sábado, 31 de março de 2012

O Brasil perdeu o que tinha de melhor

O Brasil perdeu o que tinha de melhor Mário Guerreiro, Filósofo O brasileiro pode ter muitos defeitos e eu os tenho apontado há algum tempo, mas um defeito ele nunca teve e dificilmente terá: falta de senso de humor – um dos mais graves defeitos do ser humano! O brasileiro é capaz de rir até mesmo da própria desgraça, e nas situações trágicas em que ele perde tudo, só não perde essa extraordinária capacidade. Por incrível que pareça um hai-kai de Matsuo Basho - grande poeta japonês do período Tokugawa - expressa, com grande sutileza, exatamente isso que eu disse a respeito do brasileiro. Um ladrão entrou na sua casa e levou tudo quanto lá havia, mas parece que, do ponto de vista do poeta, só não levou mesmo o que não podia levar... O ladrão Só se esqueceu de levar A lua da janela Há quem veja nessa capacidade de rir de si próprio sinais de desdém em relação a tudo e ausência de amor próprio do brasileiro considerando que “desgraça pouca é bobagem”. Mas o grande Nietzsche que seguramente não carecia de amor próprio e de indiferença a tudo, não que disse que “Zombo daquele que não zomba de si próprio”?! Contrariamente aos que vêem os sinais de falta de autoestima e desdém no riso do brasileiro, eu vejo sinais das virtudes da determinação e da superação dos maiores infortúnios. “Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima”. “O que não mata, engorda”. “Brasileiro, profissão: esperança”. Afinal, o que importa não é o que nos atinge, mas sim a maneira como somos atingidos e nossa reação diante da coisa. “O que dá pra rir dá pra chorar; questão de peso e de medida, problema de hora e de lugar”. O Brasil é um país fora de série, tanto no que tem de bom como no que tem de ruim. Tem uma personalidade sui generis. Nossos políticos nos fazem rir e nossos humoristas nos fazem pensar na política. Mas há ao menos dois tipos de humorista: aqueles cujo senso de humor lhes é endógeno: nascem com ele, vivem com ele e morrem com ele. Como Voltaire que, no seu leito de morte, recebeu um padre e este ansioso por convertê-lo, disse para ele “Meu filho, eu sou um embaixador de Deus”. E Voltaire: “Então, mostre-me então suas credenciais.” E aqueles que fazem rir por ofício, como coveiros que não cavam covas para malhar os braços nem por lazer e diversão. Os primeiros fazem humor em cena e fora de cena: são mesmo assim e não conseguem ser diferentes do que são. Os segundos só o fazem por dever de ofício: fora de cena ou desempenhando atividades sérias, eles carecem totalmente de senso de humor. Vejam o caso de Agildo (Barata) Ribeiro. Ele é um sujeito bem humorado dentro e fora cena. O humor é parte constituinte de seu ser. Antes, durante e depois do Cabaré do Barata, aquele quadro cômico da TV em que Agildo conversava com bonecos caricatos de políticos famosos, como Brizola, Maluf, Lula, etc. Vejam o caso de Luís Fernando Veríssimo. Quando ele se propõe a fazer humor cria estórias e tipos assaz hilariantes, como o Analista de Bagé, o maior psicanalista vivo depois de Freud. Bá! Índio velho muy vivo! Porém, quando ele fala sério em seus artigos de jornal exala um esquerdismo delirante e perde totalmente seu sense of humour. Só me faz rir para não chorar ou para não decepcionar um velho amigo que contou uma piada “infame”. Mas não é desses dois humoristas que eu pretendo falar, mas sim de outros dois. No ano da graça ou da desgraça de 2012, lá pelos terríveis Idos de Março em que Júlio César foi traiçoeiramente apunhalado por seu filho adotivo Brutus e alguns senadores de Roma, o Brasil ficou de luto. Perdeu dois de seus maiores humoristas: Chico Anysio e poucos dias depois Millôr Fernandes. Cada qual desenvolveu um estilo de humor, mas ambos foram excelentes no que faziam. Chico criava um humor mais popular, embora nem sempre tivesse se limitado a simples bazófia ou ao besteirol. Muitas vezes seu humor era crítico dos costumes e dos tipos humanos. Foi talvez o mais rico criador de tipos, depois de Balzac na Comédia Humana – que, como A Divina Comédia de Dante, não era coisa para rir - pois criou mais de 200 tipos ao longo de sua carreira. Examinando detidamente seus tipos mais conhecidos, podemos perceber na sua caracterização uma aguçada observação de figuras populares, principalmente do Nordeste bem conhecido por ele, que era de Maranguape (CE). Mas ele não se limitou a ser um humorista regional nordestino. Sua tipologia incluía tipos cariocas, paulistas e até a gaúcha Salomé ao telefone conversando com figuras importantes do cenário nacional com a maior intimidade de uma conversa de comadres. Foram tantos e tão interessantes que careço de espaço para falar sobre eles. Destaco o Painho, aquele pai-de-santo baiano que desmunhecava [Tivesse sido criado hoje, Chico seria considerado homofóbico e teria sido censurado!]. Destaco Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, e seu fiel escudeiro Calunga. Segundo penso, o tipo mais hilariante do ponto de vista plástico da indumentária e da maquiagem. Lembro-me bem do dia em que ele cravou os caninos no pescoço de numa vítima, mas tudo que conseguiu foi quebrar os dentes, podres que estavam por ele não ter dinheiro para pagar dentista. No Brasil, até vampiro, para sugar o sangue, é incompetente! E havia também tipos políticos, como o notável deputado Justo Veríssimo, o representante do povo mais sincero de todos os tempos, que tinha um projeto para acabar com a fome no Brasil. Não distribuindo por toda parte bolsas-família, mas sim dando comida envenenada para os pobres. De fato, sem pobres não há pobreza, a não ser pobreza de espírito. Mas isto não tem remédio que cure! Justo Veríssimo era dotado de uma franqueza cavalar capaz de superar Immanuel Kant e Benjamin Franklin, que alegavam nunca ter mentido em todas as suas vidas. Ele estava sempre dizendo coisas que políticos só costumam dizer em off, cercado de apaniguados complacentes. Coisas tais como: “Eu quero mais que os pobres se explodam”, “Eu só quero mesmo é me arrumar”. “Quem gosta de pobre é empada de botequim e chinelo velho”. Se Chico fazia um humor mais popular, mas nunca descambando para o baixo nível e para a grosseria, Millôr fazia um humor mais intelectual, mas nunca descambando para o hermetismo e para o pedantismo. Além de humorista, ele era um ótimo dramaturgo e tradutor de Shakespeare, por quem tinha grande admiração. Conheci Chico ouvindo a Rádio Mayerink Veiga. Quando eu era criança não perdia A Cidade se Diverte, onde Chico Anysio entrava no ar juntamente com Matinhos, Walter Dávila, Emma Dávila e outros Conheci Millôr lendo a revista Cruzeiro em que ele adotou o pseudônimo de Vão Gogo e tinha uma coluna chamada Pif-Paf. Nunca ninguém foi capaz de escrever peças de teatro tão breves e desconcertantes como as do Teatrinho Relâmpago, um vapt-vupt que terminava invariavelmente com o refrão: Cai rapidamente o pano. Anos depois ele passou a escrever no Pasquim, juntamente com o Jaguar, Paulo Francis e outros. E finalmente encerrou sua carreira em Veja. Para mim, Millôr foi o humorista brasileiro mais inteligente e perspicaz, de uma coerência a toda prova, que sempre se manteve fiel ao que pensava e nunca teve medo de dizer o que pensava, mesmo sabendo que iria desagradar a muitos. Ora, nem Cristo conseguiu agradar a todos e aquele que tenta fazer tal coisa sempre acaba desagradando a si próprio. Seu livro A Bíblia do Caos é uma ótima seleção das melhores do Millôr. E entre suas melhores e das últimas foi uma a respeito dos guerrilheiros de 1968 que, na Nova República, receberam polpudas indenizações e pensões vitalícias para suas viúvas. Millôr chegou à conclusão de que sua ação guerrilheira nada mais era do que um investimento de longo prazo... Mas eu não tinha dito que nossos políticos são pândegos e nossos humoristas nos fazem pensar na política?!

sexta-feira, 30 de março de 2012

Fracassamos

Fracassamos Marco Antonio Villa, Folha de SP Nem o dr. Pangloss, célebre personagem de Voltaire, deve estar satisfeito com os rumos da nossa democracia. Não há otimismo que resista ao cotidiano da política brasileira e ao péssimo funcionamento das instituições. Imaginava-se, quando ruiu o regime militar, que seria edificado um novo país. Seria a refundação do Brasil. Ledo engano. Em 1974, Ernesto Geisel falou em distensão. Mas apenas em 1985 terminou o regime militar. Somente três anos depois foi promulgada uma Constituição democrática. No ano seguinte, tivemos a eleição direta para presidente. Ou seja, 15 anos se passaram entre o início da distensão e a conclusão do processo. É, com certeza, a transição mais longa conhecida na história ocidental. Tão longa que permitiu eliminar as referências políticas do antigo regime. Todos passaram a ser democráticos, opositores do autoritarismo. A nova roupagem não representou qualquer mudança nos velhos hábitos. Pelo contrário, os egressos da antiga ordem foram gradualmente ocupando os espaços políticos no regime democrático e impondo a sua peculiar forma de fazer política aos que lutaram contra o autoritarismo. Assim, a nova ordem já nasceu velha, carcomida e corrompida. Os oligarcas passaram a representar, de forma caricata, o papel de democratas sinceros. O melhor (e mais triste) exemplo é o de José Sarney. Mesmo com o arcabouço legal da Constituição de 1988, a hegemônica presença da velha ordem transformou a democracia em uma farsa. Se hoje temos liberdades garantidas constitucionalmente (apesar de tantas ameaças autoritárias na última década), algo que não é pouco, principalmente quando analisamos a história do Brasil republicano, o funcionamento dos três Poderes é pífio. A participação popular se resume ao ato formal de, a cada dois anos, escolher candidatos em um processo marcado pela despolitização. A cada eleição diminui o interesse popular. Os debates são marcados pela discussão vazia. Para preencher a falta de conteúdo, os candidatos espalham dossiês demonizando seus adversários. O pior é que todo o processo eleitoral é elogiado pelos analistas, quem lembram, no século 21, o conselheiro Acácio. Louvam tudo, chegam até a buscar racionalidade no voto do eleitor. Dias depois da "festa democrática", voltam a pipocar denúncias de corrupção e casos escabrosos de má administração dos recursos públicos. Como de hábito, ninguém será punido, permitindo a manutenção da indústria da corrupção com a participação ativa dos três Poderes. Isso tudo, claro, é temperado com o discurso da defesa da democracia. Afinal, no Brasil de hoje, até os corruptos são democratas. No último dia 15, a Nova República completou 17 anos. Ninguém lembrou do seu aniversário. Também pudera, lembrar para que? No discurso que fez no dia 15 de janeiro de 1985, logo após a sua eleição pelo colégio eleitoral, Tancredo Neves disse que vinha "para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas, indispensáveis ao bem-estar do povo". Mais do que uma promessa, era um desejo. Tudo não passou de ilusão. Certos estavam Monteiro Lobato e Euclides da Cunha. Escreveram em uma outra conjuntura, é verdade. Mas, como no Brasil a história está petrificada, eles servem como brilhantes analistas. Para Lobato, o Brasil "permanece naquele eterno mutismo de peixe". E Euclides arremata: "Este país é organicamente inviável. Deu o que podia de dar: escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está: a bandalheira sistematizada". MARCO ANTONIO VILLA, 55, é historiador e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

quarta-feira, 28 de março de 2012

Lei da inércia

Lei da Inércia Querido leitor, que você esteja bem. Isaac Newton, físico, astrônomo, matemático, um dos maiores pensadores de todos os tempos, escreveu que “um objeto que está em repouso ficará em repouso até que uma força desequilibradora atue sobre ele”. Ele chamou essa ideia de Lei da Inércia.  Inglês, Newton nasceu no natal de 1642 e morreu aos 85 anos, precisamente em 31 de março de 1727. Importante também expor que Isaac Newton escreveu a Lei da Inércia focando sua aplicação para objetos, coisas inanimadas como rochas, árvores, enfim, falava em matéria. Porém, diante do seu enunciado, podemos aplicar a Lei da Inércia para o cotidiano em nossas vidas, ou não?  Vamos a alguns exemplos que vão além do exposto por Newton, pois este, como sabemos, está provado, comprovado e carimbado. Vejamos o lado pessoal dos indivíduos, seus padrões, suas rotinas.  Como observamos, algumas pessoas fazem de suas vidas uma rotina de ir e voltar do trabalho, de ir e voltar do jogo de futebol, sentar e levantar das mesas de refeições, sentar e levantar da frente da televisão... Nada acontece de novo, nada é inovador em suas vidas, tudo é velho. Isso é inércia! Provavelmente essas pessoas passam a existência repetindo coisas que fizeram no dia anterior, e no dia anterior replicando coisas que tinham feito antes de ontem. Enfim, passam numa frenética repetição. Tudo é praticamente igual: repetições, repetições e repetições.  E, de repente, uma força desequilibradora tira você dessa armadilha. Uma demissão, um acidente, uma doença grave, uma tragédia... Enquanto essa força não surge ficamos ali repetindo, repetindo, repetindo.  Voltemo ao enunciado de Newton: “um objeto que está em repouso ficará em repouso até que uma força desequilibradora atue sobre ele”. Isso faz sentido para você?  Lembro-me de Christofer Reev, o ator que ironicamente interpretou o Super Homem que, após uma queda do seu cavalo, ficou tetraplégico. Em entrevista nas páginas amarelas da revista Veja, antes de sua morte, ele comentou que passava horas e horas se deleitando com o som da chuva, dos pingos que iam de encontro das folhas, formavam gotas maiores e caíam sobre as outras folhas logo abaixo. “Antes do acidente não via nenhuma graça e hoje me alimento desses momentos”. Para que esperar ficar tetraplégico para comtemplar a si, o outro, a natureza?  Outro exemplo é o dos japoneses que, sendo um dos maiores consumidosres de peixe do mundo, começaram a ter problemas com este alimento, pois de deslocavam muito para pescar e, quando chegavam com a pesca congelada, não tinha o mesmo gosto. Construíram um navio com porão aberto, onde os peixes, quase sem espaço, chegavam com vida à costa, mas devido ao pouco espaço para se movimentar, também perdiam o gosto.  A solução para trazer os peixes vivos e com um paladar agradável, que os japoneses estavam acostumados, foi de colocar um tubarão juntos com os peixes, só assim eles se movimentavam dentro do curto espaço e chegavam de acordo com o gosto dos clientes.  Algumas pessoas estão atrofiadas em seus corpos e conheço pessoas que a atrofia está nos pensamentos e verbalizam com suas longas e repetidas histórias. Para mim, viver é movimentar-se, afinal de contas, uma água parada apodrece e nós, como sabemos, temos 70% de água em nosso corpo.  É assim como o mundo me parece hoje. E você, o que pensa sobre a lei da inércia. Por: Beto Colombo

Filmes de Páscoa

Filmes de Páscoa João Pereira Coutinho, Folha de SP 1. Brandon é um viciado. Não em drogas, não em bebida, nem sequer em pastilhas socialmente aceitáveis. O negócio dele é sexo. O leitor sorriu com essa possibilidade: sexo é vício que não mata ninguém. E a ciência médica tem dúvidas sobre isso. "Dependência sexual" será uma compulsão patológica ou a melhor forma de aliviar a consciência da mulher traída? Deixemos de lado essas discussões. Voltemos a Brandon. No início de "Shame", filme de Steve McQueen, ele está deitado sobre uma cama. Tronco despido. Pele branca. Rosto pálido, magro, seco. Lençóis muito azuis. McQueen, o diretor, é também artista plástico. O plano não é inocente: uma evocação perfeita de um Cristo nas suas mortalhas, como os maneiristas o pintaram repetidamente. Aquele homem está morto. Difícil saber se haverá ressurreição. Existe uma sequência do filme que exprime esse óbito -e peço desculpa aos leitores por revelá-la aqui (os interessados podem sempre saltar alguns parágrafos): acontece quando Brandon, o supremo predador sexual, não consegue ter relações com uma colega de escritório. A sequência vale o filme porque é, no duplo sentido da expressão, um "turn off". Os dias de Brandon são o avesso desse fracasso: prostitutas, orgias, encontros casuais em bares -o homem é um garfo insaciável. Tão insaciável que a pornografia e a masturbação servem de aperitivo e sobremesa para os pratos principais. Só que Brandon falha naquele prato. A razão é tão simples e trágica que qualquer admiração adolescente por ele morre ali, na cama: a moça era a única mulher com quem Brandon tivera uma sombra de envolvimento emocional. Jantaram antes. Conversaram trivialidades. Beijaram-se, acariciaram-se. E, quando finalmente chegam aos finalmentes, há um olhar trocado entre os dois -um olhar de desejo, sim, mas sobretudo de vulnerabilidade- que acaba com o nosso garanhão. Ele se afasta, cobre o rosto e sente vergonha, a vergonha de que fala o título. Não a vergonha de ter brochado -Brandon encarrega-se, logo a seguir, de contratar uma profissional para mostrar que ainda é homem. Mas nós, testemunhas de tudo, sabemos que ele não é. E que a vergonha maior é esta mesma: a vergonha de ser incapaz de estabelecer com qualquer ser humano uma ligação substancial. Essa incapacidade será amplificada pela irmã de Brandon, que chega a Nova York e instala-se no seu apartamento por uns dias. Sissy é o avesso do irmão: envolve-se muito, sente muito, magoa-se muito. Brandon não gosta do estilo. Não por se preocupar com a irmã -isso é pedir muito para quem deixou atrofiar a linguagem básica da afeição. Mas porque a irmã devolve-lhe o reflexo da seu incomensurável vazio. "Você me encurrala", grita, na noite em que a expulsa do apartamento. Brandon precisa do seu espaço imaculadamente vazio. "Shame" é um dos filmes do ano. Porque há muitos anos o cinema não mostrava, de forma tão sem piedade e adulta, a intransponível solidão de um homem. 2. Michael Fassbender, em "Shame", é um prodígio de representação dramática que Hollywood, na sua temporada de prêmios, não foi capaz de suportar. Mas existe um lugar "ex aequo" para Michel Piccoli em "Habemus Papam". Sou espectador de Piccoli há vários anos e só ele me faria assistir a um filme de Manoel de Oliveira (no caso, "Vou Para Casa", em 2001). Em "Habemus Papam", Piccoli é o cardeal Melville, eleito papa no conclave, que, na hora de apresentação aos fiéis, é acometido por um pânico paralisante. Piccoli é magistral nessa combinação de medo, tristeza e doçura infantil. E o filme de Nanni Moretti, contrariamente ao que foi escrito na Europa, não é um ataque à igreja -ou, mais amplamente, ao cristianismo. Arrisco mesmo dizer que, ao filmar a fragilidade de um homem sobre quem os seus pares (ou o Espírito Santo?) colocaram tão ciclópica tarefa, Moretti realizou uma obra cristã por excelência. "Pai, por que me abandonaste?", teria suspirado Cristo nos momentos finais da sua agonia na cruz. Se ao filho de Deus foi permitido um tal momento de fraqueza, por que não a um mero filho de homens?

segunda-feira, 26 de março de 2012

As filhas da desgraça

Luiz Felipe Pondé, Folha de SP "Eu sou um ex-covarde", escreveu Nelson Rodrigues, no "Globo", no dia 18/10/1968. E continua: "... o medo começa nos lares, e dos lares passa... para as universidades, e destas para as Redações... Sim, os pais têm medo dos filhos; os mestres, dos alunos". Sobre Nelson, leia "Inteligência com Dor, Nelson Rodrigues Ensaísta", de Luís Augusto Fischer (ed. Arquipélago). Grande livro, rodriguiano até a medula: a inteligência é mesmo uma ferida aberta. Paulo Francis dizia que um dia o mundo seria tomado pelos comissários do povo. Chegamos perto disso: os comissários dos ofendidos babam de vontade de tomar conta do pensamento público, esmagando tudo o que não concorda com sua autoestima. Não conseguirão porque o pensamento público é como uma guerra. A arena do pensamento público cria valores na mesma medida em que enfrenta seus algozes. Não ter medo é um tema mais filosófico do que parece. O filósofo alemão Nietzsche, crítico feroz do cristianismo e da metafísica, era na realidade um crítico do medo. A chave de sua crítica ao ressentimento é a identificação do medo como morte do Eros. E Eros é tesão pela vida. Quando ele diz que o homem do futuro não necessitará de artigos de fé, ele não pensa apenas na religião, nível menor da sua crítica e onde muita gente fica, mas sim em artigos de fé menos evidentes como "meu eu", "meus valores", "minha dignidade", "minha concepção de vida" ou "meu direito a autoestima". Enfim, toda essa parafernália brega em moda hoje em dia entre os puritanos seculares (aqueles que perderam Deus, mas continuam derretendo de medo dos seus demônios). Escondidos atrás de esquemas para garantir que seu "eu" não seja inundado pelo pânico da "hostilidade primitiva do mundo", da qual fala Camus. Por isso basta falar de figuras malditas que o horror sobe à superfície. Uma das figuras que mais carrega esse halo de mal é a prostituta, essa filha da desgraça, como dizia Nelson. Basta mencioná-la e o atávico horror vem à tona. E aí..., pânico na bancada da classe média. A classe que se define pelo medo, principalmente quando assume ares de rigor moral: treme em surtos de eterno puritanismo. O problema com a classe média é seu espírito. Diria um marxista blasé que "espírito" é mero epifenômeno do "bolso", mas, como não sou marxista, dou o benefício da dúvida para classe média. O espírito da classe média é um ressentido, por isso teme qualquer abalo em seu mundo do bem. Para ele, enxergar o mundo de frente é fora do orçamento, como uma BMW para alguém que ganha salário mínimo. Mas o que é a prostituta e por que ela é eterna? A prostituta não é apenas o sexo fácil, é a mulher fácil. É o "lugar" onde o homem descansa e, por isso, é parte essencial de toda civilização. Por isso é um mito. Para mim, ver o mito da prostituta nos sonhos femininos mais misteriosos é um elogio ao Eros da mulher. Enfim, talvez nem todos os homens amem as prostitutas, só os normais. O amor à promiscuidade confessa é uma arte rara. Às vezes, segundo as profissionais do ramo, o consumidor nem quer sexo, quer uma "namorada" que o ouça e que ele saiba exatamente quanto custa. Sem ter que pagar pelo "amor" dela (jantares, joias, discussões sobre a relação, cobranças, desempenho sexual, atenção). Os homens temem as mulheres, e as prostitutas são aquelas de quem eles podem ter menos medo porque acham que as tem em suas mãos. Mas é difícil para muitas mulheres entender isso. Quer ver? Colaborei com um veículo importante da mídia numa pesquisa sobre garotas de programa de luxo. Meninas caras, mas nunca tão "caras" quanto namoradas e esposas de verdade. O que disse acima aparece na pesquisa: a prostituta é a companheira fácil, por tempo determinado e custo previamente estabelecido. Mas o incrível é que, mesmo essas profissionais, quando indagadas se achariam que seus futuros maridos precisariam de suas ex-colegas um dia, respondem: "Não, nós seríamos mais do que suficiente para eles". "Ignorance is bliss." A realidade é mesmo insuportável, e a verdade é uma ferida incurável.

sábado, 24 de março de 2012

Estudo da Personalidade Estereotipada do Homem

Wilhelm Reich, um filósofo do corpo, escreveu em um verão, em 1946, um pequeno texto para uso interno de seu Instituto. Nesse escrito ele mostrava, entre outras coisas, o que o homem comum, classe média, homem universal de sua época, fazia a si mesmo. Sua visão de manada, suas reações de coisa, sua alma encarcerada. No consultório, aquele breve texto de Reich, Escuta, Zé Ninguém!, encontra atualizações várias. No meu trabalho em consultório, como filósofo clínico, atendo pessoas em diversas cidades pelo País, ecos de estereotipia, que levam a atualizações do texto de Reich, ecoam. Vejamos um deles. As mulheres deveriam saber, já que muitas parecem não ter notado, que homem é um ser em extinção. Algumas conseguem um exemplar em oficinas, igrejas, indústrias, com muita dificuldade, pois existem imitações ordinárias. É urgente um movimento que hasteie cuecas, camisetas de educação física, de preservação aos últimos espécimes. Reservas ambientais deveriam ser criadas para que este esplêndido animal possa se recuperar. Homem não gosta de aliança, de casamento, de imposto de renda, mas tolera. É um caminho para obter sexo, comida, um canto para dormir e beber água. Mas isso depois acaba sendo tão caro que ele deixa de comer direito e de fazer sexo - ao menos na jaula. Casamento, família, sogra, estas coisas foram feitas para a mulher; estão extinguindo os homens. Não mande, nunca, flores para um homem. Homem mesmo é aquele que olha para uma flor como uma variedade da alface. Mande uma caixa de cerveja forte. Homem não come brócoli nem sabe o que é. Come carne vermelha, malpassada. O pessoal fala mal, diz que homem é grosso, que arrota, mas isso é coisa que diz quem não conhece ou que não gosta de homem. Também gente que tem inveja. Tem muito invejoso por aí. Homem não arrota por falta de educação, arrota porque tem opinião. Não dê carinho a um homem, ele vai pensar que você está doente. Bote uma lingerie e se incline entre ele e a TV no intervalo do jogo. Isso é o mais próximo de carinho que ele vai entender. Para um homem, a mulher é um ser maluco cuja melhor parte é a bunda. Não pense, nem em um minuto de sua vida, que um homem entende você. Se ele entendê-la, certamente não é homem. Homem entende de bomba de gasolina, de taxa de juro, de bunda. Quer agradar convidando para ir a um cinema? Esqueça. Se quiser agradar, não incomode. Se não incomodar já estará agradando. Faça o seguinte: diga a ele que não quer casar, que tem alergia a filhos, que não menstrua porque fez aquele tratamento da Ana Paula Arósio, que não gosta de shopping, que não tem mãe, que sua família mora na África, que você quer sexo sem compromisso, que você ganha seu próprio dinheiro. Se ele acreditar, vai querer casar com você. Mas, atenção, não case! Ele vai saber que é armadilha. Se bem que homem mesmo, homem de fato, é burro para estas coisas; são facilmente abatidos, tanto é que estão em extinção. Pelo menos uma vez por semana coloque uma cerveja na frente do homem para ver se ele está bem de saúde. Desinteresse pode ser febre, alguma infecção. Não diga, nunca mesmo, que sua irmã vem visitar você. Homem não gosta de mulher que tem irmã. Diga que uma pessoa que deve dinheiro a você está trazendo o cheque; ele vai abrir a porta para ela e ficará por perto. Quer sensibilidade? Cultive violetas, rosas. Quer amor? Compre um cachorro. Quer poesia? Leia Cecília Meirelles. Quer conversar? Messenger. Está sozinha? Convide uma amiga para tomar chá. Quer falar sobre aspectos ginecológicos? Ginecologista, claro. Se não aguenta certas coisas e quer se expressar, procure um padre. Mas se, de fato, você insiste em intimidades, se realmente quer se expressar com seu homem, se você é mesmo teimosa, e mulher é, fale que não é necessário trocar o carro, que este está bom; não é preciso pintar o muro, afinal, muro não se pinta; sua família vai se mudar da África para a Ásia; o time dele contratou o zagueiro da seleção. Homem é mentiroso, fanfarrão, exibido, mas sempre de um modo viril. Minta para ele, diga que ele é bom de cama, que nunca você conheceu alguém igual. Ele vai acreditar. Diga que é bobagem ele fazer musculação. Para quê? Para tirar aquela barriga charmosa que se esparrama para fora das calças? Olha, é difícil um homem não acreditar em um elogio, a não ser quando a questão envolva dinheiro.Homem é um bicho pouco inteligente que acha que é inteligente. Alguns pensam que sabem tudo, têm um modo empinado de ver o mundo, e se têm dinheiro e trabalho, usam isso como argumento. São geralmente os mais burros, mas nunca discuta com eles, pois não entenderão. Homem, quando não entende, briga. Quando entende, briga. Quando briga, acha que está certo. É genético. Lembre-se: quem se destaca é o homem; quem tem razão é ele; quem é homem é ele. Você é a mulher, fique sempre um passo atrás. Mesmo que saiba as respostas, pergunte a ele. Não chore, pelo amor de Deus! Geneticamente, o homem não tem como lidar com choro de mulher, ele pensa que é dor, não sabe distinguir. Alva, uma jovem empresária, pouco mais de 30 anos, em 2011, pensa este arrazoado (!) de coisas sobre os homens. Enquanto caminhávamos e conversávamos, parte da consulta dela, Alva concluiu o assunto afirmando que, na opinião dela, a maioria das mulheres concordaria com ela. Por escrever da forma que escrevia, entre outras ideias, Reich foi condenado à prisão em maio de 1956. Alguns meses depois, em março de 1957, esgotados os recursos, foi recolhido à prisão. Em novembro daquele ano, na penitenciária de Ludwigburg, Pensilvânia, morreu no cárcere por um ataque cardíaco. Por:Lucio Packter

segunda-feira, 19 de março de 2012

A síndrome de Schmidt

A síndrome de Schmidt Luiz Felipe Pondé, Folha de SP Não, não se trata de uma doença nova, caro leitor. Apenas de um filme cujo título é "As Confissões de Schmidt", do diretor Alexander Payne, o mesmo de "Os Descendentes", que concorreu ao Oscar neste ano, mas muito melhor do que esse. Para começar, Schmidt é Jack Nicholson, o que já garante metade do filme. Mas o filme vai muito além desse grande ator. Síndrome de Schmidt, nome que eu inventei, descreve o quadro de total melancolia em que se encontra o personagem central, um homem de 60 anos, após a aposentadoria e morte repentina da sua mulher. Mas qual é o diagnóstico diferencial com relação a outras formas de melancolia? Vejamos. O filme abre com um discurso de um colega em sua homenagem, quando Schmidt se aposenta da companhia de seguros em que trabalhou a vida inteira (no caso, companhia de seguros carrega todo o peso de viver para ter uma vida segura). Logo após a morte da sua mulher, ele descobrirá que ela fora amante do colega que discursou em sua homenagem em sua cerimônia de despedida da "firma". A cena da descoberta é feita com requintes de crueldade, porque Schmidt está imerso nas roupas da mulher morta, buscando sentir seu "doce aroma" e assim matar a saudade que sente dela. Schmidt tem uma filha que casará com um sujeito horroroso, de uma família brega que se julga especial: você conhece coisa pior do que festa de Natal em família? Sim: uma festa de Natal em família em que os presentes são frutos da criatividade ridícula dessa família, como no caso da família do genro de Schmidt. Schmidt fazia xixi sentado como menina porque sua mulher o proibia de fazer xixi como menino, a fim de não sujar o banheiro. Esse é sintoma diferencial da síndrome de Schmidt: esmagar-se (mesmo sua fisiologia) para deixar tudo em seu lugar, sem conflitos, amar a paz e o bom convívio em detrimento de si mesmo. No caso específico, não há "questão de gênero" (já que banheiros estão na moda nesse assunto, vale salientar que aqui não é o caso). Primeiro porque eu não acredito em questões de gênero, só em questões de sexo. Depois, porque não se trata de falarmos em homens vítimas da opressão feminina (ainda que se trate de alguma "opressão" nesse caso, já que, afinal, sua mulher o obrigava a fazer xixi como menina e o traiu), mas sim de falarmos de alguém que descobre que sua vida foi e é vazia, apesar de ter sido um pai e esposo dedicado, e não um desses canalhas que saem com mulheres fáceis por aí. A síndrome de Schmidt pode e afeta também mulheres, portanto não é uma questão do sexo masculino. Mas no filme é uma questão masculina (o sexo masculino "suja banheiros") e o é antes de tudo porque, como se sabe, homens trabalham, às vezes até brincam com os filhos, mas são as mulheres que detêm o monopólio da subjetividade e da sensibilidade. Mulheres "conhecem a si mesmas", homens não. Schmidt é uma caricatura do homem que acreditou que, cumprindo seu papel, estaria a salvo da devastação da falta de sentido da vida e do amor. Apesar das modinhas, as mulheres temem a subjetividade masculina como o diabo teme a cruz. Homens não sabem falar de si mesmos. E, no fundo, é melhor que continuem assim (pensam as mulheres e os filhos): vivendo como Schmidt, no silêncio da função paterna e marital. Isso muitas vezes é objeto de piadas nas quais homens são comparados a carroças, enquanto mulheres são comparadas a grandes jatos. Na realidade, a vida comum das famílias supõe que os homens continuem a trabalhar sem crises existenciais; qualquer coisa que se diga ao contrário disso é mais uma mentira da moda. Isso não significa que não existam exceções, mas essas são apenas exceções. Homens com crises existenciais ficam sozinhos. No caso de Schmidt, tudo que sua filha quer é seu cheque, e não sua presença. O filme é bom o bastante para mostrar que talvez nessas famílias "normais" não haja mesmo possibilidade de grandes relações entre pais e filhos, muito menos entre pai e filhos. Talvez esse venha a ser um dos debates do século 21: o que fazer quando os homens começarem a falar?

O humanitário com a guilhotina

O humanitário com a guilhotina POR ORDEMLIVRE · 24 OUTUBRO, 2007 · FILOSOFIA POLÍTICA · por Isabel Paterson A maior parte do mal do mundo é causada por pessoas boas, e não por acidente, lapso ou omissão. É o resultado de práticas deliberadas, nas quais elas insistiram por muito tempo, e que acham ser motivadas por elevados ideais, voltados a nobres objetivos. Isto é demonstrável, e é forçoso que seja. A porcentagem de pessoas más, cruéis ou corruptas é necessariamente pequena, já que nenhuma espécie conseguiria sobreviver se seus membros fossem habitual e conscientemente inclinados a prejudicar uns aos outros. É tão fácil destruir que uma minoria de pessoas mal intencionadas já seria suficiente para exterminar uma inocente maioria de pessoas bem intencionadas. O assassinato, o roubo e a destruição são possibilidades disponíveis a todos os indivíduos, em todos os momentos. Se presumirmos que é apenas o medo ou a força que segura essas pessoas, devemos perguntar do que é que elas têm medo, e quem usaria de força contra elas se todas as pessoas pensassem da mesma forma. Certamente, se fossem contabilizados apenas os males causados por pessoas conscientemente criminosas, o número de assassinatos e a extensão das perdas e danos seriam considerados insignificantes diante do total de mortes e prejuízos causados pelos seres humanos a seus semelhantes. Portanto, é óbvio que em períodos nos quais milhões são assassinados, a tortura é praticada, a fome é imposta e a opressão é uma política pública, como acontece hoje em grande parte do mundo, e como freqüentemente aconteceu no passado, isso ocorre sob o comando de pessoas boas, sendo até resultado de sua ação direta, pois elas almejam um fim que consideram válido. Quando não agem diretamente, participam dando sua aprovação, elaborando justificativas, ou então encobrindo os fatos com o silêncio e desencorajando as discussões. Obviamente, isso não poderia acontecer sem alguma causa ou razão. Vale ressaltar que, na passagem acima, por pessoas boas queremos realmente dizer pessoas boas; pessoas que, conscientemente, não tentariam agir de forma que prejudicasse seus semelhantes e não incentivariam alguém a fazê-lo, nem gratuitamente, nem em próprio benefício. As pessoas boas desejam o bem a seus semelhantes e desejam agir de acordo com esse desejo. Além disso, não pressupomos aqui nenhuma “adulteração de valores”, confundindo o bem e o mal, sugerindo que o bem produza o mal, que não haja diferença entre o bem e o mal ou entre boas e más ações. Tampouco sugerimos que as virtudes das pessoas boas não sejam realmente virtudes. Deve haver, então, um erro gravíssimo nos meios pelas quais essas pessoas buscam atingir seus fins. Talvez haja até um erro em seus axiomas primários, já que elas continuam a usar esses meios. Em algum lugar, algo está terrivelmente errado no procedimento. O que seria? Com certeza, os assassinatos cometidos de tempos em tempos por bárbaros que invadem regiões povoadas ou os cruéis caprichos de tiranos confessos não somariam um décimo dos horrores perpetrados por governantes com boas intenções. Diz-nos a história que o faraó escravizou os antigos egípcios por meio do benevolente programa de estabilização dos celeiros. Estocaram-se alimentos para evitar a fome, mas logo as pessoas foram obrigadas a negociar propriedades e até sua liberdade por tais reservas, que tinham sido formadas a partir do confisco de sua própria produção. A rigidez inumana dos antigos espartanos servia a um ideal cívico de virtude. Os primeiros cristãos foram perseguidos por razões de Estado, pelo bem-estar coletivo; e resistiram em nome do direito à personalidade, pois cada um tinha uma alma própria. Aqueles que Nero matou apenas por esporte foram poucos comparados aos condenados estritamente por razões “morais” por imperadores posteriores. Gilles de Retz, que assassinava crianças para satisfazer uma perversão animalesca, não matou mais de cinqüenta ou sessenta. Cromwell ordenou o massacre de trinta mil pessoas de uma só vez, inclusive bebês de colo, em nome da justiça. Mesmo as brutalidades do tzar Pedro, o Grande, foram justificadas por belos pretextos para que parecessem benesses aos seus súditos. A guerra atual [N. do T.: a Segunda Guerra Mundial], que começou com um tratado perverso entre duas nações poderosas (Rússia e Alemanha), que permitia que esmagassem vizinhos menores impunemente, tratado este que foi rompido por um ataque surpresa contra o colega conspirador, teria sido impossível sem o poder político interno que, em ambos os casos, foi tomado com a justificativa de fazer o bem à nação. As mentiras, a violência e os assassinatos generalizados foram utilizados, primeiramente, contra pessoas de ambas as nações por seus respectivos governos. Podemos dizer, com certa razão, que em ambos os casos os detentores do poder são hipócritas cruéis e que seus objetivos eram maus desde o começo. Apesar disso, eles não poderiam ter assumido o poder de nenhuma outra forma senão com o consentimento e a assistência de pessoas boas. O regime comunista na Rússia ganhou poder prometendo distribuir terra aos camponeses, usando uma fórmula que mesmo os que a prometiam sabiam ser mentirosa. Quando tomaram o poder, os comunistas retiraram dos próprios camponeses a terra que possuíam e exterminaram os que resistiram. Tudo isso foi feito seguindo planos e intenções e suas mentiras foram saudadas como “engenharia social” por admiradores socialistas nos Estados Unidos. Se isso é engenharia, qualquer vigarista é engenheiro. Toda a população da Rússia foi submetida à coerção e ao terror; milhares foram executados sem julgamento; milhões, aprisionados, trabalharam e passaram fome até morrer. Da mesma forma, toda a população da Alemanha foi submetida à coerção e ao terror usando os mesmos métodos. Com a guerra, tanto os russos em prisões alemãs quanto os alemães em prisões russas não estão enfrentando destino pior do que os já experimentados por um grande número de seus compatriotas, por obra de seus próprios governos, em seus próprios países. Se há alguma diferença, seria a de que talvez sofram menos com a vingança de seus inimigos declarados do que com a suposta benevolência de seus compatriotas. As nações européias, conquistadas por russos e alemães, estão experimentando somente agora o que cidadãos de ambos os países já sofrem há tempos nas mãos de seus próprios governos. Para completar, as principais figures políticas que hoje detêm o poder na Europa, incluindo aqueles que venderam seus países ao invasor, são socialistas, ex-socialistas ou comunistas; homens cujas crenças baseavam-se no bem comum. Mesmo tendo essa realidade sido exaustivamente demonstrada, ainda testemunhamos um peculiar espetáculo: o homem que condenou milhões à fome em seu governo é admirado por filantropos que, entre outras coisas, desejam a garantia de que todos no mundo tenham leite disponível para sua alimentação. Um graduado profissional da caridade atravessou meio mundo para ter uma audiência com esse mestre do seu ramo, e para compor rapsódias sobre a concessão de um tal privilégio. Para manter seu emprego, alegando o objetivo de fazer o bem, tais idealistas recebem o apoio político de corruptos, cafetões condenados e gângsteres profissionais. A afinidade entre todos esses tipos invariavelmente se revela quando chega o momento. Mas qual é o momento? Por que a filosofia humanitária do século XVIII europeu conduziu ao Reino do Terror? Isso não aconteceu por acaso, mas seguiu-se da premissa, objetivos e meios originalmente propostos. O objetivo é fazer o bem aos outros, como se isso fosse a justificativa primária da existência; os meios são o poder do coletivo; e a premissa é que o “bem” é coletivo. A raiz da questão é ética, filosófica e religiosa, envolvendo a relação entre homem e o universo e entre sua capacidade criativa e seu Criador. O desvio principal está em não reconhecer a norma da vida humana. Obviamente, uma grande parcela de dor e angústia faz parte da vida. A pobreza, a doença e o acidente são possibilidades que podem ser reduzidas a um mínimo, mas não podem ser completamente eliminadas dos riscos com que a humanidade precisa se defrontar. E não são condições desejáveis, que se deseje provocar ou perpetuar. Naturalmente, as crianças têm pais e a maioria dos adultos tem boa saúde durante a maior parte de sua vida e trabalham em atividades úteis que lhes trazem sustento. Esta é a norma e a ordem natural. As doenças são marginais. Elas podem ser aliviadas pelo excedente marginal da produção; para além disso, nada mais pode ser feito. Portanto, não se pode supor que o produtor exista somente para o não-produtor, o são exista para o doente e o competente para o incompetente; nem que qualquer outra pessoa exista para outra. (O procedimento lógico, que dizia que uma pessoa existia somente para outra, era executado em sociedades semi-bárbaras, em que a viúva ou os seguidores de um morto eram enterrados vivos na mesma sepultura.) As grandes religiões, que também são grandes sistemas intelectuais, sempre reconheceram as condições da ordem natural. Elas tomam a caridade e a benevolência como obrigações morais, a serem cumpridas a partir do excedente do produtor. Isto é, fazem disso algo secundário à produção, pela inescapável razão de que sem produção não haveria nada a ser dado. Conseqüentemente, prescrevem a regra mais severa, a ser adotada voluntariamente, para aqueles que desejam devotar suas vidas inteiramente a trabalhos de caridade, vivendo de contribuições. Tal estilo de vida é considerado uma vocação especial, porque não pode ser um meio de vida comum. Como o arrecadador de doações tem que obter dos produtores os fundos ou bens que distribui, ele não tem nenhuma autoridade para comandar; ele precisa pedir. Quando retira seu próprio sustento das doações, deve tomar não mais que o necessário para sua sobrevivência. Como prova de sua vocação, o arrecadador deve até mesmo desistir da felicidade da vida familiar, se quiser entrar para uma ordem religiosa. Ele nunca pode obter conforto para si da infelicidade alheia. As ordens religiosas mantiveram hospitais, criaram órfãos, distribuíram comida. Parte dessas doações foram dadas incondicionalmente, sem que houvesse compulsão sob o disfarce de caridade. Não é digno fazer um homem se despojar de sua alma em troca de pão. Esta é a verdadeira diferença quando a caridade é prescrita em nome de Deus, e não de princípios humanitários ou filantrópicos. Se os doentes foram curados, os que tinham fome alimentados, os órfãos criados até crescerem, a essas pessoas, sem dúvida, foi feito o bem, e esse bem não pode ser computado somente em termos físicos; essas ações foram executadas com a intenção de ajudar seus beneficiários durante um período difícil, para restabelecê-los à normalidade logo que possível. Se os beneficiários pudessem, mesmo que parcialmente, ajudar a si mesmos, melhor. Caso contrário, admitia-se este fato. Além disso, a maioria das ordens religiosas também se empenhava, simultaneamente, em ser produtiva, para poder doar seus próprios excedentes, e não só distribuir donativos. Quando realizavam um trabalho produtivo, como o de construção, de ensino por uma pequena taxa, da criação de animais e cultivo de vegetais, ou de pequena manufatura e trabalhos de arte, os resultados foram duráveis, não somente em alguns produtos em particular, mas na difusão de conhecimento e de no aprimoramento de seus métodos, de forma que, a longo prazo, a normalidade do bem-estar fosse elevada. E deve ser notado que esses resultados duradouros foram derivados do auto-aprimoramento. O que um ser humano pode realmente fazer por outro? Pode doar seus próprios recursos, seu próprio tempo ou qualquer coisa que lhe sobre. Mas ele não pode doar a alguém habilidades que a natureza negou, nem doar seu próprio sustento sob pena de ele próprio se tornar um dependente. Se ele doa parte do que ganha, deve ganhá-lo primeiro. Certamente, ele tem direito a uma vida doméstica, se pode sustentar uma esposa e filhos. Deverá então reservar o suficiente para si e sua família, para continuar produzindo. Pessoa nenhuma, mesmo que seus ganhos sejam de dez milhões de dólares ao ano, pode cuidar de todas as necessidades no mundo. Porém, supondo que ela não tenha meios próprios, e ainda imagina que pode transformar “ajudar os outros” no principal propósito de sua vida e no seu modo normal de existência – o que é exatamente a doutrina central da crença humanitária – , como essa pessoa poderia atingir seus objetivos? Têm-se publicado listas dos Casos Mais Necessitados, certificadas por fundações leigas de caridade, que pagam ótimos salários a seus próprios funcionários. Os necessitados têm sido pesquisados, não confortados. Com as doações recebidas, os funcionários pagam a si mesmos em primeiro lugar. Essa situação é embaraçosa até para o imperturbável filantropo profissional. Mas como evitar a confissão? Se o filantropo tivesse o domínio dos meios do produtor, ao invés de pedir uma parte, poderia exigir o crédito pela produção, estando assim em posição de dar ordens ao produtor. Então, poderia culpar o produtor por não atender suas ordens de produzir mais. Se o objetivo primário do filantropo, sua razão de viver, é ajudar os necessitados, seu bem em última instância depende de que outros passem necessidades. Sua alegria é o outro lado dos infortúnios deles. Se deseja ajudar a “humanidade”, toda a humanidade deve passar necessidades. O humanitário deseja ser o principal motor da vida dos outros. Ele não pode admitir a existência nem da ordem divina nem da natural, segundo a qual os homens têm o poder de ajudar a si mesmos. O humanitário se coloca no lugar de Deus. Porém, dois fatos incômodos o desafiam; primeiro, quem está bem não precisa de sua ajuda; e segundo, a maioria das pessoas, se não corrompidas, certamente não quer ser “ajudadas” pelos humanitários. Quando se diz que todos devem viver primeiramente para os demais, o que se deve fazer especificamente? Cada pessoa deve fazer exatamente o que qualquer outra quiser, sem limites ou reservas? E somente o que elas quiserem? E se várias pessoas fizerem pedidos conflitantes? Esse esquema é impraticável. Talvez ela vá fazer somente o que é “bom” para os outros. Mas será que os outros sabem o que é bom para eles? Não, esta opção está excluída pelo mesmo problema. Então deverá A fazer o que julga ser bom para B, e B o que julga ser bom para A? Ou deverá A aceitar somente o que pensa ser bom para B e vice versa? Mas isso é absurdo. É claro que a proposta do humanitário é que ele mesmo faça o que ele julga ser bom para todos. E é neste momento que o humanitário prepara a guilhotina. Como seria o mundo que daria ao humanitário mais possibilidades de ação? Só poderá ser um mundo cheio de filas para receber pães, e de hospitais, no qual ninguém possui o poder natural e humano de ajudar a si mesmo ou de resistir a coisas que lhe sejam feitas. E é precisamente este o mundo que o humanitário obtém quando atinge seus objetivos. Quando um humanitário deseja que todos no mundo tenham leite, é evidente que ele não tem o leite, e que não tem como produzi-lo; caso contrário, não estaria apenas desejando. Além disso, mesmo que possuísse quantidade de leite suficiente para doar um pouco a cada pessoa, enquanto seus pretensos beneficiários tiverem condições, e produzirem leite para si mesmos, eles dirão não, obrigado. Então, como o humanitário iria produzir uma situação em que tenha leite para distribuir, e em que todos necessitem de leite? Há apenas um caminho, e este é o uso máximo da força política. Então, o humanitário sente uma extrema satisfação quando ele visita ou ouve falar de um país no qual todo o consumo é racionado. Onde a subsistência é doada, o objetivo do humanitário é atingido: há a necessidade geral e uma força superior para “aliviá-la”. O humanitário na teoria é o terrorista em ação. As pessoas boas dão-lhe o poder que ele demanda porque aceitam sua falsa premissa. O avanço da ciência emprestou a esta premissa uma falsa plausibilidade, graças ao aumento da produção. Sabendo que há o suficiente para todos, por que não podem os “necessitados” serem satisfeitos em primeiro lugar e esta questão ser abandonada para sempre? Neste ponto surge a pergunta: como você definiria os “necessitados”, e a partir de que fontes e por qual poder o sustento lhes seria suprido? As pessoas de bom coração podem exclamar indignadas: “Isto não é tão importante; estreite a definição a um limite extremo, e quando um mínimo irredutível for atingido, não se poderá negar que um homem faminto, mal-vestido e sem-teto seja um necessitado. A fonte da ajuda só poderá ser os meios daqueles que não são tão necessitados. O poder já existe; se pode existir o direito de taxar pessoas para os exércitos, marinhas, polícias locais, construção de estradas ou qualquer outro propósito que se possa imaginar, com certeza, poderá existir algo que torne possível taxar pessoas para a preservação da vida em si.” Muito bem. Peguemos um caso específico. Nos tempos difíceis, nos anos de 1890, um jovem jornalista de Chicago estava preocupado com as terríveis necessidades dos desempregados. Ele queria acreditar que qualquer homem que realmente quisesse trabalhar conseguiria encontrar emprego. Porém, para ter certeza, ele investigou alguns casos. Um deles era o de um jovem vindo de uma fazenda, onde a família talvez tivesse o suficiente para comer, mas precisava de recursos para tudo mais. O garoto da fazenda tinha ido a Chicago procurar emprego e teria certamente, aceito qualquer tipo de trabalho, mas não havia empregos disponíveis. Supomos que ele tenha pedido esmolas para conseguir voltar para casa. Havia outros necessitados, mas estavam a meio continente e mais um oceano de suas casas. Esses não podiam de jeito nenhum voltar só por seus próprios esforços, e não há o que discutir a respeito. Eles simplesmente não podiam. Eles dormiam em calçadas, esperavam por alguma comida – mesmo que insuficiente – e sofriam muito. Havia ainda outra coisa. Entre esses desempregados, algumas pessoas, é impossível dizer quantas, eram excepcionalmente empreendedoras, talentosas ou competentes – e foi isso que as colocou em dificuldade imediata. Elas tinham se livrado por pouco da dependência em um período particularmente difícil; tinham arriscado muito. Extremos se encontravam entre os desempregados; os extremos de um empreendimento corajoso, da pura má-sorte e da absoluta extravagância e incompetência. Um ferreiro que trabalhasse perto da Brooklyn Bridge e desse a um pobre que passava dez centavos para pagar a taxa da ponte não tinha como saber que fazia um empréstimo à imortalidade, a um futuro poeta laureado da Inglaterra. Mas John Masefield era o homem que passava. Portanto, não necessariamente, os necessitados são pessoas que nada merecem. Também há pessoas no campo, que sofreram com a seca ou em áreas atacadas por pragas de insetos, que estavam em extrema necessidade, e que teriam, literalmente, morrido de fome se alguma ajuda não tivesse lhes tivesse sido mandada. Esses também não receberam quase nada e foi tudo de uma forma desorganizada. Mas todos lutaram até a surpreendente recuperação de todo o país. Incidentalmente, teriam havido muito mais dificuldades entre aqueles que só produziam para a subsistência não fosse pelas doações de vizinhos, que não eram chamadas de caridade. As pessoas sempre doam bens, se eles os têm; é um impulso humano, que o humanitário manipula de acordo com seus propósitos. O que haveria de errado em institucionalizar esse impulso natural, transformando-o numa agência do governo? Retornando ao jovem, teria ele feito algo de errado ao deixar sua casa, onde tinha o suficiente ao menos para comer, e ir a Chicago procurar por trabalho? Se a resposta for sim, então deveria haver um poder legítimo que o impedisse de deixar a fazenda sem permissão. O poder feudal fez isso. Essa atitude não impediu que pessoas passassem fome, apenas as forçou a passar fome onde tinham nascido. Mas se a resposta for não, o garoto da fazenda não fez nada de errado. Ele tinha o direito de dar-se aquela chance. Então, o que deve ser feito para termos certeza de que ele não irá passar por dificuldades, quando chegar ao local que escolheu como destino? Podemos prover empregos para qualquer pessoa, em qualquer lugar que ela escolha? Não, isso é um absurdo. Não pode ser feito. Ela terá direito a assistência, se escolher ficar por lá, ou terá, ao menos, direito a uma passagem de volta para casa? Isso é igualmente absurdo. A demanda seria ilimitada e não haveria abundância de produção que a absorvesse. Porém, as pessoas que foram empobrecidas pela seca não poderiam ter sobrevivido sem receber assistência governamental? Aí, a questão seria sob que condições receberiam tais benefícios. Elas receberão assistência enquanto passarem por necessidades, enquanto permanecerem onde estão? (Elas não podem ser financiadas para viagens sem destino.) Isso é exatamente o que tem sido feito nos últimos anos; e assim, mantiveram-se destinatários de doações por sete anos em ambientes sujos, desperdiçando tempo, trabalho e sementes no deserto. A verdade é que qualquer método proposto que realmente combatesse as necessidades e angústias da vida humana, por estabelecer um imposto fixo sobre a produção, seria adotado com satisfação por aqueles que hoje a ele se opõem, caso fosse viável. Eles se opõem a esses métodos porque são impraticáveis em sua natureza. Essas pessoas já tentaram todos os meios possíveis para combater suas próprias necessidades futuras, na forma de um seguro privado; e eles sabem exatamente qual é o problema, porque se defrontam com ele quando tentam assegurar o sustento de seus próprios dependentes. O obstáculo insuperável é que é absolutamente impossível tirar algo da produção antes de tirar para a própria subistência. Mesmo que os produtores, os administradores de indústrias e outros realmente tivessem frios corações de aço e não dessem a mínima importância para o sofrimento humano, ainda assim seria mais conveniente para eles se a questão da assistência a todos os tipos de problemas, seja o desemprego, a doença ou a velhice, pudesse ser sanada de uma vez por todas. Assim, não precisariam mais ouvir falar desse assunto. Os administradores estão sempre sendo atacados por causa disso; e o ataque dobra quando a indústria entra em recessão. Os políticos podem conseguir votos a partir de crises; os humanitários conseguem empregos lucrativos em escritórios, distribuindo fundos de assistência; só mesmo os que estão envolvidos na produção, os capitalistas ou os trabalhadores, sofrem as conseqüências e pagam o preço de uma crise. A dificuldade aparece melhor num caso particular. Suponhamos que um homem, que possua um negócio bem lucrativo, que vai muito bem, com um longo histórico de boa administração, deseje garantir à sua família rendimentos futuros provenientes deste negócio. Ele deve, como proprietário, estar em posição de poder planejar para a família retornos de determinada quantia; digamos que esse retorno fosse de somente 5.000 dólares/ano, em um negócio que pagasse 100.000 dólares por ano de lucro bruto. Esse plano é o melhor que ele poderia fazer; porém, se em algum momento, o seu negócio não conseguir render o suficiente para que sejam retirados os 5000 dólares, sua família não receberá o dinheiro. Eles devem preocupar-se com a falência e com seus bens, mas seus bens depois da falência podem já não valer mais nada. É impossível tirar algo da produção antes de tirar para a própria subistência. Além disso, é claro que a família do empresário pode hipotecar sua parte na empresa ou doá-la a algum amigo “benevolente” que possa “administrá-la” – algo que acontece, como se sabe – ; então, de qualquer forma, eles não receberiam o dinheiro. É esse o caso de organizações de caridade sustentadas por um fundo. Elas sustentam vários amigos com empregos pouco exigentes. Mas e se o empresário, com sua grande generosidade, determinasse, irrevogavelmente, que sua esposa e sua família teriam uma conta, cujos cheques seriam cobertos com os fundos da empresa, para sacar o quanto quisessem. Ele poderia estar, inocentemente, certo de que eles nunca sacariam mais que uma pequena porcentagem para suas verdadeiras necessidades. Porém, poderia chegar o dia em que o caixa diria a feliz esposa que não havia fundos para cobrir seu cheque; e, se a empresa seguisse tal determinação, este dia chegaria rapidamente; nos dois casos, bem quando a família mais precisasse de mais dinheiro, a empresa lhe renderia menos. Mas o procedimento seria completamente insano se o empresário desse a um terceiro o poder irrevogável de sacar o quanto quisesse dos fundos da empresa, respeitando apenas o acordo impossível de cumprir de que esse terceiro sustentaria a família do empresário. Essa opção é exatamente a proposta de se cuidar dos necessitados por meios governamentais. A idéia dá aos políticos o poder ilimitado de cobrar impostos; e não há absolutamente nenhum meio de se garantir que o dinheiro vá para onde deveria. De todo modo, nenhuma empresa suportaria uma evasão de recursos ilimitada. Por que as pessoas de bom coração convocam o poder político? Elas não têm como negar que os recursos para os benefícios deva vir da produção. Mas dizem que há recursos suficientes e que até sobram. Então, devem supor que os produtores não desejam doar o que “devem”. Além disso, supõem também que há um direito coletivo de cobrar impostos para qualquer objetivo que a coletividade determinar. Elas localizam aquele direito no “governo”, como se este existisse por si, esquecendo o axioma americano de que o governo não existe por si, mas é instituído pelos homens para exercer papéis limitados. O próprio pagador de impostos espera proteção do exército, da marinha e da polícia; ele utiliza as estradas; logo, seu direito em insistir em que a taxação seja limitada é evidente. O governo não tem nenhum “direito”, apenas a autoridade que lhe foi delegada pelo indivíduo. Mas se cobram-se impostos para prestar assistência aos necessitados, quem julgaria o que seria possível ou positivo? Os produtores, os necessitados ou um terceiro grupo. Dizer que deveríamos ter os três juntos não responde à questão; o veredito deve balançar entre a maioria ou pluralidade de um grupo ou de outro. Irão os necessitados votar no que quiserem em benefício próprio? Ou os humanitários, o terceiro grupo, votarão em si mesmos para controlar ambos, os produtores e os necessitados? (Isso eles já vêm fazendo.) O governo deveria, supostamente, dar “segurança” aos necessitados. Mas não pode. O que o governo faz é tomar os recursos acumulados por pessoas, para sua própria segurança; assim, priva todos de qualquer esperança ou chance de ter alguma segurança. O governo não pode fazer nada além disso, se fizer alguma coisa. Aqueles que não entendem a natureza da ação são como selvagens, que cortariam uma árvore para colher o fruto; eles não levam em consideração o tempo e o espaço, como fariam homens civilizados. Nós vimos o que pode acontecer de pior quando há apenas assistência privada e assistência estatal improvisada de caráter temporário. A caridade privada sem organização é aleatória e esporádica, e nunca conseguiu prevenir completamente o sofrimento. Porém, ela nunca perpetuou a dependência de seus beneficiários. É o método do capitalismo e da liberdade, que envolve altos e baixos extraordinários, mas os altos são sempre cada vez maiores e mais longos que os baixos. E nos piores momentos, não existiu fome real, nenhum desespero terrível, mas um otimismo ativo e estranhamente nervoso, e uma crença inabalável de que tempos melhores viriam, a qual foi justificada pelos resultados. A caridade privada e não-oficial efetivamente atendeu aos propósitos. Funcionou, ainda que imperfeitamente. Por outro lado, o que pode fazer o poder político? Um dos “abusos” atribuídos ao capitalismo eram os sweatshops [N. R.: fábricas de trabalho pesadíssimo]. Imigrantes chegavam aos Estados Unidos, sem dinheiro, sem conhecer a língua e sem nenhuma experiência em trabalhos que exigissem alguma habilidade; eram contratados por salários muito baixos, trabalhavam por longas horas, em péssimas instalações, e dizia-se que eram explorados. Ainda assim, misteriosamente, com o tempo, eles melhoraram sua qualidade de vida; a grande maioria adquiriu conforto, e alguns conseguiram riqueza. Será que algum poder político poderia ter fornecido trabalhos lucrativos para todo mundo que desejasse vir? Claro que não poderia – e não pode. Desta forma, as pessoas boas clamaram pelo governo, para que aliviasse o fardo desses novos imigrantes que chegavam. O que fez o governo? Sua primeira providência foi determinar que cada imigrante deveria trazer consigo uma certa soma em dinheiro. Isto é, tirou dos mais necessitados no estrangeiro sua única esperança. Depois, quando o poder político transformou a vida na Europa num triste inferno, mas muitas pessoas ainda conseguiam juntar a soma exigida para serem admitidos nos EUA, o governo americano simplesmente reduziu a admissão de imigrantes a uma determinada cota. Quanto maiores fossem as necessidades, menores eram as oportunidades concedidas pelo poder político. Será que milhões e milhões de pessoas na Europa não estariam felizes e gratos, se pudessem ter tido uma oportunidade como as oferecidas pelo antigo sistema, em vez de campos de concentração, porões de tortura, vis humilhações e mortes violentas? O proprietário do sweatshop não possuía muito capital. Arriscava o pouco que tinha empregando pessoas e era acusado de fazer-lhes algo terrível e seu negócio era considerado revelador da brutalidade do capitalismo. Um funcionário do governo é razoavelmente bem pago e tem um emprego estável. Não arrisca nada e recebe seu salário para empurrar pessoas desesperadas para fora das nossas fronteiras, como a homens que, em vias de se afogar, fossem espancados para largar as bordas de um barco cheio de provisões. O que mais pode fazer um funcionário do governo? Nada. O capitalismo fez o que podia; o governo faz o que pode. A propósito, o barco foi construído e equipado pelo capitalismo. Para analisarmos as ações do filantropo e do capitalista privado, peguemos o caso de um homem que esteja realmente necessitado, mas não incapacitado, e suponhamos que esse filantropo lhe dê comida, roupas e abrigo – quando terminar de usar o que lhe foi doado, estará onde estava antes, porém, pode ter adquirido o hábito da dependência. Por outro lado, suponhamos que alguém, sem nenhum motivo benevolente, simplesmente desejando que algum trabalho seja feito, deseje empregar o necessitado e pagar-lhe um salário. O empregador não terá feito nenhuma boa ação. Ainda assim, a condição do homem empregado foi mudada. Qual é a diferença vital entre as duas ações? A diferença é que o empregador não-filantrópico trouxe o trabalhador de volta à linha de produção, ao grande circuito de energia; ao passo que o filantropo só pode desviar essa energia de tal maneira que não haja retorno para a produção, diminuindo assim a probabilidade do objeto de suas benesses encontrar algum emprego. Eis a razão profunda e racional pela qual os seres humanos fogem da assistência e chegam até a odiar a palavra. Essa é também a razão pela qual as pessoas realmente vocacionadas que desenvolvem trabalhos de caridade fazem o melhor possível para mantê-lo à margem, e com prazer abririam mão de “fazer o bem” se houvesse qualquer oportunidade de o beneficiário trabalhar em condições minimamente aceitáveis. Aqueles que não têm alternativa exceto a caridade sentem e exibem fisicamente os resultados: são excluídos das fontes vivas da energia auto-renovável, e sua vitalidade se esvai. O resultado, se filantropos e políticos os mantêm dependentes de assistência por um tempo longo o suficiente, foi descrito por um profissional da assistência. No inicio, os “clientes” se inscrevem com certa relutância. “Em poucos meses,tudo muda. O sujeito que só queria o suficiente para resolver acaba se adaptando e vivendo da assistência, como se fosse normal.” O funcionário que deu esta declaração estava ele próprio “vivendo da assistência, como se fosse normal”, mas estava um degrau abaixo de seu ‘cliente’, já que nem mesmo reconhecia sua própria condição. Como conseguiu desviar-se da verdade? Escondendo-se atrás de seus motivos filantrópicos: “Nós ajudamos a prevenir a fome, e vemos que estas pessoas, hoje, possuem algum tipo de moradia e abrigo”. Se perguntássemos ao agente se ele planta a comida, constrói os abrigos ou doa seu próprio dinheiro para pagar por eles, ele não veria a menor diferença entre fazer isso ou não. Ele foi ensinado que é certo “viver pelos outros”, para “objetivos sociais” e pelos “ganhos sociais”. Enquanto ele acreditar que está fazendo aquilo, não vai perguntar a si mesmo o que está exatamente fazendo aos outros, nem de onde vêm os meios para seu sustento. Se reuníssemos todos os filantropos sinceros, desde o inicio dos tempos, descobriríamos que todos eles juntos, exercendo suas atividades filantrópicas, nunca trouxeram à humanidade um décimo dos benefícios advindos dos esforços normalmente em interesse próprio de Thomas Alva Edison, para não mencionar as grandes mentes que explicaram os princípios científicos que Edison aplicou. Inumeráveis pensadores, inventores e organizadores contribuíram para o conforto, a saúde e a felicidade de seus semelhantes – porque esses não eram seus objetivos. Quando Robert Owen tentou administrar eficientemente uma fábrica, o processo naturalmente melhorou o caráter de alguns de seus funcionários, pessoas que tinham estado sob assistência, e estavam tristemente degradadas. Owen enriqueceu e, comprometido com seu projeto, lhe ocorreu um dia que se fossem pagos melhores salários talvez a produção crescesse, já que o mercado estava criado. Isso foi perspicaz e verdadeiro. Mas depois Owen foi inspirado por ambições humanitárias, tentando fazer o bem a todo mundo. Reuniu vários humanitários em uma colônia experimental; eles estavam tão preocupados em fazer o bem aos outros, que ninguém trabalhava nunca. A colônia se dissolveu, cheia de ressentimentos. Owen faliu e morreu vagamente louco. Assim, o importante princípio que vislumbrara teria de esperar um século para ser redescoberto. Sempre encontramos o filantropo, o político e o cafetão aliados, pois têm as mesmas motivações e buscam os mesmos fins – existir para os outros, por meio dos outros e pelos outros. As boas pessoas não podem ser desculpadas por apoiá-los. Também não podemos acreditar que as pessoas boas sejam totalmente ignorantes em relação ao que realmente acontece. Porém, quando essas pessoas realmente sabem, como certamente sabem, que três milhões de pessoas (pelo menos estimadamente) morreram de fome em um ano pelos métodos que aprovam, por que ainda se associam com assassinos e apóiam suas medidas? Porque lhes foi dito que a morte de três milhões pode vir a beneficiar um número maior de pessoas. O argumento se aplica igualmente bem ao canibalismo. Reproduzido de The God of the Machine (1943) Tradução por Magno Karl.

Não matarás

Não matarás - ROBERTO ROMANO O Estado de S.Paulo - 18/03/12 Os últimos dias trouxeram notícias terríveis sobre a ética pública. Notamos uma radicalização das teses sobre o aborto e o infanticídio praticado contra seres vistos como anormais ou monstruosos. No fundo de tais propostas temos a sempiterna eugenia, ideia arcaica já presente em Platão e defendida por todas as formas tirânicas de poder, antigas e modernas. O símile usado por Platão é brutal, mas serve até hoje aos depuradores do mundo: existem raças de cachorros e pássaros, nas quais surgem indivíduos ótimos ou péssimos. Naturalmente, os reprodutores devem ser apenas os melhores e os mais jovens. Usando cachorros, gatos, pássaros, cavalos, Platão explica o caso humano, sendo o mundo das bestas amestradas um símile a seguir na cria dos melhores. Como chegar à excelência na gênese dos seres? Os governantes devem imitar os médicos que usam remédios ousados. O fármaco exato encontra-se na eugenia. "É preciso que a elite dos homens se una com mais frequência à elite das mulheres e, com menor intensidade, que os piores dentre os homens se unam às piores mulheres. Os filhos dos primeiros devem ser criados, não os dos segundos, se desejamos que o rebanho mantenha sua qualidade eminente." Até aqui, o rebaixamento dos governados à condição bestial, algo que foi transmitido a todos os governantes assassinos do Ocidente. A seguir vem o pior no "remédio" platônico: "Todas as disposições relativas a tal procedimento devem ser ignoradas pela maioria das pessoas, salvo pelos magistrados". Preste atenção à frase, leitor idôneo. O hábito, ao discutir esse trecho de A República, é nos fixarmos no "remédio", o infanticídio. Mas a maneira de aplicar tal medida é o segredo, técnica que gerou a razão de Estado e a censura, cujo ápice se encontra no totalitarismo, nazista ou stalinista. Eric Voegelin indica o quanto é assustadora a prática recomendada por Platão, segundo a qual os magistrados garantem o sigilo do governo. "Em abril de 1941, todos os procuradores de Justiça chefes e os presidentes das Cortes de Apelação tinham declarado seu apoio ao programa da eutanásia (...) o secretário de Estado do Ministério da Justiça, dr. Franz Schlegelberger, fez uma preleção (...) em que declarou que a ação 'T 4' era legal. Nenhum dos mais de cem membros mais antigos, entre os quais estava o presidente da Suprema Corte, Erwin Bumke, apresentou objeções. Os pormenores da campanha 'T 4' (...) foram submetidos aos juristas. Explicou-se mais tarde que Hitler não queria uma lei para as medidas de eutanásia, mas que elas continuariam com fundamento em seu decreto legal pessoal. A campanha, notificados os juristas, foi executada como 'segredo do Reich'" (E. Voegelin: Hitler e os Alemães). Sobre a 'T4', falemos do lugar secreto: Tiergartenstrasse 4 (Rua do Jardim Zoológico), prédio onde as atrocidades eugênicas foram cometidas, no apuro do rebanho. Bem platônico o ambiente, basta reler A República (livro 5, 459). Naquele e noutros edifícios seriam destruídos os "piores" em prol dos "melhores". Os primeiros seriam judeus, ciganos, alemães incuráveis. Assim, milhares de pessoas foram assassinadas, pela fome e por remédios. A 'T 4' foi o prelúdio do Holocausto. Ela começou em 1939, quando Hitler mandou seu médico pessoal, Karl Brandt, avaliar o pedido de certa família para dar "morte piedosa" ao filho, defeituoso físico e mental. O ato bondoso ocorreu em julho de 1939. Platão recomendava seu "remédio" para o bem dos governados. A nobre mentira repete-se em todos os lábios assassinos, filosóficos ou não. Parte do mundo vive em regime democrático. Nele o segredo dos Poderes é atenuado pela imprensa. Mas subsistem mitos eugênicos. As pesquisas médicas, de engenharia e genética podem seguir (não é algo definido na essência do saber científico) a renitente história do "aperfeiçoamento". É possível tomar vias diversas, na ética e na ciência, pois esta última não se destina apenas à tarefa que frutificou na eugenia. Mas o nazismo está vivo e o veneno antissemita foi propagado de mil modos. É preciso cautela diante de doutrinadores que preparam massacres. Ao ler um panfleto, exposto como "artigo científico" no Journal of Medical Ethics, ficamos pasmos. Após os escritos de Alfred Rosenberg e similares, jamais foi impresso algo tão frio e tão pleno de charlatanismo como o texto de Alberto Giubilini e Francesca Minerva, professores de Filosofia em Milão e Melbourne, After-birth abortion: why should the baby live? (Aborto pós-nascimento: por que o bebê deveria viver?). Dizem eles que o feto e o recém-nascido são "moralmente equivalentes" porque são "apenas" potencialmente pessoas. Aristóteles é pilhado e sua filosofia serve, com a ideia de potência e ato (o homem é o ato para o qual tende o infante) como instrumento para racionalizar o infanticídio. A potência supõe uma perfeição final que ninguém, nem mesmo os sofistas da ética, pode prever quando ocorrerá. Entes de 1, 2, 20 anos podem ser eliminados, seguindo as premissas dos autores. No Brasil as propostas de crimes são feitas sob a capa de "progressismo" e "liberdade de escolha". Surgem doutas desculpas jurídicas em comissões oficiais, que aventam a incapacidade de manter um filho para permitir o aborto. Logo, o Estado não poderá, seguindo a mesma lógica, sustentar seres indesejados, sobretudo se "monstruosos" (discuti o ponto em meu livro Moral e Ciência, a Monstruosidade no Século 18). Graças à democracia, tais receitas letais são parcialmente conhecidas pela opinião pública. O perigo é eminente, no entanto. Uma diminuta censura contra a liberdade de imprensa e todas as permissões serão concedidas aos assassinos disfarçados de políticos, filósofos, juristas, psicólogos ou médicos. Eles agirão, seguindo o ensino platônico, em segredo. Quem tiver consciência grite, para depois não se espojar na lama dos rebanhos.

domingo, 18 de março de 2012

As relações humanas

Resenha. AS RELAÇÕES HUMANAS Sêneca escreveu As Relações Humanas em sua velhice quando já se tinha retirado da Corte para sua casa de campo. É uma série de cartas que ele dirige a Lucílio, não apenas um discípulo à distância, mas um amigo com quem ele partilha conhecimentos. A amizade é concebida como uma relação em que as parte se doam em envolvimento profundo, tal como ele diz inicialmente: "tu não poderás ler-me, não poderás lucrar com as minhas cartas se não souberes o que devemos ser um para o outro, se não compreenderes que essa troca de cartas deve também ser uma troca de almas". Assim, as cartas consagradas à amizade é um prelúdio que exorta o discípulo a cultivar com o mestre uma amizade virtuosa e inteira, para em seguida propiciar o desenvolvimento de temas mais aprofundados, aqueles que levarão o amigo à sabedoria. É assim que na seqüência vem os temas da eloqüência e dos livros, da atitude do sábio diante da morte, e, por último, a filosofia. Procura-se conduzir uma alma de qualidade à sabedoria, a discernir os verdadeiros valores, a viver segundo a Razão, a guiá-la para a contemplação da Natureza, portanto do Divino. O verdadeiro conhecimento é aquele que permite descobrir a Natureza e viver em harmonia com ela. Sobretudo, ele nos liberta do medo da morte. É missão do filósofo levar o homem a superar essa angústia. Meditações aprofundadas sobre a morte, sobre a amizade, sobre a filosofia, são encaminhadas a seu destinatário. O professor-amigo é uma chama viva, sempre à procura, dando de si ao outro para dar-se a si mesmo. Nas relações humanas o perigo é coisa de todos os dias, escreve a Lucílio. Orientava o filósofo que precaver-se bem contra este perigo, estando sempre de olhos bem abertos: não há nenhum outro tão frequente, tão constante, tão enganador! A tempestade ameaça antes de rebentar, os edifícios estalam antes de cair por terra, o fumo anuncia o incêndio próximo: o mal causado pelo homem é súbito e disfarça-se com tanto mais cuidado quanto mais próximo está. Faz-se mal em confiar na aparência das pessoas que a nós nos dirigem: têm rosto humano, mas instintos de feras. Só que nestas apenas o ataque direto é perigoso; se nos passam adiante não voltam atrás à nossa procura. Aliás, orienta Sêneca, somente a necessidade as instiga a fazer mal; a fome ou o medo é que as forçam a lutar. O homem, esse, destrói o seu semelhante por prazer. Tu, contudo, pensando embora nos perigos que te podem vir do homem, pensa também nos teus deveres enquanto homem. Evita, por um lado, que te façam mal, evita, por outro, que faças tu mal a alguém. Alegra-te com a satisfação dos outros, comove-te com os seus dissabores, nunca te esqueças dos serviços que deves prestar, nem dos perigos a evitar. Que ganharás tu vivendo segundo esta norma? Se não evitas que te façam mal, pelo menos consegues que te não tomem por tolo. Acima de tudo, porém, refugia-te na filosofia: ela te protegerá no seu seio, neste templo sagrado viverás seguro ou, pelo menos, mais seguro. A sabedoria de Sêneca não se limitava a teoria. Sua prática voltava-se para si mesmo, numa passagem ele pergunta: Que progresso já consegui? Comecei a ser amigo de mim mesmo.

sábado, 17 de março de 2012

A tirania do bem

A tirania do bem Rodrigo Constantino, Folha de SP Há exagero nas tentativas de controlar o tabagismo no Brasil? SIM A cruzada antitabagista segue com força total. Após a obrigatoriedade daquelas imagens terríveis no maço de cigarros, da suspensão de propagandas e do banimento dos "fumódromos", eis que a Anvisa aprovou agora a proibição de sabor nos cigarros. O objetivo da agência está evidente: querem sumir com o tabaco da face da Terra. Há duas maneiras de se criticar esta postura. A primeira delas é com base em princípios, tais como a liberdade individual. Não cabe ao governo nos proteger de nós mesmos. Viver é sempre uma aventura arriscada. Cada um deve ser livre para escolher como encarar esta jornada, assumindo a responsabilidade por seus atos. Parte da liberdade é o direito de escolher ir ao "inferno" à sua maneira. Ninguém ousaria afirmar que os indivíduos desconhecem os riscos associados ao tabaco. Eles já são mais do que divulgados. Ainda assim, deve ser um direito inalienável assumir tais riscos, se esse for o desejo. O risco de vício também é conhecido antes de o sujeito começar a fumar. Além disso, vários outros produtos podem viciar, inclusive o álcool. O abuso de alguns não deve tolher o uso dos demais. Uma pessoa pode levar uma vida de abstinência total das substâncias prejudiciais à saúde e sofrer um acidente ou mesmo contrair uma doença terrível como o câncer. Outra pode beber, fumar e viver uma longa vida - menos chata, diriam alguns. A probabilidade de ele ter câncer de pulmão pode ser maior, mas impedi-lo de optar pelo risco é solapar sua liberdade mais básica. Adotar políticas intervencionistas somente com base nas probabilidades é ignorar o indivíduo e a sua singularidade. Regimes coletivistas, como o nazismo, o comunismo e o fascismo, seguiram esse caminho, desembocando no totalitarismo. O indivíduo passa a ser um simples meio sacrificável pela maioria. Alguns argumentam que o fato de existirem impostos para manter o SUS justifica tal intervenção. Se nós pagamos a conta, então podemos impor restrições aos outros para reduzir o risco de doença. Trata-se de uma linha de raciocínio que leva inexoravelmente ao totalitarismo. Com base nela, o governo poderia também obrigar cada um a praticar exercícios físicos diariamente, além de cortar a fritura, a gordura, o sal e o açúcar. Tudo em prol da saúde geral. A segunda forma de atacar a postura da Anvisa é pelo resultado prático de suas medidas. Ao dificultar a venda legal de cigarro, a agência não faz desaparecer a demanda por ele. Ela apenas transfere a oferta para a informalidade. Empregos e impostos serão perdidos, e o contrabando será alimentado - com o risco agravado pela má qualidade do produto. Cerca de 30% do mercado de cigarros no país já é ilegal. Os contrabandistas agradecem o fervor da Anvisa em lutar pelo bem geral, tal como Al Capone celebrava a Lei Seca em Chicago. Aliás, é no mínimo curioso que muitos dos que aplaudem a cruzada antitabagista são os mesmos que defendem a descriminalização da maconha. Incoerência total. Muito me preocupa este movimento coordenado em busca de uma espécie de "saúde perfeita". Seria isto uma nova seita religiosa e moralista? Seria o resultado de uma geração acovardada, que pensa ser viável abolir os riscos de se viver? Se o indivíduo quiser adotar essa postura no âmbito particular, trata-se de um direito seu. Mas, quando a coisa vira uma imposição coletivista, a liberdade corre sério perigo. As piores tiranias são feitas em nome do bem geral. Com a consciência limpa, esses tiranos são incansáveis em suas ambições "altruístas". Apenas para constar: não fumo. - RODRIGO CONSTANTINO, 35, é economista com MBA em finanças pelo Ibmec (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais)

Os donos do poder

Os donos do poder Donald Stewart Junior* É crença geral que os donos do Brasil são aqueles que são donos de alguma coisa:donos de casas, apartamentos, empresas, fazendas, títulos, ações, direitos, etc. É compreensível que assim seja porque todos nós, seres humanos, queremos sempre ser donos de mais alguma coisa, o que nos leva a crer que os donos de todas as coisas são os “donos do Brasil”. O que também leva a maioria das pessoas, seja por inveja, seja por uma sensação de injustiça, a hostilizar os empresários, os banqueiros, os fazendeiros, os ricos, os herdeiros, os que são os donos das coisas, enfim. Curiosamente essa mesma hostilidade não ocorre em relação aos que são donos de um talento qualquer como compor música ou jogar futebol, embora não raro esses artistas possam ser donos de mais coisas do que os que são hostilizados como proprietários. Talvez seja porque todos nós podemos aspirar a vir a ter aquilo que os sem um talento específico conseguiram ter e certamente nenhum de nós imaginaria ser possível vir a ter o talento de um Chico Buarque ou de um Ronaldinho. Confortados por essa hostilidade, com o ego atendido ao qualificar como injustiça o resultado que lhes desagrada, a imensa maioria das pessoas não chega a perceber quem são, na realidade, os verdadeiros donos do Brasil. Os verdadeiros “donos do Brasil” são os políticos. Não porque sejam os donos das coisas, mas porque são os donos de todos nós, os brasileiros, que somos apenas os donos das coisas. São eles que têm o poder de nós tornar mais ricos (os das elites empresariais que são beneficiados por alguma forma de proteção ou privilégio que os governo lhes concedeu), ou mais pobres (empobrecidos), que compõem a imensa maioria e que sofrem as conseqüências das medidas adotadas pelos políticos). São eles que podem confiscar nossa poupança, conceder-nos aposentadorias milionárias, dar benefícios a empresas nacionais ou multinacionais para instalar seu negócio na sua área de influência, gastar mais do que arrecadam gerando um déficit público e por conseqüência uma dívida pública – e não pagar a dívida assim gerada. São eles que podem reduzir o poder de compra dos assalariados via inflação (poder que tem sido bem menos usado nos últimos anos, mas que pode voltar a ser usado a qualquer momento), aumentar os impostos no último dia do ano, todos os anos, aumentar ou não a taxa de câmbio, a taxa de juros. São eles que podem criar novos municípios, estados e os seus aparatos burocráticos (forma criados mais de mil desde 1990), embora a sua arrecadação não seja suficiente sequer para cobrir 15% da despesa. Enfim, será difícil apontar algo que os “donos do Brasil” não possam fazer tanto para o bem como para o mal. E é verdadeiramente estarrecedor constatar que tudo isso podem fazer sem serem responsabilizados pelos seus atos. Podem contrair um dívida para eleger seu sucessor, assim como podem não pagar dívidas legitimamente constituídas e nada lhes acontece. Suas atitudes e opiniões são fruto de circunstâncias conjunturais e dos efeitos de curto prazo. São capazes de promulgar uma constituição como a de 1988 e tentar reformá-la cinco anos depois. Vivem no paraíso: são donos sem serem responsáveis. Eles são os FHs, Os Lulas, os Covas, os Malufs, os Sarneys, os ACMs, os Itamares, os Brizolas. Pouco importa se tenham sido eleitos democraticamente ou tenham assumido o poder rompendo uma ordem institucional. São também, ou foram os Getúlios, os Geisel, os Figueiredos, os Delfins. São eles, ou foram eles, que nos meus já 50 anos de vida ativa pude observar, os que tomaram as decisões que resultaram no país que temos hoje. E sempre o fizeram, sem exceção, dizendo agir em nome e em benefício do povo brasileiro, preocupados com os mais carentes e com os mais necessitados e nos legaram o país não desenvolvido que somos, a constituição que nos rege, as instituições que temos, os privilégios e os infortúnios que nos beneficiam ou nos infelicitam. Se você está satisfeito com tudo isso é a eles que você deve render a sua homenagem. Se não está, precisa tomar consciência da absoluta necessidade de reduzir o tamanho do Estado e, conseqüentemente, reduzir o poder da classe política. Não se trata de substituir quem está no poder. Trata-se de reduzir o poder dos políticos, o que implica limitar o Estado àquelas funções em que ele é o agente mais adequado: as funções necessárias ao provimento da ordem e da justiça. E para isso não há necessidade de gastar, como é o caso nos dias de hoje (1999), cerca de 37% do PIB. Bastariam 10 % do PIB. Não se trata de tirar o poder dos políticos para entregá-lo aos empresários ou aos militares ou aos padres ou a quem quer que seja. O poder, quanto mais diluído, mais descentralizado, melhor para que o cidadão não fique sujeito aos desatinos de seu arbítrio, nem possa almejar o benefício de sua generosidade, que no mais das vezes, é apenas uma manifestação de altruísmo com o dinheiro alheio, não raro por motivos escusos. O poder dos empresários às vezes tão temido e hostilizado combate-se facilmente. Basta submete-los à competição, à mais desobstruída competição. O que qualquer empresário realmente teme é ver outro empresário mordendo-lhe os calcanhares, obrigando-o a ter que trabalhar mais para poder vender por menos. Reduzir o poder dos políticos não é tarefa fácil porque implica tirar poder de quem está no poder. Se você, leitor, achar que, embora difícil isso é algo que precisa ser buscado, junte-se aos que defendem o Estado mínimo, a igualdade perante a lei, a responsabilidade individual, a ausência de privilégios e a economia de mercado. Mas venha munido de tenacidade e paciência porque uma mudança dessa natureza implica um esforço de convencimento que leva, pelo menos, o tempo de uma geração. É difícil, é verdade, mas não é impossível. Talvez a maior dificuldade consista no fato de que muita gente prefere depender dos políticos do que depender de si mesmo; prefere ser propriedade dos políticos do que ser dono de si mesmo. * Empresário e fundador do Instituto Liberal. O artigo foi publicado no JB em 1999, mas continua super atual.

sexta-feira, 16 de março de 2012

É mesmo.

É mesmo. A expressão do título do presente artigo é muito utilizada quando conversamos com outra pessoa e concordamos com ela. Geralmente ela é utilizada para dizer que estamos de acordo com o que o outro diz. É como e eu lhe dissesse: “O dia está lindo hoje!”, e você, para dar continuidade sem se estender pode dizer: “É mesmo!” Veja, ao concordar comigo você torna parte de você a minha afirmação, ou seja, como se fosse você mesmo que tivesse dito que o dia está lindo. Do mesmo modo funciona para todas as outras coisas, segundo Emmanuel Levinas. Quando você olha uma bela paisagem e fica com aquela imagem em sua mente, a partir daquele momento ela já não é mais ela mesma, paisagem, agora é você. Este “é”, uma pequena palavrinha do verbo “ser” designa algo no seu estado atual. Assim, quando se diz que algo é, está se falando da atualidade. Mas, muito mais do que isso, se fala de uma longa discussão filosófica em torno do ser. Essa discussão acontece porque boa parte dos filósofos que já passaram por sobre a terra se dedicaram a entender ou definir o que é o ser. Muitas pessoas já se perguntaram: “Quem sou?” Os filósofos se perguntam: “Quem somos?” Para se perguntar sobre isso eles falam em ser, ou seja, quem é o ser. Eu, você, seus filhos e tudo o que existe é ser, porque está, de alguma forma, sendo. Assim, aquele pequeno pedaço de um galho de árvore que se desprende e cai ao chão “é” graveto. Diferente de um graveto que por acidente se torna graveto ao se desprender de um galho maior, nós podemos decidir, até certo ponto, o que somos. Você ao sentar em algum canto e ler este pequeno ensaio é um leitor, não por um acidente qualquer, mas por escolha. Aí é que vem uma das grandes contribuições de Heidegger, pois segundo ele o verbo ser não diz de uma coisa parada, mas de algo em contínuo movimento. Então o “é” da filosofia quer dizer, pelas mãos de Heidegger, “estar sendo”. Como você, que ainda lê, está sendo um leitor. Este contínuo movimento do ser ou, como dito anteriormente, esse “estar sendo” que o filósofo diz abre uma profunda lacuna filosófica. Até o momento, muitos filósofos acreditavam nesse ser que “é”, ou seja, algo parado, estático, sendo assim de fácil apreensão e compreensão. Por isso criaram uma área da Filosofia chamada de ontologia, que se dedica a estudar o ser, tentar circunscrevê-lo. Mas, um filósofo chamado Emmanuel Levinas pega a ideia de Heiddeger e avança, dizendo que esse movimento do galho que se transforma em graveto e do trabalhador em leitor é que esconde o caminho para a origem do ser. Para Levinas o “é mesmo” é o movimento que leva os conteúdos de fora para dentro. Esta expressão é a prova de que quando você, ao concordar comigo tornou seu tudo o que escrevi até aqui. Pode-se dizer que o é mesmo é a prova de que tudo o que estiver fora pode se tornar parte de mim. Esse movimento que leva os conteúdos de fora para dentro também pode trazer os conteúdos para fora, ou seja, o ser, seu ser. Eis o ponto mais difícil, porque é neste momento que Levinas vai mostrar que eu, você e qualquer outro ser somos inatingíveis. Somos inatingíveis porque o nosso ser está muito mais longe do que aparece. Você pode ser e é muito mais do que uma imagem refletida no mundo. É mesmo! Rosemiro A. Sefstrom

O poder da matamática

O poder da matemática 16 de março de 2012 Autor: Merval Pereira Têm sido mais comuns do que desejaríamos os sinais de que o ensino de matemática entre nós está abaixo das necessidades do país, de que são exemplos os dados disponíveis, que mostram uma aprovação de apenas 42,8% dos alunos do 3 ano do ensino fundamental com os conhecimentos básicos de matemática. Em apenas 35 cidades do país, mais da metade dos alunos do 9 ano do ensino fundamental sabe matemática, teria nota superior a 5. Apenas 11% dos jovens que alcançam a 3 série do ensino médio têm aprendizado suficiente na matéria. Roberto Boclin, doutor em Educação e chefe de gabinete da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio, considera que a questão da educação, complexa por si só, “envolve pensamentos políticos que tangenciam o absurdo, como currículo único obrigatório na educação básica brasileira. Por outro lado, destaca que “um currículo com 12 disciplinas, nem na Ásia”. Para ele, os currículos deveriam oferecer “oportunidades de interesse diversificado, variando entre eles pelo menos de 30% a 60% dos conteúdos, com no máximo cinco disciplinas, de modo a atraírem candidatos com propostas mais adequadas às suas realidades e vocações, e assim não abandonarem o curso no meio por absoluta falta de interesse”. Como o ensino médio é prioridade, pois do seu êxito dependem os caminhos do ensino superior ou do emprego futuro dos candidatos, “são completamente inaceitáveis evasões de 50 a 60% dos alunos ingressantes, muitos ainda no 1 ano”. Boclin diz que “basta olhar para outros, como os países asiáticos, a Finlândia e historicamente a Alemanha, que encontraremos inúmeros modelos que poderão transformar a educação brasileira”. Quando acabar a maré favorável dos preços na exportação das commodities, e for preciso competir na indústria da transformação, “a formação profissional será essencial”, destaca Boclin. Para além dos vexames internacionais em exames como o do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), em que nossos representantes ficaram na 57 colocação, à frente apenas de alunos de outros oito países, o professor Arnaldo Niskier, da Academia Brasileira de Letras e ex-secretário de Educação do Rio, que selecionou os exemplos da abertura da coluna, vê uma indicação de que perdemos competitividade num mundo cada vez mais dominado pela alta tecnologia, onde a matemática tem importância fundamental. “Não resta dúvida sobre a utilidade de seu aprendizado, mesmo para aqueles que não se destinam às carreiras técnicas. Conhecer seus pormenores faz bem até quando o estudante deseja, por exemplo, escolher um curso de filosofia. Platão não foi filósofo e matemático”, analisa Niskier. Ele ressalta que o cérebro humano, com seus reconhecidos cem bilhões de neurônios, “evoluiu para lidar com o mundo físico e se utiliza da linguagem matemática para cumprir a sua finalidade, nas questões do pensamento”. Niskier destaca o papel da lógica em todo esse processo, citando o cientista da computação dos Estados Unidos Jeff Raskin: “A lógica humana nos foi trazida pelo mundo físico e é, portanto, concordante com ele. A matemática deriva da lógica. É por isso que a matemática é concordante com o mundo físico.” Arnaldo Niskier ressalta que, “mesmo trabalhando com incertezas, a ciência dos números tem verdades inabaláveis, como é o caso da geometria euclidiana, hoje tão acreditada como há 300 anos a.C. Também Francisco Antonio Doria, professor da COPPE/UFRJ, matemático e filósofo, membro da Academia Brasileira de Filosofia, toma exemplo do dia a dia para falar do nosso déficit de matemática: “Pega um smartphone. Clica em cima do ícone do GPS. Aparecem logo o mapinha e o alfinete virtual que mostram onde você está. Com precisão de centímetros. Por trás desse pequeno milagre da tecnologia, está, entre outras coisas, uma das teorias mais abstratas da ciência moderna”. Ele se refere à Teoria da Relatividade, que Einstein anunciou e publicou em 1915. Quando foi anunciada, ensina Doria, era “tão pesadamente matemática, tão complexa, tão fora do senso comum, que, dizia-se, apenas meia dúzia de pessoas a compreendiam naquele tempo”. A matemática manda em nossas vidas, hoje em dia, e nós mal nos tocamos a respeito, comenta Doria, que passa a relacionar: as taxas de juros que o Banco Central fixa surgem de uma técnica chamada teoria das metas de inflação, fortemente matemática; computadores funcionam com algoritmos, “e os primeiros exemplos de algoritmos aparecem numa outra área rarefeita, hiperabstrata, da ciência do século XX, a lógica matemática”. Doria é autor, com Greg Chaitin e Newton da Costa, do livro “Gödel”s way”, sobre a história “divertida” de Kurt Gödel, matemático vienense, “notório por seu brilho, suas conversas nos cafés e porque nos seminários aos quais comparecia sempre havia uma moça bonitinha atrás dele”. Em 1931, anunciou um resultado “tão obscuro e complicado, que dizia de uma espécie de impossibilidade de se esgotarem as verdades matemáticas, o teorema da incompletude de Gödel”. Entre as técnicas usadas para demonstrar seu resultado estão algoritmos – como os que fazem funcionar smartphones e computadores. “Mistura de abstrato e concreto que só a matemática possui”, define Doria. Para ele, “vivemos num mundo imerso em uma matemática, pesada, obscura, difícil – e mal o percebemos. E muito menos no Brasil, onde tem gente que ainda acha que computador é maquininha de jogar games”. Doria não tem dúvidas: “Talento e habilidade matemáticas são essenciais para se fazer capitalismo, para o crescimento econômico – e disso o Brasil tem muito pouco”. Ainda estamos, diz ele, “à margem do que movimenta, empurra, o mundo contemporâneo”. Fonte: O Globo, 15/03/2012

quinta-feira, 15 de março de 2012

O individualismo metodológico

O individualismo metodológico por Murray N. Rothbard, quinta-feira, 15 de março de 2012 Apenas o indivíduo possui uma mente; apenas o indivíduo pode sentir, ver, realizar e entender; apenas o indivíduo pode adotar valores e fazer escolhas; apenas o indivíduo pode agir. Este princípio primordial do "individualismo metodológico", central ao pensamento social de Max Weber, deve fundamentar tanto a praxeologia quanto todas as outras ciências da ação humana. Ele implica que conceitos coletivos como grupos, nações e estados não agem ou não existem realmente; eles são apenas construções metafóricas utilizadas para descrever as ações similares ou conjuntas de indivíduos. Em suma, não existem "governos" por si sós; existem apenas indivíduos agindo harmoniosamente de uma maneira "governamental". Max Weber coloca de forma cristalina: Estes coletivos devem ser tratados unicamente como sendo os resultados e os modos de organização das ações particulares de agentes individuais, uma vez que apenas estes podem ser tratados como agentes no curso de uma ação subjetivamente compreensível. . . . Para propósitos sociológicos. . . não existe algo como uma 'personalidade coletiva que "age"'. Quando se faz referências, em um contexto sociológico, às . . . coletividades, está-se na verdade se referindo . . . somente a um certo tipo de desenvolvimento das ações sociais possíveis ou efetivas de pessoas específicas.[1] Ludwig von Mises destaca que o que diferencia a ação puramente individual daquela de indivíduos agindo como membros de um coletivo é o diferente significado atribuído pelas pessoas envolvidas: É o significado que os agentes individuais, e todos que são afetados pela sua ação, atribuem a uma ação o que determina o seu caráter. É o significado que distingue uma ação como ação de um indivíduo e outra como ação do estado ou da municipalidade. É o carrasco, e não o estado, quem executa um criminoso. É o significado daqueles interessados na execução que distingue, na ação do carrasco, uma ação do estado. Um grupo de homens armados ocupa um local. É o significado destes envolvidos que imputa esta ocupação não aos soldados e oficiais, mas à sua nação.[2] Em sua importante obra metodológica, o discípulo de Mises, F.A. Hayek, demonstrou que a falácia de se tratar construções coletivas como sendo "conjuntos sociais" ("capitalismo", "a nação", "a classe") sobre os quais se é possível deduzir leis tem origem na insistência objetivista-behaviorista de se considerar os homens apenas a partir de seu exterior, como se fossem pedras, em vez de tentar entender como suas ações são subjetivamente determinadas. Ela [a visão objetivista] trata os fenômenos sociais não como algo do qual a mente humana faz parte e não como algo cujos princípios organizacionais podemos construir a partir de partes conhecidas, mas sim como se eles fossem objetos diretamente percebidos por nós como conjuntos. . . Existe a ideia um tanto quanto vaga de quem uma vez que os "fenômenos sociais" devem ser objeto de estudo, o procedimento óbvio é começar a partir da observação direta destes "fenômenos sociais", em que a utilização popular de termos como "sociedade" ou "economia" é ingenuamente considerada como evidência de que deve haver "objetos" definidos que correspondem a eles.[3] Hayek complementa dizendo que enfatizar o significado da ação individual revela que, "o que conseguimos entender diretamente dos complexos sociais são apenas as partes, pois o todo nunca é percebido diretamente; ele sempre é reconstruído por meio de um esforço de nossa imaginação".[4] Alfred Schütz, o notório construtor do método da fenomenologia aplicado às ciências sociais, nos relembrou da importância de se retornar "ao 'homem esquecido' das ciências sociais, ao agente do mundo social cujos afazeres e sentimentos residem na origem de todo o sistema. Nós, então, procuramos entendê-lo a partir destes afazeres e sentimentos e do estado de espírito que o induziu a adotar atitudes específicas relativas ao seu ambiente social". Schütz acrescenta que "para uma teoria sobre a ação, o ponto de vista subjetivo deve ser conservado ao máximo, sendo que, na ausência deste, esta teoria perde suas fundamentações básicas, qual seja, sua referência ao mundo social da vida cotidiana e da experiência". Desprovida desta fundamentação, as ciências sociais tendem a substituir o "mundo da realidade social" por um irreal mundo fictício, todo ele construído pelo cientista observador. Ou, como Schütz coloca sucintamente: "Eu não posso entender algo social sem antes reduzi-lo à atividade humana que o criou; mais ainda, sem remeter esta atividade humana aos motivos que a originaram".[5] Arnold W. Green demonstrou recentemente como o uso de conceitos coletivos inválidos prejudicou a disciplina da sociologia. Ele destaca o crescente uso de "sociedade" como uma entidade que pensa, sente e age, e, em anos recentes, foi a responsável por perpetrar todas as desgraças sociais. Por exemplo, é a "sociedade", e não o criminoso, quem geralmente é considerada a responsável pelos crimes. Para muitos, a "sociedade" é considerada quase que demoníaca, uma "vilã materializada" que "pode ser atacada à vontade, acusada aleatoriamente, ridicularizada e escarnecida com uma fúria virtuosa e fanática, [e] pode até ser derrubada por decreto ou pelo anseio utópico — e, de alguma forma, tudo continuará funcionando perfeitamente. Green complementa dizendo que "se, por outro lado, a sociedade é vista como pessoas cujas relações sociais instáveis são preservadas apenas pela submissão às regras morais, então a área de livre escolha permitida, na qual se pode fazer demandas, questionar e solapar desejos com impunidade, está severamente restringida." Ademais, se entendermos que "a sociedade" não existe por si só, mas é uma criação feita a partir de indivíduos, então dizer que "a sociedade é a responsável pelos crimes, e os criminosos não são os responsáveis pelos crimes que cometem, é o mesmo que dizer que apenas os membros da sociedade que não cometeram crimes devem ser considerados os responsáveis pelos crimes. Este óbvio absurdo só pode ser contornado caso se considere a sociedade como o diabo encarnado, um mal exterior e isolado das pessoas e do que elas fazem".[6] A ciência econômica está repleta de falácias que surgiram quando metáforas sociais coletivas passaram a ser tratadas como se fossem objetos reais. Assim, durante a era do padrão-ouro, era comum o temor de que "a Inglaterra" ou "a França" corriam grande perigo porque "elas" estavam perdendo ouro. O que realmente aconteceu foi que ingleses e franceses estavam voluntariamente enviando ouro para o exterior e, com isso, ameaçando os banqueiros de seus países com a necessidade de cumprirem suas obrigações de restituir depósitos em um volume de ouro que eles não mais possuíam. Porém, o uso da metáfora coletiva transformou um grave problema do setor bancário em uma confusa crise nacional pela qual cada cidadão era, de alguma forma, o responsável. Similarmente, durante os anos de 1930 e 1940, muitos economistas proclamaram que, diferentemente das dívidas contraídas no exterior, o tamanho da dívida pública nacional era irrelevante porque "nós devemos para nós mesmos". A implicação era a de que o indivíduo, do ponto de vista nacional e coletivo, devia dinheiro "para ele mesmo", bastando para saldar esta dívida mover o dinheiro que estava no bolso do lado direito da calça para o bolso do lado esquerdo. Esta explicação, no entanto, obscurecia o fato de que faz uma enorme diferença saber a qual dos dois pronomes coletivos você pertence: ao "nós" (o infeliz pagador de impostos) ou ao "nós mesmos" (aqueles que vivem da renda oriunda dos impostos). Às vezes, o conceito coletivo é tratado descaradamente como um organismo biológico. Assim, o conceito popular de crescimento econômico implica que toda economia está, de alguma forma, como um organismo vivo, destinada a "crescer" de uma maneira predeterminada. O uso de tais termos análogos é uma tentativa de ignorar, e até mesmo de negar, a vontade e a consciência individual nos assuntos econômicos e sociais. Como escreveu Edith Penrose em uma crítica ao uso do conceito de "crescimento" no estudo de empresas: Quando analogias biológicas explícitas surgem na ciência econômica, elas são extraídas exclusivamente daquele aspecto da biologia que lida com o comportamento imotivado dos organismos . . . não existe nenhuma razão para se acreditar que o padrão de crescimento de um organismo biológico é determinado pela vontade do próprio organismo. Por outro lado, temos todos os motivos do mundo para acreditar que o crescimento de uma empresa é determinado pela vontade daqueles que tomam as decisões da empresa . . . e a prova disso está no fato de que ninguém pode descrever o desenvolvimento de uma dada empresa qualquer . . . a não ser que seja em termos das decisões tomadas por indivíduos.[7] Não há melhor maneira de resumir a natureza da praxeologia e o papel da teoria econômica em relação a eventos históricos concretos do que aquela presente na discussão de Alfred Schütz sobre a metodologia econômica e Ludwig von Mises: Nenhuma ação econômica pode ser concebida sem alguma referência a um agente econômico, mas este último é absolutamente anônimo; ele não é você, nem eu, nem um empreendedor, nem mesmo um "homem econômico", mas um puro e universal "indivíduo". É por esta razão que as proposições da teoria econômica possuem aquela "validade universal" que confere a elas a idealidade do "e assim por diante" e "posso fazer novamente". No entanto, pode-se estudar o agente econômico como tal e tentar descobrir o que se passa em sua mente; logicamente, não se estaria fazendo teorizações econômicas, mas sim história econômica ou sociologia econômica. . . . Entretanto, os enunciados destas ciências não podem reivindicar nenhuma validade universal, pois elas lidam tanto com sentimentos econômicos de específicos indivíduos históricos quanto com tipos de atividades econômicas para as quais as ações econômicas em questão são manifestações. . . . De acordo com nossa visão, a ciência econômica pura é um exemplo perfeito de um complexo de significado objetivo sobre uma configuração de significado subjetivo — complexos, em outras palavras, de um significado objetivo — estipulando as típicas e invariáveis experiências subjetivas de qualquer pessoa que aja dentro de uma estrutura econômica. . . . Teria de ser excluído de tal cenário qualquer consideração acerca do uso a que os "bens" serão destinados depois de terem sido adquiridos. Porém, tão logo voltamos nossa atenção para o significado subjetivo de um indivíduos real, deixando o anônimo "qualquer um" de lado, então é logicamente faz sentido falar de comportamento atípico. . . Não há dúvida de que este comportamento é irrelevante do ponto de vista da ciência econômica, e é neste sentido que os princípios econômicos são, nas palavras de Mises, "não uma declaração do que geralmente ocorre, mas uma declaração sobre o que necessariamente deve ocorrer".[8]