domingo, 8 de julho de 2012

VOCAÇÃO E SACRIFÍCIO

Até que ponto um médico deve sacrificar sua vida pessoal para tentar salvar os outros? Essa delicada questão surgiu automaticamente quando vi Mãos que Curam (“El Mal Ajeno”), o filme do espanhol Oskar Santos. 

Diego é um médico acostumado a lidar com as situações mais extremas. Para suportar esta condição, ele acabou se tornando uma pessoa fria, insensível. A fim de evitar a dor da perda dos pacientes, ele também passou a evitar a alegria nos casos de sucesso. Ou seja, seu envolvimento passou a ser nulo. Com isso, ele acabou se afastando de sua mulher, enfermeira que trabalha no mesmo hospital, de sua filha adolescente, e de seu pai idoso. 

Um encontro sinistro mudaria sua vida. O amante de uma paciente terminal o encontra no estacionamento do hospital, e lhe faz ameaças com uma arma. Ele exige que Diego prometa ver a paciente todos os dias. Após fazer a promessa, Diego não lembra de nada, apesar de ouvir um disparo e da estranha sensação de ter levado um tiro. 

Terei que estragar a surpresa de quem ainda não viu o filme para continuar. O fato é que Diego levou mesmo um tiro na cabeça, mas milagrosamente viveu, e nenhum médico achou indício algum de bala. É que o autor do disparo tinha um dom, ou uma maldição, dependendo do ponto de vista. Ele podia curar as pessoas com o toque de sua mão. E ele atirou em Diego, mas depois transferiu seu poder a ele, matando-se em seguida. 

Eis o motivo: o dom tem uma contrapartida. Para ele salvar outras vidas, aquelas de seus entes queridos acabam sacrificadas. Armand, o autor do disparo, assumiu este dom quando atropelou uma menina que se jogou na frente de seu carro. Ela buscava se livrar do mesmo dom, pois sua irmã, a que virou amante de Armand e estava agora no hospital entre a vida e morte, estava morrendo enquanto a irmã mais nova salvava vidas. 

O próprio Armand, ao assumir o dom, acaba deixando doente primeiro sua mulher, uma mulher bonita com seus 40 anos que já entrou na menopausa e não pode mais ter filho, seu grande sonho, e depois a própria amante, Sara, a irmã daquela que ele atropelou. Desesperado ao descobrir o que se passa, decide se matar e transferir ao médico Diego o poder da cura, mas exigindo que ele ficasse todo dia com Sara no hospital. 

Diego, que é médico, descobre mais rápido seu dom, e passa a curar várias pessoas. Mas em pouco tempo ele descobre também o custo disso. Seu pai, em quem ele tinha feito exame de toque para analisar a próstata sem encontrar nada, morre um mês depois com metástase. Sua filha adoece e está prestes a morrer. Seu casamento acaba. 

A conclusão é evidente: para continuar salvando as outras vidas, as vidas de seus familiares estarão em sérios riscos. Sua vida pessoal sacrificada pela cura de estranhos. Eis o dilema que se apresenta a ele. 

Tive que contar praticamente o filme todo para chegar a este ponto. A metáfora é óbvia. Médicos com vocação para a medicina acabam tendo que sacrificar boa parte de suas vidas. Plantões na madrugada, ligações de emergência no meio da noite, coração mais endurecido após conviver diretamente com tanta desgraça, essa é a vida típica de um médico que trabalha nos casos limites entre a vida e a morte. Salvar vidas pode custar caro em termos pessoais. 

Há uma mensagem cristã no filme: Jesus teria morrido na cruz para nos salvar. O médico com o dom para a cura terá que se sacrificar também. Ele está disposto a isso? Ele conseguirá carregar este fardo, esta cruz, em prol da vida de seus pacientes? Ele suportará ver as pessoas que mais ama sofrendo enquanto tenta colocar um fim no sofrimento alheio? 

São questões bastante complicadas. O médico que tem esta vocação tem mesmo tanta escolha assim? Ou ele é “chamado” a este sacrifício sem muita alternativa? O mesmo vale para outras áreas além da medicina. Será que Einstein foi um bom marido? Alguém sabe quem foi Mileva Maric, sua esposa? Será que Einstein foi um bom pai? Até que ponto sua contribuição para a física e o que isso representou para a humanidade justificam uma ausência nas demais funções? 

Freud teve seis filhos. Chegou a usar uma de suas próprias filhas como “cobaia” em terapia, o que provavelmente deixou sérias sequelas. Ele trabalhava por longas horas em seus estudos. Até que ponto a psicanálise justifica uma paternidade mais distante? O sacrifício familiar dos gênios que legaram ao mundo feitos incríveis está perdoado? Mas e quanto aqueles que pagaram o preço, o sacrifício? 

O ponto talvez seja que não há muita escolha nesses casos. Gênios costumam ser obcecados demais. Eles não saberiam ou suportariam fazer outra coisa e abrir mão de seus temas obsessivos. O médico com vocação pode enfrentar a mesma angústia. Ele sabe que sua vocação terá um custo elevado para seus entes queridos, mas será que ele pode realmente abrir mão dela? 

A vocação é um dom maravilhoso, mas ao mesmo tempo uma maldição. Impõe custos altos demais. Não há mesmo almoço grátis. Atender ao “chamado” e dar vasão ao dom implica grandes sacrifícios pessoais. A questão é: há escolha? 

Para Diego houve, ainda que cruel. Ele optou pelo autossacrifício, preferindo tirar a própria vida para salvar sua filha. Transferiu para Sara o dom da cura, ou seja, outros vão carregar o fardo “altruísta” em seu lugar. Ele não suportou ver o sacrifício de sua filha. Ele não tinha mais como ser um bom médico. 

Já Sara abriu mão de seu filho recém-nascido, que entregou aos cuidados da viúva de Armand, aquela que não podia ter filhos. Escolheu viver em função de seu dom. Quem está certo? Faz sentido falar em escolha certa nestes casos? 

Uma coisa parece certa: seguir a vocação vai sempre envolver algum tipo de sacrifício. O que é visto como um dom incrível de fora, pode muito bem se tornar uma maldição para aquele que o possui, ou ao menos para seus familiares. O sacrifício parece ser o outro lado da moeda da vocação. Por: Rodrigo Constantino

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