sábado, 30 de novembro de 2013

ANFITRIÃO

Nos últimos tempos tive o privilégio de atender algumas grávidas, ajudá-las a passar por um momento que nem sempre é de alegria. No trabalho com uma delas me chamou atenção sua preocupação com o mundo para o qual traria seu filho. Dizia ela ter ouvido muitas mulheres que alegam não querer filhos pela situação em que o mundo se encontra. Depois de um dos atendimentos me lembrei de Anfitrião. Cito um trecho do que pode ser encontrado na internet: “na mitologia grega, Anfitrião era marido de Alcmena, mãe de Hércules. Enquanto Anfitrião estava na guerra de Tebas, Zeus tomou a sua forma para deitar-se com Alcmena e Hermes tomou a forma de seu escravo, Sósia, para montar guarda no portão. Uma grande confusão foi criada, pois Anfitrião duvidou da fidelidade da esposa. No fim, tudo foi esclarecido por Zeus, e Anfitrião ficou contente por ser marido de uma escolhida do deus. Daquela noite de amor nasceu o semideus Héracles. A partir daí, o termo anfitrião passou a ter o sentido de "aquele que recebe em casa". O mesmo ocorreu com sósia — "cópia humana", ou seja, semelhança humana”. Antes de qualquer riso de canto de boca, é necessário entender que para um ser humano grego ter sua mulher escolhida por um Deus como sua amante era um privilégio, semelhante a Virgem Maria. 

Desde então o termo Anfitrião é utilizado para a pessoa que recebe as pessoas em sua casa, que paga uma conta, que dirige um evento. Anfitrião é então aquele que recebe e orienta o que a pessoa irá viver enquanto estiver em sua companhia. Quando você recebe alguém em sua casa e é o Anfitrião, como é que você faz? Se eu fosse a sua casa, o que me mostraria? A sujeira embaixo do tapete, os restos de comida em potinhos na geladeira, o banheiro que ficou sujo, ou me ofereceria o que tem de melhor em sua casa? É provável que você, ao receber os amigos, se prepare, arrume a casa, compre o que é necessário para satisfazer seus convidados. Seguindo nesta linha de pensamento pensei na mulher grávida com quem conversava, não pensando-a como mãe, mas como uma Anfitriã. Agora, era a mãe que estava com um convidado para chegar, deveria ela estar preparando tudo para que seu convidado ficasse satisfeito. 

A criança ao chegar ao mundo tem os pais por anfitriões, sua visão de mundo dependerá inevitavelmente do que for mostrado inicialmente pelos pais. Se os pais mostram à criança um mundo mau, violento, onde as pessoas se voltaram umas contra as outras, é provável que a criança viva este mundo. Não digo que os pais devem criar um mundo de fantasia, mas não precisam necessariamente criar um mundo mau. Quando uma pessoa vem me visitar mostro a ela a casa, os ambientes, como se vive na casa, mas também peço cuidado com o cachorro, pode morder. Dizer que existem perigos em minha casa não significa fazer do cachorro um monstro devorador de pessoas, deve-se apenas deixar ele no espaço dele.

Você, enquanto mãe, sabe em que mundo o seu filho virá? Eu sei: o mundo que você preparar para ele, um mundo no qual você é a anfitriã e pode direcionar de acordo com o que entende ser melhor. Ao longo da vida ele provavelmente vai construir a visão dele, esta pode ir contra, a favor, compor com a que aprendeu com você. Mas, antes de chegar à autonomia o mundo passa pelo filtro do anfitrião, que aponta o que e como viver. Para ser um bom anfitrião não basta estar preparado para os convidados, é necessário estar preparado de acordo com o convidado que virá. Qual é o seu convidado? O texto sobre Anfitrião foi retirado de: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anfitrião (Acesso em 26.11.2013)

Rosemiro Sefstrom

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O CRÍTICO DE BOLSO BACANA

Um dos traços essenciais de nossa psicologia é que queremos ser aceitos. Muitos filósofos, entre eles Adam Smith (1723-1790), diziam que nossa imaginação é constantemente presa à inquietação de como somos vistos pelos outros, fato este que é parte saudável da vida moral social, mas que também facilmente degenera numa angústia de dependência afetiva destruidora da autonomia. 


Uma das formas mais seguras de se sentir aceito pelo grupo é desenvolver opiniões de rebanho. No fundo, temos horror a sermos recusados pelo bando, mas, hoje em dia, esse desejo de agradar é avassalador. 

As redes sociais e sua mesmice brega, espaço de repetição do irrelevante, são prova de nossa condição de rebanho como pilar da (in)segurança psicológica. 

As redes sociais criaram um novo perfil, o do crítico de bolso em versão pós-moderninha. O sonho dessa moçada, que se afoga na irrelevância e no desespero do anonimato cotidiano (que assola todos nós), é ter opiniões sobre as coisas, mas acaba mesmo falando da pizza que comeu ontem ou xingando os inimigos de plantão. O sonho de muitas dessas pessoas é frequentar jantares inteligentes nos quais gente bacana emite opiniões bacanas. 

A forma mais fácil de frequentar jantares inteligentes é atacar a igreja, os EUA e a polícia. Mais sofisticado, mas que também garante acesso aos jantares inteligentes das zonas oeste e sul de São Paulo, é dizer que "o modelo social está ultrapassado". Esta frase leva algumas pessoas ao orgasmo (risadas?). 

"O modelo social está ultrapassado" é a típica frase de quem quer se passar por crítico (mas, na realidade, é crítico de bolso), porque é a sociedade de mercado (ou como dizia Adam Smith, "commercial society"), a mesma que os comunistas chamam de "capitalismo", que nos retirou da miséria que é o estado natural da vida (e à qual voltamos rapidinho se o Brasil virar a Venezuela de Chávez e Maduro). 

Toda riqueza que sustenta esse povo de jantares inteligentes, a começar pelo "bom vinho em conta", é fruto do mesmo modelo que consideram ultrapassado. 

Aqui e ali, faça uma caricatura de quem você não consegue enfrentar porque lhe falta repertório conceitual. Diga que são racistas, "sequicistas" e homófobos. Conte, fingindo segredo, que seu filho é do círculo íntimo dos "maravilhosos" meninos do MPL e que sua filha é (incrível!!) black bloc, mas nunca bateu em ninguém. 

Assim você chegará à sobremesa (leve, pois em jantares inteligentes ninguém quer engordar, porque sabe que os parceiros de jantares inteligentes são pessoas muito críticas) com segurança, sem dizer nada que ponha em risco sua cidadania de gente bacana. 

Mas o que marca essa gente bacana é que na verdade nunca fala, nem tem contato real, com as pessoas fora das escolas de R$ 3.000 que paga para os seus filhos críticos desde os cinco anos de idade frequentarem, ou do seu círculo profissional chique e/ou da praia chique onde tem sua casa de praia típica de praias chiques. 

O problema, quando você é um cidadão de jantares inteligentes, é que você acaba mesmo alienado e acreditando nas suas próprias críticas de bolso. Mas vamos ao que interessa. Vamos falar de um dos tópicos que autorizam você a se achar bacana e a frequentar jantares inteligentes: a polícia. 

Outro dia, por acaso, conversei por cerca de três horas com um policial militar aposentado do Estado de São Paulo. Muito instrutivo, uma vez que sou egresso do mundo de gente bacana, que, portanto, nada sabe acerca do mundo real. 

Ele definia sua classe como aquela que vive com a "mão no lixo" que essa gente bacana nunca vê de fato -a não ser quando resolve fazer ensaios fotográficos sobre "injustiça social". Reclama de como eles são invisíveis e de como a sociedade, na sua maioria, os considera parte do lixo. Um sofrimento profundo, devido a essa invisibilidade, marcava seu rosto de solitário. A polícia é um dos setores mais maltratados da sociedade, apesar de essencial. 

Essa gente bacana sai correndo do jantar inteligente para o carro, com medo, sonhando com um baseado e uma bike em Amsterdã nas férias. Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

BREAKING BAD

A série "Breaking Bad" chegou ao fim. Enquanto o cinema americano encareta sob a bota da censura politicamente correta, na qual homens cada vez mais falam fino como mulherzinhas e as mulheres brincam de meninas superpoderosas, a TV arrisca aquilo que o cinema se tornou incapaz de fazer: falar a sério sobre o cotidiano. 


Uma sutil herança de obras como "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson, se faz sentir em "Breaking Bad": o homem "bonzinho" é um derrotado. Seu lado mau é essencial para sua virilidade, mesmo espiritual. Sabendo que parte do mundo hoje é composto por gente mimada, vale salientar que ao dizer isso não estou a cultivar o mal como coisa chique. O assunto é mais sério do que pensa nossa vã inteligência infantilizada. 

Ecos da terrível hipótese de Nelson Rodrigues sobre os maridos também se fazem sentir em "Breaking Bad". Nelson dizia que a mulher quer um nada como marido. Segundo Nelson, nenhuma das grandes qualidades que fazem de um homem um grande homem servem num bom marido. 

O professor Walter White é um homem aniquilado. A maioria de nós é, e no aniversário merece, quando muito, que a mulher bata uma punheta como presente --ainda que prestando mais atenção a alguma oferta da internet. 

Um homem um pouco mais bem-sucedido talvez ganhasse um boquete. Trata-se de uma cena homérica da série, mas que indica bem o grau de investimento do casal no sexo (ele tampouco está muito interessado no "presente de pobre"). 

Espremido entre uma carreira que marca seu fracasso (era um promissor gênio da química quando jovem e virou um medíocre professor de "high school" e um funcionário humilhado de um lava-rápido), um salário miserável, um filho portador de necessidades especiais e uma mulher grávida que enche o saco dele para pintar o quarto, Walter é um homem sem qualquer futuro. 

Passa suas noites insone, mergulhado no pânico de todo "loser": o dinheiro vai dar? Vou aguentar muito tempo sendo capacho? Minha mulher também me faz de capacho? Vou conseguir comer minha mulher quando ela quiser? Meu cunhado é mais macho do que eu? Por que eu dei errado e meus colegas de faculdade se deram bem? Serei eu um merda? No que eu errei? Por que estou aqui com esse carro medíocre? E essas férias CVC? Eis o dia a dia de um homem comum. 

Ser capacho é a virtude máxima de um "loser" que é bom pai e bom marido. Se a emancipação feminina era só dizer que ela queria trabalhar fora e gozar, a do homem é mais complexa porque aparentemente passa por elementos mais destrutivos do que a feminina. 

Um homem que se sente preso na condição de bom pai e bom marido pode chegar à conclusão de que só se libertará quando puser em risco exatamente as virtudes que o estão matando: ganhar dinheiro seguro ainda que pouco, ser provedor, engolir sapo no trabalho, abrir mãos dos seus sonhos em nome de uma casa própria, investir na ideia de que algum dia sua mulher Bovary e seus filhos chorarão em seu enterro, louvando-o. Um homem de classe média aniquilado só experimenta um pouco de respeito (quando muito) quando fica silencioso como um cadáver. 

Nosso químico descobre que tem câncer terminal de pulmão (e, como puro que sempre foi, nunca fumou) e "desperta". Esta é a expressão que ele usa quando fala com seu sócio sobre a razão de um "loser" como ele de 50 anos decidir entrar para o crime fazendo droga. 

E não só. Passa a comer sua mulher com gosto (e em situações inesperadas) e ela fica mais feliz. Pele bonita, olhos brilhantes, cabelos sedosos, mais generosa no dia a dia, como toda mulher bem comida. 

Dito nos termos banais de hoje: "recupera sua autoestima" quando descobre que vai morrer e entra para o crime para ganhar dinheiro. Nosso herói sente que pela primeira vez está vivo, justamente quando sabe que, de certa forma, já está morto. 

O mal como componente libertador é uma questão assustadora, mas perigosamente real. Um mundo que goza em defender alfaces terá cada vez mais homens medíocres que para poderem meter em sua s mulheres precisarão ter câncer no pulmão sem nunca ter fumado. 

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A EDUCAÇÃO GREGA E NÓS


A educação na Grécia antiga, cujo sucesso inegável é amplamente comprovado pela criatividade em todos os campos do saber e da arte, voltava-se, acima de tudo, à preparação dos jovens para os altos postos da vida pública: a política, a magistratura e a educação mesma.

Se não é, pois, uma fórmula que se possa copiar na instrução das massas em geral, e se nos dias de hoje seria utópico tentar imitá-la até para a formação da classe dominante, dos políticos, dirigentes de empresas, comandantes militares, bispos e cardeais, ela continua um modelo excelente para a educação da elite intelectual.

Não pretendo que seja possível ou desejável montar uma escola, muito menos um sistema nacional de educação, segundo o formato grego. Não é nesse sentido que uso a palavra "modelo", mas para designar apenas uma unidade de comparação e de medida que possa servir para a orientação pessoal, seja de alguns educadores, seja de pais de família interessados em homeschooling, ou de estudantes devotados a educar-se ou reeducar-se a si mesmos.

Alguns dos meus alunos já têm clara consciência disso e vêm tirando proveito do exemplo grego, tanto para si quanto para seus filhos e, quando se trata de professores, para seus alunos .

Atendida essa limitação, a primeira coisa que deve nos chamar a atenção é a prioridade absoluta que, na educação infantil, se dava ao treinamento literário e artístico. Após a instrução moral básica dada pela educação doméstica, praticamente só o que se ensinava às crianças, tão logo elas estivessem alfabetizadas, era ler e decorar as obras dos grandes poetas, participar de encenações teatrais, cantar, dançar e fazer ginástica. Isso era tudo. O resto cada um aprendia por si ou com professores particulares.

Eis como Platão descreve esse processo: "Quando os alunos aprendem a ler e começam a compreender o que está escrito, tal como faziam antes com os sons, dão-lhes a ler em seus banquinhos as obras de bons poetas (épicos), que eles são obrigados a decorar; obras cheias de preceitos morais, com muitas narrativas de louvor e glória dos homens ilustres do passado, para que o menino venha a imitá-los por emulação e se esforce por parecer-se com eles... Depois de haverem aprendido a tocar cítara, fazem-nos estudar as criações de outros grandes poetas, os líricos, a que dão acompanhamento de lira, trabalhando, desse modo, para que a alma dos meninos se aproprie dos ritmos e da harmonia, a fim de que fiquem mais brandos e, porque mais ritmados e harmônicos, se tornem igualmente aptos tanto para a palavra quanto para a ação. Pois, em todo o seu decurso, a vida do homem necessita de cadência e harmonia. Em seguida, os pais entregam-nos ao professor de ginástica, para que fiquem com o corpo em melhores condições de servir ao espírito virtuoso, sem virem a ser forçados, por fraqueza de constituição, a revelar covardia, tanto na guerra quanto em situações semelhantes." (Protágoras, 325 d7 ss. Tradução de Carlos Alberto Nunes ligeiramente modificada.)

Em seu livro densamente documentado Arts Libéraux et Philosophie dans la Pensée Antique (Paris, Vrin, 2005), a erudita germano-francesa Ilsetraut Hadot acrescenta: "Os jovens de famílias prósperas recebiam também, gratuitamente, uma educação complementar tomando parte num coro trágico ou lírico, por ocasião das festas cultuais locais. Essas demonstrações eram, com frequência, primeiras representações de uma peça de teatro ou uma poesia lírica de autor contemporâneo; eram a ocasião, para os jovens, de ser colocados em contato com todas as novas criações literárias do seu tempo e de aprendê-las de cor.

Esta espécie de educação era tão importante, que Platão, nas Leis (II, 654 a-b), se vê levado a identificar o homem culto (pepaidymênos) com aquele que participou de um coro com frequência suficiente (ikanos kekoreykôta) e, ao contrário, o homem sem cultura com aquele que jamais fez parte de um côro (akôreytos)."

Não há exagero em dizer que os jovens gregos, muito antes de entrar na vida pública, já tinham cultura literária superior à da média dos nossos atuais professores de Letras.

A preparação para a cidadania só começava depois de encerrada a etapa da educação escolar: "Quando saem da escola, a cidade, por sua vez, os obriga a aprender leis e a tomá-las como paradigma de conduta, para que não se deixem levar pela fantasia e praticar alguma malfeitoria".

Isso já era assim desde antes do advento dos sofistas, professores ambulantes que iam de cidade em cidade ensinando a arte da oratória e dos debates públicos. Os sofistas introduziram essas matérias na educação de alunos que já vinham não somente com uma boa base literária e artística, mas com algum conhecimento das leis e princípios que regiam a vida social, conhecimento do qual a sofística era apenas um complemento técnico mais avançado. Prossigo a explicação e tiro algumas conclusões dela no próximo artigo.

Por: Olavo de Carvalho jornalista, ensaísta e professor de Filosofia

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

EU

Eu sou... No artigo da semana anterior falei um pouco sobre a propagação do EU e a responsabilidade sobre esta propagação. Dois grandes filósofos serviram de base para falar do assunto: Heidegger e Sartre, sendo tanto um quanto o outro radicais em suas escolhas e práticas. No artigo desta semana insisto mais uma vez em falar do EU, esse ser que “vai sendo” ao longo da vida e se constituindo como tal. O outro, que recebe o EU, não sou EU, assim já disse Levinas, não faz par comigo, não é apenas alguém que não sou EU. Segundo o próprio Levinas é preciso identificar a mim mesmo na relação e somente assim, talvez chegue ao outro, sem massificá-lo. Vamos pensar um pouco sobre o assunto.

Se tiver um pequeno espelho por perto, olhe-se e veja o quanto de você é possível identificar em sua imagem no espelho. A roupa que você veste foi escolha sua ou é moda? O corte de cabelo que usa é escolha sua ou foi-lhe dito que ficaria melhor em você? A lista de pequenas coisas que pode observar no espelho e ver o que de você está nele é grande, continue por você mesmo. Agora vamos um pouco mais fundo: as pessoas com as quais você convive, são escolha sua ou são conveniência? Sei, alguns já argumentam dizendo que faz parte da vida vestir roupas que não tem a ver consigo, conviver com pessoas que não tem a ver consigo. É provável que sim, diariamente visto roupas que nada têm a ver comigo, entro em contato com pessoas que não têm a ver comigo, mas não faço isso por escolha, faço porque faz parte da vida. 

EU me constituo das escolhas que faço ou deixo de fazer, desta forma ao olhar para mim mesmo e ver o quanto sou EU é apenas um passo para saber o quanto já deixei de ser. Não há nenhum problema nisso, algumas pessoas abandonam o seu EU para viver um personagem: político, médico, atriz, marido, esposa, empresário e vivem bem com isso. Mas e as pessoas que não vivem? Você, que faz tempo que não é você mesmo, ainda sabe como voltar a ser EU ou mais EU? O problema é que isto já está tão normal que desde os mais tenros dias de vida os pais já direcionam uma existência de fachada, de mentira, fingida, falsa. Recomendo muito ver o filme “Na natureza selvagem”, no qual o personagem percebeu que ao ser massificado, perdeu sua identidade, seu EU. Para recuperar-se a si próprio fez uma grande viagem fora e dentro de si próprio, até perceber que não precisava ter ido tão longe para ver o que estava Nele.

Para recuperar o seu EU perdido volte um pouco no tempo, veja quem era você ao longo de sua história, antes de querer viver algo que não é. Alguns, para voltar ao caminho do EU precisam pegar um final de semana e ir visitar seus pais, voltar a casa onde moraram boa parte da vida, fazer uma gênese da própria existência. Essa gênese passa por entrar em contato com amigos do tempo de escola, retomar antigos e bons contatos. Para outros voltar a ser EU quer dizer ir à igreja, local onde não vai há muito tempo porque dizem que religião é coisa de pessoas sem instrução. Justamente por distanciar-se da fé é que deixou de ser EU, quem sabe você não é o tipo de pessoa que faz fé e a razão conversarem. 

Pode não ser muito fácil se manter EU numa sociedade onde o “todo mundo” é cada vez mais presente. É complicado ser EU em uma sociedade onde os últimos estudos dizem que “as pessoas” querem ser felizes. De onde vêm essas verdades? Cito um filósofo, Rousseau, que fala da fundação da sociedade civil, diz ele “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado o terreno lembrou-se de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo”. O mesmo acontece com o EU, o fundador de um padrão de ser humano foi aquele que disse “o ser humano é assim” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar.

Por: Rosemiro Sefstrom

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

'LOBBY POR LOBBY"

Eles vão ficar conosco até o fim da nossa vida. Começaram a chegar nas últimas décadas do século XX, trazendo em sua pregação uma ideia simples: estava mais do que na hora, diziam, de proteger o homem de si próprio, pois ele não vinha se mostrando capaz, sozinho, de aproveitar corretamente os frutos do maior período de progresso contínuo jamais registrado na história da humanidade. Deixado por sua conta, iria gastar mal o que havia ganhado, cair no desperdício e cometer todos os pecados que as crianças decoram hoje já no primeiro ano do curso primário. É possível que as coisas tivessem ido por aí mesmo, levando-se em conta a invencível capacidade do homem de transformar em problema a maioria dos sucessos que obtém. Mas o fato é que os governos e seus funcionários, reforçados por militantes de todos os tipos de causas particulares, foram recebendo cada vez mais a tarefa de decretar como os cidadãos devem se comportar, para o seu próprio bem — e de decidir o que é certo, suficiente, virtuoso e por aí afora. Desde então o mundo não parou mais de regular a si próprio, e hoje já não existe nenhuma perspectiva de que os reguladores venham a dar sua tarefa por terminada: quando se pensa que já regularam tudo o que podia ser regulado nesta vida, aparecem com alguma coisa em que ninguém havia pensado antes, e vêm com regras novas em folha para determinar o que o cidadão pode ou não fazer. De fato, estarão aí para sempre — mesmo porque a soma das suas atividades já forma hoje todo um mundo com vida própria, que dá sustento, trabalho e benefícios materiais a centenas de milhares de pessoas dentro ou fora dos governos, ou mais que isso, movimenta bilhões de dólares, influi nas decisões públicas e privadas de investimento e exerce, em geral, um poder que não lhe foi dado por nenhum instrumento democrático de uso comum. Tomaram-se um sistema com interesses a defender. Não vão parar.


As demonstrações práticas do que é descrito aí acima acontecem o tempo todo, em tudo o que se possa imaginar, e mesmo naquilo que ninguém imagina ─ as descargas de privadas, por exemplo, para ficar no caso mais recente, e especialmente cômico, de obsessão por regular qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, que passe pela cabeça de um regulador aplicado. Sinceramente: dá para pensar em algo menos sujeito à intromissão da autoridade pública do que o ato de ir ao banheiro? Pois os técnicos da Comunidade Europeia acham que sim, perfeitamente ─ a visita ao toalete não é coisa tão privada como se pensa, decidiram eles, e não pode mais permanecer nessa situação de liberalismo selvagem em que se encontra hoje. Resultado: após três anos inteiros de labor numa pesquisa que consumiu 100 000 euros (sorte dos europeus; não têm ideia de quanto lhes custaria isso num orçamento padrão PAC), rendeu 120 páginas de sabedoria e cobriu os 28 países da organização, eles decidiram neste início de novembro que, a partir de agora, todas as privadas da Europa deverão ter descargas geradas em caixas com 5 litros de água ─ nem uma gota a mais. Os mictórios terão direito a 1 litro. Serão permitidas meias-descargas, com 3 litros, e fim de conversa — tudo isso, sustentam os técnicos, é fruto de médias aritméticas, cálculos de distância entre as bordas dos vasos e de estudo dos “hábitos pessoais” dos usuários. Quais seriam? A comissão responsável pelo chamado euroflush preferiu ser discreta a respeito ─ limitando-se a observações menos arriscadas, como a de que a Inglaterra é o país que mais consome água em suas privadas (6 ou mais litros por descarga) ou que só a ducha, no consumo doméstico, gasta mais que uma boa puxada de água no vaso sanitário.

O objetivo de todo esse esforço é salvar a Europa e sua gente da “falta de recursos hídricos”. O estudo indica, alarmado, que há no momento 400 milhões de privadas e mictórios na Comunidade Europeia ─ algo que, pelo bom-senso, parece ser coisa muito boa, pois mostra que todo indivíduo tem acesso ao mais elementar dos recursos sanitários. Parece, mas não é. Segundo a autoridade pública, isso já é privada demais, e privada tem de ser utilizada com moderação. Pode, uma coisa dessas? Não só pode ─ é a regra, hoje em dia. Regulamentos do governo para isso ou aquilo sempre houve, desde que a Revolução Industrial começou a gerar efeitos, mas estamos entrando em outra dimensão. Uma das atividades que mais crescem no mundo de hoje é a que se propõe a controlar as atividades dos outros ─ um lobby tão forte quanto qualquer dos que existem e, por isso mesmo, tão perturbador como todos eles.Por: J. R. Guzzo Revista Veja

terça-feira, 19 de novembro de 2013

"ALIANÇAS ESTRATÉGICAS"

O jovem professor Leandro Ferro, um ativista contra maus-tratos em animais, expôs seus sentimentos com indignação, na reportagem de VEJA da semana passada sobre o sequestro dos beagles. “Quem disse que um cavalo foi feito para ser montado?”, perguntou. Ora, professor, com todo o respeito: então por que aquele dorso arqueado, um convidativo vale entre o pescoço e a garupa, tão seguro e confortável para o pouso dos humanos traseiros? Por que os flancos em suave curva, na justa medida para a acomodação das humanas pernas? Por que a passada em ritmos tão ajustados ao subir e descer do humano arcabouço que até parecem, o que monta e o que é montado, grudados um ao outro? O camelo sim, embora seja cavalgável (vá lá a palavra), obriga o humano cavalgador a sofridos contorcionismos. Do elefante nem se fala. O cavalo, diria um criacionista, não foi esculpido pelo Grande Designer para outro propósito. Mas passemos adiante. Nossa intenção é demonstrar que o cavalo não só foi feito para ser montado, mas que tira proveito disso.


As relações entre humanos e cavalos são reguladas por antiquíssimo pacto. Sinais deixados pelos freios em dentes de cavalo, descobertos por arqueólogos nas estepes do Cazaquistão, no fim da década passada, indicaram que o uso desses animais para montaria teve início por volta do ano 3.500 a.C., 1.000 anos antes do que se calculava anteriormente. O pacto, com características de aliança estratégica, data daí, e o proveito, para os humanos, foi enorme. Segundo um dos envolvidos na pesquisa, tal qual relatado na revista New Scientist (edição de março de 2009), a domesticação dos cavalos é um marco equiparável, na história da humanidade, à invenção da roda.

Imagine-se o que seria do homem caso tivesse de esperar a invenção do trem ou do automóvel para superar a limitação de só se movimentar pelas próprias pernas. Não, não dá nem para imaginar. O homem confinado a seu canto de nascença, ou a pouco mais do que isso, teria parca ou nenhuma relação com outras tribos, não trocaria experiências que lhe permitissem acumular conhecimento, disporia de limitadas possibilidades de comércio e contaria com limitados estímulos para produzir. Tudo somado ─ inclusive a capacidade de miscigenar e de fazer guerra ─, o homo a pé seria outra espécie, não a que resultou do homo montado. Tivesse o professor Leandro Ferro vivido numa era sem cavalos e anterior ao trem e ao automóvel, não seria capaz de correr a São Roque em socorro dos beagles.

Do lado do cavalo o pacto foi igualmente proveitoso. Livrou-o, para começar, de uma vida selvagem, que, entre outros inconvenientes, ocasiona a perene incerteza quanto à alimentação. A primeira linha do pacto com o homem é: você me dá sua velocidade, e eu lhe dou do que comer. Se pastos não fossem preservados pelo homem ─ vamos lá, aqui não é a New Scientist, são conclusões do Instituto Pompeu de Livres Especulações (Iple) ─, os cavalos, assim como os bois e as vacas, poderiam ser animais hoje em extinção. Bois e vacas têm a má sorte de ser preservados para morrer. Cavalos em alguma medida também foram e continuam sendo criados para o açougue, mas em medida maior foram poupados, por prestar os nobres serviços de oferecer montaria e de puxar carroças, e até ampliaram o pacto: além da comida, eu lhes dou o veterinário, para curar-lhes as doenças, e a estrebaria, para abrigá-los da intempérie.

Pacto similar, e de alcance igualmente estratégico, regula a relação, mais estreita ainda, entre o homem e o cão. Nós caçamos juntos e você me dá uma parte da presa. Eu vigio enquanto você dorme, e você me dá abrigo para descansar. Nós combatemos juntos o inimigo e você cuida dos meus ferimentos. Eu faço gracinhas e lambo sua mão e você me dá amor. O rompimento unilateral desse pacto é que faz as pessoas invadir um instituto de pesquisa para resgatar os cães que serviam de cobaia. O caso dos beagles mostra a primazia do pacto sobre um genérico amor pelos animais. Os invasores levaram os coelhos que encontraram, além dos cachorros, e deixaram os ratos para trás. Os coelhos é bem capaz de virem a acabar em alguma panela, e poucos se importarão com isso. Com eles não temos pacto. Os ratos estão do lado mais infame da relação humanos-animais. Virarem cobaia é até uma promoção, para eles.
Publicado na edição impressa de VEJA  Por: Roberto Pompeu de Toledo

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

PROPAGAÇÃO DO EU

Prazer, meu nome é Rosemiro A. Sefstrom. Para você que acompanha semanalmente o que escrevo, quem sou? A descrição que fizer de mim é aquilo que de mim, chega antes mesmo que tenhamos qualquer contato. Pode ser que um dia nos encontremos pela rua, você converse comigo e diga: “Mas este não é o Rosemiro que escreve no jornal, é diferente”. De acordo com Heidegger o que se propaga de mim chega antes de mim pelo que vivi até o momento, em outras palavras, sou o reflexo do meu passado. Agora, este reflexo existe na medida em que está sendo construído. Caso eu pare, comece ser diferente, provavelmente o meu futuro EU também já não será o mesmo. Para o filósofo Heidegger, o Ser está atrelado ao Tempo, daí o nome de sua obra prima Ser e Tempo.

Dando continuidade aos trabalhos de Heidegger vem o filósofo Francês Jean Paul Sartre, conhecido por ser o fundador do existencialismo. Este filósofo se apropria do conhecimento da obra de Heidegger e escreve “o Ser e o Nada”. Nesta obra o filósofo trabalha o conceito de liberdade em seu extremo, dizendo que o homem está condenado a ser livre, em todo momento é ele quem escolhe. Em Sartre o homem é sempre responsável por aquilo que escolhe, não pode de maneira alguma outorgar sua liberdade de escolha ao outro, pois, segundo ele, até mesmo quando outorga sua liberdade de escolha foi por opção que o fez. Completando Heidegger pode-se dizer que Sartre leva o Ser, a existência na direção da responsabilidade do que propaga de si. 

Sendo até certo ponto simplista ao falar de modo vulgar sobre as obras de Heidegger e Sartre quero acrescentar que a cada momento sou responsável pelo que se propaga de mim na direção futura e na direção do outro. Então, você, quando chega a algum lugar e a opinião que se tem de você não é das melhores é provável que seja isso que se propagou de você pela sua maneira de ser. Na prática, se seu nome é anunciado por alguém antes mesmo de você chegar e a opinião a seu respeito é ruim, foi isto que se propagou de você. Não há como responsabilizar o seu passado pelas suas escolhas, porque a cada momento há uma nova escolha. É responsabilidade minha, sua, nossa, construir o nosso ser, da maneira que melhor nos aprouver ou da maneira que soubermos fazer.

Tanto Heidegger quanto Sartre foram vítimas de suas próprias filosofias, pois Heidegger passou a ser conhecido como o filósofo do nazismo, assim como Sartre ficou conhecido como o filósofo comunista. Tanto um quanto outro são provas de que o que viveram se propagou para depois deles e sua vida continua mesmo depois de sua morte. De certa maneira ainda são Ser, ou seja, ainda existem entre nós, participam ativamente de nossas vidas e em muitos casos governam nossos destinos. Ser é um exercício constante, no qual somente EU me atualizo a cada instante, sou EU em construção. 

Você, enquanto lê pode olhar para a própria vida, para as próprias escolhas e dizer: “Mas o que se propaga de mim não sou eu mesmo”. Pode não ser o que você deseja ser, mas é o que “está sendo”, ou, como pode ser lido em Heidegger, é o que está posto. EU posso ser quem eu quiser, tenho liberdade para escolher, não posso colocar culpa no passado, nem nas amarras que tenho, sou sempre eu mesmo obrigado a ser livre, condenado a escolher. Humano, ser que se propaga para além de si mesmo e pode construir-se a cada momento de sua existência: assim somos Nós.
Por: Rosemiro A. Sefstrom  Do site: www.filosofiaclinicasc.com.br

domingo, 17 de novembro de 2013

IMAGINANDO SÍSIFO FELIZ

Passaram CEM anos sobre o nascimento de Albert Camus (1913-1960). Festejos pálidos. Injusto. Quando tivemos o centenário de Sartre em 2005, um filósofo e escritor inferior a Camus, as trombetas soaram com outro vigor.

Camus merecia mais atenção. E, na ausência de festejos públicos, optei pelos privados. Um pouco de nostalgia: já não lia Camus desde a adolescência. Encontrei surpresas gratas. Os romances continuam soberbos, ainda melhores do que na minha memória --e hoje, a caminho dos 40, é "A Queda" (1956), e não tanto "O Estrangeiro" (1942), que verdadeiramente me joga no tapete.

Foram precisas algumas experiências de vida para compreender, tal como afirma o sinistro narrador de "A Queda", que a busca de um método --um sistema, uma ideologia, uma cartilha-- é sempre o expediente dos homens sem caráter. Corrijo. Dos homens que não desenvolveram um caráter. "Touché, Albert!"

Mas depois vieram as desilusões. Desilusões, não. Discórdias. Brandas, perdoáveis, quase melancólicas. Quando li pela primeira vez o seu "Mito de Sísifo" (1942), esse ensaio torrencial sobre a nossa condição absurda perante "o silêncio do mundo", fiz de Camus o meu santo laico e do existencialismo, precisamente, uma forma de humanismo.

A argumentação de Camus era poderosa e nas primeiras linhas o autor avisava o auditório que pretendia enfrentar sem subterfúgios o mais relevante dos temas filosóficos: o suicídio.

Se a vida não tem sentido e se recusamos o "salto de fé" para as consolações celestiais, o que nos resta, afinal?

Camus responde: resta-nos não negar a nossa condição absurda e, mais ainda, assumir essa condição com "consciência" e "revolta". Não é por acaso que Camus dedica as melhores páginas do seu "Mito de Sísifo" ao trabalho de um ator em palco. O ator, exemplo supremo do "homem absurdo", vive, ama e eventualmente morre intensamente --tudo no espaço de algumas horas e sempre com radical autenticidade.

A vida que Camus recomenda é, na falta de melhor palavra, uma vida de "performance" permanente. Donde, a conclusão: pode haver uma dissonância insuperável entre o que a mente deseja (sentido) e um mundo que desilude (pelo absurdo). Mas esse fato não autoriza o suicídio. Parafraseando Nietzsche, a ausência de uma vida eterna convida os homens a uma vivacidade eterna.

Aos 18 ou 19 anos, o programa era tentador. Mas, honestamente, quem, exceto um ator em palco, consegue viver a vida em permanente intensidade? A atitude de Camus, longe de aceitar o absurdo, parece-me agora uma fuga ao absurdo. Pior ainda: uma fuga desesperada ao exato desespero que ele procura resolver.

Mas não só. É a própria ideia de "viver o absurdo" que me parece adolescente --no autor e na criança que eu era. Anos depois de ler o ensaio de Camus, encontrei um luminoso texto de Richard Taylor no seu "Good and Evil" no qual o filósofo voltava ao mito de Sísifo, esse mortal condenado pelos deuses a rolar eternamente a pedra montanha acima, montanha abaixo.

Na versão de Camus, podemos imaginar Sísifo feliz se ele abraça esse destino com desafio e orgulho, mesmo sabendo da futilidade do exercício.

Taylor argumenta, e argumenta bem, que não basta rolar a pedra para vencer o absurdo. É preciso encontrar um sentido para isso. Que o mesmo é dizer: rolar a pedra para algo, para alguém --ou até para nós próprios, se isso for importante ou significativo para as nossas vidas.

No limite, não importa até se a pedra é grande ou pequena. Porque não é o tamanho dela ou o esforço homérico de Sísifo para a empurrar que concede dimensão trágica à condenação.

Se a pedra fosse minúscula, e se ele subisse e descesse a montanha com ela no bolso, a premissa seria a mesma: a única forma de o imaginarmos feliz seria se ele usasse essa pedra para erigir um templo; ou construir uma habitação para os filhos; ou apenas para exercitar o corpo e o gosto por passeatas com pedras minúsculas.

Hoje, a visão modesta de Taylor parece-me mais real do que a "revolta" literária (e esteticamente belíssima) de Camus. Não porque nego o absurdo da vida e o esquecimento que nos espera a todos. Não nego.

Mas porque só consigo imaginar Sísifo feliz se, no cume da montanha, existir algo ou alguém à espera dele e da sua pedra.

Por: João Pereira Coutinho Folha de SP

sábado, 16 de novembro de 2013

MENINO MALUQUINHO

A mãe de um garoto de nove anos pediu que eu a ouvisse a respeito das dúvidas que ela tem, no momento, sobre como conduzir algumas questões do filho. A história dela vai nos ajudar a refletir sobre como a lógica médica tem transformado nossas vidas e, principalmente, a vida dos mais novos.

O garoto é inteligente e, na escola, produz bem. Suas notas são altas mesmo sem estudar nada em casa ou fazer as lições que a professora envia. A mãe quer que ele estude, faz o possível para que ele faça as lições, mas toda a paciência dela desaparece em minutos e eles terminam, invariavelmente, brigando quando ela se dispõe a acompanhar as tarefas do filho, pressionada que é pela sociedade para que haja assim.

É que o garoto não para e nem presta atenção em nada: fica pulando de uma coisa para outra e, por isso, a tarefa que poderia fazer em minutos se arrasta pelo dia todo. E é assim que ele se comporta na escola. A mãe já foi chamada várias vezes pela professora e coordenadora por causa do comportamento agitado e ruidoso do filho. Da última vez, a escola sugeriu que ela o levasse a um médico, e ela atendeu. Saiu do consultório com um diagnóstico do filho e uma receita nas mãos.

Ficou transtornada porque nunca considerou a possibilidade de o filho ter problemas médicos e foi à casa da mãe para desabafar. E ouviu o que a deixou agoniada. A mãe lhe disse que ela, quando criança, era igual ao filho. Também foi uma criança muito ativa e barulhenta e que deu muito trabalho mas, naquela época, não se costumava pensar que isso era sinal de alguma doença.

Essa mulher é uma executiva de sucesso, disputada no mercado de trabalho e, segundo ela, uma de suas características profissionais que a impulsionou é justamente conseguir fazer bem várias coisas ao mesmo tempo. "Um traço meu, que meu filho parece ter herdado, nele é doença?", perguntou ela.

Pois é: em outras épocas, crianças assim eram celebradas e não diagnosticadas. Quem leu "O Menino Maluquinho" deve lembrar-se de como Ziraldo o descreveu: "...Ele tinha o olho maior do que a barriga, tinha fogo no rabo, tinha vento nos pés, umas pernas enormes (que davam para abraçar o mundo)...".

De lá para cá, cada vez mais as crianças deixam de ser consideradas "crianças impossíveis" por causa de seu comportamento, como era visto o Menino Maluquinho, e passam a ser crianças doentes, portadoras de síndromes dos mais variados tipos e que precisam de tratamento.

O que antes não era considerado problema médico --insônia, tristeza, angústia etc.-- agora são doenças, transtornos, distúrbios, síndromes. A essa maneira de pensar é que chamamos de "Medicalização da Vida", e no mundo todo há movimentos que resistem a esse estilo. Na cidade de São Paulo, por exemplo, há um dia --11 de novembro-- dedicado à luta contra a Medicalização da Educação e da Vida.

Por que a Educação está em destaque? Porque nunca antes vimos tantas crianças diagnosticadas e tratadas, seja por "problemas de aprendizagem" como por características de comportamento.

É bom lembrar que o comportamento das crianças está em sintonia com o mundo em que nasceram, e que a aprendizagem humana é um campo muito complexo e diverso. Diagnósticos e tratamentos têm lidado com muito simplismo tais questões.

Que voltemos a ter mais crianças impossíveis (que, com seu comportamento, alegram a casa, como o Menino Maluquinho) do que crianças consideradas doentes!

rosely sayão
Rosely Sayão, psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Escreve às terças na versão impressa de "Cotidiano".   Folha de SP

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

INIMIGO?

“Quem vive para combater um inimigo, têm interesse em deixá-lo vivo” - Friedrich Nietzsche

Quando estive na Universidade Hebraica de Jerusalém, durante uma das aulas, o professor de filosofia fez o seguinte comentário: “Nós, aqui no Oriente Médio, vivemos em estado de guerra constante. Cada vez que saímos à rua, existe o perigo de uma bomba, um atentado, um míssel caindo do céu, entretanto, quando chegamos em casa, temos paz. Nosso lar é nosso refúgio. Vocês do Ocidente, vivem em aparente paz na rua, no trabalho, nas escolas, no shopping, mas quando chegam em casa, maridos, esposas e filhos entram em conflito. O lar é vosso campo de batalha”.

Saí da aula um pouco atordoado com a provocação. Racionalizei comigo mesmo, argumentando que vivíamos em culturas completamente distintas e não cabiam julgamentos do tipo bom ou ruim, certo ou errado. Além disto, o professor não sabia que vivíamos no Brasil e que aqui também não é nenhum paraíso. O simples fato de andarmos na rua também nos coloca em risco, seja pela violência dos assaltos, como do trânsito. Assim sendo, nossa “guerra civil” também poderia funcionar como um elemento de união.

Isto não foi suficiente, algo dentro de mim continuava a incomodar. Não conseguia imaginar tranqüilidade e harmonia no lar enquanto bombas e balas perdidas cruzavam as esquinas. Ameaças externas poderiam até ser um fator agregador, mas de efeito temporário, nunca a fórmula da paz.

Lembrei da época em que recorremos a uma terapia de casal. O psiquiatra era tão antipático, calado, áspero, desagradável e pouco afetuoso, que acabou unindo-nos contra ele. Desconfio até que esta atitude, de certa forma hostil, fazia parte do tratamento, pois saíamos da consulta tão descontentes com sua postura, que ao invés de o vermos como amigo, passamos a tratá-lo como adversário. O casal fez um pacto de reconciliação para se “defender do terapeuta”.

Gastávamos horas conversando e imaginando maneiras de enfrentar o “terapeuta maluco”, como o apelidamos na intimidade. Nossa relação que estava desgastada, com uma comunicação difícil, passou a fluir. Aproximamo-nos para nos proteger.

Se houvesse uma invasão de extraterrestres, provavelmente comunistas, capitalistas, judeus, árabes, ingleses, talibãs e americanos, unir-se-iam buscando expulsá-los. Enfim, será que a ameaça de um inimigo comum pode ser um fator de aproximação entre os atemorizados?

Se assim fosse, bastaria ao casal torcer pelo mesmo clube de futebol. Ambos falariam mal do técnico, do centro-avante, do adversário, e a harmonia no lar restaria garantida. Melhor ainda se torcessem por um time ruim, que estivesse lá embaixo na tabela de classificação, pois teriam inimigos de sobra pra descarregar a frustração. O casal também poderia eleger um vizinho ou uma operadora de telefonia celular e lançar seu espírito belicoso nesta direção. Isto garantiria a paz conjugal ou a paz entre os homens?

Apesar de muitos se utilizarem deste artifício, arrisco dizer que não. A história da humanidade é o resultado do conflito dos nossos ideais com a realidade, e a acomodação entre aquilo que temos e aquilo que gostaríamos de ter, é o que determina a evolução peculiar de cada nação ou indivíduo. Buscar um inimigo externo para responsabilizar o sucesso ou fracasso é uma espécie de covardia ou cegueira, pois como já dizia Jean Paul Sartre, o conceito de inimigo não é completamente certo e claro, a não ser que este esteja separado de nós por uma barreira de fogo.

É a própria mente do homem, e não seu inimigo que o seduz para a batalha. Belicosidade sempre vai gerar mais belicosidade. Sabemos disto. As respostas estão muito claras em nossos corações, mas não em nossos cérebros, que insistem em buscar culpados e se fazer de vítimas. Vivemos nesta ambigüidade.

Temos capacidade de atingir patamares bem mais altos. A questão é saber se queremos chegar lá. Construímos asas para voar, mas ainda as forjamos com o mesmo aço da espada da guerra. Precisam ficar mais leves, menos tensas. Precisam nos aproximar. Não é a raiva o elo de união entre as pessoas. É o amor, e o inimigo do amor nunca vem de fora, é o que falta em nós mesmos.
Por: Ildo Meyer

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

KUBRICK DE OLHOS BEM ABERTOS

Depois de ler sobre pré-história, minha percepção do mundo mudou. Para começo de conversa, o tema da violência na condição humana é melhor compreendido quando olhamos para nossos ancestrais do Paleolítico Superior do que quando tentamos compreendê-lo a partir de ideias como "o modelo social está ultrapassado", apesar de saber que frases como essa dão orgasmo em muita gente.

Somos seres do desejo, e não de razão. Com isso não quero dizer que não sejamos racionais, mas sim que o desejo se impõe à razão. Freud e Lacan bem sabem disso. Schopenhauer e Nietzsche também sabem isso. Devoramos tudo à nossa volta por conta dessa força irracional chamada desejo.

O cineasta Stanley Kubrick (que aliás está "nos visitando" no Museu da Imagem e do Som, o MIS) entendeu bem esse aspecto: é na pré-história e no desejo que melhor entendemos nossa desorganização interna, nossas contradições e a luta que temos cotidianamente contra elas. Refiro-me a dois dos seus filmes, "2001, Uma Odisseia no Espaço", de 1968, e "De Olhos Bem Fechados", de 1999.

O primeiro se abre com o momento descrito como "aurora". Nessa sequência, dois bandos de homens pré-históricos disputam a posse de um pequeno lago. O mais fraco perde. Depois, acuados, comem ervas embaixo de uma pedra, atormentados por predadores à noite.

Um deles, na manhã seguinte, descobre que, tendo um osso nas mãos, consegue ficar mais forte. Matam um animal grande e "se tornam" carnívoros (o vegetarianismo é um comportamento ultrapassado evolucionariamente).

Mais tarde, munidos de ossos nas mãos, atacam o bando que os haviam expulsado do lago. O "novo homem", com uma arma na mão, retoma o lago. Na cena seguinte, joga o osso para cima e este vira uma nave espacial. Chegamos ao futuro da pré-história.

Já na última parte do filme, vemos o primeiro computador com inteligência artificial se "revoltar" contra os dois astronautas da nave. O que o filme nos revela? Que o "avanço técnico" seguramente está associado à violência.

Isso não significa que seja "bonito". Hoje em dia, por causa do modo como se dá o debate público, baseado em caricaturas do outro, difamação e simplificação ridícula (tipo: quem não pensa como eu é racista, "sequicista" e a favor da TFP), torna-se necessário fazermos reparos como esse: reconhecer a relação de implicação entre melhoria material da vida, avanço cultural e uma dose de violência não significa achar isso bonito, mas sim reconhecer o grau de ambivalência que marca nossa condição. Mas, num mundo de mimados, como é o nosso, dizer isso parece ser "gostar" disso.

O que Kubrick está dizendo aqui é que provavelmente nossa história de ganhos técnicos implica um alto grau de risco. O problema é que queremos os ganhos, mas, no mundo da carochinha, no qual vivem os mimados, parece ser possível zerar a ambivalência. Nada disso quer dizer que devemos cultivar a violência, mas que não adianta pintar sua cara com cores de anjo porque só vai convencer gente boba.

No outro filme, "De Olhos Bem Fechados", Kubrick dialoga profundamente com Freud. O filme é baseado, em última instância, num sonho de Freud no qual ele entra num trem e um aviso diz que ali só permanecem pessoas de olhos bem fechados.

O sonho está dentro do processo de "autoanálise" de Freud, no qual ele descobre o complexo de Édipo e sua vergonha pelo fato de o pai não ter reagido a uma humilhação feita por um grupo de antissemitas testemunhada pelo menino Sigmund. O tema envolve a ambivalência dos sentimentos e desejos da criança para com os pais.

No filme, a mulher (a deusa Nicole Kidman) conta para o marido (Tom Cruise) que um dia desejou fazer sexo violento com um oficial da Marinha que ela tinha visto num hotel quando eles estavam num momento "família" (quis ser a "puta" dele). Com isso, ela joga o marido num total desespero, que só se encerra quando ela o chama para trepar ("let's fuck").

O desejo da bela e bem comportada mulher revela ao marido que nem ela escapa da desorganização do desejo sexual "ilegítimo". A vida ordenada está sempre por um triz.

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

ponde.folha@uol.com.br

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

RÚSSIA MUÇULMANA?


O assassinato a facadas de Yegor Shcherbakov, de 25 anos, de etnia russa, ocorrido em 10 de outubro, cometido aparentemente por um muçulmano do Azerbaijão, desencadeou distúrbios anti-migração em Moscou,vandalismo e agressões, detenção de 1.200 pessoas trazendo à tona uma grave tensão na vida dos cidadãos russos.

Além da etnia muçulmana contar com cerca 21 a 23 milhões dos 144 milhões de habitantes do total da população russa, ou seja 15%, sua proporção vem aumentando rapidamente. Diz-se que alcoólatras de etnia russa contam com a taxa de natalidade européia e a taxa de mortandade africana, sendo a natalidade de apenas 1,4 filhos por mulher e a mortandade de homens em torno dos 60 anos. Em Moscou, a taxa de natalidade dos cristãos é de 1,1.

Orações do Eid al-Fitr em Moscou em 15 de outubro, mostrando o peso e solidariedade dos muçulmanos na cidade.

Em contrapartida, as muçulmanas têm 2,3 filhos em média com menos abortos do que as russas. Em Moscou, as mulheres tártaras têm 6 filhos e as chechenas e ingúchias 10. Além disso, de 3 a 4 milhões de muçulmanos mudaram para a Rússia vindos das ex-repúblicas da URSS, principalmente do Azerbaijão e do Cazaquistão, sem contar aqueles de etnia russa que estão se convertendo ao islamismo.

Essa tendência aponta para o declínio dos cristãos em 0,6% ao ano e o crescimento nessa mesma porcentagem de muçulmanos, que terá um efeito dramático com o passar do tempo. Alguns analistas preveem que os muçulmanos serão maioria já no século XXI, uma revolução demográfica que mudaria a essência do caráter do país. Paul Goble, especialista em minorias russas, conclui que a "Rússia está passando por uma transformação religiosa que trará consequências ainda maiores para a comunidade internacional do que o colapso da União Soviética". Ele cita um analista russo que prevê uma mesquita na Praça Vermelha em Moscou. Segundo ele, a ingênua premissa de que Moscou está e continuará voltado para o Ocidente "não se justifica mais". Acima de tudo, prevê que o incremento demográfico muçulmano "terá um impacto profundo na política externa russa".

Em alguns anos, serão cinquenta por cento dos alistados no exército russo. Joseph A. D'Agostino do Instituto de Pesquisa Populacional pergunta: "Será que um exército assim irá funcionar de forma adequada, dada a fúria que muitos muçulmanos russos sentem em relação às táticas das forças armadas russas na região da Chechênia? E se outras regiões da Rússia, algumas com enormes reservas de petróleo, se rebelassem contra Moscou? Será que os soldados muçulmanos iriam combater e matar para mantê-las parte da terra natal russa"?

Os muçulmanos russos estão cada vez mais confiantes, compõem a maioria dos grupos étnicos do país, ou seja 57 dos 182 grupos, começaram a usar o termo Rússia Muçulmana para sinalizar suas ambições. Segundo o analista muçulmano Daniyal Isayev, o termo afirma que o Islã é "parte inalienável da Rússia" e que a "Rússia como estado e civilização não poderia existir sem o Islã e os muçulmanos". Ele observa que os muçulmanos precedem a etnia russa na maior parte do território que hoje compõe a Rússia. Suas alegações, radicais, a favor dos muçulmanos incluem exageros, como contribuições cruciais à cultura russa bem como suas vitórias militares.

Conversas dessa natureza fazem com que a etnia russa sinta calafrios quanto à perda populacional do país de pelo menos 700.000 habitantes por ano, pessoas estas que poderiam retornar à sua fé e se voltar contra os muçulmanos. As consequências se revertem em personificações preconceituosas na mídia, ataques a mesquitas e outros crimes, iniciativas para impedir a imigração de muçulmanos e a ascensão de grupos russos nacionalistas radicais, como o "Movimento contra a Imigração Ilegal" de Alexander Belov.

Russos étnicos gritando "Rússia para os russos" em uma manifestação anti-migração após o assassinato de Yegor Shcherbakov.


O Kremlin reagiu de forma contraditória. O então presidente em 2009, Dmitry Medvedev, tentou apaziguar a situação realçando a importância do Islã para a Rússia, observando que os "fundamentos muçulmanos trazem uma contribuição importante para promover a paz na sociedade, fornecendo educação espiritual e moral para muita gente, bem como o combate ao extremismo e à xenofobia". Ele disse também que, devido à grande população muçulmana, a "Rússia não precisa procurar a amizade com o mundo muçulmano: nosso país é parte orgânica desse mundo".

Ilustração de Alexander Hunter para o The Washington Times.


Mas, segundo Ilan Berman do American Foreign Policy Council, "o Kremlin discriminou a minoria muçulmana e ignorou (até ajudou) no crescimento da xenofobia corrosiva entre seus cidadãos. Isso gerou ressentimento e alienação nos muçulmanos russos, sentimentos que grupos radicais islâmicos não viam a hora de tirar proveito". Somado às atitudes de supremacia islâmica já existentes, resulta em uma incontrolável minoria muçulmana.

Discussões sobre o islamismo na Europa tendem a se concentrar em países como a Grã Bretanha e a Suécia, não a Rússia, país com a maior comunidade muçulmana tanto em termos relativos como absolutos, é de suma importância para se ficar atento. A violência anti-migrante dessa semana irá com toda certeza resultar em maiores problemas.

Por: Daniel Pipes

Publicado no The Washington Times.

Original em inglês: Muslim Russia?

Tradução: Joseph Skilnik

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A NATUREZA DAS COISAS

Aristóteles discerniu, 23 séculos atrás, algo que nossa sociedade tenta esquecer: há uma ordem no universo, englobando tudo o que existe. Em outras palavras: as leis da física, da química, da política e da moral são apenas aspectos de uma ordem muito maior em que estamos todos inseridos, do homem mais sábio à partícula subatômica mais distante.

O modo como nos inserimos nesta ordem é o da nossa natureza; o cachorro é essencialmente diferente da samambaia, que é diferente do homem. Cada um desses seres tem uma natureza distinta. Essa natureza é ineludível; é impossível transformar um homem em cachorro ou um cacto em um gato. Só é possível, ainda que daninho, negar temporariamente um ou outro aspecto de uma natureza; é o que se faz quando se tranca um cão (e se o enlouquece!), negando o gregarismo da natureza canina.

Nossa sociedade é tão useira e vezeira em fazer este tipo de coisa que acaba se convencendo de que as naturezas não existem. Faleceu há pouco tempo um senhor que fizera operações plásticas sucessivas até adquirir uma aparência supostamente felina. Nasceu homem e morreu homem, todavia; qualquer gato que o cheirasse não teria dúvida disso.

Mas vivemos sob luzes artificiais, em ambientes em que o cinza predomina, comendo coisas que vêm em caixinhas com códigos de barra, sem jamais tocar os pés nus na terra úmida de orvalho, sem ter consciência das fases da lua (mesmo as mulheres, tão intimamente ligadas a ela, frequentemente não se dão conta de como variam seus ciclos hormonais).

É nesta artificialidade do nosso modo de viver que vêm as negações mais radicais da natureza humana: os comunistas e nazistas, no século passado, mataram milhões de inocentes em tentativas naturalmente frustras de criar um Novo Homem. E ainda há, entre nossos poderosos, quem não tenha desistido.

Alguns se especializam em devaneios ligados à sexualidade, tentando reduzir o que é essencialmente um sistema reprodutivo a seus incentivos sensíveis acidentais, como se a degustação de chicletes fosse o mesmo que a nutrição. Outros, ainda, negam a agressividade humana e se dedicam à impossível tarefa de “recuperar” sociopatas ou, pior ainda, de pregar que eles seriam as verdadeiras vítimas, por não terem tido colinho, todinho ou carrinho. Para estes, as palmadas devem ser proibidas e as cadeias, fechadas.

Estão todos cegos para o essencial: a natureza humana não é um construto social, mas algo dado que nos cabe viver dentro da ordem de todas as coisas. Só assim se pode ter uma sociedade sã.

Por: Carlos Ramalhete professor.

Publicado no jornal Gazeta do Povo.

domingo, 10 de novembro de 2013

POR QUE O RETORNO AO MUNDO NATURAL TEM TANTO APELO, MAS NÃO LEVA A LUGAR NENHUM


BOM PRA QUEM, CARA PÁLIDA? 
Na raiz de todo ativismo violento está a noção utópica e errônea de que Thomas Hobbes pensou errado e, portanto, a vida selvagem é idílica, prazerosa e fraternal (Deagostini/Getty Images)

Por Eurípedes Alcântara, na VEJA:
“Sou homem. Nada do que é humano me é estranho”, já dizia o romano Terêncio, dramaturgo de apenas relativo sucesso do segundo século antes de Cristo. Mas temos de concordar com ele. Eta espécie complicada esta nossa. Depois de ralar durante milênios para construir uma civilização tecnológica com aviões, carros, internet, vacinas, antibióticos e anestesia, o bacana agora é lutar pela volta ao mundo natural. Depois de experimentar toda a sordidez da servidão humana aos mais sanguinários tiranos e de sofrer no lombo os mais odiosos arranjos coletivistas totalitários, ainda temos entre nós quem se encante com aiatolás-presidentes, mulás-chefes de po­lícia e caudilhos latino-americanos cobertos de adereços indígenas, medalhas no peito ou pancake no rosto. Depois de rios de sangue derramados para arrancar dos poderosos o compromisso inarredável com os direitos humanos, a justiça igualitária, o rodízio pacífico de poder, a organização econômica baseada no respeito à propriedade, aceitamos que mascarados aterrorizem as grandes cidades quebrando e queimando indiscriminadamente apenas porque estão incomodados com o estilo de vida da maioria. Depois do sacrifício dos mártires que deram a vida para impor o uso apenas legítimo da força pelos governantes, impedindo que o Estado use brucutus para impor a vontade dos ricos sobre os pobres, dos fortes sobre os fracos, ficamos contra os policiais que tentam impedir o triunfo do reino de terror nas ruas. Depois de tudo isso, esquecemos que o que nos trouxe ao atual estágio civilizatório foi o trabalho obstinado e austero de mentes brilhantes em ambientes monásticos e idolatramos os barulhentos ativistas.

A ÚNICA CHANCE?de salvar os cães é nos salvar, ou seja, acelerar os avanços científicos e tecnológicos, e não colocar obstáculos intransponíveis a eles

?Esse é o dilema oculto do ativista, a pessoa que se cansou de esperar que as coisas ocorram naturalmente da maneira como ela imagina, e vai à luta para tentar embicar o mundo para o rumo que ela acha certo e com o uso das armas que ela própria acha conveniente usar. Os ativistas que libertam cães em São Paulo, que quebram vitrines em Londres e Paris, que se propõem a ocupar Wall Street, em Nova York, têm em comum a ideia de que a lei e a ordem existem apenas para garantir o modo de vida das pessoas das quais eles discordam – ou, frequentemente, que eles odeiam. Outro ponto comum, em geral inconsciente, para a maioria deles, é a negação do que em sociologia se chama “contrato social”, que nada mais é do que a aceitação da tese de que sua liberdade termina onde começa a do outro. Os filósofos da baderna sustentam que isso que denominamos civilização não passa de uma grande e castrante prisão, à qual somos moldados desde o nascimento, primeiro pelo amor materno e paterno, depois pela educação formal, mais tarde pela democracia representativa, pelo consumo, pela arte degenerada e pelos remédios antidepressivos.

Para quem pensa assim, nós todos vivemos uma vida vicária, uma vida substituta, uma vida no lugar da verdadeira vida que está… que está… que está onde? Ora, na natureza, no mundo selvagem, nas selvas, florestas e savanas, na cova dos leões onde seremos recebidos com lambidas fraternas como aquelas que as feras ofereceram ao profeta Daniel. O que muito se discute atualmente é se a ideia de que o homem solto na natureza, fora do alcance das leis, das instituições, completamente alheio às convenções sociais, estaria mesmo condenado à perversão moral e ao sofrimento físico, vítima da “guerra de todos contra todos”, como o inglês Thomas Hobbes disse ser a vida humana “em estado natural”. É disso que se trata. A vontade de ser seu próprio juiz, único e absoluto, do que é certo ou errado é o traço filosófico que une os ativistas que desprezam as leis, que lutam contra moinhos de vento ditatoriais em pleno regime democrático, contra as injustiças sociais em um Brasil onde há pleno emprego, contra a violência policial quando são eles que mais agridem e vandalizam. Thomas Hobbes escreveu que, fora dos arranjos sociais em que as pessoas obedecem a regras em troca do direito à convivência em sociedade, a vida do homem é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”. Hoje, o bacana é apostar que Hobbes pensou errado e que a verdadeira conquista é escapar dos contratos sociais. O preço a pagar para testar aquela hipótese é muito alto. Como é impagável também o preço de um mundo sem ativismo, sem idealismo, sem sonhos.

A REVOLTA DA VACINA – No Rio Janeiro, em 1904, o medo da vacinação obrigatória contra a varíola gerou protestos violentos, como este na Praça da República?

O engajamento solidário em causas consideradas justas é uma das grandes conquistas da modernidade. Divisor de águas é o caso do jovem capitão Alfred Dreyfus, judeu falsamente acusado de espionagem e condenado no fim do século XIX em uma França antissemita. A injustiça contra ele foi tão flagrante que se mobilizaram em sua defesa cientistas, artistas, escritores e estudantes . “Meu dever é falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele não cometeu”, dizia a famosa carta aberta ao presidente da República escrita por Émile Zola em um jornal sob o título: “Eu Acuso…!”. Por serem homens de letras e de ciências, os defensores de Dreyfus eram chamados de modo depreciativo de “intelectuais”. Logo o termo ganhou a conotação positiva de “sábio engajado”. Claro que havia idealismo, sacrifício e nobreza de espírito antes do caso Dreyfus, mas nunca antes tantas pessoas haviam se mobilizado por uma causa sem que tivessem interesse direto nela – seja partidário, religioso, nacionalista, patriótico ou étnico. Elas se mobilizaram contra uma injustiça flagrante. Contra isso sempre valerá a pena lutar.

Por Reinaldo Azevedo

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

APRENDER

Há muitos pais que reclamam do comportamento dos filhos em relação à vida escolar. Em geral, porque eles não se esforçam, acham muito chato aprender e dizem que não gostam de estudar; também porque resistem até o fim para sentar em casa e realizar a tarefa e/ou rever a matéria; e porque não conseguem prestar atenção. Além desses, há os que afirmam que o filho apresenta "dificuldade de aprendizagem".


Em relação a essa última questão, é preciso considerar que essa frase é vazia, sem sentido. Aprender algo novo é sempre difícil, por mais que a pessoa queira ou goste. Para aprender, é preciso reconhecer a própria ignorância, e isso tem sido cada vez mais difícil no nosso mundo.

Em resumo: todos nós temos dificuldades de aprendizagem, por isso seria interessante deixarmos de lado esse rótulo quando nos referimos aos mais novos.

Retomemos as primeiras razões das reclamações dos pais e vamos pensar no quanto eles mesmos colaboram para que tudo aquilo aconteça com o filho, sem que eles percebam sua contribuição.

E, de largada, vamos lembrar: quando a criança inicia seus estudos formais, ela terá de persistir, se esforçar, encarar o erro e procurar não repeti-lo, aprender a "grudar a bunda na cadeira" cada vez por mais tempo e a seguir um processo.

A maioria dos pais reconhece tais requisitos mas, na hora de tentar passar aos filhos, comete um equívoco: o de dizer à criança o que ela precisa fazer, na esperança de que ela apreenda as lições dos pais e passe a aplicá-las nos estudos. Costuma ser em vão essa estratégia, porque as crianças continuam com os mesmos comportamentos.

É que elas precisam aprender isso com os pais no cotidiano. Para ilustrar essa questão, vou usar um exemplo muito presente na vida dos mais novos: os convites para comparecer a festas de aniversários. Aliás, nunca antes as crianças tiveram tantas demandas para eventos sociais. Será bom para elas essa alta frequência? Ainda não sabemos.

Qual costuma ser o comportamento das crianças em relação aos convites que recebem? Primeiramente, elas não pensam se querem mesmo ir ou não. Desconfio que elas acham que o comparecimento a essas festas é obrigatório, como ir à escola.

Elas não pensam porque os pais não as levam a isso. Perguntar ao filho qual ou quais motivos ele tem para querer ir à festa pode ser um bom começo. Ele gosta do colega? Tem boa convivência com ele? Quer brincar com outras crianças? Entretanto, o motivo mais utilizado, o de que "todo mundo vai", não deve ser suficiente para convencer os pais.

Depois disso, sair em busca de um presente para o colega. Pensar na idade dele, do que ele gosta, de suas características, usar uma faixa de preço para escolher, ir com os pais até a loja e --por que não?-- contribuir com parte de sua mesada são questões que também ajudam a criança a vivenciar um processo do começo ao fim dele.

Ir a uma festa exige uma preparação: não é apenas ir e se divertir, não é verdade?

Muitas crianças só se defrontam com os processos da vida na escola e, por isso, resistem tanto, reclamam tanto, acham tão chato. A escola tem sido, para muitas delas, a única instituição a exigir delas dedicação, esforço, perseverança, espera, contenção, planejamento etc.

Desde antes dos sete anos a criança já pode, em família, começar a vivenciar todas essas questões. Afinal, pertencer a uma família já é um processo que exige muito, não é?

Mas parece que temos deixado a criança concluir que pertencer a uma família é puro desfrute e que aprender algo deve ser fácil.
Por: Rosely Sayão  Folha de SP

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

DOENÇA

Psiquiatra diz que a medicina transformou comportamentos normais em doença


A "caixa da normalidade" está cada vez menor e a culpa é do excesso de diagnósticos de doenças mentais, diz o psiquiatra americano Dale Archer, autor do best-seller "Better than Normal", recém-lançado no Brasil com o título "Quem Disse que É Bom Ser Normal?" (Sextante, 224 págs., R$ 24,90).

Archer, 57, é psiquiatra clínico desde 1987 e fundou um instituto de neuropsiquiatria em Lake Charles, Louisiana (EUA). Em 2008, ele notou que havia algo errado com os seus pacientes: a maioria dizia ter um transtorno mental e precisar de remédios --só que eles não tinham nada.

"Estamos 'patologizando' comportamentos normais. E isso não é só culpa da psiquiatria", disse Archer, à *Folha, por telefone.

Um quarto dos adultos americanos têm uma ou mais doenças mentais diagnosticadas, segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA. "Isso está errado. Há uma gama de comportamentos que não são doença."

Em um ativismo "pró-normalidade", Archer descreve oito traços de personalidade comumente ligados a transtornos, como ansiedade (veja acima), e afirma que não há nada errado com essas características, a não ser que sejam muito exacerbadas.

"O remédio tem que ser o último recurso, e não é o que eu vejo. As pessoas entram em um consultório e saem com uma receita médica. A psicoterapia é subestimada."

De outubro de 2012 a setembro de 2013, o mercado de antidepressivos e estabilizadores de humor movimentou mais de R$ 2 bilhões no Brasil, segundo dados da consultoria IMS Health. Nos últimos cinco anos, o número de unidades vendidas desses remédios cresceu 61%.

Para Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, os diagnósticos aumentaram, sim, mas da mesma forma como aumentou os de outras doenças, de diabetes a câncer. "Isso é resultado da evolução da medicina e da facilidade de acesso."

O mesmo pensa o psiquiatra Fabio Barbirato, da Santa Casa do Rio de Janeiro. "Também aumentou o número de prescrições de insulina e anti-hipertensivo. Isso ninguém questiona. Mas quando se fala de mente, da psique, todos têm uma opinião", afirma.

Segundo Silva, o problema é o subdiagnóstico. Para ele, há mais deprimidos sem tratamento do que pessoas sem depressão sendo tratadas.

Barbirato dá como exemplo o TDAH (transtorno do deficit de atenção e hiperatividade). "O número de crianças com prescrição de remédios não chega a 1,5% no Brasil, e a estimativa mais baixa de presença de TDAH no país é de 1,9%. Há crianças sem tratamento."

CRITÉRIO ANTIGO
Para a psicóloga Marilene Proença, professora da USP, a sociedade está "medindo" as crianças com réguas antigas. "Os critérios de diagnóstico de TDAH esperam uma criança que brinque calmamente, que levante a mão para perguntar algo. Isso não condiz com o papel da criança na sociedade. Ela está exposta a muitos estímulos e é tudo muito competitivo", diz.

Para a psiquiatra e psicanalista Regina Elisabeth Lordello Coimbra, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, as pessoas estão menos tolerantes às emoções.

"Há pouco lugar para a tristeza. E a exaltação e excitação são confundidas com felicidade. Vivemos de uma forma mais estimulante, na qual emoções mais depressivas, reflexivas, não têm espaço."

De acordo com Silva, o que caracteriza a doença mental é a gravidade dos sintomas. "Deixa de ser normal quando a pessoa tem prejuízo, quando está tão triste que não consegue sair da cama."

Ele argumenta que "invariavelmente" encaminha os pacientes para a psicoterapia. E garante: nem sempre eles saem do consultório com uma receita médica.
JULIANA VINES  DE SÃO PAULO  FOLHA DE SP

terça-feira, 5 de novembro de 2013

DIÁRIO DA EUROPA

1.

São os objectos das vítimas que mais impressionam em Auschwitz. Entramos no campo, visitamos o "museu" e lá estão: atrás do vidro, uniformes, malas, sapatos, pentes, escovas de dentes etc.

Quando estive em Auschwitz - infeliz frase, esta: "quando estive em Auschwitz" - um dos turistas desmaiou à minha frente. Dizem que acontece várias vezes e normalmente naquela sala. Como se os objectos dos mortos transportassem ainda a evidência tangível dos crimes.

Nada que tenha impedido alguns mercenários de colocarem no eBay dezenas de itens do Holocausto. A começar por um daqueles uniformes que vemos nos filmes, à venda por US$ 18 mil (R$ 41 mil). A empresa desculpou-se pelo lapso, removeu a "memorabilia" do Holocausto e prometeu apertar a vigilância dos produtos que vão a leilão. Fez bem.
Mas, pessoalmente, a única dúvida que fica é saber que tipo de gente estaria disposta a dar R$ 41 mil pelo uniforme de um padeiro polonês assassinado na câmara de gás.

Tarados existem em todo o lado, sim. Mas o único motivo pelo qual lamento o cancelamento do leilão está na impossibilidade de sabermos, agora, quem gostaria de ter em casa, provavelmente para usar como pijama, o tipo de roupa que costuma fazer desmaiar os turistas que vão a Auschwitz.

2.
E para continuar no mesmo espírito: por que não usar mais vezes a guilhotina na execução de condenados à morte? A pergunta foi formulada recentemente por John Kruzel na "Slate". Faz todo o sentido.

Sou contra a pena de morte porque existem certos avanços morais e civilizacionais que não devem ser jogados pelo cano. John Kruzel também é contra.

Mas se os Estados Unidos têm experimentado dificuldades no acesso aos químicos que permitem a injecção letal, então a boa e velha lâmina do dr. Guillotin talvez fosse uma hipótese a considerar. E com vantagens. Três, escreve Kruzel. Subscrevo cada uma delas.

A primeira é que os órgãos dos executados poderiam ser usados em transplantes (o que não acontece nas execuções eléctricas ou químicas, que danificam irremediavelmente o organismo).

A segunda é que o método é barato, rápido e consta que indolor (pelo menos, não há nenhum histórico de queixas sobre o assunto).

E a terceira é que permitiria aos adeptos da causa a contemplação empírica do acto punitivo que defendem. Aliás, acrescento: se as decapitações fossem transmitidas pela tv, de preferência na hora do jantar, melhor ainda.

É fácil defender a pena de morte quando não sabemos o que isso realmente significa. A guilhotina seria pelo menos uma ajuda visual para quem sofre de certas formas de cegueira.

3.
Começou Novembro com o seu Dia de Finados. Os cemitérios portugueses recebem as famílias que ainda prestam homenagem aos falecidos. No Brasil presumo que seja igual.

Mas esse ano comprovei um fenómeno que se adensa ano após ano: são poucas as pessoas com menos de 40 anos nos cemitérios. Com menos de 30, uma absoluta raridade. O que significa tudo isso? Que Evelyn Waugh acertou com meio século de avanço.

No seu hilariante "The Loved One", o escritor inglês já tinha retratado uma sociedade que tudo faz para negar a morte e que até transforma os funerais em espectáculos "kitsch" que servem o mesmo propósito: apagar a inevitabilidade dolorosa do fim.

Hoje, dominados pela cultura da Saúde e da Juventude (as únicas divindades adoradas no mundo pós-cristão), não admira que os cemitérios se esvaziem ano após ano. Eles são a recordação tangível dessa doença chamada "mortalidade".

Desconfio até que, no futuro próximo, os defuntos passarão a ser despachados por mecanismos mais rápidos e higiénicos, como nas descargas dos vasos sanitários.

E os cemitérios serão como as ruínas pré-históricas de Stonehenge: simples resquícios de culturas primitivas como a nossa.

Por: João Pereira Coutinho Folha de SP