quarta-feira, 27 de junho de 2012

CRIME CONTRA SÃO PAULO

O relato abaixo pode ser considerado em todo o território nacional, com variações por estado. A insegurança é geral com 50 mil assassinatos anuais, mais 35 mil mortes no transito.
Aloysio Tiscoski

Viajo para São Paulo em breve. Mas hoje, domingo, dia em que escrevo essas linhas, já recebi da minha tia paulistana o conselho habitual: "Meu querido, se eles pedirem, você dá tudo". Abençoada tia. Quando a viagem é para Roma ou Paris, há sempre a sugestão de um restaurante, de um museu, de uma loja ou de um parque. São Paulo é outra história: se "eles" pedem, eu dou tudo. E eu já dei: anos atrás, no lobby de um hotel a dois passos da avenida Paulista, fui assaltado à mão armada. "É só o laptop", disse-me o rapaz, uma cara amedrontada e imberbe que tremia com a pistola na mão. Nesse milésimo de segundo, lembrei da minha tia e virei o cachorro de Pavlov: ele pediu, eu dei o laptop. Sem pestanejar. Prejuízos? Nenhuns: nem físicos, nem psicológicos. O hotel pagou um novo laptop e eu ainda ganhei uma história para contar. Nos dias seguintes, em conversas com amigos, relatava o episódio com a estupefação própria de um europeu. Eles também estavam espantados: não pelo roubo, uma das atrações turísticas da cidade; mas pela ousadia do assaltante, que arriscou a vida para entrar no hotel. Raciocínio dos meus amigos: se o roubo fosse no carro ou na rua, tudo bem. Mas no hotel? Onde podem existir seguranças? Relembro hoje as minhas aventuras passadas. Não apenas porque retornarei a São Paulo na próxima semana, mas porque os assaltos em estabelecimentos deixaram de ser privilégio meu. Todos os dias leio na imprensa que um restaurante ou um bar sofreram mais um arrastão. O "modus operandi" é sempre o mesmo: entra o bando, alguém armado ameaça os presentes e depois é só fazer a limpeza. E a polícia? Segundo o site da revista "Veja", nos primeiros 20 dias de junho houve 26 casos registrados. E a polícia não parece estar demasiado preocupada com "acontecimentos menores", sem a grandeza de matanças ou sequestros. "Acontecimentos menores"? Lamento. Se a história do crime ensina alguma coisa é que "acontecimentos menores" são terreno fértil para "acontecimentos maiores". Que o digam James Q. Wilson e George Kelling, que há precisamente 30 anos escreveram sobre o assunto na revista "The Atlantic Monthly". O ensaio, intitulado "Broken Windows" ("janelas quebradas", março de 1982), virou um clássico da criminologia e influenciou profundamente a luta contra o crime em Nova York nos anos 1990. Durante as duas décadas anteriores, a "Big Apple" era considerada um caso perdido -em homicídios, estupros, assaltos e tráfico de droga. Como, então, se inverteu esse cenário? O prefeito Rudolph Giuliani e o comissário da polícia William Bratton apostaram em estratégias pesadas -mais policiais nas ruas, responsabilização direta das chefias por incidentes ou delitos em suas áreas urbanas. Mas Giuliani e Bratton aprenderam algo de mais sutil com o ensaio de Wilson e Kelling: condições de desordem só geram mais desordem. Exemplo: um bairro onde os edifícios estão degradados; as janelas quebradas; os muros cobertos de pichação são ninhos potenciais de marginalidade e crime. A primeira coisa a fazer é consertar o bairro; é não tolerar que ele seja vandalizado novamente; é punir a pequena delinquência para evitar que ela se transforme em grande delinquência. O ensaio de Wilson e Kelling, e a ação posterior de Giuliani e Bratton, revolucionou o combate ao crime. Não apenas em Nova York, mas em todas as cidades americanas onde a estratégia foi seguida. Mais: a experiência da "tolerância zero" não se limitou a cidades americanas. Na Europa, essa intransigência com os pequenos delitos acabou por ser recompensada na Holanda, na Inglaterra, na Itália. O pequeno crime e o grande crime são disruptores da vida social. E o primeiro é a antecâmara do segundo. Se as autoridades paulistanas consideram os arrastões em bares ou restaurantes "acontecimentos menores", elas deveriam ler James Wilson e George Kelling. Sobretudo estas palavras: "As estatísticas do crime medem perdas individuais, mas não medem as perdas comunitárias". E as perdas comunitárias, acrescento eu, são mais difíceis de regenerar. Moral da história? Eu até posso dar tudo quando "eles" pedem. Mas esse crime sobre mim é, na verdade, um crime contra São Paulo.Por: João Pereira Coutinho, Folha de SP

Nenhum comentário: