terça-feira, 24 de julho de 2012

A DIGNIDADE DOS FEIOS


ERNEST BORGNINE morreu há três semanas e nem uma palavra minha nesta Folha. Que injustiça: para mim e para Borgnine, um dos meus atores de eleição.

Sim, a carreira é longa e irregular, com grandes momentos ("A um Passo da Eternidade", de Fred Zinnemann) e péssimos momentos (o pastelão bíblico "Barrabás"). Sem falar dos momentos verdadeiramente sofríveis, quase todos nas últimas décadas -e quase todos, ironicamente, filmes-catástrofe.

Mas, para a posteridade, ficará a sua composição em "Marty", obra de Delbert Mann que valeu o Oscar de melhor ator em 1955. Nada mais justo: "Marty" é um tratado precioso sobre a dignidade dos feios e a coragem da individualidade humana.

Para começar, o mundo é dos belos. Negar para quê? Faz parte da retórica bem pensante dizer que a beleza não é fundamental. Há quem fale até em "beleza interior" para compensar o estrago e atribuir uma espécie de indenização ética ao sujeito.

Não vale a pena mascarar a verdade ou confundir as verdades: a "beleza interior" pode ser relevante, e até mais relevante, do que a superficialidade da carne.

Mas é para essa superficialidade que se olha primeiro -ou que se rejeita primeiro. A ideia pode não ser agradável para quem pensa que todas as desvantagens da vida são produto de uma "construção social" defeituosa.

Infelizmente, a realidade não se ajusta a fantasias. A natureza é um cassino. E nem tudo obedece aos caprichos igualitários do nosso tempo: alguns foram bafejados pelo escopo da beleza -e outros, simplesmente, não.

Marty não foi: ele é gordo e feio. E nem sequer tem fortuna pessoal para cumprir o demolidor aforismo de Nelson Rodrigues sobre o assunto ("Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro").

Aos 34 anos, Marty é um solitário. E todos lhe perguntam, ao balcão do açougue onde trabalha: "Quando casas, Marty?". Pior: todos cobram esse feito, como se existisse um prazer perverso na humilhação perversa dos feios.

Marty escuta e sofre: em silêncio. Os irmãos arrumaram a vida: têm filhos, mulheres, famílias. Casas nos subúrbios.

Ele, Marty, continua a morar com a mãe. Que também lhe pergunta: "Quando casas, Marty?".
De vez em quando, ele sai com os amigos aos sábados à noite. Para ver o mercado e testar a sua baixa cotação na praça. Mas Marty está cansado de procurar companhia. Porque está cansado da rejeição.

"Marty" começa por ser uma pequena pérola sobre esse grande tabu: a rejeição dos feios, a angústia que existe nessa rejeição, e o cansaço de quem tentou uma vez, e outra, e outra ainda, para receber apenas desprezo ou repulsa de volta.

Poucos filmes captaram de forma tão digna e pungente a tristeza da feiura.

Mas "Marty" vai mais longe e mostra como a vida adulta é sobretudo definida pelas escolhas que fazemos: escolhas nossas, radicalmente nossas, mas tantas vezes ensombradas pela opinião dos outros.

Isso sucede quando Marty conhece finalmente um par. Clara (Betsy Blair, no filme) é uma "outsider" como ele -feições modestas, igual desesperança no afeto alheio. Mas é doce, atenta e presente, alguém com quem ele fala sem parar na primeira noite.

Marty encontrou alguém. Marty sabe que encontrou alguém. Mas o exército dos solitários inicia as suas operações: a mãe viúva que teme o abandono do filho, os amigos celibatários que invejam a sorte de um membro do clube, todos eles começam a encontrar defeitos na escolha de Marty. E a dar palpites ou sugestões para o desviar da sua rota.

Marty fica confuso, medroso, melindrado. Mas é quando se encontra novamente só que a epifania acontece: a vida só lhe pertence a ele, não ao coro grego que pretende determinar o seu destino.

Moral da história?

Enganam-se os que pensam que a afirmação da individualidade é sempre um ato heroico e prometeico, como nas óperas de Wagner ou nos textos de Nietzsche.

Grande parte da nossa individualidade joga-se todos os dias nas pequenas decisões anônimas que tomamos. Joga-se, no fundo, nesses momentos em que pesamos a nossa covardia e a nossa coragem.

E decidimos depois seguir em frente.
Por: João Pereira Coutinho, Folha de SP

Um comentário:

Martin Wharton disse...

Refletindo sobre o tema do texto, me veio à cabeça a seguinte pensamento:
"A sociedade exige um padrão dos seus individuos".
Ou seja, para se fazer parte dessa tal chamada sociedade, você precisa ter as mesma características da sociedade. Caso contrario, você não pode se considerar parte dela.
Considero intrigante e ao mesmo tempo assustador, pois cada vez mais se torna difícil encontrar a personalidade das pessoas.
O que vemos hoje, são pessoas com opiniões, comportamentos e beleza iguais; pessoas infelizes e desinteressantes.
Assunto que certamente vale uma tarde de vinho a lá Ostradamus!
Forte abraço