segunda-feira, 23 de setembro de 2013

PRAZER EM CONHECER

Devem as sociedades ocidentais permitir o uso do véu em público por mulheres muçulmanas? Sazonalmente, a Europa confronta-se com essas perguntas. Sazonalmente, tenta responder a elas.

No Reino Unido, um juiz decretou que a mulher tem de remover o véu em tribunal no momento em que presta testemunho.

Na França, o ministro da Educação publicitou a sua "carta laicista", um documento obrigatório para todas as escolas públicas do país e onde se proíbe o uso ostensivo de "símbolos religiosos". Associações muçulmanas não gostaram e protestaram. Que dizer de tudo isso?

Oh Deus. A verdade, só a verdade, nada mais que a verdade: sempre que me cruzo na Europa com uma mulher de rosto coberto, eu estremeço um pouco. Amigos multiculturalistas tentam civilizar-me com odes gloriosas à liberdade religiosa e à tolerância cultural. Não consigo. O temor e o tremor acompanham-me sempre. Estarei doente?

O único médico que verdadeiramente respeito diz que não: Theodore Dalrymple, pseudónimo literário do psiquiatra Anthony Daniels, escreveu no "Daily Telegraph" um texto precioso sobre a matéria. Não necessariamente contra o uso do véu integral em público (também). Mas ao mostrar como as posições mais progressistas sobre a matéria são, na verdade, as mais reacionárias.

Comecemos pelo princípio: se o véu é uma expressão de religiosidade, não deve o Ocidente tolerar e respeitar a liberdade de culto das diversas seitas?

Dalrymple tem razão quando suspeita que a ocultação do rosto não tem necessariamente uma caução corânica a sustentá-la. Mas não vale a pena perder tempo com essas discussões bizantinas. Porque a questão é outra: mesmo que o véu fosse uma expressão de religiosidade, isso significaria necessariamente que a sociedade teria que a aceitar?

Eis a pergunta fundamental. Que exige uma resposta fundamental: nem todas as expressões de religiosidade devem ser aceites por uma sociedade secular. Dalrymple dá como exemplos as práticas religiosas de várias civilizações primitivas que seriam impensáveis na Europa do século 21.

Mas, com a devia vênia ao dr. Dalrymple, não é preciso recuar ao princípio dos tempos para entender que a liberdade religiosa também tem limites. Porque, se assim não fosse, mesmo um cristão de hoje poderia continuar a usar a Bíblia para justificar ações punitivas severas contra idólatras (Êxod. 22:20), contra blasfemos (Lev. 24:15-16), contra sacerdotes embriagados (Lev. 10:8-9) e até contra crianças rebeldes que não respeitam os seus pais (Deut. 21:18-21).

Nenhuma sociedade poderia sobreviver como espaço pluralista se aceitasse, em nome do seu pluralismo, todas as expressões de religiosidade nas suas formas mais literalistas.

Usar o véu por alegadas razões religiosas pode colidir, por exemplo, com a necessidade social de nos conhecermos e reconhecermos mutuamente. De sermos capazes de vislumbrar no rosto do outro certas expressões e intenções. E de construir, a partir daqui, um mínimo de comunicação e confiança. Uma mulher com o rosto tapado será sempre, por definição, um espectro e um estranho.

Abandonada a religião, o que sobra? Sobra, como defendem vários multiculturalistas, a velha liberdade individual de nos vestirmos como queremos. É uma boa premissa se ela for aplicada ao espaço privado: eu, por exemplo, tenho o hábito de andar pela casa em cuecas, o que por vezes gera certos embaraços quando aparecem visitas sem avisar.

Mas a minha liberdade não me permite, como observa Theodore Dalrymple, que eu saia para a rua nesses preparos. Muito menos quando esses preparos podem não ser uma escolha livre e pessoal.

Uma mulher usa o véu integral porque quer? Ou o uso do véu é uma imposição do macho familiar?

A doutrina, aqui, também se divide. Mas não é preciso entrar em novas discussões bizantinas sobre o assunto. Thedorore Dalrymple, uma vez mais, contribui para o debate com uma observação crucial: são sempre as mulheres que cobrem o rosto, não os homens. Será que esse pormenor não incomoda as consciências igualitárias, progressistas e até feministas do Ocidente?

Retorno ao início. Sempre que me cruzo na Europa com uma mulher de rosto coberto, eu estremeço um pouco. Problema meu? Admito. Mas também admito que onde os outros só veem liberdade e diferença, eu suspeito sempre de opressão e obscurantismo.

Por: João Pereira Coutinho Folha de SP

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