domingo, 28 de julho de 2013

O MUNDO SE APEQUENA SEM A VOZ DE UM GIGANTE


Mais do que uma tentativa de confrontar a Igreja com seus próprios problemas, a renúncia do papa é um sacrifício para salvar o homem e o Ocidente que o criou

“Stalin tinha razão ao dizer que o Papa não tem divisões nem pode comandar.”
Papa Bento XVI

Entre o chão informe e um céu sem estrelas, uma confusa multidão de corpos nus se movia aos gritos. Uma nuvem de vespas acompanhava a desesperada vaga humana e dos rostos contorcidos, cortados por ferrões, rolava o sangue misturado às lágrimas, que servia de repasto aos vermes. À entrada daquele mundo de treva e dor, pendia, feito sentença, a inscrição: “Deixai toda esperança, o vós que entrais”. Foi assim que Dante Alighieri descreveu as portas do Inferno, no Canto III da “Divina Comédia”, onde chegara acompanhado pelo poeta latino Virgílio, seu guia pagão da Antiguidade Clássica. E, entre a multidão de almas penadas, contou ter reconhecido Celestino V, o papa “que fez, por covardia, a grã recusa”, isto é, renunciou ao papado. Dante se assombra com o desespero daquelas almas e Virgílio lhe explica que se trata de covardes, entre eles o papa renunciante, que viveram sem infâmia, mas também sem louvor. O céu não os queria e o inferno os rechaçava; não mereciam lembrança nem misericórdia: “Non ragioniam di lor, ma guarda e passa” (“Deles não cuideis, mas olha e passa”) – aconselha Virgílio.

É assim que o Papa Bento XVI será lembrado, como o Celestino V de Dante Alighieri, lançado às portas do Inferno como covarde, entre o escárnio do demônio e a indiferença divina? Provavelmente, não. Começando pelo fato de que o grande poeta florentino foi um tanto duro com Pietro da Morrone, eleito papa em 5 de julho de 1294, que, ao renunciar cinco meses depois, em 13 de dezembro do mesmo ano, abriu caminho para o ambicioso Bonifácio VIII, inimigo de Dante, daí a injusta raiva do poeta, imortalizada na “Divina Comédia”. O efêmero pontificado de Celestino V se deu numa época de profunda crise da Igreja, convulsionada pelas guerras de poder da Europa medieval. A Igreja vive novamente uma crise (que instituição de seu tamanho não as vive de forma recorrente?), mas Bento XVI está muito distante de Celestino V, não só no tempo, mas também no caráter. Se o século XXI fosse capaz de uma “Divina Comédia”, Joseph Ratzinger estaria entre os eleitos, ao lado de Pedro Hispano, o sábio português (médico, matemático e filósofo), que se tornou o papa João XXI e foi homenageado por Dante, que o pôs no Paraíso, a “luzir em seus 12 livros”.

Pietro da Morrone era um eremita de rigorosa vida ascética, que pouco conhecia do mundo e sabia menos ainda das intrigas dos nobres. Na época, a Igreja estava dividida entre duas históricas famílias de cardeais, os Orsini e os Colonna, e acossada pelo poder secular dos imperadores, especialmente o rei Carlos II de Anjou, que governava Nápoles e a Sicília. Diante do impasse de dois longos anos na escolha do novo papa, após a morte de Nicolau IV, em 1292, havia um anseio da cristandade para que fosse eleito um “Papa Angelicus”, nos moldes de São Francisco de Assis, que havia impressionado o mundo medieval com sua santidade. Esse anseio por um papa humilde, santo e apolítico interessava sobretudo ao poder secular. Tanto que Carlos II soube influir no pontificado de Celestino V, ampliando sobremaneira a influência francesa na Igreja, resultando no grande cisma da Idade Média, que dividiu o papado entre Roma e Avignon durante a maior parte do século XIV. A inapetência de Celestino V pelo poder levou-o a constituir uma comissão de cardeais para decidir se era possível a um papa renunciar. A comissão disse que sim e seu líder, o enérgico cardeal Bene­detto Gaetano, foi eleito papa aos 78 anos, com o nome de Bonifácio VIII.

“Helder Câmara” alemão

Bento XVI, também eleito papa aos 78 anos, se não chega a ser um político como Bonifácio VIII está longe de ser um ingênuo como Celestino V. Ao contrário do eremita medieval Pietro da Morrone, o cardeal Joseph Ratzinger — um intelectual e poliglota que fala dez línguas — já conhecia os meandros do poder em Roma muito antes de se tornar papa. Considerado dentro da Igreja uma espécie de “menino-prodígio” da teologia, o padre Ratzinger, com apenas 35 anos, tornou-se o principal conselheiro teológico do célebre cardeal Joseph Frings, arcebispo de Colônia e presidente da Conferência Episcopal Alemã durante 20 anos, entre 1945 e 1965. No livro “Meu Irmão, o Papa” (Editora Europa, 2011), depoimento do monsenhor e prestigiado maestro Georg Ratzinger ao jornalista Michael Hesemann, o cardeal Frings aparece como uma espécie de Dom Helder Câmara alemão. Na passagem do Ano Novo de 1946, quando a Alemanha padecia um inverno rigoroso, em meio às ruínas da Segunda Guerra Mundial, ele saiu em defesa dos pobres que haviam saqueado um trem de carvão: “Vivemos tempos em que um indivíduo, em seu desespero e necessidade, terá permissão para levar o que precisa para preservar saúde e sobrevivência, caso não possa obter de outra maneira, por meio de seu trabalho ou solicitação” — disse no seu sermão de São Silvestre.

No Concílio Vaticano II, Frings liderou um grupo de bispos e teólogos alemães e austríacos, entre os quais se encontrava Ratzinger, que propugnou profundas mudanças na Igreja, defendendo decisões menos hierárquicas e mais colegiadas, inclusive no antigo Santo Ofício, o temido instrumento da antiga Inquisição, comandado, na época pelo cardeal Alfredo Ottaviani, que se opunha às reformas. O que talvez nem Frings nem Ratzinger imaginavam é que, como diz o provérbio, quando se dá o pé, os incautos querem a mão, e as reformas do Concílio Vaticano II serviriam para que alguns teólogos radicais – mais marxistas do que cristãos – tentassem transformar a Igreja numa sucursal do Partido Comunista. É o caso da Teologia da Libertação, que tem entre seus líderes na América Latina justamente um ex-aluno de Joseph Ratzinger — o brasileiro Leo­nardo Boff. Em entrevista à Rádio França Internacional, Boff comentou a renúncia de seu antigo professor e disse que Ratzinger, “como teólogo, era extremamente gentil, uma pessoa fina”, mas que teria se tornado “uma pessoa muito dura em termos de conceitos e doutrinas” ao assumir o comando da Congregação para a Doutrina da Fé.

Nada mais errôneo do que essa afirmação do teólogo brasileiro, hoje casado e fora do clero. Assim como Frei Betto, que chegou a integrar o primeiro governo Lula, teólogos como Boff usam os evangelhos como panfletos, transformados em dogmas de ideologias estranhas à fé cristã. E o que é mais grave: sua teologia não se limita a agir no mundo através de uma aliança meramente estratégica com uma ideologia de ocasião, o que seria aceitável, à direita ou à esquerda, dependendo das circunstâncias, afinal a Igreja integra a realidade terrena e precisa interagir com ela; não, a Teologia da Libertação vai além da ação política e procura instaurar sua própria metafísica, reescrevendo Deus à imagem e semelhança de Marx. Foi isso que a Santa Sé — mesmo com toda a sua liberalidade, reforçada pelo Concílio Vaticano II — não podia tolerar. Na prática, a Teologia da Libertação decreta a morte de Deus, que tem de se submeter aos ditames do relativismo secular. Boff condena a Igreja até por não aceitar a teologia de gênero, como se Deus não passasse de um personagem literário passível de ser reescrito ao sabor da idiossincrasia de seus críticos. Pode até ser, e há grandes intelectuais que o tratam dessa forma, com reflexões esteticamente muito ricas, mas obviamente elas não condizem com religião e igreja, que são outra coisa.

Liberdade de pensamento

O jornalista francês Bernard Lecomte, em sua biografia homônima sobre João Paulo II (Editora Record, 2005), conta que o carismático papa tinha grande respeito pelos teólogos. “Não é por acaso que ele chama para junto de si já em 1980 um teólogo alemão dos mais brilhantes, conhecido durante o Vaticano II, com o qual nunca mais deixaria de trocar ideias: o bispo Joseph Ratzinger”, relata Lecomte. E a posição de João Paulo II seria praticamente a mesma de seu prefeito na Congregação para a Doutrina da Fé e, depois, Papa Bento XVI. João Paulo II era tolerante com os teólogos, respeitando seu livre pensamento e até suas discordâncias em relação à doutrina oficial da Igreja. Quando o teólogo alemão Hans Küng negou o princípio da infalibilidade papal e, em 1995, depois da encíclica “Evan­gelium Vitae”, acusou João Paulo II de ser um “ditador espiritual”, o Vaticano se limitou a não mais considerá-lo como um teólogo católico, sem no entanto excomungá-lo ou destituí-lo do sacerdócio. “O mesmo aconteceria com a maioria dos teólogos que aos olhos de João Paulo II falharam em sua missão eclesiástica”, conta Lecomte.

E cita outro exemplo: “Charles Curran, professor na Universidade Católica da América, em Washin­gton, fora a certa altura, aos 34 anos, uma das pontas de lança da oposição à encíclica Humanae Vitae, o famoso texto de Paulo VI que proibia a pílula anticoncepcional. Também ele, mesmo mantendo sua cátedra, enrijeceu-se na contestação, livro após livro, artigo após artigo, especialmente sobre as questões sexuais. No dia 25 de julho de 1986, depois de várias advertências, Ratzinger — com o aval de João Paulo II — comunica-lhe que já não estava mais ‘apto a exercer a função de professor de teologia católica’. Como Küng, Curran conservava sua condição de padre, não era incluído no Índex e podia ensinar livremente onde mais quisesse. Finalmente suspenso em seu ensino em Washington, ele moveu ação por rompimento abusivo de contrato, perdeu o processo em fevereiro de 1989 e foi ensinar para protestantes metodistas”. Por fim, Lecomte trata do teólogo alemão Eugen Drewermann, “que de tanto passar o Evangelho pelo crivo da psicanálise, acabou também numa posição que falseia a doutrina da Igreja, especialmente em relação à virgindade de Maria e a ressurreição de Cristo”. Esse teólogo também foi destituído de suas funções de ensino em instituição católica.

Bernard Lecomte também aborda o caso de Leonardo Boff, o “franciscano brasileiro” que “encarnou os desvios da teologia da libertação” e “tanta tinta fez correr dos dois lados do Atlântico”. Para o biógrafo, o “ex-aluno de Ratzinger aplicou uma análise deliberadamente ‘marxista’ a uma Igreja que a seus olhos representava uma estrutura hierárquica nociva” e, depois de advertido, com um pedido do Vaticano para que se abstivesse de declarações públicas durante um ano, Boff acabou abandonando o sacerdócio e se casando. Mas, ao contrário do que faz crer em suas inúmeras entrevistas, não pode acusar a Igreja de censurá-lo, afinal, Boff sempre teve amplo espaço na mídia, até maior do que o próprio papa, levando em conta que sempre fala o que quer, enquanto a cúpula do Vaticano geralmente aparece na imprensa como alvo de ataques. A rigor, todos esses casos, inclusive o do próprio Boff, revelam apenas uma legítima ação da Igreja no sentido de manter sua unidade doutrinária, o que, repito, é um direito — e mesmo um dever — até de partido político, que dirá de uma instituição religiosa. Afinal, a liberdade de culto é uma conquista do mundo ocidental forjado pelo cristianismo: quem não está contente com a Igreja não é obrigado a permanecer nela.

Patologias da razão

Bernard Lecomte explica a posição de João Paulo II em relação à liberdade de pensamento, o que vale para Joseph Ratzinger, seu escudeiro nas questões doutrinárias e, depois, sucessor: “Para o papa, um teólogo não ocupa a mesma posição de um filósofo ou de um sociólogo leigo, cujas investigações comprometem apenas a ele mesmo”, explica Lecomte. “O teólogo deve servir à Igreja e saber dar mostra de obediência ao magistério — caso não queira simplesmente deixar de ser um ‘teólogo católico’. Aqueles que não querem submeter-se têm toda liberdade de dar prosseguimento às suas pesquisas, mas não sob a égide da Igreja”. Essa visão de João Paulo II em relação aos teólogos tem sido a mesma de Bento XVI, desde os tempos em que era o guardião da doutrina e presidente da comissão que elaborou o “Catecismo da Igreja Católica”, obra publicada em 1992 sob o Pontificado de João Paulo II. Ao contrário do que dizem seus detratores, Ratzinger sempre foi um homem aberto ao diálogo com as mais diversas correntes de pensamento, inclusive com aquelas que se opõem à Igreja. Tanto que, em 19 de janeiro de 2004, quando ainda era prefeito da Congregação para a Dou­trina da Fé, protagonizou um debate com o filósofo Jürgen Habermas, partidário do laicismo, na Academia Ca­tólica da Baviera, em Munique, na Ale­manha.

Publicado no Brasil com o título de “Dialética da Secu­la­rização: Sobre Razão e Re­ligião” (Editora Ideias & Letras, 2007), o debate com Habermas mostra um Ratzinger que não hesita em citar pensadores criticados pelo Vaticano, como o próprio Hans Küng, propositor de uma “ética mundial”, tema que também preocuparia o futuro Bento XVI. Na conversa com Ha­bermas, Ratzinger sustenta que a ciência sozinha não poder gerar uma ética e é preciso que a filosofia (ele diz “filosofia” e não “teologia”) acompanhe de perto o desenvolvimento científico, “analisando de maneira crítica conclusões apressadas e falsas certezas sobre o que é o homem, de onde vem e porque existe”, ou seja, “depurando os resultados científicos do elemento não científico que amiúde se mescla com eles”. E ao refletir sobre o fanatismo religioso que se associa ao terror, ele se pergunta se a religião não deveria se pôr sob o comando da razão, já que pode ser tão perigosa. E indaga se superar a religião não seria a única forma de se alcançar o “caminho de liberdade e tolerância universal”. Mas sua própria resposta, como não poderia deixar de ser numa mente lúcida, é negativa. Não porque Ben­to XVI acredite na infalibilidade da religião, mas porque está consciente da falibilidade da razão.

Joseph Ratzinger observa que a ciência deu ao homem a capacidade de produzir ho­mens: “O homem se converte em um produto, de sorte que a relação do homem consigo mesmo se transforma radicalmente. Não é mais um dom da natureza ou do Deus criador; é um produto fa­bricado por ele mesmo”. E co­mo o homem desceu às fontes mais profundas do poder, as fontes de sua própria existência, o ele se vê tentado a ir além de todos os limites: “Agora, a tentação de construir o homem perfeito, a tentação de fazer experimentos com ho­mens, a tentação de considerar os homens como resíduos e desfazer-se deles já não são fantasias de moralistas hostis ao progresso”. Diante disso, Ra­tzin­ger sustenta que, assim como a religião deve ser questionada em face do fanatismo, também deve “surgir a dúvida sobre a fiabilidade da razão”. E pondera aristotelicamente: “Não deveria quiçá circunscrever-se reciprocamente a religião e a razão, mostrar-se uma à outra os respectivos limites e ajudar-se a encontrar o caminho?”. Ratzin­ger enfatiza claramente que, “na religião há patologias perigosas que precisam ser consideradas à luz divina da razão”, mas também lembra que “há patologias da razão que não são menos perigosas”. O sociólogo Dur­kheim — um ateu — subscreveria integralmente essa frase do cardeal Ratzinger.

Combate ao relativismo

A grande missão que Joseph Ratzinger se impôs, primeiro no comando da Congregação pela Doutrina da Fé e depois como Papa, foi o combate ao relativismo. A imprensa laica, especialmente a brasileira, exige que a Igreja subscreva as demandas dos gays de passeata, reduza o sexo a uma questão de preservativo e transforme o aborto em direito humano, além de abrir o sacerdócio para as mulheres. Ora, nem partido político que se preze deve proceder como um caniço, vergando-se ao vento de ocasião. O PT, por exemplo, só conquistou a República porque, ao contrário dos demais partidos, soube ter uma doutrina coerente para oferecer aos militantes, expurgando filiados que discordavam de sua ideologia e rejeitando alianças que pudessem desvirtuá-la. Só depois de formar essa estrutura sólida, forjada na rara capacidade de dizer não, é que o PT se abriu às alianças, pois aí já não corria o risco de se tornar indiscernível das demais siglas fisiológicas. Portanto, se um partido político precisa ser coerente com sua história de algumas décadas, por que a Igreja Católica, com quase 2 mil anos de existência, deveria ceder às demandas cambiantes dos profissionais de passeata? Elas mudam a cada verão, como as demandas do movimento gay, que começou se identificando como “GLT” e, hoje, já caminha para ser GLBTTXYZ...

Ao contrário do que pensam os relativistas que dominam universidades e redações, a natureza oferece fatos irretorquíveis, que a Igreja — hoje portadora da razão até mais do que a ciência — é praticamente a única a reconhecer. Quando a Igreja se recusa a trocar a dualidade do sexo biológico pela subjetividade da orientação sexual, está apenas reconhecendo os impérios da razão. Algo a que a medicina abdicou, empenhada que está em satisfazer a voracidade de poder da militância gay. Mas por mais que essa militância — de mãos dadas com as feministas dos estudos de gênero — inventem sexos virtualmente configuráveis, nas maternidades os obstetras continuam definindo binariamente para as mães a identidade sexual de seus bebês: é menino ou menina — não existe outra alternativa, salvo nos raros casos de hermafroditismo. Logo, por que seria um avanço a Igreja colocar em pé de igualdade com os casais heterossexuais os casais de mesmo sexo? É óbvio que esses casais devem ser aceitos — e são, inclusive pela Igreja, que não os persegue — mas daí a transformá-los em ideal a ser estimulado nas escolas, como se tem feito, vai uma grande distância. O próprio Bento XVI, em sua defesa dos valores morais, sabe que eles são um farol. Pelo fato de navios naufragarem, os faróis devem ser apagados?

Todo excruciante pontificado de Bento XVI foi uma luta ingente em defesa da verdade. Não como dogma de uma Igreja avara, mas como anseio universal no coração do homem, como sabia Santo Agostinho. Justamente por isso, o papa se viu atacado de todos os lados. A imprensa de todo o mundo, além de tentar transformá-lo num pontífice retrógrado, omitiu todos os seus esforços no sentido de dar resposta para a crise da Igreja — que ele sempre foi o primeiro a reconhecer. Bento XVI enfrentou com muita coragem o problema dos padres pedófilos (por sinal exagerado pela mídia), determinando ao clero que colaborasse com a Justiça e amparasse as vítimas, mas a imprensa faz de conta que ele nada fez a respeito. No livro “Benedicto XVI: Luz del Mundo” (Barcelona: Editora Herder, 2010), uma longa, franca e inusitada entrevista concedida pelo papa ao jornalista alemão Peter Seewald, Bento XVI discorre sobre esse e outros problemas da Igreja, abordando, inclusive, a possibilidade da renúncia papal. Mas deixa claro que ela só pode ocorrer depois de afastado o perigo que corre a Igreja. Resta saber se esse perigo foi afastado.

O diálogo como legado

A renúncia de Bento XVI não foi motivada apenas por sua saúde. Ela, sem dúvida, é frágil, mas se a cúria estivesse unida ele poderia definhar no trono de São Pedro, como fez João Paulo II, amparando-se na confiança que depositava no próprio Ratzinger. Mas o tímido, gentil e lúcido teólogo alemão talvez já não tenha em quem confiar num cardinalato que o elegeu contando os seus dias. Como ele próprio disse na entrevista ao jornalista Peter Seewald, “Stalin tinha razão ao dizer que o Papa não tem divisões nem pode comandar”.

Prosseguindo a obra de João Paulo II, Bento XVI procurou fortalecer os setores da Igreja que tinha sido amordaçados pelas vanguardas radicais do Concílio Vaticano II e, vencendo a própria timidez, conseguiu dialogar com a juventude. Não para fazer a vontade dos jovens, mas para ensinar a eles que existe a verdade. Sem ela, até o amor “torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente”, como escreveu na encíclica “Caritas in Veritate” (“Caridade na Verdade”). Para Bento XVI, “a verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjetivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas”. Por isso, sua renúncia talvez seja uma tentativa de confrontar não só a Igreja, mas o Ocidente com a verdade. No fundo, Bento XVI, ao renunciar, não quer salvar a Igreja — quer salvar o homem. Pois sem valores perenes ele não se sustenta e não difere dos vermes da terra.

Como se vê, o pensamento de Joseph Ratzinger nada tem de obscurantista, como insistem em dizer seus adversários em todo o mundo, especialmente no Brasil do hedonismo empírico, movido a carnavais. Sua razão é a da imorredoura filosofia clássica, filha da lucidez de Aristóteles. O que sua teologia busca não é o Jeová caricato do Antigo Testa­mento, pintado canhestramente pela exegese de gênero das feministas, mas o homem moderno da tradição judaico-cristã, que fundamenta a civilização ocidental. E esse homem só é possível na verticalidade do espírito que ousa ir além da matéria, reconhecendo na ciência um instrumento de saber, não um altar de adoração. Para isso é preciso que a ciência respeite a religião — não porque ela detenha a verdade, mas porque dialoga com o desconhecido. Não é assim que a ciência também progride, ousando ir além do que já conhece? Quando o cientista se arvora a ser Deus — e munido de Marx, Darwin e Freud — acredita-se capaz de explicar a história, a natureza e a mente, ele mata a dúvida que move a ciência. Mas, como o legado de Bento XVI nos dá a entender, a dúvida não se confunde com a mera negação do relativismo: ela é o anseio insatisfeito pela verdade e, dessa forma, não apenas aguça o saber que move a ciência — mas alicerça a própria ética que fundamenta o humano.
Por:José Maria e Silva  Vaticano



sábado, 27 de julho de 2013

"O PAPA FALA BEM E NÃO CHATEIA NINGUÉM"

Os padres letrados José de Anchieta e Manoel da Nóbrega eram jesuítas e aprenderam o Tupi-guarani para falar com os índios. O Papa Francisco, que também é jesuíta, aprendeu Português para falar com os brasileiros.


Entre tantas lições, o Papa mostrou que não é preciso baixar o nível para se aproximar do povo. Basta escolher as palavras adequadas ao contexto. Por exemplo, preferiu o popular botar, em vez de pôr, colocar. Em seu primeiro discurso, disse: “Cristo bota fé nos jovens, e os jovens botam fé em Cristo”.

Na quinta-feira, falando a mais de um milhão de pessoas na praia de Copacabana, recomendou: “Bote fé, bote esperança, bote amor”.

O Sumo Pontífice, que é poliglota, vem usando muitas gírias em suas falas, entrevistas e homilias na Jornada Mundial da Juventude.

Seu bom humor também já era esperado. No mês passado, comentando as semelhanças entre o Português e o Espanhol, disse de brincadeira: “o Português é um Espanhol mal falado”.

Suas falas no Brasil foram marcadas por expressões populares. Quando visitava a Favela da Varginha, em Manguinhos, nos arredores do Rio, disse: “Vocês sempre dão um jeito de compartilhar a comida. Como diz o ditado, sempre se pode ‘colocar mais água no feijão’”. E perguntou ao povo: “Se pode colocar mais água no feijão?”. Aplaudido, completou: “Sempre! E vocês fazem isto com amor, mostrando que a verdadeira riqueza não está nas coisas, mas no coração”.

Disse também: “Queria bater em cada porta, dizer bom dia, beber um copo de água fresca, beber um cafezinho. Mas não um copo de cachaça!”. O Papa escolheu por metáfora “um copo de cachaça”, a bebida mais popular do Brasil.

Todavia não foi apenas pelas palavras e expressões que ele cativou o povo brasileiro. Sem conteúdo, as gírias e expressões seriam apenas enfeites de suas falas, que entretanto comoveram a muitos pela sinceridade do olhar, como quando disse: “Aprendi que para ter acesso ao povo brasileiro é preciso ingressar pelo portal do seu imenso coração; por isso, permitam-me que nesta hora eu possa bater delicadamente a esta porta. Peço licença para entrar e transcorrer esta semana com vocês”.

Outro momento em que mexeu muito com as pessoas foi quando declarou: “Não tenho ouro, nem prata, mas trago o que de mais precioso me foi dado: Jesus Cristo!”.

No mesmo instante, aqueles que aguardavam a visita do Papa apenas para fazer negócios, como Eike Batista, cuja fortuna passou de 46 bilhões para “apenas” 300 milhões em poucos dias, deixaram o recinto, segundo o tradicional humor dos cariocas, que também inventaram súbitos milagres do Papa: não foi assaltado na Linha Vermelha, mesmo com a janela do carro aberta; fez o povo aplaudir um argentino; mesmo engarrafado no Rio, ninguém tentou vender-lhe nada; andou de saia em Copacabana à noite e não levou nenhuma cantada.

Esse Papa é uma boa pessoa. E o convívio com uma boa pessoa sempre nos faz bem!
Por: Dionísio da Silva

terça-feira, 23 de julho de 2013

INVASÃO DE PRIVACIDADE

Quando Obama disse que ninguém pode viver com segurança e privacidade com 0% de inconveniência, pensei: Obama virou gente grande. Mas não foi assim que o mundo reagiu. Quase todo mundo ficou horrorizado, e eu, fiquei horrorizado com mais um show de infantilidade do mundo em que vivemos. É um mundo "teenager" mesmo.


E por que o Brasil seria vigiado? Talvez porque suspeita-se que o Brasil esteja na rota entre o dinheiro do crime internacional e terroristas. E a América Latina está à beira de uma virada socialista, só não sabe quem não quer ver. Corrupção, autoritarismo, gestão inepta da economia e populismo sempre foram paixões secretas do socialismo.

A CPI do "Obamagate" é um truque nacionalista (tipo Guerra das Malvinas) para desviar a atenção da nossa crise econômica, apesar de muitos brincarem de revolução enquanto a economia vai para o saco nas mãos de um governo que aumentou os gastos públicos com embaixadas em repúblicas das bananas, criação de ministérios inúteis e "investimento" na inadimplência como forma de ganhar votos.

A diferença entre um "teenager" (ainda que com PhD, PostDoc e livre-docência) e alguém que sofre para ser um pouco menos "teenager" é saber que o mundo não é preto e branco e que se você é responsável por muitas coisas, você nem sempre vive com luvas de pelica.

O mundo é uma terra abandonada pelos deuses, e temos que nos virar com o pouco que temos, a começar por uma espécie confusa como a nossa e que ainda acredita em borboletas azuis como salvação da vida.

Não é bonito o que o Obama fez. Mas todo mundo que tem as responsabilidades que o Obama tem faz coisas assim quando ocupa o lugar do Obama.

Por muito menos, vigiamos a geladeira para ver quantos iogurtes tem, os armários da cozinha para ver quantos sacos de açúcar tem, e as sacolas das empregadas para ver se elas não estão levando algum pacotinho de carne.

O mundo é um grande Big Brother, George Orwell acertou em cheio. A diferença é que nosso mundo não é uma ditadura pré-histórica como a do livro "1984", mas uma sociedade democrática que preserva direitos gays ao mesmo tempo que quer saber se eu e você estamos envolvidos num ataque a alguma embaixada no Mali ou que tipo de tênis e comida étnica curtimos.

Nada disso é bonito, apenas é assim. Para manter as coisas funcionando, pessoas tem que fazer coisas que não são muito bonitinhas. Eu sei que os inteligentinhos facilmente entram em surto, mas que vão brincar no parque, com segurança, de preferência.

As redes sociais, esse grande bacanal de narcisismo, são um prato cheio para sermos vigiados. Sites nos dão nosso perfil de consumo e nossa "linha da vida". Celulares nos avisam quando algo acontece em nossa conta e em nosso cartão de crédito, e isso tudo é muito "prático", não?

Este evento revela a óbvia violência à privacidade que as redes sociais significam. A ideia de que elas são uma ferramenta da democracia pode ser uma ideia também infantil.

Além de elas serem um elemento de alto risco com relação a linchamentos e violência espontânea, elas nos tornam vulneráveis de modo direto na medida em que estar "na rede" significa estar dependente de uma "teia" (de aranha) tecnológica de controle bastante vulnerável a tutela das empresas que nos oferecem a própria ferramenta. Por isso o nome é TI, tecnologias da informação.

Há muito se sabe que é mais fácil subornar um blogueiro do que um jornal gigantesco (o blogueiro é mais barato...). Agora fica mais claro ainda que a manipulação via redes sociais é muito maior do que via mídia "clássica".

Todo mundo sabe que não pode marcar encontros amorosos ilegítimos via e-mail ou mensagem de celular, como alguém fica escandalizado que a internet não seja segura? Parece papo de falsa virgem de 50 anos.

Em breve esqueceremos isso e continuaremos a postar fotos, falar bobagens, marcar revoluções no final de tarde e propor utopias que requentam a falida autogestão. E viajar para fazer compras em Miami com segurança e usando Visa.

Snowden, e seus 15 minutos, é mais um falso herói para falsos adultos.
Por: Luiz Felipe Pondé  Folha de SP.

domingo, 21 de julho de 2013

CARTA AO JOVEM BRASILEIRO II

Que grito é esse “das ruas”? 

O que está por traz dele, o que desejam esses “jovens”?


Os especialistas não arriscam a dar uma resposta. Eles acreditam que o tempo poderá explicar o motivo e a razão desse movimento que, ao meu ver, engatinha.

Sabe-se que o país encontra-se mergulhado numa crise de valores morais, políticos e éticos. Há uma insatisfação e uma desconfiança generalizadas. Elas se devem à uma perda da legitimidade das instituições governantes.

Toda crise é sinal de turbulência mas, também, de abertura. Pode levar ao pior mas, quando bem conduzida e isso, tanto no plano pessoal quanto social, pode levar a melhoras estruturais. Isso só ocorre quando os anseios de mudanças diagnosticados, acolhidos, escutados e, quando possível, bem tratados. Há desejo de mudanças.

O diálogo é a verdadeira arte de bem dizer o ato político. Ele cria as brechas necessárias para que se insemine o assentimento à lei.

Mesmo que a mídia repita incessantemente que os jovens brasileiros conseguiram arrastar consigo milhares de famílias da classe média às ruas, unindo suas vozes numa reivindicação de melhores serviços públicos, tais como: educação, saúde, segurança e transportes, a pergunta insiste: que interpretação dar a esses movimentos? 

Mas há um fator que chama a atenção. Mesmo no auge do clamor das ruas, alguns homens públicos exacerbam uma prática desavergonhada da corrupção. Há uma compulsão à transgressão que tornou-se uma norma: “eu faço porque todos fazem”! E na medida em que, historicamente, há a certeza da impunidade, esses políticos tomam a coisa pública como um bem próprio. Trata-se de uma relação incestuosa, sem culpa, sem lei, sem mediação paterna, uma atualização de questões patológicas da vida privada, obscenamente atuada no público. Parece que esse mal está no sangue, e tornou-se difícil de ser tratado e extirpado.

Os brasileiros não suportam mais fingir que a corrupção não existe. Fatos evidenciam que essa praga, a corrupção, tornou-se uma doença epidêmica, algo de difícil tratamento. É como um câncer incurável, com metástases, invadindo os tecidos das instituições nacionais, umas mais que outras.

O que está na base desse distúrbio social, desse fenômeno que tem conseguido unir o povo, que se constrói a partir de uma insatisfação generalizada? O que esses jovens desejam em suas fortes movimentações?

É evidente que essas vozes que tomaram as ruas não se dirigem apenas ao poder público. Os gritos são dirigidos às autoridades mas, isso vai mais longe e as exigências convocam cada um dos cidadãos, pais, professores, educadores, a um questionamento.

Por anda a lei, os pais, as autenticidades dos atos? Onde está a legitimidade do ato de governar? Em nome do quê está se governando?

Os jovens são sensíveis à questão da legitimidade. Eles só aceitam limites quando estes partem de um lugar reconhecido por seu compromisso com a verdade de uma dignidade daquele que institui esses limites. Isso quer dizer que o discurso inconsciente, vigorando nas entrelinhas do discurso enunciado, deixa transparecer o verdadeiro e o falso. Todo jovem se apoia na verdade que recebeu dos adultos para adentrar, com dignidade, ao mundo adulto.

O governo está infantilizando o povo brasileiro, arrancando sua capacidade de fazer escolhas autênticas, porque ele julga saber “o melhor para o povo”. Os jovens brasileiros estão numa anorexia a um poder legítimo que abra caminhos dignos de seus desejos. Os que ocupam o poder público esqueceram do vigor de suas próprias aspirações de juventude.

O grito de cada jovem encontra eco na voz que denuncia o desconforto com os atos desencontrados das autoridades brasileiras, que dizem uma coisa e fazem outra!

A função que está sendo profundamente interrogada nessas manifestações é a autoridade paterna. É desta que advém o assentimento às leis que regem as relações humanas, de onde emergem as condições de desejo. A educação é base que construiria valores mais duradouros. É a estrada sólida para alguém trilhar seus sonhos e, no entanto, encontra-se obstruída pela indiferença daqueles que dela deveriam zelar, permitindo a construção de um futuro promissor.

O inconsciente da juventude capta a não legitimidade daqueles que ocupam os lugares máximos da nação. Isso quer dizer que não lhes passa despercebido o fato de que um governo só alcança o reconhecimento verdadeiro do povo quando seu projeto visa ao bem desse povo, e não ao poder pelo poder. Entenda-se, aqui, “o bem” como serviços básicos: educação, saúde, transporte, emprego, segurança de qualidade. 
Jovem manifeste-se, mas com moderação!
Por: Doutor José Nazar ** Psiquiatra e psicanalista - Escola Lacaninana de Psicanálise/RJ e ES

terça-feira, 16 de julho de 2013

O ROSTO DA ADÚLTERA DE JESUS

Então, Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito preocupadas com a retidão da lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que havia sido pega em adultério. Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia para que Jesus fizesse valer a lei: morte da adúltera por apedrejamento.

Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las nas praças seja um "direito da soberania popular revolucionária", enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental de vida ou por outra forma de lei (o fundamentalismo islamita).

E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar...

Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto modo de viver é algo que exige, como dizem los hermanos, "cojones". Jesus disse que quem estivesse livre de pecado que atirasse a primeira pedra. Todos foram embora.

Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos do bem, moral ou político.

Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega. Naquele, o "regime da verdade" (ou modo de busca da verdade) é interno e moral, na filosofia grega é externo e político.

O problema de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou argumento, inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é Deus, e Ele sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há como mentir para outro homem ou para assembleia "soberana", como na filosofia ou democracia gregas. Segundo o crítico George Steiner, o Deus de Israel irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.

Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos outros numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a verdade em si do que se fala.

O problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se minto para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na privada, o da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da psicologia profunda.

Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A preocupação com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de quem diz ser justo.

Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral.

O crítico Erich Auerbach, no seu "A Cicatriz de Ulisses", parte da coletânea "Mímesis", reconhece este traço do texto hebraico: a relação de atenção e agonia entre Deus e seus eleitos molda o herói bíblico, dando a ele um rosto marcado por uma tensão moral.

Ainda na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus, em seus belos "Salmos", O encanta justamente porque expõe seu coração sem qualquer tentativa de mentir para si mesmo.

Santo Agostinho com suas "Confissões" faz eco a David. A literatura monástica e mística medievais cultivou este espaço até seu ressurgimento no século 19 no pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o "mago do norte", ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na verdade interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à psicanálise.

A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar para si mesmo ao invés de olhar para os outros. Em vez de cultivar uma filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os demônios desvelam nossa própria face.
Por: Luiz Felipe Pondé  Folha de SP

sábado, 13 de julho de 2013

ENTREVISTA COM O FILÓSOFO ROGER SCRUTON

O que é a “franqueza britânica”? Se não é verdade que todos os britânicos a possuem, é fato que o filósofo inglês Roger Scruton é portador de uma sinceridade sem igual. Um dos pensadores mais famosos da atualidade, Scruton é conhecido na Europa como o “enfant-terrible” da filosofia, defensor de idéias polêmicas mas, na verdade, muito antigas: sua polêmica vêm de serem clássicas.

Roger Scruton é autor de mais de 30 livros de filosofia, dois romances, compositor de duas óperas e já fez documentários para a BBC de Londres. Professor há muitos anos, não há quem saia de suas aulas sem algum espanto pela sua erudição, que caminha tranqüila dos primórdios da filosofia até os dias atuais.

Scruton é sempre convidado para as principais rodas de debate intelectual na Europa e no mundo inteiro. Uma palavra autorizada se se quer ouvir algo diferente.

Foi também convidado pela Revista Vila Nova para uma entrevista, que ele gentilmente concedeu. O resultado vem a seguir.


Você é filósofo e um dos seus principais objetos de estudo é a Estética. De onde surgiu esse desejo de se questionar sobre a Beleza?

Eu descobri a arte, a música e a literatura quando era adolescente e fiquei intrigado com seu poder e seus significados. Por que elas têm um efeito tão profundo e transformador em nós e o que elas dizem sobre o mundo em que vivemos?

Qual o lugar da Beleza em nossas vidas?

Cabe a você decidir o lugar que a beleza pode ter em sua vida. Ultimamente, entretanto, a beleza abre um caminho à reconciliação, à aceitação do mundo como um lar e ao reconhecimento de que pertencemos a ele, com a tarefa de cuidar do que vamos encontrar.

Em seu documentário para a BBC de Londres, “Why Beauty Matters?” (“Por que a Beleza importa?”), você cita Oscar Wilde: “Toda beleza é absolutamente inútil”. Qual o sentido da inutilidade da Beleza? Os homens precisam de “valores inúteis”?

Todas as coisas mais importantes da vida são inúteis: amor, amizade, devoção, paz – essas são coisas que apreciamos pelo que são e não pelo uso que podemos fazer delas. Sim, nós precisamos de coisas inúteis uma vez que precisamos aprender como encontrar valores intrínsecos. E então o mundo tem um significado para nós e não apenas uma utilidade.

De certa forma, esse culto da utilidade também atingiu a Filosofia e a Religião, não?

Sim, o culto à utilidade assola o nosso mundo, minando até mesmo as coisas contra as quais as pessoas têm tentado erguer barreiras. Parte do problema é o domínio da tecnologia que nos influencia a pensar que todo o conhecimento e todas as descobertas dizem respeito a modos de manipular o mundo e o moldar a nossos propósitos. Mas há também o contemplar o mundo, encontrar nossa paz e consolo nele.

Você fala que a arquitetura moderna foi o maior crime já consumado contra a Beleza. Por quê?

Eu acho que você só tem que usar seus olhos para ver o que quero dizer. É um estilo de arquitetura que surgiu colocando a função, a utilidade e os efeitos de curto prazo no lugar do povoamento, da permanência e da moradia. A arquitetura moderna é um tipo de “falta de lar”, uma profanação à morada humana.

Sobrará algo de valor da arquitetura e da arte moderna?

Sim. Existe boa arquitetura moderna também – as casas de Frank Lloyd Wright, a capela de Ronchamp e muitos outros exemplos. Mas estão em uma escala pequena, quase objetos artesanais que retornam à verdadeira meta da arquitetura, que não é se destacar, obliterar e colocar o mundo em uma grade de linhas horizontais, mas adequar-se, harmonizar-se para tratar a Terra e seus contornos como um lugar de moradia.

Do mesmo modo, existe boa arte moderna e esta ainda está sendo produzida por esses pintores figurativos que reconhecem a necessidade de mostrar o significado interior de nosso mundo.

Uma de suas teses em “Why Beauty Matters?” é que a cultura pós-moderna não quer mostrar a realidade; quer se vingar dela. Como se dá isso?

Quando as pessoas são incapazes de encontrar consolação, elas se vingam de si mesmas e do mundo tentando mostrar que a consolação é impossível. Nós projetamos nossas próprias falhas morais no mundo de forma a nos provermos de uma desculpa para ter estas falhas. Assim, quando as pessoas são incapazes de amar, elas descrevem o próprio mundo como “sem amor” e “impossível de ser amado”.

E qual a relação entre Beleza e Amor?

A Beleza é um objeto do Amor e quando as pessoas permitem que o espírito do amor cresça nelas, elas também se abrem para a beleza. Isso é conhecido desde Platão, mas como explicá-lo exatamente e em termos sóbrios e realísticos é uma das grandes missões da filosofia.

Durante muito tempo a arte foi usada como meio de comunicar o Sagrado, mas hoje não mais. Beleza e Religião se comunicam?

O Sagrado e o Belo estão conectados em nossos sentimentos – ambos nos mandam ficar atrás, ser humildes e abandonar nosso desejo inato de poluir e destruir. Eu penso que vários artistas hoje, independentemente de terem ou não crenças religiosas, têm um senso de que o que há de melhor em sua arte é o ato de consagração. Você encontra esse tema nos quartetos de cordas de George Rochber, na arquitetura de Quinlan Terry, nas pinturas de Andrew Wyeth.

Você montava universidades clandestinas na Europa Central em plena época de comunismo soviético. Como foi essa experiência? O que faziam por lá?

Foi uma experiência inspiradora ensinar jovens que queriam aprender, que viram o aprendizado e a verdade conectados e que reconheceram que a verdade pode ser perigosa. Meus colegas e eu fizemos nosso melhor para providenciar uma educação humana e geral, trabalhando secretamente em casas particulares. A história é, entretanto, muito longa e complexa para ser contada rapidamente. Ela já foi escrita por Barbara Day em The Velvet Philosophers (N.E. “Os Filósofos de Veludo”, sem tradução para o Brasil).

Hoje parece que quem queira ter uma verdadeira cultura universitária também precisa ser clandestino. Quem foge do establishment e da “cultura oficial” está fadado ao fracasso nas universidades. Pelo menos aqui no Brasil essa parece ser a realidade. O que você tem a dizer sobre isso?

Você está certo e isso é algo que eu aprendi através do trabalho clandestino no Leste Europeu. Educação real sempre é, em certa medida, subversiva. A posição padrão da humanidade é a conformidade ideológica e a busca da verdade é sempre ameaçadora. Hoje nós vivemos em um mundo com valores socialistas moderados, aceitação acrítica da igualdade e uma suspeita institucionalizada para com o sucesso, a distinção e a alta cultura; este tipo de coisa tomou conta de nossas universidades. Hereges são perseguidos, como sempre foram, e os mesmos têm que trabalhar secretamente ou em algum grau de privacidade. Mas eles também se alegram com isso, pois esta é a prova de que estão certos.

Você escreveu um livro chamado “A Political Philosophy: Arguments for Conservatism” (N.E. “Uma Filosofia Política: Argumentos para o Conservadorismo”, sem tradução para o Brasil). Afinal, quais são os argumentos para o conservadorismo?

Aqui está a minha resposta mais curta: conservadorismo significa encontrar o que você ama e agir para proteger isso. A alternativa é encontrar o que você odeia e tentar destruir. Certamente a primeira alternativa é um modo melhor de viver do que a segunda.

Sobre o Islã e o Ocidente. A relação entre os dois nunca parece ser muita harmoniosa. Por que existe esse “choque”?

O conflito fundamental é entre, de um lado, uma religião que deseja ser também um sistema completo de governo fundada em um Direito sagrado e, do outro, sociedades que, enquanto fundadas em uma revelação religiosa, fazem suas Leis e seu governo para si mesmas. O Islã não pode aceitar a jurisdição secular e não pode tolerar formas de governo que marginalizem a obediência religiosa. Por isso não pode, no fim, aceitar o mundo moderno.

O Papa Bento XVI insistia muito em recuperar as raízes cristãs do Ocidente. Em sua opinião, há lugar para o Cristianismo na nova cultura ocidental?

Claro. A cultura ocidental é uma criação do Cristianismo. Retire o Cristianismo e o que sobra de Dante, Chaucer, Shakespeare, Racine, Victoria, Bach, Titian, Tintoretto…? E isso ainda é verdadeiro hoje. Nossa cultura é fundada na visão central do Cristianismo, que santifica o sofrimento, o dever do perdão, o ideal da caridade e a visão da Virgem Maria, que guiou nossa concepção do sexo.

O que conhece da cultura intelectual e filosófica do Brasil?

Nada, a não ser a música de Villa Lobos e Luiz Bonfá, além do filme Orfeu Negro, que foi feito, entretanto, por um francês. E, é claro, tem também Brasília, aquele ícone internacional da alienação urbana.

Equipe jornalística da Revista Vila Nova.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

MATEMÁTICA EXISTENCIAL

Algumas pessoas veem o mundo através de números e contas. Há alguns dias atrás, sentado no cafezinho, ouvia a conversa de duas mulheres sobre seus relacionamentos. A primeira delas dizia: “vivo com meu marido há quatro anos, tive cinco filhos, subi dois níveis na minha carreira profissional”. A outra falava que estava no quarto namorado, devendo metade de tudo que tinha e sem nenhum filho. Prestando atenção à conversa alheia fiquei interessado em saber o resultado de cada uma das duas contas, como estas ficariam depois do sinal de igual. A primeira colocou que estava cem por cento satisfeita com sua vida, já a segunda atribuiu nota sete a sua vida atual. Agora, será que o cem por cento da primeira equivale aos sete da segunda? Ou será que o sete vale mais do que o cem por cento? A conta existencial feita pelas mulheres deve ser vista do ponto de vista de cada uma, ou seja, o valor de cada termo da equação deve ser pesquisado.

O exemplo ilustra o modo como algumas pessoas olham para o mundo: para elas a vida é um grande escritório contábil. Em Filosofia Clínica casos como estes são entendidos como pessoas que têm como determinante o tópico 07, Termos Universais, Particulares e Singulares. Cada pessoa em sua Estrutura de Pensamento (EP) leva matematizações em proporções diferentes, o mais importante: cada pessoa atribui valores diferentes a cada produto presente na equação. Pense na esposa que chega em casa depois de um dia de trabalho e vê a casa toda bagunçada, filhos sem banho tomado, janta por fazer, sendo que o marido passou o dia em casa. Que conta faria essa mulher? É provável que ela diga, trabalhei o dia inteiro, chego em casa cansada, a casa está bagunçada, filhos sem banho tomado, janta por fazer, é isso que eu ganho por ter casado com um homem folgado. Veja, a conta dela se justifica pela opção de casamento.

Algumas pessoas fazem contas muito simples, os termos colocados na equação são inteiros como: beleza mais dinheiro igual amor à primeira vista. Os conceitos utilizados pela pessoa são valorizados de tal maneira que propiciam a ideia de casamento. Essa conta pode ser feita de maneira simples: mentiroso mais traição igual a fim do relacionamento. Os números para pessoas que fazem contas simples são inteiros, são contas fáceis de se perceber. Contas mais difíceis são aquelas nas quais a pessoa começa a pesar frações, como aquela que pesa: dois maridos, mais menos um filho, mais uma carreira de sucesso. Como essa conta termina? Representando essa conta em números: 2 + (-1) + 1 =? Outro tipo de conta, ainda mais complexa é aquela de pessoas que colocam por formas, como: eu era inteiro até que me foi arrancada uma parte, agora sou apenas uma parte de mim. Esse relato é frequente em pessoas que matematizam frações. Para algumas pessoas o que lhes deixou incompletas foi a morte de um filho, para outros a perda de um membro, uma perna, um braço.

Matematizar, fazer contas, quantificar as coisas da vida para alguns é inadmissível, para outros é parte da sua existência. São pessoas que olham para mulher, filhos, amigos, trabalho, amor, como coisas que podem fazer parte de uma equação que terá um resultado positivo ou negativo. Algumas pessoas vivem muito bem com resultados negativos para o mundo, mas positivos para si, como diz o ditado: “Mais vale um gosto que um tostão no bolso”. Outras pessoas põem valor em tudo, ao mesmo tempo em que estas coisas valem nada diante da necessidade de um filho. É necessário verificar em cada um o que tem e o que não tem valor. Infelizmente algumas pessoas dão valor àquilo que em verdade nada vale. 

Por: Rosemiro A. Sefstrom

Do site www.filosofiaclinicasc.com.br 

domingo, 7 de julho de 2013

CARTA AO JOVEM BRASILEIRO

Dirijo-me a você, jovem brasileiro, não sem correr o risco de ser chamado de ingênuo, de alguém ultrapassado, de um desses que não percebe o que está se passando.


Insisto, desejo lhe dizer algo que julgo de extrema importância: frente à esse momento de turbulência política e econômica vivida por nosso País peço-lhe, meu caro jovem: Acredite! 

Acredite que é possível uma democracia mais saudável, ética, com valores morais e não moralista, preconceituosa. Ter ideais é próprio do jovem mas, devo lhe prevenir, todo ideal – seja ele uma ideologia política, religiosa ou outra qualquer -, é enganador. Apesar disso, é próprio da juventude se sustentar nos ideais porque eles são a centelha de liberdade da transição da família para o mundo adulto.

Hoje, como em toda história de mudança, você é aquele que clama pelo novo, pela verdade, pela queda do conformismo. Você, meu caro jovem, nos desperta do sono alienado de quem não acredita mais em mudanças. Portanto, jovem, cabe a você a responsabilidade de renovar as esperanças adormecidas em nossa comodidade cotidiana, nossa desesperança por lutar por um Brasil mais justo, que começa com o exemplo de políticos mais dignos de nos representar.

Mudanças virão pela frente, passo a passo, mas alguma coisa certamente já se encontra em andamento. Não é comum alguém se dirigir a um jovem através de uma carta. Sei que você, como tantos outros, receberá essa mensagem com um certo ar de desconfiança. Afinal, sempre há aproveitadores de ocasião para fazer valer suas ideias mirabolantes e perversas, mal intencionadas, no bojo de um movimento justo e sinceramente engajado na direção de uma verdadeira mudança para o País.

Acredite, você é o operador das mudanças necessárias para o que está aí! Acredite, mas não se deixe cooptar pelas forças, oportunistas, que querem se aproveitar da legitimidade de um movimento para impor velhas decisões cujo único intuito é a manutenção do poder pelo poder. Reivindiquem um verdadeiro discurso político e não se deixem conduzir pela politicagem barata que, afinal, custa caro para todos, ricos e pobres, jovens e velhos: o preço de uma estagnação social, econômica, política e, porque não, do desejo de cada um.

Se você olhar nos olhos de seus pais verá que estão sem brilho, tomados de um certo medo do que está por vir, cansados de promessas jamais realizadas, oprimidos por impostos cuja razão – serviços – não são justificáveis. A angústia deles é o espelho da situação incompreensível em que se encontra um País que, sob o olhar estrangeiro, teria sido “a bola da vez”. No entanto, o País continua com sua velha política autoritária de infantilizar seu povo, supondo que sabe o que ele precisa, ao invés de perguntar a todos os segmentos sociais, e não somente a um, suas reais e legítimas aspirações.

Afinal, não se constrói uma nação apenas distribuindo a renda amealhada com os duros impostos injustificáveis, pagos com o suor do trabalho de muitos. Todos querem um Brasil mais justo porém, este Brasil não pode ser desenhado com as canetadas irresponsáveis daqueles que julgam que o sangue do povo é a boa tinta para seus decretos!

Jovem, queira um País habitado por seres de desejo e não, infantilizados por bolsas que não resolvem a bagagem de miséria, desigualdade, etc., de séculos. É sabido que essas abominações só se resolvem com educação, saúde e serviços de qualidade, mesmo que isso não dê votos à curto prazo. Um país não se constrói quatro, oito, doze anos de governo, mas num projeto contínuo de insistência nos valores de base de uma democracia verdadeiramente voltada para as vozes das ruas onde, afinal, circula o povo.

As crianças que vivem pelas ruas sabem muito bem a importância desse espaço de visibilidade. As ruas margeiam o que está estabelecido e, portanto, são o verdadeiro celeiro de mudanças na medida em que, em seu território, todos e tudo circula.

Os jovens estão sempre um passo à frente de seus pais, porque precisam cavar seu lugar nas instituições vigentes. Por isso, não têm compromisso com os aparelhos que vigoram e, também por isso, têm mais vigor para brigar pelo justo.
Por: Dr. José Nazar * Psiquiatra e psicanalista (Escola Lacaniana de Psicanálise)

quarta-feira, 3 de julho de 2013

INTERSEÇÃO

Em Filosofia Clínica a palavra Interseção designa o contato entre duas pessoas, assim como na matemática Intersecção ou Interseção refere-se aos elementos compartilhados por dois conjuntos. O contato matemático é definido por aquilo que os conjuntos compartilham entre si. Em Filosofia Clínica, esse conceito tem ainda outro desdobramento: a definição da qualidade desse contato. Em outras palavras, para um filósofo clínico, ao observar o contato entre duas pessoas ele presta atenção no que é partilhado no contato e ainda na qualidade desse contato. Sendo assim, uma Interseção pode ser positiva, negativa, confusa ou indeterminada. 

O programa Super Nanny que passa na TV aberta mostra a interseção entre os pais e os filhos. A relação exposta no início do programa geralmente mostra filhos dos quais os pais não “dão mais conta”. Crianças extremamente desobedientes, boa parte das mesmas agressivas com os pais e os irmãos, geralmente usando de agressão para conseguirem o que desejam. Quando suas vontades são supridas, as crianças se acalmam até que venham a ter uma nova necessidade que deverá ser satisfeita pelos pais. Em outras palavras, a interseção com os pais é positiva para a criança enquanto ela consegue o que quer, caso contrário a interseção fica extremamente negativa. 

Referente a um outro artigo chamado de “Arapuca”, onde eu falava dos pais que se tornaram reféns das necessidades dos seus filhos, recebi um comentário no qual uma pessoa disse mais ou menos assim: “Os filhos não vêm com manuais de instrução, não sabemos como eles vão receber o que damos”. O parágrafo acima praticamente responde esta questão: os filhos aprendem inclusive a receber com seus pais. Então, quando um pai entrega algo a um filho, e o dá como sendo algo sem valor como espera ele que o filho aprenda a valorizar? Pode até ser que aprenda na escola, com um vizinho, mas com certeza não aprenderá em casa. O programa Super Nanny é claro ao mostrar que desde muito cedo a criança deve aprender que ela tem direitos, mas também muito deveres e o que ganha é mérito seu. 

A interseção pode ser de grande ajuda na hora da educação, uma criança que tem interseção positiva com a mãe, com o pai talvez seja mais facilmente ensinada. Diferente daquela criança que vive uma interseção confusa em que hora recebe agrados, pouco depois xingões, sem nem mesmo saber o que houve. É necessário que o pai ou a mãe sente-se junto e mostre o motivo pelo qual a qualidade da interseção ficou ruim. Aponte para a criança que quebrar os brinquedos deixa o pai e a mãe triste, mostre a ela, de um jeito que ela entenda, que deve ser diferente. Promover uma atitude consciente na relação da criança com os pais e dela com os objetos é um bom caminho para a educação.

Em muitos casos pais e filhos chegam na escola e não tem a menor ideia de como está a sua interseção. São interseções de qualidade indeterminada, nem boa, nem ruim, mas também não é confusa, é uma interseção onde a criança não sabe o que esperar do pai ou da mãe. Muitos destes casos vêm de pais que de alguma maneira não estão bem e deixam as crianças a ver navios, sob a tutela de empregados, avós. Nem sempre a interseção positiva é recomendável, algumas vezes punir o filho pode ser extremamente negativo para a interseção, mas positivo enquanto educação. Como dizia Pitágoras: “Eduquem as crianças e não será necessário punir os homens”.

Rosemiro A. Sefstrom

segunda-feira, 1 de julho de 2013

A QUÍMICA DA DEMOCRACIA

Estamos diante de uma crise de representação política. A democracia moderna se caracteriza por ser representativa e não direta. Elegemos representantes e eles nos representam no Executivo e no Legislativo. Há muito tempo que este vínculo representativo no Brasil opera mal --vive-se a mesma coisa na Europa ocidental.

Julgo importante momentos como o que vivemos, não somente para chamar nossos representantes de volta a suas funções (eles trabalham para nós e pagamos os salários deles), como para refletir sobre os riscos deste mesmo colapso de representação e o desordenamento político-social que dele decorre a médio prazo: sem supermercados, sem escolas, sem estradas, sem chegar ao trabalho, sem lazer, sem policiamento.

A "química das massas" é volátil, incendiária e instável, e apesar de a imensa maioria ter uma intenção pacífica, a interrupção contínua e crescente da ordem político-social, por definição, rompe esta mesma ordem trazendo à tona riscos.

Mas nem todos os clássicos em política concordam com esta visão de risco do desgaste da ordem político-social. Alguns entendem que devemos buscar este desgaste e leem este mesmo desgaste como oportunidade criativa. Esta "química das massas" pode ser interpretada de diferentes formas.

Hobbes, por exemplo, que não é bem visto pela política contemporânea por ser posto "no saco" dos autoritários, entende que quando a ordem político-social se interrompe, "nossa química", que tem uma vocação latente para a desordem, a contingência e, por tabela, a violência (o que comumente se traduz dizendo que para Hobbes o homem é mau e a sociedade faz ele ser menos mau), entrará em ebulição a qualquer momento e a representatividade tem que retornar a funcionar, se não, caímos no caos social.

Este é o chamado pessimismo hobbesiano, que tende a valorizar a ordem a tudo custo e defender o monopólio legítimo da violência na mão do Estado.

Posições como a de Hobbes têm um defeito claro que é reprimir excessivamente qualquer tentativa de renovação das formas de representação. Daí ele ser mais afeito a temperamentos temerosos com relação a crises políticas agudas.

Rousseau, por outro lado, entende este desgaste como necessário para o surgimento da criatividade em política (Marx não está muito longe disso), daí ele ser típico de temperamentos mais revolucionários em política. Neste sentido, a violência decorrente da interrupção da ordem político-social é entendida como espaço para momentos de democracia direta.

Alguns defendem esta posição falando de "violência criativa" ou mesmo "a política será feita nas ruas e não nas instituições" porque elas não mais representam os representados e seus anseios. Aqui esquerda radical e direita radical se encontram na condenação da representação (os partidos).

O defeito desta opção está no fato de a democracia direta ou "das ruas" tender facilmente (todo mundo sabe disso) à violência, linchamento e julgamentos populares sumários. Neste caso, enquanto hobbesianos tendem a temer a "química das massas", rousseaunianos parecem torcer para esta química fazer novas receitas de "bolo social".

O que pensa Tocqueville sobre esta mesma química da democracia?

Tocqueville pensava que esta mesma química deve ser "cuidada" via mecanismos de pesos e contrapesos institucionais que reúnem desde assembleias muito locais, passando pelas instâncias de razão pública (tribunais, universidades, escolas, mídia), chegando ao Legislativo e Executivo estadual e federal.

Pare ele, não podemos abrir mão deste processo institucional de mitigação da "química da democracia" sob risco de esmagar o indivíduo sob a bota da tirania da maioria, de uma liberdade destrutiva e de uma igualdade com vocação para mediocridade, que elimina a própria criatividade cotidiana.

Por exemplo, no seu "Democracia na América", ele já dizia que não pode haver reeleição de representantes na democracia, se não dá em corrupção. Podemos começar a reforma por aí. Voto em Tocqueville.

PS. Não estou no Facebook, se você "falar" comigo no Face, não sou eu.

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP