terça-feira, 31 de dezembro de 2013

"QUEM VIVE PARA COMBATER UM INIMIGO, TEM INTERESSE EM DEIXÁ-LO VIVO"- FRIEDRICH NIETZSCHE

Quando estive na Universidade Hebraica de Jerusalém, durante uma das aulas, o professor de filosofia fez o seguinte comentário: “Nós, aqui no Oriente Médio, vivemos em estado de guerra constante. Cada vez que saímos à rua, existe o perigo de uma bomba, um atentado, um míssel caindo do céu, entretanto, quando chegamos em casa, temos paz. Nosso lar é nosso refúgio. Vocês do Ocidente, vivem em aparente paz na rua, no trabalho, nas escolas, no shopping, mas quando chegam em casa, maridos, esposas e filhos entram em conflito. O lar é vosso campo de batalha”.


Saí da aula um pouco atordoado com a provocação. Racionalizei comigo mesmo, argumentando que vivíamos em culturas completamente distintas e não cabiam julgamentos do tipo bom ou ruim, certo ou errado. Além disto, o professor não sabia que vivíamos no Brasil e que aqui também não é nenhum paraíso. O simples fato de andarmos na rua também nos coloca em risco, seja pela violência dos assaltos, como do trânsito. Assim sendo, nossa “guerra civil” também poderia funcionar como um elemento de união.

Isto não foi suficiente, algo dentro de mim continuava a incomodar. Não conseguia imaginar tranqüilidade e harmonia no lar enquanto bombas e balas perdidas cruzavam as esquinas. Ameaças externas poderiam até ser um fator agregador, mas de efeito temporário, nunca a fórmula da paz.

Lembrei da época em que recorremos a uma terapia de casal. O psiquiatra era tão antipático, calado, áspero, desagradável e pouco afetuoso, que acabou unindo-nos contra ele. Desconfio até que esta atitude, de certa forma hostil, fazia parte do tratamento, pois saíamos da consulta tão descontentes com sua postura, que ao invés de o vermos como amigo, passamos a tratá-lo como adversário. O casal fez um pacto de reconciliação para se “defender do terapeuta”.

Gastávamos horas conversando e imaginando maneiras de enfrentar o “terapeuta maluco”, como o apelidamos na intimidade. Nossa relação que estava desgastada, com uma comunicação difícil, passou a fluir. Aproximamo-nos para nos proteger.

Se houvesse uma invasão de extraterrestres, provavelmente comunistas, capitalistas, judeus, árabes, ingleses, talibãs e americanos, unir-se-iam buscando expulsá-los. Enfim, será que a ameaça de um inimigo comum pode ser um fator de aproximação entre os atemorizados?

Se assim fosse, bastaria ao casal torcer pelo mesmo clube de futebol. Ambos falariam mal do técnico, do centro-avante, do adversário, e a harmonia no lar restaria garantida. Melhor ainda se torcessem por um time ruim, que estivesse lá embaixo na tabela de classificação, pois teriam inimigos de sobra pra descarregar a frustração. O casal também poderia eleger um vizinho ou uma operadora de telefonia celular e lançar seu espírito belicoso nesta direção. Isto garantiria a paz conjugal ou a paz entre os homens?

Apesar de muitos se utilizarem deste artifício, arrisco dizer que não. A história da humanidade é o resultado do conflito dos nossos ideais com a realidade, e a acomodação entre aquilo que temos e aquilo que gostaríamos de ter, é o que determina a evolução peculiar de cada nação ou indivíduo. Buscar um inimigo externo para responsabilizar o sucesso ou fracasso é uma espécie de covardia ou cegueira, pois como já dizia Jean Paul Sartre, o conceito de inimigo não é completamente certo e claro, a não ser que este esteja separado de nós por uma barreira de fogo.

É a própria mente do homem, e não seu inimigo que o seduz para a batalha. Belicosidade sempre vai gerar mais belicosidade. Sabemos disto. As respostas estão muito claras em nossos corações, mas não em nossos cérebros, que insistem em buscar culpados e se fazer de vítimas. Vivemos nesta ambigüidade.

Temos capacidade de atingir patamares bem mais altos. A questão é saber se queremos chegar lá. Construímos asas para voar, mas ainda as forjamos com o mesmo aço da espada da guerra. Precisam ficar mais leves, menos tensas. Precisam nos aproximar. Não é a raiva o elo de união entre as pessoas. É o amor, e o inimigo do amor nunca vem de fora, é o que falta em nós mesmos.
Por: Ildo Meyer do site www.ildomeyer.com.br

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

CORRERIA SEM SENTIDO

A palavra que mais se escuta neste final de ano é “correria”. Para onde e porque as pessoas estão correndo? Se não souberem onde querem ir, não chegarão a lugar algum. Qual o sentido desta correria? Qual o sentido da vida? Depende.

Vamos aprofundar um pouco mais a questão?

Depende do significado da palavra sentido. Se for para designar a direção e orientação de um movimento, como nas expressões “sentido único”, “sentido obrigatório”, minha resposta é que o sentido da vida deve ser para frente. Não precisa de mapa, nem GPS. Siga vivendo, ultrapasse as barreiras, contorne as curvas e então comece a subir.

Se for para designar as trocas de informações com o meio ambiente através dos órgãos dos sentidos, diria que o sentido da vida se conjuga no verbo sentir, e não no verbo ter. Toque, cheire, prove, deguste, escute, veja e então comece a subir.

No âmbito dos sentimentos e emoções, como nas expressões “esta pessoa tem um sentido muito apurado” ou “tenho sentido sua falta”, ousaria dizer que pessoas que estão em sintonia com seu sentido de vida não têm dia ruim, mau humor na segunda feira, nem levantam com o pé esquerdo. Viver bem faz todo o sentido.

Felicidade, virtude, amor, desejo, ética, observância das leis divinas, reverência à Deus, contemplação da vida e tantos outros caminhos também já foram apontados como os sentidos da vida.

Entretanto, o sentido mais procurado é aquele que tenta explicar o significado da vida, o por quê das coisas. Quando alguém tropeça em uma pedra, caí, machuca e quebra o braço, isso precisa ter um sentido ou pode simplesmente ser fruto do acaso? Alguns não acreditam em casualidade e rotulam estes eventos fortuitos e inexplicáveis de “Karma” ou destino. Outros simplesmente chamam de vida.

Afinal de contas, por que as pessoas precisam tanto de um sentido que explique suas vidas?

Talvez porque entender o que está se passando, aparentemente as deixe tranqüilas. As coisas precisam ter uma explicação lógica, ou mais ou menos lógica. É preciso que a vida forme uma história coerente que possa ser seguida. Muitos chamam este fio condutor de “sentido”. Se a história correr durante anos no mesmo sentido, pode até ser oficializada e chamada de identidade.

Fomos criados com histórias. Bem antes de surgir o pensamento científico, o mundo nos foi explicado através de histórias que faziam sentido, nos orientavam na vida e nos identificavam. Acontece que histórias distorcem e simplificam a realidade, reprimindo tudo que não se encaixa ou não faz sentido. Mas não tem jeito, o ser humano sente-se atraído por histórias e têm aversão à fatos abstratos.

Assim, para entender o “sentido” de suas vidas, muitos seguem este princípio: modelam os fatos, deturpam a realidade, constroem estórias que se encaixem numa linha de pensamento racional e desta forma, dormem tranqüilos. Convencem a si e aos outros de que aquela história meio vivida, meio fantasiada é a que vale. Em outras palavras, o “sentido” da vida vai sendo construído a posteriori dos fatos.

O resultado podemos prever. Consciência tranqüila, história bonita ou triste, discurso congruente, qualidade das decisões eventualmente prejudicada. Vale a pena? Não sei, a decisão é individual. De minha parte, tentarei não interferir em seu livre arbítrio de viver. Solicito que também retribua do mesmo modo.

Se algum dia encontrar o sentido da sua vida, parabéns, mas, por favor, guarde este trunfo só com você. Não conte a ninguém. Permita que cada um descubra o sentido de sua própria vida ou até mesmo o ignore. Eu, por exemplo, prezo muito mais uma história bem vivida na qual o final me surpreenda.

Além do mais, se a vida tem algum sentido, desconfio que o motoqueiro que atropelei, o bandido que assaltou minha mãe, a lua sob o mar de Cascais, o vôo para o Panamá que perdi, as borboletas azuis, tudo se relacione com isto.

Que possamos surpreender e ser surpreendidos em 2014. Se possível, pra melhor.

Por: Ildo Meyer Do site  www.ildomeyer.com.br

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A ÓPERA DO SATANÁS

Sei que a esta altura do ano nada mais se quer além de esperar que, no calor de nosso verão, se vá este ano velho e surrado. Mas, como filósofo que sou, mesmo na preguiça, penso, senão, não existo. E levo você, meu companheiro de leitura, comigo às profundezas dessa filosofia de fim dos tempos.

Quando quero falar a sério com meus alunos -agora em férias- sobre nosso tempo contemporâneo, digo a eles que imaginem do que rirão nossos descendentes em mil anos. Não conheço ciência profética mais científica do que pensar o ridículo que encontrarão em nossas seriedades contemporâneas.

Sou homem sem causa, como sabe bem meu ilustre leitor, e, mais, duvido de todos que alguma causa defendam. Espero que recuperem a capacidade de serem canalhas honestos, e não como nós, que travestimos nossas vaidades em causas pela humanidade.

Pouco sei com segurança, depois de alguns anos e alguns poucos livros, mas, com certeza, como cético que sou, estou seguro de que se deve desconfiar de pessoas com bons sentimentos.

Rimos de nossos antepassados. Se, antes, nossos avós os consideravam dignos de reverência, agora, nós, contemporâneos, os julgamos ridículos por terem vivido antes dos tablets e do direito ao voto.

Rimos de suas crenças em deuses cabeludos, em apocalipses vindouros, em mundos imateriais. Mas, temo, rirão mais ainda de nós, esses nossos descendentes.

Rirão de nossa inútil obsessão pelo povo e sua soberania. Rirão de nossa ciência política e sua consciência histórica. Rirão de nossa certeza sobre o aquecimento dos polos e voltarão à astrologia por ser ela uma ciência mais modesta do que a do clima.

Para eles, nossos descendentes, ideias como as nossas soarão como hoje nos soa alguém crer que trovões seriam os deuses arrastando suas pedras no infinito.

Rirão de nossa obsessão em buscar pureza em civilizações mais pobres como as dos índios, que seriam mais honestos simplesmente porque nunca tiveram opção de sofisticar suas mentiras, como nós temos.

Quando pensarem em nós, esquecerão nossa tecnologia neolítica e farão seus alunos lerem livros sobre como éramos covardes e infantis. E sentirão vergonha, preferindo os gregos e os romanos, por serem mais lúcidos sobre a cegueira do destino.

Tentarão inutilmente acessar a razoabilidade de crermos que inventamos a nós mesmos e de que exista algo como "construção social do sujeito", ideia interessante, se não engraçada, mas que sustenta outra ainda mais engraçada, que é aquela que afirma a existência de uma construção social planejada de novos sujeitos.

Tendo passado por sofrimentos atrozes que os esperam, sofrimentos esses criados por nós e nossas manias de luxo, saúde, direitos e democracia dos idiotas, os coitados dos nossos descendentes serão forçados a redescobrir que a vida tem dono, e que não somos nós os donos, mas sim algum espírito que, no fundo, não nos tem em alta conta, por isso, quando muito, revela sua indiferença preguiçosa para com nossa dor.

Reescreverão passagens bíblicas, porque chegarão à conclusão de que são mais certeiras do que nossa vã sociologia de macacos sem pelos.

Sua cosmologia e antropologia serão mais parecidas com aquela que afirma ser a vida uma ópera.

Sim, uma ópera, cujo libreto foi escrito por Deus e a música pelo Satanás, segundo o que nos diz Dom Casmurro, personagem atormentado pela incapacidade de determinar a verdade última acerca da fidelidade de sua mulher (talvez um dos problemas filosóficos mais sérios, muito mais do que o suicídio).

O Satanás, atormentado pela inveja de seus colegas Gabriel, Miguel e Rafael, se revoltou. Deus deixou, por preguiça, que ele levasse consigo, às profundezas do inferno, seu libreto.

Lá, tendo composto a música, criou a ópera. Voltou ao Pai Eterno, como criança escrava neurótica de seu senhor, e pediu a Deus que a executasse em seu conservatório.

Tendo negado inúmeras vezes o pedido de seu anjo angustiado, Deus acaba por autorizar a execução, mas o proíbe de fazê-lo nos céus.

Para esta tarefa, cria nosso mundo, e o dá ao nosso triste maestro.

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

FELIZ NATAL, QUEIRAM OU NÃO.

Por mais que me esforce, não consigo imaginar como se faz para desejar "Feliz Natal" contra alguém. Mesmo que estejamos nos dirigindo a um cidadão que rejeita o nosso Cristo com todas as suas forças, o que lhe ensejamos com essas palavras, uma vez que que ele não quer os benefícios da vida futura, é que pelo menos desfrute de alguma paz e bem-estar na sua casa enquanto, na nossa, celebramos o Advento do Salvador sem incomodá-lo no mais mínimo que seja e até pensando alguma coisa em seu favor durante as nossas orações.

No entanto, de uns tempos para cá, um vasto grupo de ateístas militantes, escorado em organizações bilionárias e no apoio da grande mídia, decidiu fingir que se sente mortalmente ofendido quando assim o cumprimentamos.

Quando em vez disso um deles nos diz “Boas Festas", o sentido da sua mensagem é claro: “Vá para o diabo com o seu Natal, o seu Cristo e toda a sua maldita religião. Esconda-a, pratique-a nas catacumbas mas tire essa coisa hedionda da minha frente.”

Subentende-se que, saudados com tamanha gentileza, devemos retribuir desejando a o nosso interlocutor uma pletora de bens deste mundo e total despreocupação quanto à existência do outro. Se em vez disso você insiste em responder com "Feliz Natal", terá de fazê-lo com plena consciência de que essas duas palavrinhas fatídicas serão ouvidas como uma declaração de guerra.

É assim que, neste como em outros casos, o sentido do que dizemos já não depende da intenção com que o fazemos, mas do propósito imaginário que um fingidor histérico nos atribui. Como ele nos odeia, tem de fazer de conta que a nossa gentileza é uma ofensa intolerável.

Essa inversão projetiva – talvez o mais clássico sintoma da histeria – é minha velha conhecida. Uns dez anos atrás, um grupo de moleques enfezados criou no Orkut uma comunidade de nome "Nós odiamos o Olavo de Carvalho", onde espalhavam as histórias mais medonhas a meu respeito, me atribuíam toda sorte de crimes e baixezas e vasculhavam a vida da minha família em busca de pecados escabrosos.

Tudo, é claro, sob o pretexto de "debate democrático", com o direito suplementar de queixar-se de "ataques ad hominem" quando, uma ou duas vezes numa década, eu lhes dava um minuto de atenção e os mandava pastar.

Quando a virulência da coisa chegou ao nível da loucura pura e simples, trocaram o nome da página para "O Olavo de Carvalho nos odeia", para dar a impressão de que era eu, de algum modo misterioso, o autor das suas ações, a fonte misteriosa do ódio que despejavam sobre mim.

O caso, em si, não tem a menor importância, mas, se isso não tivesse me acontecido, talvez eu não compreendesse tão claramente quanto compreendo hoje o mecanismo psicopatológico que inverte o sentido do cumprimento natalino e lhe atribui uma intenção odienta no ato mesmo de cobri-lo de ódio.

O mesmo mecanismo está em ação, é óbvio, quando alguém ateia fogo numa igreja, urina no altar, bolina uma criatura do seu mesmo sexo durante a missa ou enfia um crucifixo no ânus para provar, com lógica insuperável, que o cristianismo é uma "religião de ódio".

Como o raciocínio histérico se disseminou na nossa sociedade ao ponto de servir de modus argumentandi exemplar e obrigatório em teses universitárias, debates parlamentares e opiniões eruditíssimas expressas em artigos de jornal, é previsível que em breve o sentido insultuoso da expressão "Feliz Natal" será consagrado em lei e essas duas palavras só poderão ser ditas em recinto fechado, entre pessoas que tenham previamente assinado um disclaimer isentando de qualquer responsabilidade penal o desalmado que ouse pronunciá-las.

Por enquanto, isso é só uma tendência, uma possibilidade que talvez possa ser afastada. Mas certamente não o será se os cristãos, antecipando-se servilmente aos planos do opressor, consentirem em limitar-se ao genérico e vazio "Boas Festas" para não ferir suscetibilidades fingidas.

Portanto, aqui vão os meus votos: Feliz Natal para todos, aí incluídos os que não o desejam.
Por: Olavo de Carvalho  Diário do Comércio

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A GUERRA CONTRA A UTOPIA DE GÊNERO

As vitórias parciais contra a ideologia de gênero não nos devem enganar. A guerra contra o suposto “segredo de uma organização social perfeita” só está começando.

Quando Adão e Eva, seduzidos pela serpente, desobedeceram a Deus e comeram do fruto da ciência do bem e do mal, entrou no mundo o pecado e, com ele, a destruição e a morte. Desde então, "por causa do homem, a criação está submetida à servidão da corrupção"  e, trazendo em si mesmo a queda dos primeiros pais – o pecado original –, o ser humano vê a sua própria existência converter-se em um drama terrível, no qual tudo está pendente, inclusive a sua salvação.

Traçado o quadro clínico da humanidade, não é difícil perceber como a condição militante e combativa é inerente à realidade deste mundo. Quem quer que se arrogue o poder de eliminar desta vida as suas pelejas e tempestades, as suas dificuldades e desafios, prometendo "uma vida isenta de sofrimentos e de trabalhos, toda de repouso e de perpétuos gozos, certamente engana o povo e lhe prepara laços, onde se ocultam, para o futuro, calamidades mais terríveis que as do presente".

Grande parte da inércia presente na sociedade moderna é fruto de uma ideologia que, desprezando a doutrina do pecado original, instala o homem numa espécie de "jardim do Éden", no qual todas as pessoas seriam boas, não haveria nenhuma maldade, a natureza viveria em grande harmonia e ninguém seria chamado a nenhum desafio. Trata-se, sem sombra de dúvidas, de uma utopia: este mundo doce e cor de rosa não existe e jamais existirá nesta terra. Quem se dispõe a propagar esta visão frágil de mundo pretende nada menos que "castrar" o homem e tirar a transcendência de seu horizonte de vida.

Por isso, o Catecismo da Igreja Católica adverte: "Ignorar que o homem tem uma natureza lesada, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no campo da educação, da política, da ação social e dos costumes" . Ignorar que o homem é capaz do mal engendra a ilusão de que poderemos ser felizes neste mundo, de que pode existir um modelo perfeito de sociedade aqui.

Os perigos desta construção ideológica – que é o que está por trás de toda a "agenda de gênero" – já se fizeram sentir no século XX, nos países dominados pelo regime socialista. A ousadia dos novos revolucionários, no entanto, vai mais além: diferentemente dos primeiros socialistas, eles não querem simplesmente abolir as "diferenças de classes", mas as próprias distinções sexuais. Por isso, a criação de uma nova categoria: o gênero. Para libertar as pessoas da família – a qual os ideólogos consideram a forma mais primitiva de opressão –, é preciso acabar com os conceitos de "homem" e de "mulher", que eles alegam ser socialmente construídos.

Mas, ainda que alguém lhes mostre, por "a" mais "b", que estas diferenças sexuais são estabelecidas por Deus ou pela natureza, nem assim eles desanimam. Em A Dialética do Sexo, Sulamita Firestone diz que "a natureza não é necessariamente um valor humano. A humanidade já começou a superar a natureza; não podemos mais justificar a manutenção de um sistema discriminatório de classes sexuais fundamentadas em sua origem natural" .

Para os ideólogos de gênero, não importa a família, não importa a natureza, não importam as diferenças evidentes entre "homem" e "mulher", não importa a verdade. Em nome de um futuro utópico que eles mesmos construíram, vale tudo, inclusive transformar a própria realidade para que caiba em suas mentes celeradas. Como adverte o bem-aventurado João Paulo II, "quando os homens julgam possuir o segredo de uma organização social perfeita que torne o mal impossível, consideram também poder usar todos os meios, inclusive a violência e a mentira, para a realizar".

Tomando consciência de todo este plano idealizado para destruir a célula mater da sociedade, as pessoas de boa vontade devem se unir, em ordem de batalha, para defender o bem comum e, se possível, desmascarar as mentiras concebidas nestes projetos sórdidos e diabólicos. Esta semana, no Congresso Nacional, graças à ação conjunta de católicos, protestantes, espíritas e muitos outros grupos, alguns destes projetos foram temporariamente freados. No entanto, a mão por detrás de toda esta maquinação é forte e a guerra não acabou.

A vitória, no fim das contas, está do nosso lado. Se a veremos ou não, esta é outra história. Cabe a nós, como diz Santo Inácio de Loyola, "orar como se tudo dependesse de Deus e trabalhar como se tudo dependesse de nós". Afinal, desta importante luta dependem o futuro da família, do Brasil e da própria humanidade.

Por: Padre Paulo Ricardo Do site: www.midiasemmascara.com.br 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

SER E APARECER


História de vida, o que é isto? Quanto você olha para o passado e o faz reviver faz com os olhos do presente, mesmo que tente fazê-lo a partir do ponto de vista que tinha no passado ainda assim ele é presente. Esse olhar sempre atual da própria história de vida precisa de certo treinamento, sendo que o primeiro deles é entender que a história de vida não é a pessoa, mas um registro daquilo que viveu, por onde esteve. Se ao longo da vida você por um acaso cometeu “erros” isso não quer dizer que você seja uma pessoa errada, mas uma pessoa que cometeu erros. O contrário também é válido, fazer coisas boas não torna ninguém uma pessoa boa, mas uma pessoa que faz coisas boas. As atitudes de cada pessoa não necessariamente refletem o que ela é, mas sim o que ela faz com aquilo que ela é.

Certa vez conheci um jovem senhor de 70 anos, uma pessoa que cuidava das crianças do bairro, encaminhava para o escotismo, circo, cinema, leitura, enfim, cultura. Por muito tempo me pareceu uma pessoa muito boa, uma pessoa com uma história que dizia que ele era um homem muito bom. Cresci e tive a oportunidade de conversar com este mesmo homem anos depois, já em faze terminal, disse a ele que ele era um homem bom, exemplo de pessoa. Sua resposta me deixou confuso na época, hoje entendo perfeitamente o que ele disse. Disse ele: “Não sou um homem bom, vivi minha vida para mim, fiz sempre o que quis, sou orgulhoso, mesquinho, arrogante, prepotente. Quando vocês eram pequenos eu via em vocês bichos do mato e me achava muito melhor, por isso mostrava um mundo “melhor” para vocês, queria poder dizer para mim mesmo que fui eu quem os salvou da ignorância. Dei-me o direto de achar que o que viviam na pequena vila deveria ser mudado, a começar pelas crianças, por isso me arroguei o direito de intervir. Eu me achava a melhor das pessoas, porque ninguém ao redor sabia o que eu sabia, tinha viajado o que eu tinha viajado, por isso não escutava, falava, dava conselhos”. 

Passei anos discordando, entendendo que se ele fez coisas boas é porque era uma pessoa boa. No entanto, anos mais tarde, depois de muita filosofia percebi que, ele via em suas atitudes a intenção por detrás delas. Filosoficamente a questão fica bem complicada, pois será que interessa o mérito interior de uma boa ação? Os mais religiosos provavelmente dirão que sim, mas e a história de fé sem obras é morta, será o oposto também é verdade? Que obras sem fé também são mortas? Voltando ao caso citado, esse homem mostrou e, mesmo depois de seu falecimento, ainda mostra que as atitudes de uma pessoa não mostram quem ela é.

Por isso, quando olhar para a própria história, com suas escolhas, acertos e erros, é necessário perceber que suas atitudes não são você, mas o que você faz com o que você é. Aos que cometeram erros ao longo da vida e sentem-se julgados pelos outros, basta lembrar que estes outros têm suas histórias. Podemos não ter orgulho de algumas escolhas que fizemos, mas podemos nos orgulhar das escolhas que são feitas agora, neste momento.

Por isso, se sua história contém coisas das quais você não se orgulha, veja o que pode ser feito deste momento em diante para se orgulhar. Se sua atitude no casamento mostra uma pessoa que você não é, pode ser feito diferente. Há uma única coisa que não pode se feita: legar a responsabilidade ao outro pelo passado que tenho, pois mesmo quando outorgo ao outro a escrita da minha história sou responsável por ela. Meu amigo fez muitas cosias boas mesmo se achando mau, uma pessoa pode fazer muitas cosias más se achando boa.

Rosemiro A. Sefstrom Do site  www.filosofiaclinicasc.com.br 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

FELICIDADES

E se houvesse uma fórmula para a felicidade? Uma cartilha capaz de resumir, em breves linhas, como chegar a esse estado de contentamento sem necessidade de batermos com a cabeça nas paredes?

Arthur C. Brooks, em artigo e vídeo para o "The New York Times", defende que os cientistas, economistas e outros tribalistas já chegaram ao santo graal. Foram 40 anos de estudos. Resultados?

Os genes contam. Muito. Quase metade: 48%. Se os pais, os avós e os bisavós tinham a disposição solar de um morcego, existem sérias possibilidades de também nós sermos criaturas noturnas.

Mas os genes não explicam tudo. Os acontecimentos da vida também dão um contributo. A cifra é 40%. A cifra é composta pelos acidentes da vida --e "acidentes" no sentido mais pueril do termo: ganhar a lotaria, por exemplo. Ou ter uma doença grave que nos deixa em estado pouco recomendável.

O ponto é que esses 40% evaporam-se rapidamente: meses depois do "grande acontecimento", os níveis de felicidade regressam à casa da partida. Quem era feliz, feliz fica. Quem era infeliz, infeliz continuará.

Sobram 12%? Afirmativo. E esses 12% distribuem-se entre fé, família, comunidade e trabalho. É nesses 12% que o leitor deve apostar as suas cartas. Até porque elas acabarão por influenciar o resto do pacote.

Os ensinamentos de Arthur C. Brooks divertem pelo seu simplismo racionalista. Mas, honestamente, quem acredita na precisão matemática com que ele apresenta os seus cálculos hedônicos? Aliás, pode haver uma receita para a felicidade aplicável a qualquer criatura bípede?

Começo pelo fim. A fé é importante? Será. Mas de que fé nos fala Brooks? Da fé de alguém que é compassivo e tolerante para com os outros e que mantém uma confiança optimista no patrão bondoso lá de cima? Ou será da fé de um fanático que acredita piamente num deus guerreiro e castigador, que exige matanças e martírios contra infiéis?

Será que um jihadista, imerso na sua fé, é mais feliz do que um ateu? Não tenho grande convívio com os profissionais do ramo, reconheço. Mas quando olho para as caras barbudas daquela gente não vejo grande felicidade a escorrer pelos olhos vidrados de ódio.

Resta a família, a comunidade e o trabalho. E resta essa terrível palavra ética que dá pelo nome de "depende". Porque existem famílias e famílias. E existem comunidades e comunidades: as primeiras, capazes de oferecer um sentido de coesão e suporte para as nossas solidões mundanas; e as segundas, retrógradas e opressivas, que convidam à sabotagem ou à fuga.

Só no trabalho concordo com Brooks: é mais importante fazer o que é mais significativo do que fazer simplesmente o que é mais bem pago. Mas há um momento em que não é possível comprar o uísque das crianças só com a bolsa cheia de significados.

Sobre os acidentes da vida, a minha ignorância é total. Admito que existam tetraplégicos felizes. Como admito que existam milionários infelizes com suas contas bancárias na Suíça.

Mas, aqui entre nós, que ninguém nos ouve, eu talvez experimentasse o segundo cenário, só para comprovar - e relatar - se seis meses depois continuaria o chafurdar no mesmo caos neurótico que embala os meus dias. E embala porquê?

Minha tentação final seria dizer que a culpa é dos pais, avós e bisavós: o "software" não é grande coisa. Ou talvez eu não seja grande coisa a lidar com ele, escolhendo maus hábitos, maus caminhos e até más companhias. Como medir, cientificamente falando, a percentagem dos meus defeitos e dos defeitos que tive por herança? Falar de 48% de influência genética é tão aleatório como de 38% ou 58%.

Uma conclusão de Arthur C. Brooks, porém, merece pasmo e horror: as mulheres são mais felizes que os homens. Explico. Mulheres casadas são mais felizes que homens casados. Mulheres solteiras são mais felizes que homens solteiros. E mulheres viúvas são muitíssimo mais felizes que homens viúvos.

Meu Deus: será que nós, homens, somos completamente imprestáveis nesse negócio da felicidade? Solteiros, casados ou viúvos --somos bichos que não se recomendam.

Por: João Pereira Coutinho

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

HERODES, ESSE INCOMPREENDIDO

O jornalista Paulo Francis, que adorava crianças malcomportadas, costumava dizer que Herodes tinha sido um incompreendido. Pena que Francis não esteja entre nós para contemplar o que se passa na Bélgica. O espírito de Herodes está vivo por aquelas bandas e o país está a um passo de legalizar a eutanásia para crianças.


Verdade que a Bélgica sempre foi bastante "liberal" (peço desculpa pelo uso abusivo do termo) nessas matérias. Segundo os manuais da especialidade, a eutanásia (ativa ou passiva) existe para terminar com o sofrimento intolerável (e incurável) de um doente.

O médico pode matar o paciente (eutanásia ativa), ou, em alternativa, pode suspender certos tratamentos que terão o mesmo fim (eutanásia passiva).

Seja como for, havia pelo menos um entendimento mínimo de que a eutanásia era um expediente extremo, só aplicável a situações extremas.

Acontece que a Bélgica foi alargando os casos de "situações extremas". Sim, um doente terminal com câncer cumpre os requisitos para uma injeção letal. Mas o que dizer de uma pessoa em profundo sofrimento psicológico ou acometida por uma deficiência irreversível como a cegueira?

Se o argumento da autonomia é o mais importante nas questões de vida ou morte, não devemos respeitar também a autonomia de alguém que não deseja mais viver porque habitar as trevas --psicológicas, sensoriais-- não é destino que se deseje para ninguém?

Foi assim que a Bélgica começou a praticar estas formas de eutanásia "à la carte" muito para além dos casos clássicos de sofrimento irreversível. O passo seguinte --eutanásia para crianças-- era apenas uma questão de tempo.

Posição pessoal: sou favorável a que os médicos façam tudo para minorar a dor (mesmo que esses cuidados paliativos tenham como "duplo efeito" a morte a prazo do paciente --por exemplo, com injeções crescentes de morfina).

E, além disso, admito situações de eutanásia passiva em que se retiram meios artificiais que apenas adiam artificialmente o fim de qualquer existência. Entre esses meios artificiais não estão, logicamente, o oxigênio, a água e a alimentação. Matar um ser humano por asfixia, sede ou fome não faz parte da minha cartilha.

Mas também não faz parte da minha cartilha os argumentos autônomos e utilitaristas que normalmente são avançados para defender a eutanásia ativa.

Sobre os argumentos utilitaristas --há certos meios (matar o paciente) que são legítimos para se atingir certos fins (evitar o sofrimento do paciente)--, convém não levarmos demasiado longe esse raciocínio de "meios e fins". Caso contrário, também podemos defender, sem nenhuma contradição, que existem certos meios (matar quem defende matar pacientes) para se atingirem certos fins (salvar a vida dos pacientes).

Sobre os argumentos de autonomia individual, a questão não está em saber se a autonomia é um valor fundamental. Claro que é. A questão está antes em saber até que ponto alguém em sofrimento considerável continua a ser o melhor juiz em causa própria. Sobretudo quando existem alternativas terapêuticas para diminuir esse sofrimento.

E, claro, a questão agrava-se quando falamos de crianças. Na lei belga que o Parlamento se prepara para aprovar, a eutanásia poderá ser ministrada a crianças gravemente doentes desde que elas o desejem; desde que os pais o permitam; e desde que um especialista sancione essa escolha.

Cada uma dessas premissas já é um problema por si só. Não vou discutir o que significa para uma civilização alegadamente avançada conceder aos pais (e aos médicos) o direito de matar os filhos. O cenário comenta-se a si próprio.

Fico-me pelos filhos: respeitar a vontade de uma criança que deseja morrer não é apenas um problema legal, que lida com o fato de ela não ter atingido ainda a maioridade. É sobretudo uma forma de desistência moral: para uma criança em sofrimento, apresentar-lhe a morte como alternativa é um gesto de obscenidade que deveria envergonhar uma sociedade de adultos.

"Herodes, esse incompreendido", dizia Paulo Francis, com perversa ironia. Mal ele imaginava que, na segunda década do século 21, Herodes deixaria de ser uma ironia.

Por: João pereira Coutinho Folha de SP

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A DELICIOSA NUDEZ CASTIGADA

A repressão ao sexo mudou de lugar, agora ela está ali onde se situa o discurso "por um mundo melhor". As antigas "freiras" e senhoras protestantes de preto, que falavam de pecado e babavam de ódio das mais gostosas, agora propõem a extinção do sexo pago em nome da "justiça social". Ou seja, a puta, a garota de programa, deve deixar de existir. Antes era o pecado, agora é a "exploração do corpo".

O conceito de pecado implica em desejo reprimido (o que dá tesão), o de "exploração" não pressupõe o desejo, mas sim o papo-furado do "capital malvado". Gente chata essa que fala de "controle político do corpo".

Meu Deus, quando é que nos tornamos tão incapazes de entender um mínimo da natureza humana? Já sei: desde que criamos essa noção autoritária de "lutar por um mundo melhor".
Se um dia não existir mais mulheres que cobram por sexo (de modo direto e sem rodeios), a violência no mundo será ainda maior. Sexo e amor sempre custam dinheiro, além de outras coisas. Aliás, a garota de programa é a mulher menos cara do mundo, custa só dinheiro.

Outras relações custam vínculos, jantarzinhos, longas conversas, "DRs", incertezas quanto à retribuição do investimento de desejo, tempo e dinheiro. Entre essas meninas que trocam dinheiro por sexo, as melhores são aquelas que o fazem porque gostam do que fazem. Aliás, como em toda profissão.

Na Antiguidade, em muitos lugares, essas mulheres generosas faziam parte do processo de transformar um menino num homem. Mesmo em rotinas religiosas e espirituais. Na Bíblia, o numero de personagens prostitutas importantes é razoável. Dirão algumas pessoas mais nervosas que isso é "machismo", mas elas não entendem nada de sexo nem de mulher.

Nelson Rodrigues falava de "uma vocação ancestral". Diria eu, um arquétipo. O mundo fica mais pobre cada vez que esta vocação se torna muda. Tranque-a num quarto e seu perfume atravessará as paredes. Seu desejo escorrerá por debaixo da porta. Esconda-a sob véus, ela ressurgirá nos olhos, nos lábios, nos fios de cabelo. Seja nas roupas, na maquiagem, no modo de andar, de se sentar, de cruzar as pernas, de pensar, de sonhar, as melhores mulheres exalam cheiro de sexo como um dos modos de se relacionar com o mundo. Na filosofia se chama isso de erotismo.

A psicologia evolucionista considera a mulher que troca sexo por dinheiro um salto adaptativo. Elas mantêm o poligenismo masculino sob controle porque não exigem investimento afetivo em troca. Antes uma delas do que uma colega de trabalho. Não se pode falar isso, mas todo mundo sabe disso. Com a colega vem o risco da semelhança de interesses, da convergência de gostos, e o pior, a possível sensibilidade compartilhada.

Mas, eis que o Monsieur Normal, leia-se, o chato do François Hollande, presidente da França, resolveu multar quem for pego com uma dessas mulheres generosas. Não vai adiantar, só vai aumentar a violência, o crime, a distancia geográfica entre o homem e a mulher que querem fazer sexo sem complicações.

Mas, seguramente, vai aumentar a arrecadação do Estado, única coisa que socialista entende de economia. No resto, são analfabetos que só atrapalham o mundo. O que alimenta o socialismo como visão de mundo é a inveja dos que não conseguem ganhar dinheiro contra os que conseguem. De novo, o pecado (a inveja), ilumina melhor nossa natureza do que o blá-blá-blá da política como redenção do mundo.

Os "corretos" falam em "profissional do sexo", porque consideram a expressão puta ou garota de programa um desrespeito com essas mulheres. Pura hipocrisia, como sempre, quando se fala de pessoas que querem "um mundo melhor". Como dizia o filósofo Emil Cioran, vizinhos que são indiferentes são melhores do que vizinhos que têm uma "visão de mundo".

Mas, graças a Deus (que nos entende melhor do que esses santinhos de pau oco), essa lei não vai adiantar porque quanto mais se castiga a nudez paga da mulher, mais deliciosa ela fica.

Ao final, a mulher que troca sexo por dinheiro, sempre é mais desejada quando encontrá-la fica ainda mais caro. Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

INDIVIDUAÇÃO POR INTEGRAÇÃO

Ao longo da história da Filosofia, uma entre tantas de suas buscas consiste em encontrar receitas que mostrem como o homem funciona, procurando apontar características universais e necessárias de qualquer ser vivente. Mesmo assim, praticamente dois mil e quinhentos anos após o início destes esforços cada vez mais se percebe que o ser humano é único. Sua participação em algumas características mais amplas não faz dele um igual a todos os outros. No entanto, na atualidade o que vem acontecendo com certa rapidez é a diferenciação por massificação. Explico: cada vez mais se busca ser diferente sendo igual. Um sujeito que vive no interior do Estado do Amazonas para ser diferente dos outros de sua cidade busca ter o melhor celular de todos. Esta regra também vale por aqui, ou seja, o sujeito busca ter características divulgadas pela mídia para ser diferente dos que estão ao seu redor. Esta é uma forma de diferenciação feita via massificação, como alguém que compra a melhor marca de carro para se diferenciar do restante das pessoas com quem convive. É claro que a olhos vistos ele não conseguirá diferenciar-se ao massificar-se, mas a ele, enquanto ser vivente dentro de um contexto específico se sentirá diferente pelo que tem. 

Atualmente, via internet e outros meios de divulgação é cada vez mais fácil ter o que é moda nos mais diversos centros mundiais. Ao mesmo tempo é cada vez mais comum um jovem querer ser diferente sendo igual a muitos outros pelo mundo, o ser individual dele morre ao passo que ele se massifica. Foucault, filósofo francês, prega que a ciência deveria ser chamada de “heterotopologia”, o que significa ser uma ciência dedicada a estudar os diferentes espaços presentes numa mesma realidade. Para ele não há duas pessoas iguais, mas sim um sistema que cria regras para tratar a todos como iguais, para entender um pouco disto basta ler seu livro “História da loucura na Idade Clássica”. Nesta obra ele é taxativo: se existem regras abrangentes, estas existem para facilitar o domínio das pessoas como um todo, não mais como indivíduo. 

Em outra obra chamada “As palavras e as coisas” Foucault mostra que quanto mais palavras são utilizadas para descrever algo, menos se tem do objeto. Levando em conta esta obra do autor e o atual passo da ciência reconhece-se que estamos cada vez menos o homem é visto como experiência pura. O homem enquanto ser puro é experiência única, você, a pessoa que está lendo este artigo agora é único. No entanto, ao olhar-se no espelho, ao andar com seu carro, estando numa escola, ao pagar seus impostos, você é apenas mais um, em alguns casos nada mais que um número. Não há mais a experiência pura de você, em alguns casos nem mais no seu casamento onde a esposa ou marido lhe vê apenas como mais um marido ou esposa. A experiência radical do outro é feita quando não há dados descritivos comparativos, onde suas características são um agrupamento único de características. 

Como forma de exemplificar, comparemos uma pessoa a um café. Se você sentar e tomar um café, você sabe que é café, mas qual será seu gosto? Se você prestar muita atenção verá que não existe um café comparado ao outro. Se a experiência do café for radical ele fará parte de você, será único por si mesmo, porque faz parte de você. Retornando à ideia de Foucault de experiência pura, seria então perceber num mesmo espaço diferentes pessoas, cafés, sucos, paisagens. Quando alguém compara você, de alguma forma você está morto, porque a partir daquele momento você é apenas mais uma experiência contabilizada. Se você for vivido radicalmente e viver radicalmente o outro, fará parte dele e ele de você, não haverão pessoas, coisas, haverá sempre pessoa, coisa, únicos como experiência e participação.

Por: Rosemiro A. Sefstrom    Do site www.filosofiaclinicasc.com.br 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

O MÉTODO PARA NÃO ENTENDER NADA


Richard Rorty diz que, não havendo nenhuma verdade a ser encontrada acima das divergências de opinião, a filosofia se reduz a um puro divertimento, no qual, em vez de procurar saber se tal ou qual filósofo tinha razão, você deve tentar apenas "pensar como ele", como quem assiste a um drama – ou o escreve – e se identifica com os pontos de vista dos vários personagens sem chegar a conclusão nenhuma.

Ele ia até mais longe e afirmava que a mesma tolerância e abstinência de julgamento deveria ser praticada com os grandes agentes históricos, não havendo razão nenhuma para que algum escritor não produza uma biografia de Hitler desde o ponto de vista do próprio Hitler, representando mentalmente e sentindo, sem julgá-lo, o ódio anti-semita que o movia.

O primeiro desses conselhos é um bom método para começar a estudar filosofia, mas não constitui uma filosofia de maneira alguma, assim como o segundo é um bom meio de iniciar uma investigação histórica, mas não de concluí-la

É evidente que, quando você estuda as doutrinas de um filósofo, deve absorvê-las como se fossem as suas próprias antes de poder julgá-las. Se você salta essa etapa, as idéias dele permanecem um corpo estranho e ao julgá-las desde fora você não as atinge, apenas desliza sobre elas.

Entretanto, se, após ter feito um esforço para pensar como se fosse Descartes ou Nietzsche você não é capaz de voltar a ser você mesmo e julgá-los desde o seu próprio ponto de vista, fica também impossível julgar Descartes desde o ponto de vista de Nietzsche, ou vice-versa, isto é, toda comparação se revela inviável e a filosofia se reduz a uma coleção de discursos separados e inconexos, um diálogo entre quem não ouve e quem não fala.

Em segundo lugar, para "pensar como" fulano ou beltrano, você precisa saber o que eles sabem. Mas será possível e necessário, também, ignorar o que eles ignoram? Por exemplo, algo que se descobriu depois que eles morreram, e do qual você está bem informado. Se o mapa da sua ignorância não coincide exatamente com o de um outro indivíduo, você jamais poderá pensar exatamente como ele. Você pode, é claro, fingir que ignora o que ele ignora, mas esse fingimento é algo que não estava no pensamento dele e que você está introduzindo nele desde fora.

Se, ao contrário, você realmente ignora o que ele ignora, então não é da ignorância dele que se trata, e sim da sua própria, que só por acaso coincide com a dele. E é loucura imaginar que a coincidência fortuita de duas ignorâncias seja um bom método para compreender o que quer que seja.

Chega a ser inacreditável que um filósofo de grande reputação como o professor Rorty não percebesse, de imediato, a completa inviabilidade do método que sugeria.

O que cabe fazer em filosofia, o que no fundo todo estudante acaba fazendo sem nem mesmo ter a intenção clara de fazê-lo, é tentar pensar como o filósofo que você está estudando e depois, confrontando o que ele sabia com o que você sabe, criar a sua própria opinião sobre as opiniões dele. (É claro que existem maus estudantes – muitos deles, decerto, professores – que já criam a sua própria opinião a respeito antes de deixar o filósofo terminar de falar, e alguns até antes de que ele comece a falar. Mas "non raggionam da lor".)

Quanto aos personagens históricos, é claro que devem também ser estudados desde suas próprias intenções e valores, "sine ira et studio", mas é impossível fazê-lo sem levar em conta que competiam com as intenções e valores de outros personagens e que tanto as intenções e valores de uns quanto as dos outros se recortavam sobre um horizonte de consciência (e de inconsciência) que não é o do historiador que os está estudando. Este, portanto, nada compreenderá do drama histórico se, desde os dados à sua disposição, não puder distinguir, entre os personagens históricos, quais viam a situação mais apropriadamente que outros.

Posso, por exemplo, tentar me colocar no lugar de Hitler e "sentir" imaginariamente o ódio que sentia aos judeus, desde as razões que ele se apresentava para tanto. Mas devo levar essa tolerância relativista ao ponto de ter de ignorar o que ele ignorava? Devo fazer de conta que não sei que ele acusava os judeus de crimes que eles não haviam cometido e enxergava neles defeitos de constituição cerebral que eles não têm de maneira alguma?

Posso até fingir isso, mas aí já não estarei pensando como Hitler e sim como um dramaturgo que inventa um personagem chamado "Hitler" sem ter em conta o Hitler da História. Pior ainda, se depois de mergulhar no horizonte de consciência de Hitler não saio fora dele para julgá-lo de cima, como posso distinguir se Hitler acreditava mesmo naquelas coisas ou se apenas as fingia, por sua vez, para tirar delas proveito político?

Tanto em filosofia quanto em historiografia, o método do professor Rorty pode levar somente a um resultado: uma confusão dos diabos. Não espanta que, havendo-o praticado por anos a fio, ele próprio chegasse a concluir que nenhum problema tem solução e que a única coisa que o filósofo tem a fazer é entregar-se ao divertido empreendimento de não entender nada.

Muito menos espanta que um seu discípulo local, um tipo folclórico que se denomina "o filósofo da cidade de São Paulo" – como se não tivessem sido da capital paulista os maiores filósofos que o Brasil já teve, Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva e Vilém Flusser – depois de ter absorvido as idéias do mestre, acabasse acreditando que a pedofilia é uma coisa boa e que, historicamente, a prática generalizada do coito anal antecedeu a do coito vaginal...

Por: Olavo de Carvalho é jornalista, ensaísta e professor de Filosofia

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

DORIAN

A imortalidade é para os deuses. Em nós, ela seria uma deformação, mas nem por isso deixaremos de procurá-la e construí-la. Muitas vezes, quando vejo paquitas velhas andando pelas ruas, lembro de Dorian Gray e sua aposta na juventude eterna. 


A propósito, nada deixa filhos e filhas mais envergonhados do que pais e mães que querem parecer jovens como eles. Um ridículo de doer. Impressionante como, à medida que a vida se torna mais longa, a alma se torna irrelevante. 

Na obra de Oscar Wilde "O Retrato de Dorian Gray" (versão ampliada, publicada em 1891), a imagem não só envelhece no lugar de Dorian como "recolhe" a deformação da alma daquele (Dorian) que não envelhece. Esse livro é uma das maiores profecias sobre a modernidade e sobre sua aposta na redenção pelo desejo de vida eterna bela e saudável --e consequente fracasso. 

Dorian é um jovem bonito e sedutor, mulheres e homens ficam enlouquecidos por ele. Sendo ele mesmo, Oscar Wilde, gay (e teve um importante affaire em sua vida que muito lhe custou), a temática gay como "rebeldia" (um tema sem dúvida datado; só gente cafona ainda vê rebeldia em alguma forma de sexualidade) perpassa o romance, mas neste é apenas um detalhe, caso contrário ele não seria mais um clássico. 

Italo Calvino dizia que um clássico é um livro que nunca se acaba de ler porque o que ele tem a dizer é inesgotável. O que tem Dorian Gray a nos dizer de infinito? Algumas coisas. 

Vivendo numa sociedade vitoriana bastante repressora, Oscar Wilde, esteta da moral (normalmente gente assim acha que as sensações nos formam mais profundamente do que nossas ideias --concordo com os estetas em grande parte), brinca com o niilismo hedonista como forma de resposta à falta de sentido da vida. 

Dorian, eternamente jovem e belo, come todo mundo, viaja pelo mundo, come todo mundo, bebe todas, come todo mundo, mergulha no ópio, come todo mundo e volta para casa anos depois, eternamente jovem, belo e saudável. 

Mas fracassa: não suporta tanta "felicidade". Só bobo "acredita" no desejo, mas, se você nunca levou o desejo ao extremo da realização, talvez não tenha noção do custo desse fato: "O tédio é o único pecado para o qual não há perdão", dizia nosso grande escritor irlandês. 

Se o hedonismo apresentado por Oscar Wilde no romance trai a afetação de quem vivia antes da broxante revolução sexual dos anos 60, ainda hoje não desistimos de apostar numa forma de hedonismo, aquele que podemos definir como "safe": faço tudo, mas com camisinha e sem tabaco. 

Wilde provavelmente experimentaria um enorme tédio hoje em dia, maior do que em seus anos vitorianos, porque então podíamos dar a desculpa da ignorância: hoje sabemos que já nos deixaram desejar tudo e descobrimos que não desejamos mais nada. 

Talvez nunca tenham andado sobre a Terra homens e mulheres com tão pouco desejo. É o contrário do que os bonitinhos afirmam por aí: temo que, antes da água, o desejo desapareça do ecossistema. 

Nós, contemporâneos, teríamos processado o pintor do retrato de Dorian Gray por não nos ter poupado do enlouquecimento da alma. 

Em vez de considerar esse enlouquecimento da alma representado no retrato (a alma velha e deformada pelo excesso de desejo realizado) como o limite imposto "pelos deuses", como forma de cura da desmedida humana, nós, contemporâneos, seres sem desejo, o teríamos considerado uma falta de respeito ao nosso direito a felicidade e juventude eternas. 

Mas nem por isso Dorian Gray fala menos a nossas almas apequenadas. Pelo contrário, somos quase todos o seu retrato. Figuras deformadas pelo projeto de saúde total, de egoísmo fisiológico pleno, pelo retardo mental como ideal cultural máximo e pela declaração de guerra ao amadurecimento. 

Wilde nos legou como herança a aposta não de que nós seríamos Dorian Gray, jovem atormentado pela descoberta do que o deuses sempre souberam (que necessitamos da dor, da morte e do sofrimento como formas de humanização), mas sim seu retrato: um rosto que recolhe a grotesco de um mundo clean, "safe", teen e maníaco pela saúde. 
Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

sábado, 30 de novembro de 2013

ANFITRIÃO

Nos últimos tempos tive o privilégio de atender algumas grávidas, ajudá-las a passar por um momento que nem sempre é de alegria. No trabalho com uma delas me chamou atenção sua preocupação com o mundo para o qual traria seu filho. Dizia ela ter ouvido muitas mulheres que alegam não querer filhos pela situação em que o mundo se encontra. Depois de um dos atendimentos me lembrei de Anfitrião. Cito um trecho do que pode ser encontrado na internet: “na mitologia grega, Anfitrião era marido de Alcmena, mãe de Hércules. Enquanto Anfitrião estava na guerra de Tebas, Zeus tomou a sua forma para deitar-se com Alcmena e Hermes tomou a forma de seu escravo, Sósia, para montar guarda no portão. Uma grande confusão foi criada, pois Anfitrião duvidou da fidelidade da esposa. No fim, tudo foi esclarecido por Zeus, e Anfitrião ficou contente por ser marido de uma escolhida do deus. Daquela noite de amor nasceu o semideus Héracles. A partir daí, o termo anfitrião passou a ter o sentido de "aquele que recebe em casa". O mesmo ocorreu com sósia — "cópia humana", ou seja, semelhança humana”. Antes de qualquer riso de canto de boca, é necessário entender que para um ser humano grego ter sua mulher escolhida por um Deus como sua amante era um privilégio, semelhante a Virgem Maria. 

Desde então o termo Anfitrião é utilizado para a pessoa que recebe as pessoas em sua casa, que paga uma conta, que dirige um evento. Anfitrião é então aquele que recebe e orienta o que a pessoa irá viver enquanto estiver em sua companhia. Quando você recebe alguém em sua casa e é o Anfitrião, como é que você faz? Se eu fosse a sua casa, o que me mostraria? A sujeira embaixo do tapete, os restos de comida em potinhos na geladeira, o banheiro que ficou sujo, ou me ofereceria o que tem de melhor em sua casa? É provável que você, ao receber os amigos, se prepare, arrume a casa, compre o que é necessário para satisfazer seus convidados. Seguindo nesta linha de pensamento pensei na mulher grávida com quem conversava, não pensando-a como mãe, mas como uma Anfitriã. Agora, era a mãe que estava com um convidado para chegar, deveria ela estar preparando tudo para que seu convidado ficasse satisfeito. 

A criança ao chegar ao mundo tem os pais por anfitriões, sua visão de mundo dependerá inevitavelmente do que for mostrado inicialmente pelos pais. Se os pais mostram à criança um mundo mau, violento, onde as pessoas se voltaram umas contra as outras, é provável que a criança viva este mundo. Não digo que os pais devem criar um mundo de fantasia, mas não precisam necessariamente criar um mundo mau. Quando uma pessoa vem me visitar mostro a ela a casa, os ambientes, como se vive na casa, mas também peço cuidado com o cachorro, pode morder. Dizer que existem perigos em minha casa não significa fazer do cachorro um monstro devorador de pessoas, deve-se apenas deixar ele no espaço dele.

Você, enquanto mãe, sabe em que mundo o seu filho virá? Eu sei: o mundo que você preparar para ele, um mundo no qual você é a anfitriã e pode direcionar de acordo com o que entende ser melhor. Ao longo da vida ele provavelmente vai construir a visão dele, esta pode ir contra, a favor, compor com a que aprendeu com você. Mas, antes de chegar à autonomia o mundo passa pelo filtro do anfitrião, que aponta o que e como viver. Para ser um bom anfitrião não basta estar preparado para os convidados, é necessário estar preparado de acordo com o convidado que virá. Qual é o seu convidado? O texto sobre Anfitrião foi retirado de: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anfitrião (Acesso em 26.11.2013)

Rosemiro Sefstrom

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O CRÍTICO DE BOLSO BACANA

Um dos traços essenciais de nossa psicologia é que queremos ser aceitos. Muitos filósofos, entre eles Adam Smith (1723-1790), diziam que nossa imaginação é constantemente presa à inquietação de como somos vistos pelos outros, fato este que é parte saudável da vida moral social, mas que também facilmente degenera numa angústia de dependência afetiva destruidora da autonomia. 


Uma das formas mais seguras de se sentir aceito pelo grupo é desenvolver opiniões de rebanho. No fundo, temos horror a sermos recusados pelo bando, mas, hoje em dia, esse desejo de agradar é avassalador. 

As redes sociais e sua mesmice brega, espaço de repetição do irrelevante, são prova de nossa condição de rebanho como pilar da (in)segurança psicológica. 

As redes sociais criaram um novo perfil, o do crítico de bolso em versão pós-moderninha. O sonho dessa moçada, que se afoga na irrelevância e no desespero do anonimato cotidiano (que assola todos nós), é ter opiniões sobre as coisas, mas acaba mesmo falando da pizza que comeu ontem ou xingando os inimigos de plantão. O sonho de muitas dessas pessoas é frequentar jantares inteligentes nos quais gente bacana emite opiniões bacanas. 

A forma mais fácil de frequentar jantares inteligentes é atacar a igreja, os EUA e a polícia. Mais sofisticado, mas que também garante acesso aos jantares inteligentes das zonas oeste e sul de São Paulo, é dizer que "o modelo social está ultrapassado". Esta frase leva algumas pessoas ao orgasmo (risadas?). 

"O modelo social está ultrapassado" é a típica frase de quem quer se passar por crítico (mas, na realidade, é crítico de bolso), porque é a sociedade de mercado (ou como dizia Adam Smith, "commercial society"), a mesma que os comunistas chamam de "capitalismo", que nos retirou da miséria que é o estado natural da vida (e à qual voltamos rapidinho se o Brasil virar a Venezuela de Chávez e Maduro). 

Toda riqueza que sustenta esse povo de jantares inteligentes, a começar pelo "bom vinho em conta", é fruto do mesmo modelo que consideram ultrapassado. 

Aqui e ali, faça uma caricatura de quem você não consegue enfrentar porque lhe falta repertório conceitual. Diga que são racistas, "sequicistas" e homófobos. Conte, fingindo segredo, que seu filho é do círculo íntimo dos "maravilhosos" meninos do MPL e que sua filha é (incrível!!) black bloc, mas nunca bateu em ninguém. 

Assim você chegará à sobremesa (leve, pois em jantares inteligentes ninguém quer engordar, porque sabe que os parceiros de jantares inteligentes são pessoas muito críticas) com segurança, sem dizer nada que ponha em risco sua cidadania de gente bacana. 

Mas o que marca essa gente bacana é que na verdade nunca fala, nem tem contato real, com as pessoas fora das escolas de R$ 3.000 que paga para os seus filhos críticos desde os cinco anos de idade frequentarem, ou do seu círculo profissional chique e/ou da praia chique onde tem sua casa de praia típica de praias chiques. 

O problema, quando você é um cidadão de jantares inteligentes, é que você acaba mesmo alienado e acreditando nas suas próprias críticas de bolso. Mas vamos ao que interessa. Vamos falar de um dos tópicos que autorizam você a se achar bacana e a frequentar jantares inteligentes: a polícia. 

Outro dia, por acaso, conversei por cerca de três horas com um policial militar aposentado do Estado de São Paulo. Muito instrutivo, uma vez que sou egresso do mundo de gente bacana, que, portanto, nada sabe acerca do mundo real. 

Ele definia sua classe como aquela que vive com a "mão no lixo" que essa gente bacana nunca vê de fato -a não ser quando resolve fazer ensaios fotográficos sobre "injustiça social". Reclama de como eles são invisíveis e de como a sociedade, na sua maioria, os considera parte do lixo. Um sofrimento profundo, devido a essa invisibilidade, marcava seu rosto de solitário. A polícia é um dos setores mais maltratados da sociedade, apesar de essencial. 

Essa gente bacana sai correndo do jantar inteligente para o carro, com medo, sonhando com um baseado e uma bike em Amsterdã nas férias. Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

BREAKING BAD

A série "Breaking Bad" chegou ao fim. Enquanto o cinema americano encareta sob a bota da censura politicamente correta, na qual homens cada vez mais falam fino como mulherzinhas e as mulheres brincam de meninas superpoderosas, a TV arrisca aquilo que o cinema se tornou incapaz de fazer: falar a sério sobre o cotidiano. 


Uma sutil herança de obras como "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson, se faz sentir em "Breaking Bad": o homem "bonzinho" é um derrotado. Seu lado mau é essencial para sua virilidade, mesmo espiritual. Sabendo que parte do mundo hoje é composto por gente mimada, vale salientar que ao dizer isso não estou a cultivar o mal como coisa chique. O assunto é mais sério do que pensa nossa vã inteligência infantilizada. 

Ecos da terrível hipótese de Nelson Rodrigues sobre os maridos também se fazem sentir em "Breaking Bad". Nelson dizia que a mulher quer um nada como marido. Segundo Nelson, nenhuma das grandes qualidades que fazem de um homem um grande homem servem num bom marido. 

O professor Walter White é um homem aniquilado. A maioria de nós é, e no aniversário merece, quando muito, que a mulher bata uma punheta como presente --ainda que prestando mais atenção a alguma oferta da internet. 

Um homem um pouco mais bem-sucedido talvez ganhasse um boquete. Trata-se de uma cena homérica da série, mas que indica bem o grau de investimento do casal no sexo (ele tampouco está muito interessado no "presente de pobre"). 

Espremido entre uma carreira que marca seu fracasso (era um promissor gênio da química quando jovem e virou um medíocre professor de "high school" e um funcionário humilhado de um lava-rápido), um salário miserável, um filho portador de necessidades especiais e uma mulher grávida que enche o saco dele para pintar o quarto, Walter é um homem sem qualquer futuro. 

Passa suas noites insone, mergulhado no pânico de todo "loser": o dinheiro vai dar? Vou aguentar muito tempo sendo capacho? Minha mulher também me faz de capacho? Vou conseguir comer minha mulher quando ela quiser? Meu cunhado é mais macho do que eu? Por que eu dei errado e meus colegas de faculdade se deram bem? Serei eu um merda? No que eu errei? Por que estou aqui com esse carro medíocre? E essas férias CVC? Eis o dia a dia de um homem comum. 

Ser capacho é a virtude máxima de um "loser" que é bom pai e bom marido. Se a emancipação feminina era só dizer que ela queria trabalhar fora e gozar, a do homem é mais complexa porque aparentemente passa por elementos mais destrutivos do que a feminina. 

Um homem que se sente preso na condição de bom pai e bom marido pode chegar à conclusão de que só se libertará quando puser em risco exatamente as virtudes que o estão matando: ganhar dinheiro seguro ainda que pouco, ser provedor, engolir sapo no trabalho, abrir mãos dos seus sonhos em nome de uma casa própria, investir na ideia de que algum dia sua mulher Bovary e seus filhos chorarão em seu enterro, louvando-o. Um homem de classe média aniquilado só experimenta um pouco de respeito (quando muito) quando fica silencioso como um cadáver. 

Nosso químico descobre que tem câncer terminal de pulmão (e, como puro que sempre foi, nunca fumou) e "desperta". Esta é a expressão que ele usa quando fala com seu sócio sobre a razão de um "loser" como ele de 50 anos decidir entrar para o crime fazendo droga. 

E não só. Passa a comer sua mulher com gosto (e em situações inesperadas) e ela fica mais feliz. Pele bonita, olhos brilhantes, cabelos sedosos, mais generosa no dia a dia, como toda mulher bem comida. 

Dito nos termos banais de hoje: "recupera sua autoestima" quando descobre que vai morrer e entra para o crime para ganhar dinheiro. Nosso herói sente que pela primeira vez está vivo, justamente quando sabe que, de certa forma, já está morto. 

O mal como componente libertador é uma questão assustadora, mas perigosamente real. Um mundo que goza em defender alfaces terá cada vez mais homens medíocres que para poderem meter em sua s mulheres precisarão ter câncer no pulmão sem nunca ter fumado. 

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A EDUCAÇÃO GREGA E NÓS


A educação na Grécia antiga, cujo sucesso inegável é amplamente comprovado pela criatividade em todos os campos do saber e da arte, voltava-se, acima de tudo, à preparação dos jovens para os altos postos da vida pública: a política, a magistratura e a educação mesma.

Se não é, pois, uma fórmula que se possa copiar na instrução das massas em geral, e se nos dias de hoje seria utópico tentar imitá-la até para a formação da classe dominante, dos políticos, dirigentes de empresas, comandantes militares, bispos e cardeais, ela continua um modelo excelente para a educação da elite intelectual.

Não pretendo que seja possível ou desejável montar uma escola, muito menos um sistema nacional de educação, segundo o formato grego. Não é nesse sentido que uso a palavra "modelo", mas para designar apenas uma unidade de comparação e de medida que possa servir para a orientação pessoal, seja de alguns educadores, seja de pais de família interessados em homeschooling, ou de estudantes devotados a educar-se ou reeducar-se a si mesmos.

Alguns dos meus alunos já têm clara consciência disso e vêm tirando proveito do exemplo grego, tanto para si quanto para seus filhos e, quando se trata de professores, para seus alunos .

Atendida essa limitação, a primeira coisa que deve nos chamar a atenção é a prioridade absoluta que, na educação infantil, se dava ao treinamento literário e artístico. Após a instrução moral básica dada pela educação doméstica, praticamente só o que se ensinava às crianças, tão logo elas estivessem alfabetizadas, era ler e decorar as obras dos grandes poetas, participar de encenações teatrais, cantar, dançar e fazer ginástica. Isso era tudo. O resto cada um aprendia por si ou com professores particulares.

Eis como Platão descreve esse processo: "Quando os alunos aprendem a ler e começam a compreender o que está escrito, tal como faziam antes com os sons, dão-lhes a ler em seus banquinhos as obras de bons poetas (épicos), que eles são obrigados a decorar; obras cheias de preceitos morais, com muitas narrativas de louvor e glória dos homens ilustres do passado, para que o menino venha a imitá-los por emulação e se esforce por parecer-se com eles... Depois de haverem aprendido a tocar cítara, fazem-nos estudar as criações de outros grandes poetas, os líricos, a que dão acompanhamento de lira, trabalhando, desse modo, para que a alma dos meninos se aproprie dos ritmos e da harmonia, a fim de que fiquem mais brandos e, porque mais ritmados e harmônicos, se tornem igualmente aptos tanto para a palavra quanto para a ação. Pois, em todo o seu decurso, a vida do homem necessita de cadência e harmonia. Em seguida, os pais entregam-nos ao professor de ginástica, para que fiquem com o corpo em melhores condições de servir ao espírito virtuoso, sem virem a ser forçados, por fraqueza de constituição, a revelar covardia, tanto na guerra quanto em situações semelhantes." (Protágoras, 325 d7 ss. Tradução de Carlos Alberto Nunes ligeiramente modificada.)

Em seu livro densamente documentado Arts Libéraux et Philosophie dans la Pensée Antique (Paris, Vrin, 2005), a erudita germano-francesa Ilsetraut Hadot acrescenta: "Os jovens de famílias prósperas recebiam também, gratuitamente, uma educação complementar tomando parte num coro trágico ou lírico, por ocasião das festas cultuais locais. Essas demonstrações eram, com frequência, primeiras representações de uma peça de teatro ou uma poesia lírica de autor contemporâneo; eram a ocasião, para os jovens, de ser colocados em contato com todas as novas criações literárias do seu tempo e de aprendê-las de cor.

Esta espécie de educação era tão importante, que Platão, nas Leis (II, 654 a-b), se vê levado a identificar o homem culto (pepaidymênos) com aquele que participou de um coro com frequência suficiente (ikanos kekoreykôta) e, ao contrário, o homem sem cultura com aquele que jamais fez parte de um côro (akôreytos)."

Não há exagero em dizer que os jovens gregos, muito antes de entrar na vida pública, já tinham cultura literária superior à da média dos nossos atuais professores de Letras.

A preparação para a cidadania só começava depois de encerrada a etapa da educação escolar: "Quando saem da escola, a cidade, por sua vez, os obriga a aprender leis e a tomá-las como paradigma de conduta, para que não se deixem levar pela fantasia e praticar alguma malfeitoria".

Isso já era assim desde antes do advento dos sofistas, professores ambulantes que iam de cidade em cidade ensinando a arte da oratória e dos debates públicos. Os sofistas introduziram essas matérias na educação de alunos que já vinham não somente com uma boa base literária e artística, mas com algum conhecimento das leis e princípios que regiam a vida social, conhecimento do qual a sofística era apenas um complemento técnico mais avançado. Prossigo a explicação e tiro algumas conclusões dela no próximo artigo.

Por: Olavo de Carvalho jornalista, ensaísta e professor de Filosofia

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

EU

Eu sou... No artigo da semana anterior falei um pouco sobre a propagação do EU e a responsabilidade sobre esta propagação. Dois grandes filósofos serviram de base para falar do assunto: Heidegger e Sartre, sendo tanto um quanto o outro radicais em suas escolhas e práticas. No artigo desta semana insisto mais uma vez em falar do EU, esse ser que “vai sendo” ao longo da vida e se constituindo como tal. O outro, que recebe o EU, não sou EU, assim já disse Levinas, não faz par comigo, não é apenas alguém que não sou EU. Segundo o próprio Levinas é preciso identificar a mim mesmo na relação e somente assim, talvez chegue ao outro, sem massificá-lo. Vamos pensar um pouco sobre o assunto.

Se tiver um pequeno espelho por perto, olhe-se e veja o quanto de você é possível identificar em sua imagem no espelho. A roupa que você veste foi escolha sua ou é moda? O corte de cabelo que usa é escolha sua ou foi-lhe dito que ficaria melhor em você? A lista de pequenas coisas que pode observar no espelho e ver o que de você está nele é grande, continue por você mesmo. Agora vamos um pouco mais fundo: as pessoas com as quais você convive, são escolha sua ou são conveniência? Sei, alguns já argumentam dizendo que faz parte da vida vestir roupas que não tem a ver consigo, conviver com pessoas que não tem a ver consigo. É provável que sim, diariamente visto roupas que nada têm a ver comigo, entro em contato com pessoas que não têm a ver comigo, mas não faço isso por escolha, faço porque faz parte da vida. 

EU me constituo das escolhas que faço ou deixo de fazer, desta forma ao olhar para mim mesmo e ver o quanto sou EU é apenas um passo para saber o quanto já deixei de ser. Não há nenhum problema nisso, algumas pessoas abandonam o seu EU para viver um personagem: político, médico, atriz, marido, esposa, empresário e vivem bem com isso. Mas e as pessoas que não vivem? Você, que faz tempo que não é você mesmo, ainda sabe como voltar a ser EU ou mais EU? O problema é que isto já está tão normal que desde os mais tenros dias de vida os pais já direcionam uma existência de fachada, de mentira, fingida, falsa. Recomendo muito ver o filme “Na natureza selvagem”, no qual o personagem percebeu que ao ser massificado, perdeu sua identidade, seu EU. Para recuperar-se a si próprio fez uma grande viagem fora e dentro de si próprio, até perceber que não precisava ter ido tão longe para ver o que estava Nele.

Para recuperar o seu EU perdido volte um pouco no tempo, veja quem era você ao longo de sua história, antes de querer viver algo que não é. Alguns, para voltar ao caminho do EU precisam pegar um final de semana e ir visitar seus pais, voltar a casa onde moraram boa parte da vida, fazer uma gênese da própria existência. Essa gênese passa por entrar em contato com amigos do tempo de escola, retomar antigos e bons contatos. Para outros voltar a ser EU quer dizer ir à igreja, local onde não vai há muito tempo porque dizem que religião é coisa de pessoas sem instrução. Justamente por distanciar-se da fé é que deixou de ser EU, quem sabe você não é o tipo de pessoa que faz fé e a razão conversarem. 

Pode não ser muito fácil se manter EU numa sociedade onde o “todo mundo” é cada vez mais presente. É complicado ser EU em uma sociedade onde os últimos estudos dizem que “as pessoas” querem ser felizes. De onde vêm essas verdades? Cito um filósofo, Rousseau, que fala da fundação da sociedade civil, diz ele “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado o terreno lembrou-se de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo”. O mesmo acontece com o EU, o fundador de um padrão de ser humano foi aquele que disse “o ser humano é assim” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar.

Por: Rosemiro Sefstrom

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

'LOBBY POR LOBBY"

Eles vão ficar conosco até o fim da nossa vida. Começaram a chegar nas últimas décadas do século XX, trazendo em sua pregação uma ideia simples: estava mais do que na hora, diziam, de proteger o homem de si próprio, pois ele não vinha se mostrando capaz, sozinho, de aproveitar corretamente os frutos do maior período de progresso contínuo jamais registrado na história da humanidade. Deixado por sua conta, iria gastar mal o que havia ganhado, cair no desperdício e cometer todos os pecados que as crianças decoram hoje já no primeiro ano do curso primário. É possível que as coisas tivessem ido por aí mesmo, levando-se em conta a invencível capacidade do homem de transformar em problema a maioria dos sucessos que obtém. Mas o fato é que os governos e seus funcionários, reforçados por militantes de todos os tipos de causas particulares, foram recebendo cada vez mais a tarefa de decretar como os cidadãos devem se comportar, para o seu próprio bem — e de decidir o que é certo, suficiente, virtuoso e por aí afora. Desde então o mundo não parou mais de regular a si próprio, e hoje já não existe nenhuma perspectiva de que os reguladores venham a dar sua tarefa por terminada: quando se pensa que já regularam tudo o que podia ser regulado nesta vida, aparecem com alguma coisa em que ninguém havia pensado antes, e vêm com regras novas em folha para determinar o que o cidadão pode ou não fazer. De fato, estarão aí para sempre — mesmo porque a soma das suas atividades já forma hoje todo um mundo com vida própria, que dá sustento, trabalho e benefícios materiais a centenas de milhares de pessoas dentro ou fora dos governos, ou mais que isso, movimenta bilhões de dólares, influi nas decisões públicas e privadas de investimento e exerce, em geral, um poder que não lhe foi dado por nenhum instrumento democrático de uso comum. Tomaram-se um sistema com interesses a defender. Não vão parar.


As demonstrações práticas do que é descrito aí acima acontecem o tempo todo, em tudo o que se possa imaginar, e mesmo naquilo que ninguém imagina ─ as descargas de privadas, por exemplo, para ficar no caso mais recente, e especialmente cômico, de obsessão por regular qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, que passe pela cabeça de um regulador aplicado. Sinceramente: dá para pensar em algo menos sujeito à intromissão da autoridade pública do que o ato de ir ao banheiro? Pois os técnicos da Comunidade Europeia acham que sim, perfeitamente ─ a visita ao toalete não é coisa tão privada como se pensa, decidiram eles, e não pode mais permanecer nessa situação de liberalismo selvagem em que se encontra hoje. Resultado: após três anos inteiros de labor numa pesquisa que consumiu 100 000 euros (sorte dos europeus; não têm ideia de quanto lhes custaria isso num orçamento padrão PAC), rendeu 120 páginas de sabedoria e cobriu os 28 países da organização, eles decidiram neste início de novembro que, a partir de agora, todas as privadas da Europa deverão ter descargas geradas em caixas com 5 litros de água ─ nem uma gota a mais. Os mictórios terão direito a 1 litro. Serão permitidas meias-descargas, com 3 litros, e fim de conversa — tudo isso, sustentam os técnicos, é fruto de médias aritméticas, cálculos de distância entre as bordas dos vasos e de estudo dos “hábitos pessoais” dos usuários. Quais seriam? A comissão responsável pelo chamado euroflush preferiu ser discreta a respeito ─ limitando-se a observações menos arriscadas, como a de que a Inglaterra é o país que mais consome água em suas privadas (6 ou mais litros por descarga) ou que só a ducha, no consumo doméstico, gasta mais que uma boa puxada de água no vaso sanitário.

O objetivo de todo esse esforço é salvar a Europa e sua gente da “falta de recursos hídricos”. O estudo indica, alarmado, que há no momento 400 milhões de privadas e mictórios na Comunidade Europeia ─ algo que, pelo bom-senso, parece ser coisa muito boa, pois mostra que todo indivíduo tem acesso ao mais elementar dos recursos sanitários. Parece, mas não é. Segundo a autoridade pública, isso já é privada demais, e privada tem de ser utilizada com moderação. Pode, uma coisa dessas? Não só pode ─ é a regra, hoje em dia. Regulamentos do governo para isso ou aquilo sempre houve, desde que a Revolução Industrial começou a gerar efeitos, mas estamos entrando em outra dimensão. Uma das atividades que mais crescem no mundo de hoje é a que se propõe a controlar as atividades dos outros ─ um lobby tão forte quanto qualquer dos que existem e, por isso mesmo, tão perturbador como todos eles.Por: J. R. Guzzo Revista Veja

terça-feira, 19 de novembro de 2013

"ALIANÇAS ESTRATÉGICAS"

O jovem professor Leandro Ferro, um ativista contra maus-tratos em animais, expôs seus sentimentos com indignação, na reportagem de VEJA da semana passada sobre o sequestro dos beagles. “Quem disse que um cavalo foi feito para ser montado?”, perguntou. Ora, professor, com todo o respeito: então por que aquele dorso arqueado, um convidativo vale entre o pescoço e a garupa, tão seguro e confortável para o pouso dos humanos traseiros? Por que os flancos em suave curva, na justa medida para a acomodação das humanas pernas? Por que a passada em ritmos tão ajustados ao subir e descer do humano arcabouço que até parecem, o que monta e o que é montado, grudados um ao outro? O camelo sim, embora seja cavalgável (vá lá a palavra), obriga o humano cavalgador a sofridos contorcionismos. Do elefante nem se fala. O cavalo, diria um criacionista, não foi esculpido pelo Grande Designer para outro propósito. Mas passemos adiante. Nossa intenção é demonstrar que o cavalo não só foi feito para ser montado, mas que tira proveito disso.


As relações entre humanos e cavalos são reguladas por antiquíssimo pacto. Sinais deixados pelos freios em dentes de cavalo, descobertos por arqueólogos nas estepes do Cazaquistão, no fim da década passada, indicaram que o uso desses animais para montaria teve início por volta do ano 3.500 a.C., 1.000 anos antes do que se calculava anteriormente. O pacto, com características de aliança estratégica, data daí, e o proveito, para os humanos, foi enorme. Segundo um dos envolvidos na pesquisa, tal qual relatado na revista New Scientist (edição de março de 2009), a domesticação dos cavalos é um marco equiparável, na história da humanidade, à invenção da roda.

Imagine-se o que seria do homem caso tivesse de esperar a invenção do trem ou do automóvel para superar a limitação de só se movimentar pelas próprias pernas. Não, não dá nem para imaginar. O homem confinado a seu canto de nascença, ou a pouco mais do que isso, teria parca ou nenhuma relação com outras tribos, não trocaria experiências que lhe permitissem acumular conhecimento, disporia de limitadas possibilidades de comércio e contaria com limitados estímulos para produzir. Tudo somado ─ inclusive a capacidade de miscigenar e de fazer guerra ─, o homo a pé seria outra espécie, não a que resultou do homo montado. Tivesse o professor Leandro Ferro vivido numa era sem cavalos e anterior ao trem e ao automóvel, não seria capaz de correr a São Roque em socorro dos beagles.

Do lado do cavalo o pacto foi igualmente proveitoso. Livrou-o, para começar, de uma vida selvagem, que, entre outros inconvenientes, ocasiona a perene incerteza quanto à alimentação. A primeira linha do pacto com o homem é: você me dá sua velocidade, e eu lhe dou do que comer. Se pastos não fossem preservados pelo homem ─ vamos lá, aqui não é a New Scientist, são conclusões do Instituto Pompeu de Livres Especulações (Iple) ─, os cavalos, assim como os bois e as vacas, poderiam ser animais hoje em extinção. Bois e vacas têm a má sorte de ser preservados para morrer. Cavalos em alguma medida também foram e continuam sendo criados para o açougue, mas em medida maior foram poupados, por prestar os nobres serviços de oferecer montaria e de puxar carroças, e até ampliaram o pacto: além da comida, eu lhes dou o veterinário, para curar-lhes as doenças, e a estrebaria, para abrigá-los da intempérie.

Pacto similar, e de alcance igualmente estratégico, regula a relação, mais estreita ainda, entre o homem e o cão. Nós caçamos juntos e você me dá uma parte da presa. Eu vigio enquanto você dorme, e você me dá abrigo para descansar. Nós combatemos juntos o inimigo e você cuida dos meus ferimentos. Eu faço gracinhas e lambo sua mão e você me dá amor. O rompimento unilateral desse pacto é que faz as pessoas invadir um instituto de pesquisa para resgatar os cães que serviam de cobaia. O caso dos beagles mostra a primazia do pacto sobre um genérico amor pelos animais. Os invasores levaram os coelhos que encontraram, além dos cachorros, e deixaram os ratos para trás. Os coelhos é bem capaz de virem a acabar em alguma panela, e poucos se importarão com isso. Com eles não temos pacto. Os ratos estão do lado mais infame da relação humanos-animais. Virarem cobaia é até uma promoção, para eles.
Publicado na edição impressa de VEJA  Por: Roberto Pompeu de Toledo