte de conduzir o povo”, também se diz que é uma arte de propor algo que não se consegue alcançar na prática. Mas o que realmente chama a atenção é que a Demagogia é a arte de conduzir ou propor algo que tem por objetivo alcançar benefício próprio. Considerando esta definição, pode-se dizer que demagogia é fazer uso de ferramentas que dominem pessoas para atingir objetivos que favoreçam a si mesmo. É o caso dos discursos politicamente corretos dentro de organizações que falam de uma vida eco sustentável, onde os eco representam milhares de dólares que se ganha por não precisar mais comprar copos descartáveis.

Quando esta palavra surgiu, na Grécia Antiga, significava os “defensores da democracia”, que eram os demagogos. Ao longo do tempo, por causa do uso que foi feito da ferramenta de condução do povo, demagogia é tomada hoje em sentido pejorativo. Na prática a demagogia pode ser vista quando alguém se coloca diante dos outros como alguém pobre, necessitado, tendo em vista receber favores. O mesmo pode acontecer de alguém que enaltece a si próprio com o intuito de obter vantagens. Isso lembra muitos relacionamentos, onde um dos dois se coloca numa posição tal que visa obter vantagens sobre o outro. Um dos casos mais comuns são de pessoas que percebem que quando estão doentes têm atenção. Ao perceberem que o carinho virá se estiverem doentes, ao menos parecerem doentes, pronto a cada tanto estão doentes, padecem de algum mal. 

Esse comportamento com um objetivo ou vários objetivos é conhecido em Filosofia Clínica por Comportamento & Função. O comportamento pode ser simples, a pessoa diz para a mãe que sua cabeça dói para que esta fique por perto. O comportamento também pode ser composto, como falar menos, ficar quieto num canto, começar a tossir, até que peça pela atenção e obtenha os cuidados da mãe. O demagogo se coloca numa posição tal de forma que seus comportamentos tenham como função o domínio das pessoas ao seu redor. Aqui o comportamento tanto pode ser simples como composto, sendo que a função é simples: dominar. 

Esse domínio nem sempre é assim tão evidente, algumas vezes, para quem olha de fora uma situação o dominador pode parecer o dominado. É o caso daquele homem forte, rude, que está ao lado de uma mulher pequena, franzina, que é um anjo, no entanto, essa anjinha, com sua candura domina e faz com que o homem forte e rude sirva a seus propósitos. O seu jeito de ser cumpre uma série de comportamentos que levam o marido a servi-la. A falta de conhecimento de quem vê de fora e até mesmo do marido faz dele refém (função) dos comportamentos da esposa.

Nos dias atuais estão acontecendo uma série de manifestações Brasil afora, movimentos estimulados sabe-se por quem e com qual objetivo. Centenas de pessoas são convidadas via redes sociais para reunirem-se e lutar por objetivos que em muitos casos pouco conhecem. A falta de consciência política, econômica, social, faz com que uma grande massa se torne a prova de que o discurso demagógico de domínio funciona. Demagogia neste caso é o Comportamento & Função na prática social, mas a questão fundamental que fica é: “que função cumpre esse comportamento de revolta?”

Por: Rosemiro A. Sefstrom   Do site  www.filosofiaclinicasc.com.br 

quarta-feira, 19 de junho de 2013

MESTRE ECKHART, O HEREGE

Mestre Eckhart, alemão morto em 1328, foi um grande filósofo, místico e herege, condenado em 1329 pela Inquisição.


Na época, a norma era pregar e ensinar em latim, apesar de as pessoas comuns não entenderem latim. Eckhart pregou e ensinou em alemão, e essa foi uma das acusações contra ele, porque, segundo os inquisidores, as pessoas comuns não entendiam sutilezas teológicas ou filosóficas.

Essas ideias sofisticadas versavam sobre a experiência direta de Deus, mais conhecida na literatura especializada como mística, além de ele defender uma forma de teologia que entendia o homem como "parte de Deus".

Antes professor de grande sucesso de teologia sacra na Sorbonne, na cátedra de teologia para professores de fora do reino de França (Tomás de Aquino ocupara a mesma cátedra antes), mais tarde veio a ser transferido para uma atividade mais "paroquial" e menos intelectual em Estrasburgo.

O intelectual Eckhart foi transferido para Estrasburgo a fim de cuidar das almas ("cura das almas") dos grupos de espirituais, homens e mulheres, chamados "bégards" e "béguines", que viviam ao redor da cidade.

Seu sucesso nas pregações serviu como argumento para seus invejosos inimigos políticos o acusarem de herege, acusação que acabou por destruir sua carreira e sua vida (ele morreu no ostracismo, quando era a maior promessa da ordem dominicana depois de Tomás de Aquino) --e condenou sua obra a séculos de desconhecimento pela filosofia e pela teologia.

Eckhart era um mestre do intelecto, um "mestre da vida", como o caracterizou o medievalista Alain de Libera em seu clássico "Pensar na Idade Média". Nesse livro, De Libera descreve o perigo que era pensar fora dos muros da academia (ser um "mestre da vida") e como isso gerava perseguição pela Inquisição.

Eckhart pagou um preço alto por sua ousadia; teria sido queimado se não tivesse morrido antes.

Nessa sua atividade com o "povo", Eckhart ficou conhecido em especial pela sua aproximação com as mulheres espirituais, as "béguines". Existe até um romance, que recomendo para quem lê francês, de Jean Bédard, que se chama "Maître Eckhart" (mestre Eckhart) e narra o lendário relacionamento que ele teria tido com uma dessas mulheres, Kaltrei, que muito provavelmente foi queimada.

Um método comum da Inquisição era retirar argumentos escritos ou falados pelo réu do contexto original a fim "fazê-lo dizer o que ele não disse".

E qual era a "psicologia" de um inquisidor? Normalmente bem formado, ele se via como alguém chamado a assegurar a pureza dogmática do cristianismo e a impedir a contaminação dos costumes por ideias indesejáveis.

Essas ideias se difundiam rapidamente pelo "povo" (mesmo antes da "maior" invenção do século, o Facebook...), e, por isso, era importante cuidar para que elas não fossem postas em circulação. Como ele se via como um defensor da pureza da verdade e dos costumes no mundo (logo, do "bem"), julgava-se autorizado a perseguir, calar e queimar quem discordasse dele.

O mundo não mudou muito desde então.

P.S.: Outras inquisições. Na semana passada, nesta coluna, critiquei os excessos de certos grupos que querem se meter nos brinquedos das crianças e nas posições sexuais dos casais. Aparentemente, um link enviado por um leitor, que constituiu uma referência entre várias, cita uma entrevista que nunca existiu.

Mas o festival de curtas sobre diversidade sexual narrado na coluna nada tem a ver com essa "armadilha da internet": aconteceu em São Paulo, e eu estava presente. Nesse, sim, criticava-se a "posição de quatro" como sendo machista. Portanto, a crítica independe da falsa entrevista.

A condenação do sexo oral por motivos ideológicos também é fato.

Basta lembrarmos a campanha de anos atrás fora do país, quando uma foto de publicidade antitabagista mostrava uma mulher de joelhos, diante de um homem, com um cigarro na boca, condenando as duas formas de submissão: o sexo oral e o cigarro. Por: Luiz Felipe Pondé  Folha de SP

segunda-feira, 17 de junho de 2013

ARAPUCA


Numa conversa com um amigo fiquei sabendo de um artigo escrito por Eliane Brum que tem por título “Meu filho... você não merece nada!!!” É um texto interessante e realmente recomendo a leitura. No texto a autora começa por mostrar como os pais criaram armadilhas nas quais eles mesmos estão ficando presos. São uma geração de pais ( nem todos) que criam os filhos com tudo o que eles não tiveram, inclusive a falta de educação, juízo de valor, senso de coletividade, vontade de vencer. Enfim, como diz a Elaine Brum, “nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito”. Essa ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito faz com que, cada vez mais, os pais se tornem refém da felicidade dos filhos.

É provável que você já tenha ouvido a expressão: “Vou dar ao meu filho o que o meu pai não pode me dar”. Essa expressão não é de todo ruim, em muitos casos o pai não dava carinho, atenção, amor, educação, orientação, mas em geral essa afirmação está relacionada apenas com bens materiais. São pais que atingiram uma posição social cômoda e que têm para dar aos filhos “o que os pais não tinham para dar” desconsiderando que muitos filhos, que eles mesmos criam, são como poços sem fundo: quanto mais os pais derem, mais terão que dar. No dia em que o pai não tem mais como oferecer aquele manancial de coisas à criança, jovem e muitos adultos, os filhos voltam-se contra os pais porque eles têm o direito de ter o que querem. O pai e a mãe podem estranhar, mas foi exatamente o que eles ensinaram aos filhos a vida toda: que eles iriam ter tudo. A armadilha que muitos pais estão se metendo é fruto de uma visão míope, onde ter conforto pode significar viver melhor.

Muitos destes pais, no entanto, esqueceram até rápido demais que quando pequenos a falta do que comer lhes fez buscar. Muitos não lembram que a ausência dos bens não significou a ausência do pai, da orientação, da educação. Muitos pais de hoje em dia fazem o contrário: dão uma imensidão de coisas os filhos e se eximem de serem pais. O que espanta em muitos casos é a falta de uma visão sobre si mesmos como pais, de modo que se veem nas escolas mãe que dizem: “já não dou mais conta do meu filho”. Aí ficam os professores reféns de pais que não dão limites aos filhos, mas dão tênis caro, roupa cara, passeios caros. 

Estes pais se tornam reféns do assalto dos filhos dentro do supermercado, onde gritam, esperneiam até que ganham o que querem. Tornam-se reféns da educação que deram aos filhos, pois não conseguem perceber que a arapuca na qual estão presos foi construída com muito zelo por eles mesmos. Em Filosofia Clínica essa prisão, amarra, chama-se Armadilha Conceitual, ou seja, um conceito que prende alguém. A Armadilha Conceitual do qual muitos pais se tornaram reféns foi o conceito de filho, crianças que perderam noções básicas ou tem visões distorcidas a respeito de si próprios e do mundo onde vivem. 

Estar preso ao filho que criou pode ser falta de conhecimento, vontade, sabedoria, ajuda, enfim, pode ser muitas cosias. Mas, continuar prisioneiro de alguém que no futuro vai muito provavelmente acusar a você pelos prováveis insucessos é uma escolha. Existem pessoas, livros, vídeos, programas de televisão que sugerem formas de educação nas quais o filho não é uma arapuca, uma prisão, mas uma pessoa com quem se vai curtir a vida. Ter um filho companheiro, não credor, ter um filho amigo, não aliado político, ter um filho carinhoso, não interesseiro, é possível, mas é preciso que os pais saibam educar. Pense nisso: talvez muito do que você não teve fez de você quem você é.

Rosemiro A. Sefstrom
Do site: www.filosofiaclinicasc.com.br

sexta-feira, 14 de junho de 2013

BONECAS DE QUATRO

Hoje vou falar de coisa séria: vou falar de mulher. Aliás, nem tanto, pensando bem. Vou falar de feministas e muitas dessas não são exatamente mulheres. E também de gente que quer fazer meninas brincarem com carros e meninos com bonecas em nome da "tolerância". Até quando vamos ter que tolerar esses maníacos em zoar a vida dos filhos dos outros?


O fascismo nunca perde força. Em nome de uma educação para diversidade, os fascistas de gênero agora querem se meter nos brinquedos das crianças.

Quando será que a maioria silenciosa vai dar um basta nessa palhaçada pseudocientífica chamada teoria de gênero na sua versão "hard" (engenharia psicossocial do sexo)? Quando vamos deixar claro que essa coisa de dar boneca para meninos quererem ser meninas é, isso sim, abuso sexual?

Quem sabe, quando as psicólogas e pedagogas tiverem coragem de parar de brincar com a sexualidade infantil fingindo que acreditam nessa baboseira de trocar os brinquedos de meninas com os dos meninos e vice-versa.

Mas, vamos aos fatos. Há alguns anos, assistia eu um pequeno festival de curtas sobre diversidade sexual quando ouvi uma das maiores pérolas desta pseudociência do sexo.

O curta abria com uma cena de sexo em uma cadeia. Um casal, um homem e um travesti, faziam sexo. O travesti de quatro, o homem por trás. Os dois gozavam ao final. O curta seguiu seu curso, mas não é o filme em si que me chamou atenção.

De certa forma, o curta repetia uma das manias chatas do cinema brasileiro: cadeia, bandido, pobre, drogas... haja saco. Cinema preocupado em construir "consciência social" (essa nova categoria da astrologia) é sempre chato e ruim.

Terminado o filme, "especialistas" em gênero fizeram um debate. Na primeira fala, um dos integrantes da mesa protestou contra o fato que na cena o travesti estava de quatro e que isso revelava que os criadores do curta incorriam no pecado da "falocracia".

Calma, caro leitor e cara leitora, não pretendo usar palavras de baixo calão numa segunda-feira. Explico-me: "Falocracia", termo cunhado para parecer chique, significa sociedade dominada pelo poder do macho (falo = pênis, cracia = poder).

Segundo nosso gênio (seria gênia? Não me lembro bem do sexo...), o curta repetia o erro machista de colocar a "fêmea" no lugar da que gosta de ser penetrada por trás.

Para esses tarados em se meter na vida dos outros, as mulheres até hoje "pensam que gostam" de ser penetradas por trás porque foram oprimidas. Risadas? E quando digo que feminista não entende nada de mulher ainda tem gente que se espanta... Feminismo fora de delegacia de mulheres dá nisso: invasão da cama alheia.

Pois bem, agora algumas feministas mais azedas do que o normal querem ensinar as mulheres heterossexuais (essas que muitas militantes julgam compactuar com o inimigo) a transar e propõem a demonização de uma das posições mais preferidas pelas meninas saudáveis: transar de quatro.

Segundo nossas fascistas de gênero, as heterossexuais devem ficar sempre por cima para olhar nos olhos do opressor e jamais (preste atenção: eu disse jamais!), ao fazer sexo oral (melhor não fazer), "jamais engolir sêmen, que é excremento como xixi e coco".

É meninas queridas, um dia desses vão prender vocês se gostarem de ficar de quatro ou de "engolir". A liberdade sexual acabou e em seu lugar nasce a heterofobia.

Quando vamos perceber o fato óbvio de que o feminismo é a nova forma de repressão social do sexo? Principalmente do sexo heterossexual feminino? Ao se meter embaixo do lençóis, essas azedas atrapalham a já difícil vida sexual cotidiana.

Uma coisa é combater crime sexual, salário discriminatório, outra coisa é se meter no modo como as pessoas gozam.

Isso me lembra o filme espanhol de 1991 "El Rey Pasmado" de Imanol Uribe. Neste filme, um casal de nobres sofria "preconceito" porque a mulher gozava muito. Padres e freiras foram chamados para rezar e ajudar a mulher ser "casta" no sexo.

Antes eram as freiras que odiavam o sexo, hoje são as feministas mais chatas: para elas nada de bonecas de quatro. Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

quinta-feira, 13 de junho de 2013

MEU FILHO... VOCÊ NÃO MERECE NADA!!

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas,viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade. É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país. Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer. A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude. Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir. Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa. Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.


Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que "tudo pode" significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito. Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

Por: ELIANE BRUM - Clínica Alamedas - 17-05-2013

segunda-feira, 10 de junho de 2013

SOBRE REALIDADE

Um dos aspectos mais extraordinários da ciência é como ela nos permite ampliar nossa visão do real

Costumamos achar que sabemos o que é o mundo real, esse que vemos à nossa volta. Basta abrir os olhos, apurar os ouvidos, e temos esse retrato do que é a realidade, baseado na nossa percepção sensorial. Mas será que é só isso? Será que o que vemos e ouvimos pode ser chamado de realidade? Um dos aspectos mais extraordinários da ciência é como ela nos permite ampliar nossa visão do real. E um dos aspectos mais paradoxais é que quanto mais aprendemos sobre o mundo, menos clara nos é a natureza da realidade.

Platão, na Grécia Antiga, já antecipara o problema. Em sua alegoria da caverna, ele imagina um grupo de "escravos" acorrentados em uma caverna desde o nascimento. A percepção da realidade deles se restringe à parede da caverna, que é tudo que podem ver. Para eles, o que aparece na parede é o mundo real. Sem que os presos soubessem, atrás deles um grupo de filósofos fizera uma fogueira que lançava luz na parede. Em frente ao fogo, os filósofos seguravam objetos e os escravos viam as sombras projetadas na parede, achando que os objetos eram reais. Obviamente, a projeção não correspondia ao objeto: por exemplo, uma bola aparecia como um círculo. O ponto de Platão é que nossa percepção sensorial cria uma noção falsa do real. Como disse a raposa ao Pequeno Príncipe, "o essencial é invisível aos olhos".

Na história da física, o que chamamos de realidade também muda. Antes de Copérnico, o Cosmo tinha a Terra no centro e o Sol e planetas girando à sua volta. O Universo era fechado na forma de uma esfera e Deus e sua corte habitavam a esfera mais externa. Quando Newton propôs sua teoria da gravitação, percebeu que o Cosmo não poderia ser finito. Apenas um Cosmo infinito, onde as estrelas estavam separadas e equilibradas (precariamente), seria estável. De repente, a realidade muda e o homem se vê num Universo infinito, envolto em trevas. Qual o lugar do homem nesse novo Universo? Para complicar, as ideias de Newton levaram a um determinismo radical em que o futuro poderia ser calculado, ao menos em princípio, a partir do presente. Se isso fosse verdade, não haveria mais o livre arbítrio; todas as ações estariam predeterminadas pela precisa maquinaria cósmica. A liberdade que achamos ter seria uma ilusão.

Felizmente, esse determinismo não durou muito. No início do século 20, a física quântica pôs fim à noção de que podemos usar a física como oráculo. O princípio de incerteza de Heisenberg mostrou que não podemos medir a posição e a velocidade de uma partícula conjuntamente, o que torna a determinação precisa de seu futuro impossível.

Ademais, o mundo quântico nos mostra que a própria natureza da realidade é elusiva: não vemos um elétron ou um fóton, sua existência é medida com detectores, aferida indiretamente. O mundo do muito pequeno, que tanto define nossas vidas através das tecnologias digitais que usamos, é um mundo inacessível aos sentidos. Não podemos nem mesmo atribuir existência a uma partícula antes de a detectarmos: a realidade é definida pelo modo como interagimos com ela.

Isso cria um novo modo de ver o mundo: sempre existirão aspectos da realidade que são desconhecidos. Mas o surpreendente é que existem outros que são inacessíveis. Por: Marcelo Gleiser Folha de SP

PERIÓDICO EXISTENCIAL

Uma discussão a respeito de mente e cérebro acabou levando a uma discussão sobre se as doenças realmente existem ou não. Eu, e talvez você, conhecemos pessoas que já tiveram um problema de saúde e que, após muitos exames, nada foi diagnosticado, pessoas que percorreram um longo caminho na medicina e nenhum causador orgânico foi encontrado. Esse é o caso do problema que envolve a mente e o cérebro.


O cérebro é considerado nosso principal órgão, onde fica o centro do sistema nervos. É um órgão extremamente complexo, que nas últimas décadas vem sendo largamente estudado e mapeado. Estes estudos têm vários objetivos, entre os quais entender o funcionamento do cérebro e, a partir disto, construir diversos mecanismos que facilitem a fabricação de remédios que possam ter o efeito desejado para as mais diversas doenças que o afetam. Há ainda o interesse em desvendar a forma como o cérebro funciona, mecanicamente, e talvez aplicar o seu sistema a um computador.

Mente é o estado da consciência ou subconsciência que possibilita a expressão da natureza humana, segundo o site Wikipédia. Mas, em diversas bibliografias, podem ser encontradas outras definições. Segundo a definição acima citada, a mente é um estado, ou seja, uma manifestação de algo, orgânico ou não. Quando digo que estou feliz, segundo minhas vivências, estou vivendo um estado de espírito, isto é uma vivência da mente. Desta maneira a interação entre a mente e o cérebro é o que faz um ser humano algo completo.

Essa problemática mente e cérebro lembra as doenças das quais não encontramos motivos aparentes, orgânicos. Muitos dos males que vivemos no corpo têm suas origens na existência que temos. Quando eu, você, sua esposa ou esposo, vivem sob pressão, como alguns dizem, “no fio da navalha”, como é que o corpo reage? Para muitos nada acontece, mas para alguns o corpo adoece, mesmo com dietas corretas, remédios corretos, a doença do corpo é apenas um sintoma de um mal existencial.

Muitos de nós estamos existencialmente doentes, o corpo apenas avisa, quando assim é possível. Mas, pela facilidade, falta de conhecimento, desleixo, comodismo, acabamos apelando para a medicação química como modo de solução. Um câncer que devora aos poucos nossa existência é tratado com Rivotril. Isso não parece certo, mas é dessa maneira que se procede com frequência. Muitos casos chegam a procurar ajuda, mas vão depois que o mal já se espalhou tanto que só existe a possibilidade de remediar. Não há mais como voltar atrás e reajustar tudo o que ficou pelo caminho.

Olhando para a sua história, para o que vem fazendo no seu dia-a-dia, os remédios que anda tomando ou deveria tomar, estes podem ser os alertas de que é preciso mudar. Mudar não quer dizer deixar de ser quem somos, mas fazer o que sempre fizemos de maneira diferente, mais adequada a nós mesmos. Os males da existência podem ser identificados, assim como os males do corpo. Mas tanto um quanto o outro devem ser tratados. 

É espantoso o quanto se fala de medicina preventiva para o corpo e o quanto não se fala de medicina preventiva para a mente. Todos fazemos exames médicos antes de assumir um emprego numa empresa, mas não fazemos exames existenciais para saber se estamos existencialmente prontos, preparados para este emprego. Nosso corpo pode estar preparado para uma maratona, mas nossa mente pode não estar e provavelmente sairemos perdedores. Deveríamos pensar mais na vida mental e também procurar um profissional para fazer um exame de rotina. A mente pode e em muitos casos é quem comanda a vida, se ela não estiver bem, provavelmente nossa vida não estará bem.

Por: Rosemiro Sefstrom

sábado, 8 de junho de 2013

O VALOR DE UMA "CURTIDA"


As redes sociais são um sucesso, especialmente o Facebook. Quando Mark Zuckerberg criou esse instrumento, talvez não imaginasse o quanto ele se transformaria em um meio indispensável para a expressão pessoal.

Lembro-me de minha juventude e o quanto era difícil conseguir que duas ou três pessoas, ao mesmo tempo, ouvissem o que eu tinha para dizer. Quando conseguia, sentia-me realmente popular. Hoje, com as redes sociais, qualquer expressão é imediatamente vista por dezenas, centenas e até milhares de pessoas. Isto, sim, é uma mudança de paradigma.

No entanto, erra quem entende que a popularização das mídias sociais se deu única e principalmente por causa do desejo das pessoas de serem reconhecidas. Há muito mais envolvido nisso. Inclusive, boa parte dos usuários parece ser de gente sem grandes pretensões de sucesso.

O que levou tantas pessoas a usar de maneira tão insistente essa tecnologia é a possibilidade de serem ouvidas, de saberem que o que dizem, ainda que seja absolutamente trivial, está sendo percebido pelos outros.

Pois aí encontra-se a síntese do homem pós-moderno: essa insegurança existencial que clama por atenção e feedback, esse medo de passar desapercebido, de tornar-se um fantasma, imperceptível aos olhos humanos. O indivíduo contemporâneo é uma mistura de incerteza ontológica e ansiedade perpétua.

Mas tudo isso é mero fruto dos nossos tempos. Antigamente, quando Deus era o centro da vida social, quando sua existência era incontestável, não havia como o homem sentir-se só. Ainda que isolado em uma caverna no deserto, não havia dúvida para o indivíduo que os olhos divinos lhe acompanhavam. Assim, seja em meio à multidão, seja encerrado em um mosteiro, a sensação era de participação na existência. Tanto que não havia maior terror que a excomunhão, que era exatamente a ruptura com a eternidade.

Desde Descartes, porém, e com o contemporâneo afastamento de Deus dos negócios humanos, o homem começou a investigar o eu, porém, desde aquele momento, a partir de si mesmo, não de uma existência anterior e superior. Por isso, chega a colocar em dúvida a própria existência, já que não há mais um ponto de partida exterior e transcendente. E mesmo quando conclui pela própria existência, faz isso baseado em algo que verificou unicamente em seu interior. Não há testemunhas de que vive, nem mesmo o testemunho divino. Há apenas uma tíbia confirmação interna.

A partir dali, o homem inicia a trajetória de uma paradoxal busca de si mesmo e afastamento de Deus. Quanto mais investiga seus próprios fundamentos, distancia-se deles. Nesse caminho, tentando encontrar-se, se perde, pois segue para longe de sua origem. A história do pensamento moderno é isto: uma ininterrupta tentativa de retomar aquilo que ele mesmo destruiu: a certeza de existir, a confiança em uma ordem transcendente e a esperança de um futuro melhor.

Já não há mais um Deus onde buscar as próprias razões; Ele foi esquecido. Mas a necessidade de encontrá-las persiste. Quem é este homem? E quem pode confirmá-lo? O pensamento, seguindo a conclusão cartesiana, até testemunha a própria existência, mas, isoladamente, é um testemunho frágil, quase vão.

Não é difícil perceber que desde que a subjetividade reclamou por autonomia o homem se esforça na tentativa de substituir a transcendência que lhe fundamentava a vida. Porém, o abismo alargou-se de tal maneira que o eu encontrou-se só, isolado e perdido. Em Schopenhauer, por exemplo, já no século XIX, o indivíduo não é nada mais além do que um fenômeno fugaz. Ao expulsar a Divindade dos negócios humanos, não há ninguém mais que confirme sua existência, a não ser um outro idêntico a ele.

Portanto, quando vejo as pessoas clamando por atenção, pela busca do reconhecimento e por serem percebidas, estou certo que isso é o resultado desses séculos de vagar existencial. As mídias sociais respondem, assim, a um anseio que encontra-se impregnado na alma do indivíduo e que vem se acumulando na proporção inversa do afastamento da transcendência da vida humana.

Em nossos dias, a única maneira que as pessoas têm para sentir-se alguém é pelo testemunho do outro. Somente há a certeza da própria existência quando alguém confirma isso. Por isso, uma curtida no Facebook pode ter uma valor bem mais alto do que jamais sonharia mesmo o mais otimista acionista em Wall Street.

Por: Fabio Blanco, advogado e teólogo.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O SOL SOBRE O PÂNTANO

"Somos todos leprosos!", afirma o Monsenhor no livro "O Casamento", de Nelson Rodrigues, muito bem adaptado e dirigido por Johana Albuquerque, em cartaz no teatro Tuca.

O que quer dizer esta afirmação exagerada "Somos todos leprosos"? No romance adaptado existe uma personagem leprosa, e ela se torna, na fala do Monsenhor, o paradigma da humanidade em nossa humanidade. Todos necessitamos de misericórdia porque estamos "em pedaços", e estes pedaços "desfilam" pelo palco, gemendo de prazer e dor.

Nelson Rodrigues é um desses clássicos que todo mundo fala mas pouca gente conhece de fato. Como ele é "cult", dizer que ele é o "máximo" é algo esperado em jantares inteligentes, afora, é claro, os ignorantes que o acusam de "machista" ou, na versão mais moderninha da mesma bobagem, "sexista".

"Um Anjo Pornográfico", título da excelente biografia escrita por Ruy Castro, é uma forma precisa de descrevê-lo. Porque, mesmo sendo pornográfico, ele ultrapassa o discurso sobre sexo para falar do "miserável tédio da carne" que não fala especificamente da carne, mas sim da carne como pele da alma e não do corpo. Seus textos parecem confissões de agonia da alma diante do pecado, na mais velha tradição cristã do começo do cristianismo.

Nelson não é um mero autor de sacanagem (Nelson não é um Sade pernambucano), mas sim um autor espiritual, no sentido mais forte da palavra, talvez, o melhor teólogo que o Brasil já produziu, já que nos últimos anos a teologia brasileira é mais autoajuda do que qualquer outra coisa.

Se formos situá-lo na tradição ocidental, eu o colocaria no encontro entre três gigantes: Freud (sexo como centro dilacerante da alma), Dostoiévski (a alma só sobrevive numa atmosfera de misericórdia porque seu elemento natural é o perdão) e Santo Agostinho (a consciência de que todo drama do corpo é em si um drama da alma). A obra rodriguiana faz de Freud um teólogo.

A expressão "Sol sobre o pântano", que descreve muito bem o efeito causado pela montagem de Johana Albuquerque, é um modo presente na fortuna crítica para nomear a obra dramatúrgica de Nelson: sua obra ilumina nossa miséria. A expressão foi usada por Léo Gilson Ribeiro, nos anos 1960, num texto no qual ele diz ser nosso maior dramaturgo um expressionista brasileiro.

Nelson era um obcecado por sexo, adultério, sífilis, crime passional, homossexualismo (pederastia), cunhadas gostosas, todas umas Lolitas cariocas. "Em cada esquina do subúrbio carioca existe uma Anna Karenina e uma Emma Bovary", dizia Nelson. No Brasil, a tragédia anda de lotação.

No mesmo artigo, Léo Gilson Ribeiro cita a famosa passagem na qual Nelson, comentando sua peça "Bonitinha, mas Ordinária", afirma que "a nossa opção é entre a angústia e a gangrena. Ou o sujeito se angustia ou apodrece. E se me perguntarem o que eu quero dizer com a minha peça, eu responderia: que só os neuróticos verão a Deus".

Nelson ri dos idiotas que ainda afirmam que no sexo há redenção e que a revolução sexual nos salvará do tédio. Não, o sexo como sentido da vida é tédio puro. Só idealiza o sexo quem não faz muito sexo. No "Casamento" não é outro o sentido do suicídio de Antônio Carlos, o comedor de todas a mulheres do mundo.

As risadas artificiais desvelam o vazio que carrega os personagens arrastados por protocolos: "Não se adia um casamento na véspera só porque a noiva está menstruada!", de novo, decreta o Monsenhor, o oráculo do romance.

No sexo da mulher, o sangue menstrual que escorre pelas suas pernas define sua feminilidade. A mulher é mulher porque sangra e sangra porque pode ser fecundada no coito e, quando não mais sangra, se sente menos mulher.

Este mesmo oráculo que diz que o sexo é uma mijada (afinal, o órgão sexual é o mesmo que mija, tanto no homem como na mulher e na mulher também sangra), enuncia a diferença final entre nós e os animais: "a culpa faz de nós humanos". A dor da alma é que nos mantém de pé.

Se na teologia clássica é dito que só os pecadores verão a Deus, na teologia rodriguiana só os neuróticos verão a Deus. Por: Luiz Felipe Pondé Folha de S Paulo

quarta-feira, 5 de junho de 2013

HOMENS DO LIXO

Leio matéria na BBC Brasil sobre o último escândalo francês: parece que 31% dos 150 mil restaurantes que existem no país servem pratos industrializados que são esquentados no fogão ou até em micro-ondas.


Em qualquer outra região do mundo, talvez a revelação não fosse tão indigesta. Mas em França? Em Paris?

Os chefs locais estão horrorizados com a blasfêmia e, conta a jornalista Daniela Fernandes, o parlamento pretende legislar sobre a matéria, reservando a palavra "restaurante" apenas para restaurantes. Sim, aqueles estabelecimentos que antigamente usavam lume e panelas para cozinhar ingredientes frescos.

Entendo a histeria francesa. Mas, honestamente, não estaremos a ser demasiado exigentes com o pessoal?

Alguns empregados ouvidos por uma reportagem de TV foram mais sensatos do que a histeria de chefs e políticos. E perguntaram, com naturalidade desarmante: mas para quê cozinhar produtos frescos quando a maioria não distingue a diferença?

É uma boa pergunta. Que implica outra: e por que motivo o cliente médio, e sobretudo o turista médio, é incapaz de reconhecer o lixo que mastiga?

A resposta é óbvia: porque o lixo faz parte do seu cardápio diário. Aliás, não seria de excluir que a substituição de lixo por comida de verdade pudesse ter o efeito contrário: horrorizar alguns palatos e afugentar a clientela. Como dizia um velho amigo meu (e excelente garfo), as pessoas adoram "pizzas" porque as "pizzas" não têm espinhas.

E se alguém desaprova a minha observação, que responda com honestidade: como se distingue peixe fresco de peixe congelado? E, já agora, como se distingue um prato cozinhado no momento de um prato embalado em fábrica, esquentado no fogão e coberto por dois ou três molhos especiais (e com nome apropriadamente francês)? Com honestidade, disse eu.

Pedir intervenção estatal por tudo e por nada é coisa de crianças. Não são os restaurantes que têm de mudar. São os clientes. De preferência, ganhando os hábitos e as exigências que não têm.

Quem não é capaz de reconhecer a comida de plástico que tem no prato, mil perdões, é porque merece mesmo comer plástico. Por: João Pereira Coutinho   Folha de S. Paulo

terça-feira, 4 de junho de 2013

O TERROR DA AMBIVALÊNCIA

Você esconderia judeus em sua casa durante a França ocupada pelos nazistas? Não, não precisa responder em voz alta.


Melhor assim, para não passarmos a vergonha de ouvirmos nossas mentiras quando na realidade a janta, o bom emprego e a normalidade do cotidiano sempre valeram mais do que qualquer vida humana. Passado o terror, todos viramos corajosos e éticos.

Anos atrás, enquanto eu esperava um trem na estação de Lille, na França, para voltar para Paris, onde morava na época -ainda bem que tinha minha família comigo porque Paris é uma cidade hostil-, li a resenha de um livro inesquecível na revista "Nouvel Observateur".

Nunca li esse livro, nem lembro seu nome, mas a resenha era promissora. Entrevistas com filhos e filhas de pessoas que esconderam judeus em casa durante a Segunda Guerra davam depoimentos de como se sentiram quando crianças diante dos atos de coragem de seus pais e suas mães.

A verdade é que essas crianças detestavam o ato de bravura de seus pais. Sentiam (com razão?) que não eram amados pelos pais, que preferiam pôr em risco a vida deles a protegê-los, recusando-se a obedecer a ordem: quem salvar judeus morre com eles.

Podemos "desculpar" as crianças dizendo que eram crianças. Nem tanto. Adolescentes também sentiam o mesmo abandono por parte dos pais corajosos. Cônjuges idem.

Está justificada a covardia em nome do amor familiar? Nem tanto, mas deve-se escolher um estranho em detrimento de um filho assustado?

Tampouco dizer que os covardes também seriam vítimas vale, porque o que caracteriza a coragem é exatamente não se deixar fazer de vítima -coisa hoje na moda, isto é, se fazer de vítima.

Não foi muito diferente aqui no Brasil durante a ditadura, guardando-se, claro, as diferenças de dimensão do massacre.

No entanto, não me interessa hoje essa questão da falsa ética quando o risco já passou -a moral de bravatas. Mas sim a ambivalência insuportável que uma situação como essa desvela, na sua forma mais aguda.

Ou meu pai me ama ou ama o judeu escondido em minha casa, ou, ele me ama, mas não consegue dormir com a ideia de que não salvou alguém que considerava vítima de uma injustiça, e por isso me põe em risco. Eis a razão mais comum dada por esses pais, quando indagados, da razão de pôr em risco sua vida e família: "Não conseguia fazer diferente". Mas a ambivalência da vida não se resume a casos agudos como esses.

Freud descreveu os sentimentos ambivalentes da criança para com o pai no complexo de Édipo: amo meu pai, mas quero também me livrar dele, e também sinto culpa por sentir vontade de me livrar dele.

Independente de crer ou não em Freud plenamente (sou bastante freudiano no modo de ver o mundo, e Freud foi o primeiro objeto de estudo sistemático em minha vida), a ambivalência aí descrita serve como matriz para o resto da vida.

Os pais amam os filhos (nem sempre), mas ao mesmo tempo ter filhos limita a vida num tanto de coisas (e hoje em dia muita mulher deixa para ser mãe aos 40 por conta deste medo, o que é péssimo porque a mulher biologicamente deve ser mãe antes dos 35). Apesar dos gastos intermináveis, no horizonte jaz o possível abandono na velhice por parte destes mesmos filhos "tão" amados.

Mas, ao mesmo tempo, não ter filhos pode ser uma chance enorme para você envelhecer como um adulto infantil que tem toda sua vida ao redor de suas pequenas misérias narcísicas.

Casamento é a melhor forma de deixar de querer transar com alguém devido ao esmagamento do desejo pela lista infinita de obrigações que assola homens e mulheres, dissolvendo a libido nos cálculos da previdência privada.

Mas, ao mesmo tempo, a liberdade deliciosa de transar com quem quiser (ficar solteiro), com o tempo, facilmente fará de você uma paquita velha ridícula sozinha que confunde pagar por sexo com um homem mais jovem com emancipação feminina. E, no caso do homem, o tiozão babão espreita a porta.

E, também, terá razão quem disser que mesmo casando você poderá vir a ser uma paquita velha ou um tiozão babão.

Quantas ambivalências espera você nessa semana?

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP






segunda-feira, 3 de junho de 2013

OUTROS MUNDOS

Na semana passada, cientistas da Nasa puseram o telescópio espacial Kepler em uma espécie de coma tecnológico: a sonda, desenhada para buscar planetas semelhantes à Terra girando em torno de estrelas na nossa vizinhança cósmica, falhou de uma forma que parece irremediável.


Lançada em 2009, a Kepler encontrou 132 planetas e 2.700 outros astros que podem passar no teste e esperam estudos mais detalhados. A confirmação será feita por telescópios terrestres que agora sabem para onde olhar nos céus.

Custando US$ 550 milhões, a sonda Kepler revolucionou nossa visão do Universo e do nosso lugar nele.

A noção de que estrelas têm planetas girando à sua volta é muito antiga, remontando ao menos à Grécia Antiga, onde filósofos como Epicuro, já no século 4º a.C., sugeriram a existência de outros mundos: "Existem infinitos mundos parecidos e diferentes do nosso. Pois os átomos, infinitos em número, se espalham pelas profundezas do espaço." A noção foi elaborada por Giordano Bruno ao final do século 16 em seu tratado "Sobre o Universo Infinito e os Mundos". Para Bruno, esses outros mundos seriam semelhantes à Terra, também habitados.

Era claro que, caso existissem outras Terras, a centralidade da nossa estaria ameaçada. No debate sobre a existência de outros mundos, essa era a questão essencial: somos únicos e, portanto, especiais de alguma forma, ou apenas a norma do que existe pelos confins do espaço?

Foram necessários 413 anos após a morte de Bruno para que tivéssemos uma resposta ao menos parcial a essa pergunta. Em quatro séculos, passamos da mera especulação sobre a existência de outras Terras à observação concreta de planetas que, se não são como o nosso, ao menos podem ser semelhantes.

Hoje, temos uma disciplina em astronomia chamada de planetologia comparada, na qual as propriedades de planetas diversos são examinadas e estudadas em detalhes.

Mesmo que ainda em sua infância, aprendemos já várias coisas: que estrelas, na sua maioria, têm planetas girando à sua volta; que a vida só é possível naqueles que respeitam uma série de regularidades nas suas propriedades astronômicas e que têm composição química bem específica.

Note que quando cientistas falam de vida em outros planetas se referem à vida como nós a conhecemos, isto é, baseada em compostos de carbono e em soluções aquosas. Outros tipos, mesmo que interessantes, são provavelmente ficção. (A menos que a vida tenha evoluído de tal forma que tenha deixado para trás sua carcaça de carbono, existindo numa espécie de rede digital definida em campos eletromagnéticos, sem existência física.)

Se estamos ainda na infância de nossa exploração cósmica, podemos ao menos nos contentar com o que já aprendemos: há centenas de bilhões de planetas na nossa galáxia; se não são infinitos, esses mundos são incontáveis; talvez existam alguns com propriedades semelhantes às do nosso; detalhes da vida nesses mundos dependem da história de cada um e, por isso, somos únicos no Universo, produtos da Terra e de sua história única.

Outras sondas mais poderosas do que a Kepler continuarão a busca. Mas o que já aprendemos demonstra nossa importância cósmica. Por: Marcelo Gleiser Folha de SP

domingo, 2 de junho de 2013

DEFEITOS


O que é uma característica? Segundo o dicionário, pode-se dizer que características são os traços que definem e diferenciam uma coisa de outra, no caso das pessoas, uma pessoa de outra. Essas características quando avaliadas podem ser entendidas basicamente de duas maneiras: se forem consideradas positivas são qualidades; se são consideradas negativas são tomadas por defeitos. No entanto, há aspecto que muitas vezes fica de lado na qualificação das características de uma pessoa: as circunstâncias em que são avaliadas. Vamos trazer esta reflexão ao plano das organizações. Estas circunstâncias valem tanto para a organização quanto para a pessoa, ou seja, ao avaliar as características de um possível colaborador deve-se olhar a organização e a pessoa que vai entrar nela. Se o avaliador olhar só para o colaborador pode contratar uma ótima pessoa para o trabalho, mas péssima para a organização. O contrário também pode acontecer, ou seja, se contratar uma pessoa que combina perfeitamente com a organização, mas não produz os resultados necessários. É imprescindível um alinhamento entre as duas partes para que a contratação seja harmoniosa para a pessoa e para a organização.

Para exemplificar melhor pode-se pensar em algumas características e a partir delas fazer uma avaliação mais de acordo. Há pessoas que tem como características não ter boa relação com as pessoas com quem trabalham, geralmente contribuem para atritos dentro do grupo. Isso pode ser considerado um grande defeito caso ela seja contratada para liderar ou trabalhar com um grupo, ao passo que será uma qualidade interessante quando a pessoa é colocada para trabalhar sozinha. O problema é que algumas vezes a sua capacidade de fazer é considerada como capacidade de liderar, ensinar, motivar, resolver conflitos. Boa parte dos casos é exatamente o contrário, elas são muito boas no que fazem, mas péssimas para liderar um grupo. Deste modo, ser uma pessoa que não consegue trabalhar com grupo será defeito se a pessoa for colocada nesta posição, mas se for colocada para trabalhar sozinha será uma qualidade. 

Outro caso são aquelas pessoas que têm como característica começar e não terminar as tarefas. Quando são colocadas num ambiente em que elas precisam criar e colocar em funcionamento um projeto se dão muito bem. Porém, quando sua posição na organização exige que elas iniciem, desenvolvam e terminem um projeto, aí teremos problemas. É o caso de quem é muito bom para contratar e treinar funcionários, mas tem dificuldades sérias para desligá-los. Essa característica será considerada uma qualidade ou um defeito de acordo com o local onde for admitia a pessoa.

O grande problema é que se avaliam as pessoas de forma desconectada, ou seja, uma característica muitas vezes é vista de modo isolado. Sem contexto, um gênio pode ser considerado um idiota, mas dentro de um contexto, tempo, lugar, relação, circunstância sua genialidade fica evidente. Pode-se citar o caso do Filósofo Georg Cantor que criou a Teoria Geral dos Conjuntos. O mesmo faleceu como um louco, pois suas teorias foram ridicularizadas em sua época. Hoje, no entanto ele é considerado um dos grandes mestres da área da filosofia e da matemática. 

Cada um dos colaboradores pode ser um gênio se alocado de maneira adequada dentro do espaço organizacional. Mesmo aqueles que aparentam certos “defeitos” podem ser aproveitados de maneira que vivam melhor e produzam bem dentro da organização. Uma característica sua pode ser um grande defeito num espaço, mas uma pérola preciosa em outro.

Rosemiro A. Sefstrom