terça-feira, 8 de outubro de 2013

VIDA MODERNA

1.

Sempre que penso em comprar um novo laptop, escuto especialistas sobre o assunto. E, falando com eles, reparo que todos obedecem ao mesmo roteiro: elegem a marca e o modelo; elogiam as proezas do bicho; e depois, quando já estamos a salivar por ele, concluem: "Mas o melhor é você esperar mais um pouco."

Eis o raciocínio do especialista tecnológico: o mundo avançou muito; mas é melhor esperar mais um pouco. Há sempre uma novidade para breve que transforma a novidade de hoje em puro lixo amanhã.

O refrão é tão conhecido que eu pasmo com a quantidade de aparelhos que ainda se vendem no mundo inteiro. Será que as pessoas não sabem que é melhor esparar mais um pouco?

O iPhone é um caso: meses atrás, cedi à tentação e comprei o dito. Conclusão: não esperei mais um pouco. Agora, o meu celular serve apenas para limpar os vasos sanitários na empresa de Steve Jobs porque já existe um novo modelo - melhor, mais barato - a circular por aí.

Eu próprio, aliás, já pensei em trocar o velho pelo novo. Mas quando pergunto opiniões, todos respondem o mesmo: é melhor eu esperar mais um pouco.

2.
Uma colega americana veio trabalhar para Lisboa e, até ao momento, a característica dos lusos que mais a espantou foi o "pequeno-almoço" ("café da manhã", para a galera).

Diz ela que, nos países onde já trabalhou (Estados Unidos, Inglaterra e República Tcheca), existe um padrão comum: a pessoa acorda; toma o pequeno-almoço; sai para o trabalho - exactamente por essa ordem.

Em Portugal, não é assim. A pessoa acorda e sai para o trabalho. Pausa. Segue-se meia-hora de conversas/telefonemas/emails. Nova pausa. Só então há tempo para a primeira refeição do dia.

Por outras palavras: tomar o pequeno-almoço não é um acontecimento prévio ao horário de trabalho. Pelo contrário: faz parte desse horário e ocupa, sem exageros, uma fatia importante do primeiro turno.

Curiosamente, ela disse-me tudo isso a meio da manhã, quando eu tomava o meu primeiro café e comia o meu primeiro croissant. Ligeiramente embaraçado, só me ocorreu uma mentira antropológica: "Ah, mas existem outros países assim. O Brasil, por exemplo."

Perdão, gente, foi em desespero de causa. Mas, aqui entre nós, terei mesmo contado uma mentira?

3.
Aeroporto. Estou sentado junto à porta de embarque, ainda encerrada. O voo será daqui a 45 minutos. Mas, à minha frente, os passageiros já estão em pé e começam a formar fila quilométrica para entrar. Mistério.

Eu entenderia esta extravagância se, por hipótese, voos lotados deixassem metade dos passageiros em terra. Ou essa metade tivesse que ir no porão.

Se assim fosse, eu próprio passaria a noite no aeroporto para evitar o suplício. Ou subornaria alguém só para conseguir um lugar, como acontece nos ônibus do Quénia ou nas viagens de trem pela Índia.

Mas como explicar esta paixão dos seres humanos por filas idiotas quando os lugares já estão reservados? Será que eles pensam que existe sempre a possibilidade do avião fugir antes da hora?

Conclusão: deixo todo mundo entrar e depois, vagarosamente, levanto-me e entro eu.

Claro que, sendo o último a entrar, existem sérias hipóteses de não ter espaço para arrumar a bagagem. Mas as aeromoças são sempre prestáveis, esmagando as malas dos outros com a minha mala retardatária.

Agora, sim, prontos para a decolagem, comandante.
Por: João pereira Coutinho  Folha de SP


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

ENVELHECER

O que é envelhecer? De acordo com o dicionário e a internet, velho é algo que existe há muito tempo ou tem mais idade. Segundo a definição, envelhecer seria existir de modo a ter mais tempo de existência ou mais idade. Algo interessante é que a palavra “velho” foi se desgastando por diversos motivos e dizer que alguém está velho se tornou algo pejorativo. Atualmente, para evitar o uso dessa palavra para pessoas utiliza-se outra: idoso. Mas, de acordo com padrões estatísticos o idoso é uma pessoa que tem idade acima de 65 anos. Ainda para evitar chamar alguém de velho ou idoso, diz-se que a pessoa está na “melhor idade”. Enfim, essa troca de palavras é uma tradução fiel da mudança da condição de pessoas com mais idade ao longo do tempo.

Ao longo da história da humanidade envelhecer teve vários significados, entre os quais, adquirir experiência e tornar-se sábio. Ao longo do processo, quanto maior a distância entre a idade dos mais novos e dos mais velhos, obrigatoriamente maior era o respeito dos mais novos para com os mais velhos. É comum ainda hoje ouvir pessoas de mais idade dizerem: “No meu tempo, com o meu pai, era sim senhor, não senhor. Respeito era bom e preservava os dentes”. Essa era a tradução de um tempo em que envelhecer significava aquisição de respeito, ou seja, pelo simples fato de ter mais idade já se tinha mais autoridade. Nos tempos de hoje essa regra já não tem mais valor, são muitos os casos em que ser mais velho significa não ter valor, nem ser respeitado.

Mas o que será que significa envelhecer nos tempos atuais? Com certeza para cada um é diferente, mais do que nunca está na dependência do indivíduo construir o próprio envelhecimento. Nos dias de hoje se pode escolher como se quer passar o tempo, o que se vai fazer quando a idade for maior do que as pessoas em volta. Hoje são muitos os que optaram por envelhecer mais tarde, continuaram ativos nos locais de trabalho, na comunidade, com a família e até consigo mesmos. Outros tantos optaram por envelhecer mais cedo, pararam suas atividades e aos poucos foram se tornando obsoletos para si e para os outros. Veja, envelhecer tem a ver com diferença de tempo, e o tempo de diferença entre duas pessoas é o que as faz mais velhas ou mais novas.

Não é raro encontrar velhos de 20 anos de idade e jovens de 50, mas como pode isso? É simples, se a idade for medida pela atualidade de vida de cada um. Pense numa pessoa casada, estável, com trabalho regular, que já não tem mais expectativas, apenas conta os dias, perdeu a jovialidade. Não interessa a idade, alguém assim, envelheceu mais cedo, isso de acordo com os padrões atuais. Já uma pessoa que está em constante interação, se atualizando, buscando novos caminhos, ligada ao mundo, é jovem, não interessa a idade. Envelhecer, tornar-se obsoleto, é uma questão de opção. 

Como envelhecer? Ou melhor, a pergunta é, queremos envelhecer? Para muitos envelhecer é pior que a morte, muitas pessoas não esperavam que o tempo passasse, o tempo passou e elas ficaram para trás. Estas sim envelheceram. As pessoas que continuaram acompanhando o tempo e foram se transformando com ele continuaram novas, atuais. A idade física, o vigor físico, é provável que passe para todos, mas mesmo assim, determinar a juventude ou a velhice de alguém pelo corpo, é algo muito pobre. Não é a toa que está na moda jovens saindo com mulheres com maior idade.Será que encontraram nelas pessoas velhas? É da condição física humana envelhecer, mas não é obrigação tornar-se velho, obsoleto.
Por: Rosemiro A. Sefstrom   Do site www.filosofiaclinicasc.com.br 

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

BIBLIOTECAS PÚBLICAS À ESPERA DE LEITORES

Existem centenas de bibliotecas em São Paulo, de instituições públicas e privadas, cujo acesso é livre. Entretanto, muitas delas são praticamente desconhecidas da população - e permanecem quase vazias na maior parte do tempo.


É o caso da que funciona na Assembleia Legislativa, na frente do Parque do Ibirapuera. São 14 mil livros que ficam à disposição tanto dos funcionários e deputados quando da população em geral - o espaço funciona de segunda a sexta, das 9h às 20h. "Mas muito pouca gente vem", comenta a bibliotecária responsável, Patricia Ide.

Ela e outros nove funcionários trabalham ali. Mais do que os oito visitantes por dia que o local costuma receber, em média. "E a maioria dos visitantes vem para ler o jornal do dia", diz Patricia.

Outro exemplo de pouca frequência é a biblioteca mantida pela Academia Paulista de Letras, instituição fundada há 104 anos no centro de São Paulo. Tem um acervo riquíssimo. São cerca de 80 mil títulos, muitos deles em raras primeiras edições dos séculos 17 e 18 - o foco é a literatura brasileira.

"Na média, devemos receber umas oito pessoas por mês. Mas tem mês que chega a vir um por dia. Tem mês que não vem ninguém", comenta uma das duas funcionárias, a bibliotecária Maria Luiza Pereira de Souza Lima. A biblioteca fica no terceiro andar do prédio da Academia e funciona de segunda a sexta, das 9h às 12h e das 13h às 17h - exceto às quintas, quando só abre pela manhã.

"Os que nos procuram, em geral, são pesquisadores, acadêmicos que estão fazendo tese de mestrado ou doutorado, por exemplo", explica Maria Luiza. O acervo foi montado, ao longo das décadas, com base em doações - em geral, dos próprios membros da Academia. "Já é uma tradição não termos verba para adquirir novos livros", comenta a funcionária. Os móveis do ambiente, feitos pelo antigo Liceu de Artes e Ofícios, dão uma aura clássica ao espaço.

Prato cheio para quem gosta de pesquisar em livros de História, a biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo funciona de segunda a quinta, das 12h às 17h. Ali há 4,8 mil livros, principalmente sobre a Revolução Constitucionalista de 1932. "Mas também sobre outras revoluções e sobre a História do Brasil e de São Paulo", apresenta a bibliotecária Ivone Cavalcanti Maciel.

Ivone afirma que são cerca de 150 visitantes por mês. "Entretanto, há um público sazonal, que surge todos os anos nas proximidades do feriado de 9 Julho, data em que se comemora a Revolução de 1932", explica a bibliotecária.

Acessível. Muito provavelmente pela localização, a biblioteca que funciona na Câmara Municipal não tem público tão pequeno. Diariamente, são cerca de 50 os que consultam o acervo da casa, formado por 22 mil títulos, das mais variadas áreas - neste mês, 14 títulos foram incorporados às estantes, entre eles o livro 28 Contos, de John Cheever, Afinado Desconcerto, de Florbela Espanca e 125 Contos, de Guy de Maupassant. A biblioteca funciona de segunda a sexta, das 10h às 18h30.

"Estamos no meio de um processo que, acreditamos, culminará com um aumento do número de visitantes", explica o secretário de Documentação da Câmara Municipal, Angelo Caio Monteiro da Cruz, cuja pasta é responsável pela biblioteca. "Na reforma do térreo está prevista a mudança da biblioteca para lá. Acredito que ali ficaremos mais acessíveis. Nosso público deve dobrar."

Municipais. Mais conhecidas pela população, há 56 bibliotecas públicas municipais espalhadas pelos bairros da capital. Elas recebem 85 mil pessoas por mês - gente interessada em mais de 4 milhões de livros dos acervos de toda a rede.

De todas as unidades, a que recebe menor público mensal é a Chácara do Castelo, no Jardim da Glória, com média de 401 visitantes por mês. Seguida de perto pela que fica no bairro do Limão, a Menotti Del Picchia, com uma média mensal de 456 visitantes.

Na outra ponta, as recordistas de público são a Mário de Andrade, por onde passam mais de 32 mil pessoas por mês, e a biblioteca do Centro Cultural São Paulo, com 24 mil usuários por mês.
EDISON VEIGA - O Estado de S.Paulo

terça-feira, 1 de outubro de 2013

UMA MULHER LINDA

Recentemente participei de um debate sobre a trilogia "Cinquenta Tons". Muitas críticas: típico best-seller que identifica um drama universal (o amor) e propõe uma solução "easy" (seja sadomasô light e o casamento virá); a srta. Steele (a heroína) não está a altura de Lady Chatterley (de D.H. Lawrence) nem das irmãs Justine e Juliette (do Marquês de Sade) nem da personagem de "História de O" (de Anne Desclos, sob o pseudônimo Pauline Réage), porque a srta. Steele se vende por um MacBook Pro, enquanto as outras são para valer. Tudo verdade.

O maior pecado de "Cinquenta Tons" é que ele vende uma fantasia: o homem ideal. Christian Grey é rico, bonito, inteligente, viril, experiente. Mas o fato é que as mulheres desejam mesmo homens fortes, viris, sensíveis até a página três, ricos não só de grana. Enfim, "Cinquenta Tons" vende porque fala para todas as mulheres, bobas, ignorantes, cultas ou críticas. Mas, como virou moda mentir, ninguém confessa.

Dias depois do debate, revi um filme idiota americano (como "Cinquenta Tons"), em que um milionário fodão (interpretado por Richard Gere) contrata uma garota de programa (Julia Roberts, ah! Se todas fossem iguais a você, Julia, que maravilha viver...) e acabam se apaixonando. Claro, o filme é "Uma Linda Mulher". A fórmula clara da gata borralheira do sexo que vira a esposa Cinderela.

Mas o longa é muito mais do que isso. Diante da crítica histérica de que é mais um filme machista (que sono...), vale notar que ele faz a pergunta que mata de medo as mulheres: afinal, o que quer o homem numa mulher?

Dirão as apressadas que o homem quer que a mulher traga uma cerveja e venha pelada. Errado: melhor de calcinha e salto alto. Seria a superficialidade masculina o último bastião da ideologia "dominante"? Bastião este que agrada a todas as mulheres porque as acalma: os homens só querem uma bunda!

O filme toca num tema atávico que deixa mesmo as meninas "críticas" de cabelo em pé: seria a garota de programa a mulher ideal?

O personagem de Gere é fodão. Ele sabe o que os fodões sabem: o mundo é repetitivo, e as pessoas são previsíveis. Querem dinheiro, reconhecimento e "serviços", e fazem qualquer coisa para conseguir, embora neguem.

Se, no fundo, todos estão à venda por "um programa" de sucesso, melhor sair com alguém mais honesto: a garota de programa é a mulher menos cara do mundo. Ela "só" quer dinheiro, e isso às vezes é uma bênção. Ela é a mulher ideal porque é a única diante da qual o homem relaxa.

Afinal, o que quer o homem numa mulher? Num dado momento do filme, Gere diz à bela Roberts: "As pessoas são previsíveis, mas você me surpreendeu" (não vou contar detalhes).
Não devemos menosprezar essa fala e o que acontece depois, o apaixonar-se pela garota de programa. Gere sabe o que diz: as pessoas são mesmo previsíveis. Mas hoje a moda é dizer que são todas "únicas".

La Roberts encanta o fodão porque ela não é óbvia, e a mulher óbvia só quer fodões.

Graças a ela, ele rompe o ciclo da desconfiança causada pela obviedade das mulheres, e graças a ele, ela se cansa de ser puta, porque a puta não é uma mulher de verdade.
Os homens sentem que as mulheres querem deles apenas sucesso (em todos os sentidos). Mas hoje virou moda dizer que isso não é verdade. Ficou pior porque continua sendo verdade, mas, quando o cara sente isso, ele deve se sentir um machista porque sabe disso.

O homem quer uma mulher para quem ele não tenha que ser o sr. Grey, mas a mulher não perdoa um homem fraco. A garota de programa perdoa porque "só" quer dinheiro.
A fraqueza masculina aniquila o desejo da mulher. Mas, como essa mulher ideal não existe (assim como o sr. Grey), o ideal acaba ficando colado ao corpo irreal da namorada "paga".

Mesmo sabendo que sr. Grey (um fodão) não existe, as mulheres não suportam homens que não se pareçam com ele, e esta é a verdade suprema de "Cinquenta Tons".

Por fim: uma amiga minha, psicóloga, me disse que muitos dos seus pacientes vêm ao consultório falar de como suas mães (fálicas) destroem seus pais (fracos).
São essas mulheres fálicas, segundo ela, que à noite gemem de solidão sonhando com o sr. Grey.

Óbvio?

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

domingo, 29 de setembro de 2013

LOCKE, HOBBES E UMA NAÇÃO LIVRE


A humanidade pode viver em harmonia em uma sociedade livre? Ambos os filósofos John Locke e Thomas Hobbes tratam disso de maneira a iluminar a busca do estabelecimento de uma nação livre.

O filósofo britânico do Iluminismo John Locke apresente uma visão da humanidade em seu estado natural como livre, igualitária e indisposta a prejudicar a outrem por meio da força, fraude ou outros meios. Quando me recordo dos encontros com outros acadêmicos libertários e intelectuais acomodados nos anos 1960 para especular sobre a “natureza do homem”, a maior parte deles visualiza o homem nos termos propostos por John Locke, e vislumbra uma sociedade livre nos termos do estado natural de John Locke. Raramente alguém menciona o filósofo Thomas Hobbes, e sua visão do homem como egoísta, predatório e explorador.

Tais classes de homens só são adaptáveis nas sociedades autoritárias capazes de restringir o apetite, a ambição e busca pelo poder de um homem em detrimento do outro. A maioria dos libertários da década de 1960 – de empresários a jovens pensadores do pós-guerra – veem a perspectiva hobbesiana do homem e uma sociedade libertária livre como incompatíveis. John Locke, por outro lado, apresente uma visão do homem totalmente compatível com uma sociedade libertária livre.
O Estado De Natureza de John Locke

“Todos os homens estão naturalmente em… um estado de perfeita liberdade para ordenar suas ações e dispor de suas posses e pessoas como julgam correto, dentro do limite da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem... ‘Ele’ não tem liberdade para destruir a si próprio, ou qualquer outra criatura de sua posse... sendo todos iguais e independentes, ninguém pode prejudicar a outrem no que tange a sua vida, saúde, liberdade ou posses (propriedades) (Locke, Segundo Tratado sobre o Governo Civil).

Esse “estado de natureza” é uma utopia alcançável para mim e outros membros da geração libertária dos anos 1960. Muitos libertários acreditam que, se os indivíduos que compartilham esse sonho utópico se isolassem em uma sociedade libertária livre, eles podem viver nesse “estado natural” livre para sempre. O próprio John Locke desacredita esse sonho utópico.

Locke estado de natureza requer constante vigilância contra aqueles que violam esta liberdade perfeita, e requer que cada homem restrinja ações inapropriadas de todos os outros homens.


[Todos] os homens podem ser proibidos de invadir os direitos de outrem e de machucar a outrem, e [essa] lei da natureza... a qual assegura a paz e a preservação de toda a espécie humana... é... colocada nas mãos de todo o homem, de forma que todo o individuo tem o direito de punir os transgressores daquela lei a tal ponto que poderá evitar sua violação (Locke, Segundo Tratado sobre o Governo Civil).
Os homens sacrificam a liberdade natural em prol da segurança civil

Locke acredita que é impossível para os homens permanecer nesse estado natural de liberdade. Essa utopia natural é despedaçada pela constatação de que cada individuo não pode proteger sua liberdade e tampouco punir os transgressores por contra própria. Assustado por essa constatação, os homens assumem um compromisso que os vincula a uma sociedade civil, onde cada um submete-se à vontade do Estado e perde o controle sobre a sua vida e sua propriedade em favor das necessidades e demandas do bem comum. A humanidade sacrifica sua liberdade por uma sociedade onde impera a regra da maioria, de característica menos livre, defendida, atualmente, pelos políticos conservadores e democráticos.

A maioria dos libertários da geração dos anos 1960 argumentam em favor de um ou outro ponto. Ou os homens permanecem em um estado natural livre de transgressões uns contra os outros, ou, quando da ocorrência de transgressões, optam por uma sociedade civil com governo limitado a poderes mínimos necessários para evita-las. Esses dois pontos de vista evoluem nas alternativas libertárias anarquistas e minarquistas populares no final dos anos 1960.
A visão hobbesiana emergente do homem

Nos anos noventa (1990), a visão de Locke sobre a natureza do homem e o estado natural utópico, além do governo limitado da sociedade civil obtinham apoio entre os libertários, mas um numero crescente de libertários veem o homem como mais agressivo e menos ‘bom’ em relação aos seus companheiros em comparação ao que Locke acreditava. Muitos libertários dos anos 1990 veem o homem muito mais nos termos de Hobbes do que de Locke.

Essa visão hobbesiana do homem vem à tona em recentes fóruns de discussões da FNF (http://freenation.org/). A discussão diz respeito à necessidade de regular as atividades internacionais das ONGs apoiadas pela Free Nation Foundation, evitando que elas prejudiquem ou usem a força ou fraude para aumentar sua capacidade de fortalecer seus interesses privados. Como um libertário da geração sessentista, eu não vejo necessidade de regular as organizações patrocinadas pela Free Nation dado que ela é composta, fundada e apoiada por pessoas que, individualmente, não irão prejudicar outra pessoa por meio da força, fraude ou qualquer outra forma, e quem, coletivamente, não usarão suas energias para iniciação da força ou fraude. Os indivíduos hobbesianos, por outro lado, podem estar dispostos a usar a força ou a fraude para alcançar satisfação pessoal, e podem estar dispostos a usar uma organização de caridade para utilizar tais atitudes excusas.

Os participantes do Fórum da Free Nation também discutem formas de limitar a propriedade (domínio) de armas nucleares dentro do território da Free Nation. Novamente, eu não vejo necessidade para tal discussão. Os indivíduos lockeanos não procuram prejudicar aos outros e não tem necessidade de tais armas, então a discussão é sujeita a debate se a visão de Locke da humanidade é aceita. Os indivíduos hobbesianos, por outro lado, podem buscar apropriar-se de tais armas para aumentar seu poder pessoal em relação a outros indivíduos, então a discussão torna-se, de uma hora para outra, significativa, assumindo a natureza do homem hobbesiana.

No final do Forum da FNF, eu comecei a questionei como as pessoas podem, ao mesmo tempo, assumir uma visão hobbesiana do ser humano e acreditar na possibilidade de uma sociedade libertária.

Se os libertários da década de 1990 optam pela visão hobbesiana do homem como egoísta, focado no poder e disposto a explorar outras pessoas para seu interesse próprio, essa visão do homem pode ser aplicada a um estado de natureza ou sociedade civil compatível com uma sociedade livre? É possível que esse homem hobbesiano viva em uma sociedade livre? O estado natural de Locke claramente apoia uma sociedade livre (enquanto sua sociedade civil pode não ser). Pode o estado natural de Hobbes ou a sociedade civil de Hobbes dar sustentação a uma sociedade livre?
Thomas Hobbes e o Estado De Natureza

Thomas Hobbes, no seu livro Leviatã, vê o homem como uma máquina operando na base de causa e efeito ou respondendo a estímulos. O homem procura alcançar um simples objetivo – a satisfação dos desejos humano. Esse apetite advém das sensações despertadas pelo mundo externo sobre nossos órgãos sensoriais. As visões, cheiros, toques e sons de coisas prazerosas atiçam esse apetite. O apetite dá lugar à vontade; a vontade precede a ação.

O homem age para criar e possuir coisas que a máquina humana “sente” que são boas. Alguma coisa é “boa” se satisfaz ao apetite. O apetite é definido por cada individuo independentemente, e a satisfação do apetite é uma questão pessoal. O apetite é egoísta, e o homem, esforçando-se para satisfazer tal apetite, também é egoísta. Cada indivíduo, egoisticamente, esforça-se para satisfazer seu próprio apetite, mesmo até o ponto de privar outro individuo de sua satisfação. O “Direito natural” / direito da natureza diz que cada homem está livre para usar seu próprio poder, como a sua vontade comandar, para preservar sua própria vida e exercer seu “direito a tudo, mesmo ao corpo de outrem”.

Cada indivíduo esforça-se para adquirir os meios de forma a obter coisas satisfatórias e prazerosas. Esses meios são resumidos através do termo “poder”. Hobbes percebe “uma inclinação geral de toda a humanidade, um desejo perpétuo e inquieto de poder por poder, que somente se extingue com a Morte”. A busca pelo poder não é por poder em si mesmo, mas pelo poder de conseguir obter coisas satisfatórias e prazerosas. O poder é um meio para se obter a satisfação.

Nessa busca egoísta por poder e busca para criação e posse de coisas prazerosas, todos os homens são praticamente iguais – iguais em sua posse de, pelo menos, algum poder para alcançar o sucesso, e iguais na sua posse de poder suficiente para negar o sucesso aos outros. Mesmo aqueles que acumulam grande quantidade de poder (incluindo aqueles que possuem um arsenal nuclear pessoal) devem competir com aqueles que tem pouco poder e, mais importante, aqueles com grande quantidade de poder são vulneráveis a aqueles que tem pouco. “o mais fraco tem poder suficiente para matar o mais forte, ou por meio de estratagemas secretos ou por meio de conspiração e alianças com outros”. Dessa forma, o “Direito natural ” leva a um estado de guerra no qual os homens, iguais na sua habilidade de alcançar seu próprio sucesso e habilidade para negar tal sucesso a outrem, destroem uns aos outros na sua busca para alcançar coisas prazerosas para si mesmos.

O “Estado de Natureza” é, assim, um estado no qual todos “os homens vivem sem outro tipo de segurança, além do que a sua própria força, e sua própria capacidade inventiva possibilitar. Em tais condições, não existe lugar para a indústria; porque o fruto disso é incerto... e (o homem vive) com medo continuo, e perigo de morte violenta; e a vida do homem é solitária, pobre, suja, bruta e curta”.

Contudo, o próprio Thomas Hobbes visualiza o homem evitando tal estado de caos natural e, ao invés disso, chegando a uma condição de sociedade civil. É possível que a sociedade civil possa claramente refletir uma sociedade libertária livre.
A sociedade civil de Hobbes se parece com o estado de naturaza de Locke

O mais forte de todos os apetites dos homens é o desejo pela vida e segurança; a mais forte das paixões dos homens é o medo da morte e danos. É esse apetite, ou paixão, que faz o homem renegar seu poder – seus meios pessoais para alcançar coisas prazerosas – e viver pacificamente com seus vizinhos (compatriotas).

“A lei natural” ou “a lei da razão”, surge das dificuldades que o homem encontra no estado de natureza. O homem percebe que querer “poder e mais poder” ameaça a sua própria vida, e percebe que a segurança pessoal é um pré-requisito para qualquer criação ou posse de coisas prazerosas e satisfatórias. A primeira “Lei Fundamental da Natureza” é procurar a paz e viver em paz, mas também estar preparado para se defender de qualquer pessoa que ataque a paz e contra aqueles que a pregam. Para Hobbes, a paz e a autodefesa caminham juntas. Hobbes vê a paz como a forma mais sublime de auto-defesa ou auto-preservação; defender a paz é meramente a defesa da forma mais sublime de auto-preservação.

A segunda “Lei Fundamental da Natureza” é que todo o homem deveria estar disposto a conceder tanta liberdade aos outros na sua busca por coisas prazerosas e satisfatórias quanto ele está disposto a exigir para si na sua própria busca por elas. O homem deveria somente procurar limitar a liberdade dos outros na medida que ele deseja que os outros limitem a sua. Em nenhum caso, entretanto, deveria o nível de liberdade ultrapassar um limite que ameaçasse a paz.

Hobbes cita diversos passos para se chegar a sua segunda lei da natureza. É possível interpretar essa segunda lei da natureza de forma a permitir a criação de uma sociedade libertária livre?

O estado de natureza é uma disputa entre indivíduos, cada qual buscando satisfação pessoal; essa disputa leva a um estado de conflitos e guerras. A função da razão leva o homem a ver tal conflito, e eventual guerra, como uma ameaça à sobrevivência de cada indivíduo. A primeira lei da natureza é busca a paz e viver em paz. A segunda lei da natureza implica que a disputa pela satisfação pessoal e a paz não são compatíveis. Para continuar essa disputa e manter a paz, tudo que é necessário é para que cada indivíduo conceda a todos os outros indivíduos liberdade suficiente para que cada indivíduo persiga seus desejos. Isso também significa que eles estão dispostos a restringir a liberdade dos outros somente na medida que cada individuo está disposto a ter sua própria liberdade restrita.

Hobbes também afirma que a sociedade civil criada por meio dessas duas leis deve ter consenso mutuo e a disposição de todas as pessoas inclusas. O consenso mutuo e a participação de todas as pessoas é obtida por meio da concessão de tal nível de liberdade como é desejado pela maioria dos indivíduos amantes da liberdade, e pela restrição da liberdade somente na medida desejada pelos indivíduos menos restritos. Qualquer coisa além disso irá falhar para alcançar o consenso mutuo e a total participação das pessoas inclusas na sociedade civil. Esse acordo, ou contrato social, tem caráter democrático. Nesse contrato, os indivíduos também estabelecem um poder soberano para assegurar que os indivíduos respeitem esse “pacto” perante os seus cidadãos. Assumindo que os indivíduos pactuantes são sinceros, e que o acordo é aceitável a todos de forma democrática, é provável que o acordo não será violado e também que não haverá necessidade premente do soberano legitimamente exercer seu poder sobre os homens.

Parece que, então, a extensão da liberdade em qualquer sociedade civil é determinada pelo valor que um individuo mais dá a sua própria liberdade, e a extensão do controle na sociedade é determinado pela vontade do individual que mais ama a liberdade ser controlado. Então, a sociedade civil é tão libertária e tão livre quanto for a quantidade de cidadãos amantes da liberdade que aderirem ao contrato social que a estabelece.
Implicações para um nação livre

As suposições hobbesianas – suposições relativas à natureza humana, o estado de natureza e sociedade civil – apoiam uma sociedade livre. Mesmo se o homem é egoísta, voltado ao prazer e disposto a entrar em conflito com outros para alcançar seus fins, uma sociedade civil composta de amantes da liberdade hobbesianos será tão livre quanto for desejado por eles próprios, e tão livre quanto a necessidade de proteger a paz segundo demandado por eles. A humanidade na sociedade civil hobbesiana pode ser tão livre quando aquela exposta no estado natural de Locke.

Segundo Locke, uma sociedade livre é normal à natureza humana; uma sociedade livre é perdida quando o homem se desvia de sua natureza e transgrida a liberdade de seu vizinho. As transgressões do estado natural do homem demandam o estabelecimento de uma sociedade menos livre.

Segundo Hobbes, a sociedade livre é uma escolha feita por pessoas egoístas buscando escapar do conflito de cada um contra o todo. Uma vez escolhida, a sociedade livre é perdida somente quando as pessoas que mais amam a liberdade na sociedade escolhem abandonar a liberdade, ou quando os indivíduos buscando coisas prazerosas ameaçam a paz e harmonia da sociedade. Uma sociedade livre é mantida, e uma alternativa autoritária evitada, quando o homem escolhe a liberdade como um dos seus objetivos, ou quando o homem está disposto a moderar seu apetite por meio do auto controle.

E possível, então, aceitar ambas as visões de Locke e Hobbes sobre a natureza do homem, e usar ambas as visões para afirmar que uma sociedade livre pode existir dentro de uma Nação Livre. Isso tem importantes implicações para aumentar o apelo do conceito de Nação Livre, incluindo aqueles que aceitam ou a visão de Locke ou a de Hobbes sobre a natureza do homem. 
Por Gordon Neal Diem Publicado: 27 Setembro 2013
Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Johnny Jonathan.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

REIFICAÇÃO

Há um autor que é constantemente criticado pelo que produziu, pela maneira como falou a respeito da sociedade capitalista: Karl Marx. Este autor trabalhou com o conceito de Reificação. Para ele esse conceito denuncia a transformação de uma ideia em uma coisa, além de caracterizar a transformação das relações sociais em coisas que podem ser negociadas. Essa relação mercantil entre as pessoas é tida por Marx como uma forma de alienação, entendendo por alienação a dificuldade de a pessoa pensar por ela mesma. Em outras palavras, reificar é pegar uma ideia e torná-la um produto, essa crítica está justamente na coisificação do ser humano. 

Partindo desse conceito de reificação, convido o leitor a pensar no atual modelo de vida em que muitos procuram ser um produto a ser comprado. Quando as moças se colocam em “panos novos”, vão às melhores casas de show e procuram pelos pretendentes com maior poder aquisitivo, elas estão reificando a si próprias. São pessoas que colocaram preço em si mesmas e se tornaram objetos de negócio, se colocam na vitrine e esperam a melhor oferta. Apenas para não ser unilateral, também se pode pensar no menino, que logo que possível compra roupas de marca, frequenta as melhores baladas, algumas vezes ao custo do salário do mês, sendo que todo o gasto com a aparência pode se reverter na “menina dos sonhos”, uma menina que se comprou com uma imagem irreal, sustentada a muito custo.

Não há crime em ser produto e se vender, assim como não há crime em escolher o melhor produto e comprar. A questão é que algumas pessoas se apresentam como produto e querem ser tratadas como gente. Se for vendido, é produto. O comprador também precisa ter em mente que como comprador deve honrar com seus compromissos: a menina comprada deve ser mantida. O menino que comprou tem obrigação de manter, se não tem para manter deve devolver ou repassar a alguém que possa manter. Duro? Não, muitas pessoas têm relação reificante onde se colocam como produto ou comprador. Em tempos atuais podemos perceber na TV, por exemplo, que, tanto produtos quanto compradores se espantam quando são colocados frente a si mesmos. O espanto está em perceber que já não são mais gente, são coisas que tem preço, não valor, mas preço sujeito a lei da oferta e da procura.

Mas, se a relação é boa, se comprador e produto se dão bem e entendem que é uma relação com prazo de validade? Sou eu que vou criticar, dizer que estão errados? Não! Devo apenas lembrar de que comprador (gente) e produto (gente) estão sujeitos ao mercado. Como filósofo digo apenas que Marx previa isso há muito tempo, previa que cedo ou tarde as ideias não seriam mais suficientes, pessoas se tornariam produtos vendáveis. Como lidar com isso? Caso tenha uma filha ou filho, você mesmo, pense um pouco em como está se comportando: como gente ou como produto? Algumas coisas fazem de você produto e lhe atribuem preço, outras características fazem de você gente e lhe dão valor.

Quando uma moça sai de casa para dançar, conhecer os meninos, namorar, e se posiciona diante dos meninos como gente, isso lhe dá valor. Quando a moça sai de casa para ir a uma festa para arrumar um bom partido, fica com quem tem mais ou pode lhe proporcionar o melhor, ela tem preço. O menino que gasta seu salário para ir na melhor balada e ficar com as meninas da classe X é comprador, tem preço. O menino que vai a uma festa de acordo com suas condições, conversa com as meninas, conhece e se aproxima de quem tem a ver com ele, esse tem valor. É apenas uma ilustração da diferenciação entre valor e preço, mas serve de reflexão. Pense se você está reificando a si mesmo como produto ou se dando valor. 

Rosemiro A. Sefstrom  Do site: www.filosofiaclinicasc.com.br 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

PRAZER EM CONHECER

Devem as sociedades ocidentais permitir o uso do véu em público por mulheres muçulmanas? Sazonalmente, a Europa confronta-se com essas perguntas. Sazonalmente, tenta responder a elas.

No Reino Unido, um juiz decretou que a mulher tem de remover o véu em tribunal no momento em que presta testemunho.

Na França, o ministro da Educação publicitou a sua "carta laicista", um documento obrigatório para todas as escolas públicas do país e onde se proíbe o uso ostensivo de "símbolos religiosos". Associações muçulmanas não gostaram e protestaram. Que dizer de tudo isso?

Oh Deus. A verdade, só a verdade, nada mais que a verdade: sempre que me cruzo na Europa com uma mulher de rosto coberto, eu estremeço um pouco. Amigos multiculturalistas tentam civilizar-me com odes gloriosas à liberdade religiosa e à tolerância cultural. Não consigo. O temor e o tremor acompanham-me sempre. Estarei doente?

O único médico que verdadeiramente respeito diz que não: Theodore Dalrymple, pseudónimo literário do psiquiatra Anthony Daniels, escreveu no "Daily Telegraph" um texto precioso sobre a matéria. Não necessariamente contra o uso do véu integral em público (também). Mas ao mostrar como as posições mais progressistas sobre a matéria são, na verdade, as mais reacionárias.

Comecemos pelo princípio: se o véu é uma expressão de religiosidade, não deve o Ocidente tolerar e respeitar a liberdade de culto das diversas seitas?

Dalrymple tem razão quando suspeita que a ocultação do rosto não tem necessariamente uma caução corânica a sustentá-la. Mas não vale a pena perder tempo com essas discussões bizantinas. Porque a questão é outra: mesmo que o véu fosse uma expressão de religiosidade, isso significaria necessariamente que a sociedade teria que a aceitar?

Eis a pergunta fundamental. Que exige uma resposta fundamental: nem todas as expressões de religiosidade devem ser aceites por uma sociedade secular. Dalrymple dá como exemplos as práticas religiosas de várias civilizações primitivas que seriam impensáveis na Europa do século 21.

Mas, com a devia vênia ao dr. Dalrymple, não é preciso recuar ao princípio dos tempos para entender que a liberdade religiosa também tem limites. Porque, se assim não fosse, mesmo um cristão de hoje poderia continuar a usar a Bíblia para justificar ações punitivas severas contra idólatras (Êxod. 22:20), contra blasfemos (Lev. 24:15-16), contra sacerdotes embriagados (Lev. 10:8-9) e até contra crianças rebeldes que não respeitam os seus pais (Deut. 21:18-21).

Nenhuma sociedade poderia sobreviver como espaço pluralista se aceitasse, em nome do seu pluralismo, todas as expressões de religiosidade nas suas formas mais literalistas.

Usar o véu por alegadas razões religiosas pode colidir, por exemplo, com a necessidade social de nos conhecermos e reconhecermos mutuamente. De sermos capazes de vislumbrar no rosto do outro certas expressões e intenções. E de construir, a partir daqui, um mínimo de comunicação e confiança. Uma mulher com o rosto tapado será sempre, por definição, um espectro e um estranho.

Abandonada a religião, o que sobra? Sobra, como defendem vários multiculturalistas, a velha liberdade individual de nos vestirmos como queremos. É uma boa premissa se ela for aplicada ao espaço privado: eu, por exemplo, tenho o hábito de andar pela casa em cuecas, o que por vezes gera certos embaraços quando aparecem visitas sem avisar.

Mas a minha liberdade não me permite, como observa Theodore Dalrymple, que eu saia para a rua nesses preparos. Muito menos quando esses preparos podem não ser uma escolha livre e pessoal.

Uma mulher usa o véu integral porque quer? Ou o uso do véu é uma imposição do macho familiar?

A doutrina, aqui, também se divide. Mas não é preciso entrar em novas discussões bizantinas sobre o assunto. Thedorore Dalrymple, uma vez mais, contribui para o debate com uma observação crucial: são sempre as mulheres que cobrem o rosto, não os homens. Será que esse pormenor não incomoda as consciências igualitárias, progressistas e até feministas do Ocidente?

Retorno ao início. Sempre que me cruzo na Europa com uma mulher de rosto coberto, eu estremeço um pouco. Problema meu? Admito. Mas também admito que onde os outros só veem liberdade e diferença, eu suspeito sempre de opressão e obscurantismo.

Por: João Pereira Coutinho Folha de SP

sábado, 21 de setembro de 2013

A ÉTICA RACIONAL E A INCONSISTÊNCIA DO RELATIVISMO

“É tão natural buscar a virtude e evitar o vício quanto buscar a saúde e evitar a doença.” (Lowes Dickinson)

Sexta-feira, fim de tarde. O leitor encara uma longa digressão sobre filosofia e ética? Então vamos lá. 

O tema é crucial nos tempos modernos, de relativismo moral exacerbado. O que se segue é uma resenha do livro O Homem Racional, de Henry B. Veatch.

É ou não é possível para os homens definir objetivamente um padrão de valores éticos, ou seja, uma arte adequada de como viver? No mundo moderno, o relativismo ético, i.e., a crença de que não é viável a definição desses princípios éticos, tem dominado o debate intelectual.

Inserido nesse ambiente hostil à ideia de que o homem pode determinar um padrão de valores, o neoaristotélico Henry B. Veatch escreveu, em 1962, seu excelente livro O Homem Racional, onde sustenta inequivocamente “que é possível para os homens saberem o que é certo e o que é errado”.

Um dos pontos mais comuns que surge em defesa do relativismo ético diz respeito à quantidade de padrões morais observados na história humana. Se tantos padrões surgiram ao longo do tempo, como seria possível afirmar que há algum padrão correto?

Mas, como Veatch lembra, “o mero fato da diversidade em padrões morais humanos não exclui a possibilidade de pelo menos alguns desses padrões serem corretos e outros incorretos”. Ele faz uma analogia com a quantidade de visões diferentes sobre a astronomia, desde os antigos babilônios, passando pelos chineses da dinastia Ming, a era ptolomaica da Europa medieval e chegando à astronomia do universo einsteiniano dos dias atuais. Mesmo assim, ninguém concluiria que não há base factual para uma verdadeira ciência da física ou da astronomia.

Em resumo, “o mero fato da diversidade em opinião moral e ética não é suficiente para provar a impossibilidade em princípio de conhecimento moral e ético: o mundo inteiro poderia estar errado e um único indivíduo poderia estar certo”.

Para quem duvida disso, acostumado ao argumentum ad populum, poderia pensar num caso hipotético onde todos no mundo, menos um indivíduo, acham que um adulto sedento por sexo que resolve estuprar uma menina de tenra idade está agindo de forma ética. Não importa quantos loucos achem isso, a idéia é absurda e sempre será. Um mundo onde a maioria é formada por psicopatas é um mundo de psicopatas.

Voltando às conseqüências da destruição relativista da ética, deve-se ter em mente que se todas as normas e padrões de valor morais são relativos e, portanto, arbitrários, “segue-se que nenhum conjunto de valores é superior a nenhum outro: são todos igualmente bons, ou igualmente sem valor, como quer que se prefira expressá-lo”.

Visto por este prisma, tanto faz o vício ou a virtude, a honestidade ou a mentira, a embriaguez ou a sobriedade. Na verdade, nem mesmo faria sentido falar em virtude. Não haveria mais critério objetivo algum para julgar um comportamento qualquer. O ato de salvar uma criança em afogamento seria igual ao ato de se regozijar enquanto a criança se afoga em sua frente. Ambos seriam ações “apenas diferentes” para o relativista ético.

Veatch usa como exemplo para expor as inconsistências do relativismo o livro Patterns of Culture, da antropóloga americana Ruth Benedict. O livro é um apoio a uma tese de total relativismo ético, já que para a autora, diferentes culturas humanas, com seus padrões amplamente variados, devem ser encaradas como “viajando por estradas diferentes, em busca de fins diferentes, e esses fins e esses meios em uma sociedade não podem ser julgados em termos dos de uma outra sociedade, porque, essencialmente, eles são incomensuráveis”.

Mas logo de cara surge um problema insolúvel para a autora: com base em qual critério objetivo a relativista concluiu que a pluralidade de fins e meios, ausente de qualquer julgamento ético, é uma postura desejável? Se os valores são “apenas diferentes”, então um povo poderia ter como valor supremo a conquista e o extermínio de outros povos, abominando a própria idéia de tolerância.

Quando alguém diz que não devemos julgar as diferentes culturas, isso mesmo já não seria uma escolha ética? Claro que sim, mas tal contradição gritante parece nunca ter incomodado muito os relativistas. Eles seguem suspendendo qualquer julgamento, quando não julgando e condenando justamente aquelas mais avançadas e tolerantes, a que pertencem.

O relativismo ético exacerbado abre as porteiras para todo tipo de atrocidade. Um empolgado relativista foi Benito Mussolini, o líder fascista italiano. Em 1921, eis as palavras dele sobre o assunto: “Se relativismo significa desprezo por categorias fixas e homens que pretendem ser os portadores de uma verdade objetiva e imortal…, então não há nada mais relativista do que as atitudes e a atividade do fascismo… Do fato de que todas as ideologias são de igual valor, de que todas as ideologias são meras ficções, o relativista moderno infere que todos têm o direito de criar para si mesmos sua própria ideologia e tentar impô-la com toda a energia de que são capazes”.

Mussolini estava apenas sendo coerente com o relativismo, e todos os relativistas deveriam aceitar o que foi dito pelo ditador. Afinal, se não há padrão ético possível de se conhecer objetivamente, então qualquer coisa vale da mesma forma, até o fascismo ou o comunismo.

Não deixa de ser curioso ver os relativistas atacando sempre a cultura ocidental, especialmente os “egoístas” americanos. Ao partirem para esse julgamento de valor, estão automaticamente jogando seu próprio relativismo no lixo. Um relativista consciente de tais contradições é apenas um hipócrita.

Para cada indivíduo o relativismo ético poderá significar algo diferente, e todos teriam o mesmo valor. O libertino rebelde, o conservador, o conformado com as normas da própria sociedade, o que prega a maior tolerância com as diversidades ou aquele que deseja a mais implacável intolerância e a imposição arbitrária de sua vontade sobre os demais, seriam todos adeptos de comportamentos igualmente válidos para um relativista.

Para a professora Benedict se manter coerente ao seu relativismo, ela não poderia defender a tolerância, que por si só já representa a escolha de um valor ético. Esse valor seria estritamente relativo à formação cultural particular que foi a dela própria, e não deveria ser usado para avaliar outras culturas. Como já fica claro, “o relativismo ético em qualquer forma é uma posição radicalmente inconsistente e totalmente indefensável de se tentar manter em filosofia”.

Agir é escolher, e escolher é manifestar alguma preferência, fazer algum juízo de valor a respeito de uma linha de ação ser melhor ou pior que outra. Escolher a inação ou passividade diante dos valores da comunidade também envolve essa mesma escolha de valores. O relativista cultural tolerante escolhe esse valor como preferível à intolerância. O autoritário que deseja impor seus valores também escolhe esse curso como o melhor. O jovem libertino que abraça o relativismo para jogar fora todos os padrões morais e normas de conduta também faz a escolha desse valor.

E mesmo o cético cínico, que resolve seguir a multidão e apenas obedecer aos padrões do grupo, como se qualquer um fosse igual, no fundo está escolhendo esse determinado valor em vez de outros. Veatch conclui que “o raciocínio do relativista resulta em não mais do que um gritante non sequitur: ‘Uma vez que nenhuma linha de ação é realmente melhor ou superior com relação a qualquer outra, concluo que a melhor linha de ação para eu seguir seria assim e assim’”.

O objetivo até aqui foi apenas deixar evidente que a postura filosófica do relativismo ético é incoerente e insustentável. Surge automaticamente a seguinte questão: qual deve ser então o critério para a escolha de padrões morais?

Seguindo o dictum aristotélico, Veatch acredita que o ponto de partida para definirmos o bem de qualquer coisa é “simplesmente aquilo em cuja direção ela é naturalmente organizada em seu desenvolvimento”. Devemos descobrir, através de nossa experiência humana comum, quais as capacidades e potencialidades das coisas, quais “os fins ou objetivos rumo aos quais elas são naturalmente orientadas em seu crescimento e desenvolvimento natural”.

No caso dos homens, dotados de inteligência, pode-se presumir que seus fins apropriados diferem bastante daqueles das plantas ou dos animais. Os homens contam com o propósito racional para atingir suas metas. Logo, apenas sobreviver e cumprir as funções vegetativas não basta para os homens. A perfeição natural do homem “envolve o exercício daqueles poderes e capacidades que são distintamente humanos, isto é, a inteligência e o entendimento racional”.

Isso parece bastante evidente mesmo para aqueles que tentam negar esse fato. Se alguém tivesse que escolher entre ser um animal satisfeito ou um ser humano com angústias, dificilmente escolheria realmente viver como o animal. O que se perderia é a capacidade de entendimento das coisas, mesmo que limitada. Era isso que John Stuart Mill tinha em mente quando escreveu: “É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um suíno satisfeito; melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito”.

Em casos extremos de necessidade e desespero, é verdade que propostas como essa foram aceitas, como no nazismo ou comunismo, onde os seres humanos praticamente abdicaram de suas capacidades racionais para delegar responsabilidade e confiar seu futuro aos outros. Mas, de um modo geral, “homem nenhum em seus sentidos preferiria a existência de uma vaca contente, por mais bem-alimentada e bem-tratada que seja, à existência de um ser humano com pelo menos algum entendimento do que está acontecendo”.

Mesmo nesses casos extremos, vale lembrar que era preciso tentar fazer as vítimas acreditarem que estavam na luz, enquanto viviam na escuridão, controladas de fora. Isso confirma o julgamento de Aristóteles sobre o valor supremo para o homem de ser esclarecido, de saber o que se passa, de ter uma vida inteligente e examinada. Muitos podem se enganar, mas não costumam abrir mão da crença de que entendem parcialmente os acontecimentos.

Mas apenas a inteligência não basta. Poucos poderiam negar que Stalin ou Hitler foram homens inteligentes, no sentido de colocar os meios adequados em prática, de acordo com seus vários fins. No entanto, quem ousaria dizer que levaram vidas inteligentes, no sentido socrático de busca do autoconhecimento? Eles adotaram meios para atingir seus fins, como poder, ganância, vingança, mas não para a meta de “conhecer a si mesmo”.

Se a inteligência é usada como instrumento para outros fins, e não para a própria inteligência, isso não pode ser descrito como algo sensato. Como Veatch explica, “a questão é que meios não são fins, e confundir aqueles com esses é apenas tolice e estupidez”. A própria riqueza é um bom exemplo dessa tolice, já que, usada como um meio pode possibilitar mais conforto para seu dono, mas, encarada como o próprio fim em si, nunca é um objetivo inteligente. Quem diria que o Tio Patinhas era feliz e levava uma vida inteligente e examinada?

Pensemos nos casos de honra e reputação, o reconhecimento alheio, em suma. Alguém realmente acha que é inteligente buscar reconhecimento por si próprio? Não parece fazer sentido. O reconhecimento não é um fim, mas uma marca ou sinal do fim. O fim é nosso próprio valor, nossa dignidade, através da realização de alguma coisa importante. Com certeza é algo tolo buscar um reconhecimento por alguma coisa imerecida, falsa.

Pessoas que trocam a dignidade e o valor próprio pelos aplausos de terceiros não podem levar uma vida inteligente e examinada. Seria uma vida totalmente falsa, de aparências. A vida inteligente é aquela onde o indivíduo não usa seu conhecimento e inteligência como meros meios para a realização de fins irracionais, “mas antes para prescrever e determinar os próprios fins”. Não basta ter um QI elevado ou ter erudição; viver inteligentemente requer o conhecimento que é relevante para a sua vida como ser humano.

“A vida boa ou a vida inteligente”, resume Veatch, “acaba por ser nada além da vida feliz”. Mas uma vida genuinamente feliz, diferente do falso contente. Afinal, estar contente ou feliz envolve estar contente por alguma coisa. A pergunta passa a ser: em que tipo de coisa um dado indivíduo encontra satisfação? A resposta para essa pergunta é o que faz toda a diferença.

A arte de viver, chamada ética, ensina o homem como viver de um modo caracteristicamente humano, i.e., “sábia e inteligentemente, não sendo guiado por caprichos ou paixão, não por mera convenção social ou autoridade externa, mas pela luz da própria verdade como esta ilumina seu entendimento e assim serve como um farol para iluminar o caminho em cada decisão sua”.

As diferentes paixões podem dominar as escolhas de um indivíduo e afastá-lo de uma vida inteligente. A inquietação de espírito, amargura e ressentimento, imprudência e inveja, todos esses sentimentos indicam impulsos passageiros que levam um homem a fazer coisas que ele mesmo reconhece terem sido estúpidas e insensatas depois. Viver inteligentemente, portanto, envolve “ver as coisas como elas são e ver a si mesmo como se é, em meio a todas as confusões e deturpações devidas às suas próprias paixões, predileções e preconceitos”.

Isso não quer dizer, de forma alguma, que ter emoções é incompatível com viver de forma inteligente. Sem emoções o homem seria apenas um pedaço de carne. O importante é que o homem fique satisfeito ou incomodado, chateado ou atemorizado, desanimado ou empolgado, contanto que o objeto de seu sentimento ou emoção seja autêntico, que faça sentido despertar tais reações.

O enorme sofrimento oriundo da perda de um ente querido é compreensível e totalmente compatível com uma vida examinada. O mesmo já não ocorre quando o sucesso do vizinho desperta um sentimento incontrolável de revolta ou inveja, ou quando alguma superstição irracional desperta um medo exagerado. Os homens devem ter a indispensável habilidade para lidar de forma adequada com seus sentimentos.

Veatch resume: “O homem virtuoso é aquele que sabe como utilizar e controlar suas próprias emoções e desejos”. A inteligência e o raciocínio humanos terão como função “fornecer um necessário corretivo dos juízos muitas vezes equivocados implícitos em tantas de nossas emoções”. E é importante destacar que não basta meramente saber o que se precisa fazer como ser humano; além disso, há que fazê-lo.

Em outras palavras, conhecer as virtudes não é suficiente; devemos praticá-las. Nós somos aquilo que repetidamente fazemos. A excelência, portanto, não é um ato, mas um hábito. A sabedoria é o conhecimento do que fazer; a habilidade é saber como fazer; e a virtude é fazer.

A questão que surge é: como definir essas virtudes, se a humanidade possui uma variedade incrível de condições, costumes, hábitos e circunstâncias? Eis como Veatch rebate esse dilema: “É verdade que, como as condições de vida variam de uma época para outra, de região para região, ou de uma cultura para outra, os critérios de valentia, digamos, ou de honestidade, ou de estupidez hão de variar consideravelmente. Mas a distinção entre valentia e covardia, honestidade e desonestidade, sabedoria e insensatez será não obstante reconhecida e mantida quase universalmente”.

As exigências da excelência humana são discerníveis na vida humana onde quer que ela possa ser encontrada. A evidência apresentada por Veatch está na seguinte pergunta: De outro modo, como poderíamos ler história e literatura não meramente com apreciação estética, mas com uma apreciação de sua relevância para nossas vidas? Os romances de diferentes épocas, culturas e povos despertam um julgamento praticamente universal no que tange às virtudes e vícios.

Podemos identificar e separar o joio do trigo, o corajoso do covarde, o íntegro do pérfido, o sábio do tolo. E se podemos fazer isso, então devemos reconhecer que os “fracassos humanos devem-se não ao fato de que não sabemos o que devíamos fazer, mas antes ao fato de que não escolhemos agir sobre nosso conhecimento”.

Afirmar o contrário, alegando que a virtude é uma questão de conhecimento e o vício, de ignorância, significa matar o livre-arbítrio, tornar todos os homens inimputáveis, ninguém sendo considerado responsável por ser como é. É evidente que ninguém pretende negar as diferentes circunstâncias envolvidas nas escolhas. Para determinada pessoa, dependendo do ambiente em que cresceu, pode ser infinitamente mais difícil fazer as escolhas certas. Mas, em última instância, sempre caberá ao indivíduo fazer essas escolhas, mudar o rumo das coisas, escolher o caminho da virtude.

Somos responsáveis pelas nossas escolhas na vida. “Entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha”, disse Viktor Frankl, mesmo sendo torturado por nazistas. Quem nega essa responsabilidade individual, optando por algum tipo de determinismo, não consegue evitar uma gritante incoerência: ele mesmo não poderia ter concluído racionalmente nada sobre o determinismo, nem teria mérito algum em escolher essa teoria como válida, já que ela seria completamente determinada fora de seu alcance ou compreensão. O determinista precisa reconhecer que ele próprio não passa de uma marionete reagindo irracionalmente aos estímulos vindos de fora. Uma postura no mínimo absurda.

Assim, Veatch diz: “A questão relevante é sempre, primeiro, se as circunstâncias foram de molde a deixar alguma escolha e, segundo, se, admitindo-se que ele tinha de fato uma certa escolha, ele fez a escolha que se esperaria de um homem razoável, ou um homem moralmente bom, fizesse nessas circunstâncias”. Claro que não devemos ter a pretensão da certeza absoluta sobre essas escolhas, pois a onisciência não faz parte da natureza humana. Somos seres falíveis, e nossa própria razão descobre esse dado de nossa natureza.

No entanto, “a ética do homem racional envolve como seu imperativo básico a simples injunção de ser racional, de viver inteligentemente, de exercer as virtudes intelectuais e morais”. Muitos olham para seres humanos afastados da sociedade para buscar uma suposta natureza humana. Mas por que o “homem natural” deveria ser o menino-lobo, ou o garoto selvagem que nunca teve contato com a sociedade civilizada? Por que ignorar que a própria civilização é fruto da natureza humana? Ignorar isso seria excluir qualquer coisa que “os seres humanos possam ter vindo a ser como resultado do exercício de sua inteligência e em virtude de seus próprios planos, propósitos e desígnios”.

O assunto é complexo demais para ser esgotado em um ensaio apenas, que já está longo demais. Provavelmente os argumentos expostos suscitam muitas dúvidas não respondidas. O mais importante, em minha opinião, é deixar claro que o relativismo ético, no sentido de ser impossível definir o certo e o errado, é uma postura filosófica insustentável, e normalmente utilizada por aqueles que desejam defender o errado ou se eximir de responsabilidades.

Alguém diria que não é possível saber quem, entre um Sócrates e um Hitler, levou uma vida mais ética? O ser humano é um animal racional, e essa razão deve ser usada para descobrir sua própria natureza e, por conseguinte, o que seria uma vida inteligente como ser racional. Espero ao menos ter conseguido mostrar que isso é viável, com base nos argumentos aristotélicos abordados por Veatch.

O homem não deve viver guiado por paixões irracionais, movido por impulsos momentâneos sem uma devida reflexão. A vida humana, aquela que vale a pena ser vivida, é a vida examinada, a vida inteligente. Os homens têm capacidade para tanto. Mas, antes, é preciso escolher ser homem! Por: Rodrigo Constantino

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O OCIDENTE ACREDITA EM SI MESMO?

O declínio da economia é um reflexo do declínio da liberdade e da nossa crença naqueles valores que engendraram liberdade.

No final do livro Da Alvorada à Decadência, Jacques Barzun nota que a cultura popular do nosso tempo não “sofreu de inércia”. Ela está sempre se movendo, escreveu Barzun, “de acordo com a sua categoria...”. É uma cultura guiada pela “paralisia em um domínio” e “incompetência em muitos”. A ciência e a tecnologia têm continuado a avançar enquanto a arte e a literatura padecem de um completo declínio. Muitos observadores relutam em usar a palavra “decadência” para descrever o que tem nos acontecido desde meados do último século. Tal relutância, disse Barzun, é até natural. Contudo, se olharmos pela perspectiva econômica da cultura, considerando a esfera dos negócios, produção, comércio e mercado, encontraremos algumas tendências preocupantes, dado que na esfera econômica podemos rastrear objetivamente um cenário de estagnação.

A economia é parte de uma cultura maior. Quando a decadência econômica aparece, os problemas econômicos não estão muito longe. Não é estranho então que as taxas de crescimento econômico na América e na Europa tenderam a diminuir no último século. Muitas evoluções paralelas podem ser citadas como causas parciais – ou corolários – da desaceleração econômica. Barzun, subscrevendo um analista ‘anônimo’, afirmou que “Após um tempo – por volta de um século ou um pouco mais – a mente ocidental foi atacada por uma praga: era o tédio”.

Tratando do tema, Diana West caracterizou o corolário essencial desse tédio no livro The Death of the Grown-Up: How America’s Arrested Development Is Bringing Down Western Civilization [NT.: A morte do adulto: Como a infantilização americana está destruindo a civilização ocidental, tradução livre]. Segundo West, “O mundo das sensações engloba tanto adultos quanto crianças. E assim que passamos a ignorar os limites que outrora definiram a esfera da infância tradicional, também ignoramos o que uma vez regulou os padrões médios da vida adulta. Tais limites – estabelecidos há muito tempo por mandamentos religiosos, por leis e por convenções sociais de autodomínio – se esvaeceram maciçamente das cortes e da cultura no final da década de 1960”. Eu seu último livro, American Betrayal: The Secret Assault on Our Nation’s Character [NT.: Traição Americana: O ataque secreto às características da nossa nação, tradução livre] analisa mais a fundo as causas da nossa degeneração cultural. Em uma parte do livro ela diz: “fazendo o caminho de volta, chegamos à pergunta básica que representa o fim da linha: Por quê? Por que todas essas coisas começaram a acontecer em primeiro lugar? A resposta comum [...] que se chega é: Perdemos nossa convicção cultural. Não acreditamos em nós mesmos, nos nossos valores ou qualquer outra coisa”. West está dizendo que não acreditamos da mesma forma que outrora, como no cristianismo ou no livre mercado ou na América. E o que pode ser mais danoso a uma economia baseada no livre mercado que esse súbito colapso de cnfiança?

“A questão então passa a ser”, escreveu West, “E se essa perda de convicção cultural for o resultado de uma progressão inevitável da moralidade tradicional rumo ao relativismo cultural? E se houvesse, de fato, algum culpado ... por trás da espiral de eventos .... E se a 'morte dos adultos' resultante for, na verdade, ... um assassinato?” West considera essa uma “conclusão meio extravagante”, mas ela não é mais extravagante que a afirmação do economista austríaco Ludwig von Mises quando ele diz que “a história da civilização ocidental é o registro da incessante luta pela liberdade”. Isto é dizer que é uma luta pela liberdade contra aquelas forças que procuram restringir a atividade econômica humana.

O economista Wilhelm Röpke uma vez observou que nos períodos de genuíno esclarecimento e liberdade foi necessária a existência de uma grande classe média (i.e., a burguesia). Uma grande classe média não poderia existir sem um mercado relativamente livre. É desse mercado que a classe média tirou sua riqueza e seu desejo de avançar na causa da liberdade. Assim, a verdadeira classe média, no fundo do seu coração, foi pela Grécia contra a Pérsia, por Demóstenes contra Filipe, por Brutos e contra César, pela América contra o Rei George, pela OTAN contra o Pacto de Varsóvia, etc. É nessa mesma classe média que encontramos Paulo de Tarso, fabricante de tendas, Pedro, o pescador e Cristo, o carpinteiro. Esses homens são o oposto dos homens fortes da história – estes últimos foram os perseguidores da liberdade. César, Napoleão e Hitler eram perseguidores de algo no extremo oposto do espectro deles. Quando Mises escreveu que “a história da civilização ocidental é o registro da incessante luta pela liberdade” podemos mapear o surgimento e a queda dessa liberdade como o surgimento e a queda da própria civilização. É, ao mesmo tempo, o surgimento e a queda da classe média e do livre mercado, pois todas essas coisas estão interconectadas. Em meados do século XX, disse Mises, “poucas pessoas puderam prever o sobrepujante impulso que todas as ideias anti-libertárias estavam destinadas a ter em tão pouco tempo”. Essas ideias anti-mercado, diz ele, estão camufladas como o “cumprimento e a consumação das próprias ideias de independência e liberdade. Elas vêm disfarçadas de socialismo, comunismo e planejamento”.

Na introdução ao livro Moral Foundations of Civil Society [NT.: Fundações morais da sociedade civil] de Röpke, William F. Campbell escreveu que a civilização europeia é melhor definida “como um movimento de resistência contra a sedução do oriente”. Campbell observou que “a busca do homem por conforto e segurança sempre o torna vulnerável à tentação totalitária”. De acordo com Campbell, precisamos ter em conta o extremo perigo ao qual estamos expostos atualmente, pois assim como os romanos caíram, nóstambém estamos na beira do abismo. Roma foi destruída, escreveu Campbell, “por conta de uma infecção interna e não por conta da invasão dos bárbaros. Sua guinada para o coletivismo e para uma vida de inseto [...] foi o que caracterizou a era que se seguiu após Augusto. O gosto pelas luxúrias, novidades e o culto do colossal corromperam os lares e as famílias. A liberdade foi colocada de lado”.

As inter-relações entre cultura, religião, moralidade, auto-disciplina e liberdade são inegáveis. Como Röpke explicou, “O elemento cristão [da nossa herança] foi [...] sujeito a um processo contínuo de secularização até que finalmente, o poder da fé começou a enfraquecer, conforme primeiro conscientemente e depois inconscientemente floresceram os conceitos secularizados de racionalismo, progresso, liberdade e humanidade...”. Não encontramos evidência disso em todo lugar. Permitimos que nossa herança caducasse. A religião do Ocidente, junto do legado da antiguidade pagã, fez com que encontrássemos a liberdade. Mises explicou: “A ideia de liberdade é e sempre foi peculiar ao Ocidente”. A era do capitalismo, disse, “aboliu todos os vestígios de escravidão e servidão. Pôs um fim às punições cruéis e reduziu a pena por crimes cometidos pelo mínimo indispensável para desencorajar os infratores. Mandou embora a tortura...”.

Com efeito, o leitor deve entender que o declínio da economia não é um mero problema administrativo. Não é um problema para ser solucionado pela intervenção governamental. O declínio da economia é um reflexo do declínio da liberdade e da nossa crença naqueles valores que engendraram liberdade (i.e. os valores ocidentais). Se nessa conjuntura, qualquer um pensar que estamos prestes a entrar em uma fase de prosperidade sem precedentes, deixando a crise econômica para trás, então que nos mostre que os valores ocidentais estão sendo revividos. Mostre que as forças da tirania estão recuando. Mostre que o Ocidente, mais uma vez, acredita em si mesmo.

POR JEFFREY NYQUIST Publicado no Financial Sense. Tradução: Leonildo Trombela Júnior

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

AS DIFICULDADES DE EDUCAR

Muitos adultos têm se angustiado para educar seus filhos, ou melhor, para saber o melhor caminho a tomar na prática educativa. Fui interpelada por uma mãe confusa frente a tantas orientações diferentes, e muitas vezes contraditórias, a respeito da educação dos filhos. "Uma hora é para elogiar, outra hora o elogio prejudica; há quem diga que é preciso dizer não com muita firmeza, e há os que afirmam que os pais não devem ser autoritários. Tem também a vida escolar: é bom ou não os pais se envolverem? Afinal, como devemos agir?"


Ao ouvir a reclamação dessa mãe, dei toda razão a ela. Vivemos um momento de produção incessante do conhecimento, em todas as áreas, e de difusão instantânea de informações que, por sinal, consumimos vorazmente.

Tomemos como exemplo a medicina. Se quisermos cuidar bem de nossa saúde atendendo a todas as informações médicas a que temos acesso, nos veremos em maus lençóis. O colesterol prejudica o sistema cardiovascular ou não? Devemos -ou não- tomar medicamento para controlar tal índice? Ingerir glúten é ou não prejudicial? E a lactose? Usei esses dois exemplos apenas porque li nos últimos dias reportagens e artigos, totalmente contraditórios entre si, a respeito desses assuntos. Mas a lista é enorme.

A mesma coisa acontece com a educação dos filhos que, hoje, é um dos assuntos que sempre aparece nas mídias. Temos informações de todos os tipos sobre esse tema porque o conhecimento não é neutro; é produzido por nós, que temos valores e ideologias. Sabemos também que tudo que é escrito pode ser lido de diferentes maneiras. Além disso, há também o conhecimento que perde o seu valor científico ao ser transformado em regras, em receitas, dogmas ou bordões.

Exemplo: "Elogiar a criança colabora para que ela construa uma boa autoimagem de si". Caro leitor, deve ter sido bem difícil para a criança sobreviver a esse longo período de elogios constantes. Para nossa sorte, elas reagiram. Vi uma cena inesquecível nesse sentido. Um garoto de cinco anos teve seu trabalho com tintas elogiado pela professora. "Você gostou?" perguntou ele novamente. Frente à resposta afirmativa e entusiasmada da professora, ele mandou: "Que mau gosto!".

Ah! E não podemos nos esquecer das pressões que os pais sofrem de movimentos sociais que têm como base a defesa de alguns preceitos: alimentação, consumo etc. Os pais que, por algum motivo, não conseguem se encaixar nas premissas desses movimentos culpam-se e, portanto, perdem a potência no seu exercício pessoal da maternidade e paternidade.

Qual a saída? Saber que o que conduz a educação familiar são as tradições de cada família, os valores priorizados, as virtudes consideradas valiosas e, principalmente, a afetividade envolvida entre os integrantes do grupo. Não a afetividade melosa de incontáveis declarações de amor ao filho, e sim a amorosidade de introduzi-lo na vida como ela é, de dar banhos de realidade no filho de acordo com a idade que ele tem.

O maior desafio dos pais frente a tantas correntes educacionais e pressões sociais talvez seja o de conseguir ficar conectado com as informações que vêm do conhecimento, ou seja, externas, e, ao mesmo tempo, preservar a cultura do grupo familiar, essa panelinha que não deve nem pode se tornar uma microssociedade anônima.

Fazer escolhas seguindo argumentos pessoais e familiares e honrá-las; agir com bom-senso, coerência e coragem para rever posições; não ter medo de errar porque nós, pais, erraremos sempre, agindo assim ou assado: esses são alguns pontos que podem ajudar os pais em sua -cada vez mais- árdua tarefa educativa. 

Por: Rosely Sayão Folha de SP