domingo, 30 de novembro de 2014

VIVER FORA DA CAIXA!

Uma das perguntas comumente ouvidas num consultório é: “Doutor, isso é normal?” A pessoa que faz esta pergunta o faz para que alguém, no caso o terapeuta, possa lhe dizer se ela está ou não dentro dos padrões. O padrão é uma medida associada ao que está ao se redor, por exemplo, hoje é um padrão pagar pelo trabalho de alguém, quem não o faz está cometendo um crime, salvo as exceções para este exemplo. Entretanto, há pouco mais de cem anos o padrão era comprar alguém que fazia os trabalhos de uma casa, ou seja, era padrão ter escravos em casa. O padrão é portanto uma medida que toma por base o que tem ao seu redor. O padrão serve muito bem para questões práticas, para calcular o valor de um carro, para saber se o salário é adequado, para ver se o espaço de moradia está de acordo com a região onde se mora. Mas medir uma pessoa aquilo que há ao seu redor é a pior forma de se fazer isso.


Diferente de um carro, o salário e até mesmo a moradia, uma pessoa apresenta estruturas totalmente diferentes, únicas. Padronizar o ser humano é como pegar os galhos das árvores de uma floresta e querer que todos sejam iguais. Pior do que isso, fazer com que aqueles que não estão dentro do desejado sejam cortados e jogados fora como algo sem valor. Assim como as árvores, cada ser humano tem uma forma única de se estruturar, e essa estrutura tem diferentes formas de se manifestar. Muitas pessoas, por medo, por necessidade ou por conveniência, se mostram como os outros querem que elas sejam vistas. Assim é para a menina que aos seus quinze anos reúne os amigos e faz um lindo baile de debutantes, quando esse padrão nada tem a ver com ela. Infelizmente para a sociedade ela sente que precisa se homogeneizar, ter uma aparência que se espera dela, namorar um namorado que dizem ser o melhor, enfim, ser normal.

A estrutura de uma pessoa, assim como de uma casa ou as raízes de uma árvore têm um formato, suportam um peso diferente. Para uns a base é sua emoção, tudo o que vivem é suportado pelas emoções, são as alegrias, tristezas, ódios, amores, que as fazem suportar a vida ou viver. Em outras pessoas é a razão a base que sustenta toda essa estrutura: suas contas, porquês e lógicas aguentam o prédio que está em cima. Acima do alicerce há toda uma construção que se apóia nesta base, sendo que, para algumas pessoas, a estrutura padronizada é pesada demais para sua base. Pode-se citar o exemplo do filme “Na natureza selvagem”, onde o rapaz tinha a base de sua estrutura na sua identidade. A vida padronizada se fez tão pesada que a base não agüentou e ele perdeu a referência até de si mesmo, ou seja, não sabia mais quem ele era.

Há um exército de seres humanos tratados como máquinas que não suportam a estrutura padronizada que está sobre suas bases. Cada um ao longo da vida deveria construir sua estrutura de acordo com a base que tem, isso seria o recomendável. Em busca da normalidade, algumas pessoas constroem pirâmides que nada têm a ver consigo, mas com o que o padrão recomenda. Padrão este que tem cor certa, roupa certa, música certa, casamento certo, filhos certos, enfim, que acaba por normatizar via Inmetro um ser único. Não há como pregar normalidade quando o próprio padrão está mais próximo da doença.

O seu jeito de ser, as bases sobre as quais você construiu a sua vida indicam como pode ser a estrutura que será edificada. O padrão pode ser um guia, pode ser uma medida de comparação, mas não uma medida de construção. Você é uma pessoa completamente diferente de qualquer outra, isso porque a sua estrutura é única e por mais que se tente encaixotá-la, ela sempre mostrará que não é possível viver na caixa.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

VIVER NÃO É PRECISO

Há alguns dias conversava com uma pessoa quando ela citou-me Fernando Pessoa, dizendo uma de suas célebres frases: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. Por muito tempo me detive no poema e pensava que o autor dizia, como fala na frase logo abaixo do poema que viver não é necessário, mas criar. No entanto, neste dia, a pessoa com quem conversava se referiu a um outro sentido para a mesma frase. O que mais achei interessante foi que não foi necessário mudar se quer uma palavra para darmos um sentido totalmente novo a frase. Apenas trocarmos o preciso de necessidade, ou seja, aquilo que precisamos para alguma coisa por objeto de uso para preciso de precisão. Assim, o preciso que era necessidade se torna o preciso de acerto, metodologia que garante um resultado. 

Depois dessa troca de significado da palavra começamos a divagar a respeito da precisão da navegação e da vida. Para isso perguntei-lhe se a vida não era precisa, ou seja, exata. Ao que me respondeu com um grande sorriso: “Não, como poderia, a vida é cheia de inexatidões, voltas e revoltas!” No entanto a mesma pessoa que se referia a vida de uma maneira tão aberta, livre era a mesma que pensava e vivia muitas verdades lineares.

Junto com ela muitas outras pessoas pensam na vida como um lugar de liberdade e escolhas, mas na realidade fazem da vida uma encenação onde palco e roteiro já estão definidos. Algumas vezes ouvi o discurso que se segue como testemunho de um roteiro: “Com tantos anos iniciei minha vida escolar, portanto, quando eu tiver com tantos anos devo estar na faculdade e assim, com tantos anos devo ter o mestrado. Bom, não posso esquecer da vida pessoal. Quando estiver na faculdade vou arrumar uma namorada (o) e provavelmente logo depois da formatura faremos o casamento. Dois anos de casado teremos filhos e organizaremos o planejamento de como será nossa velhice...”

Não há problema nenhum em planejar, orientar a própria vida ou até mesmo esquadrinhar as possibilidades de futuro, mas tornar-se refém de um planejamento... para a navegação a precisão é o que garante o destino correto. Mas, quanto a nossa vida, temos como garantir que nossa bússola aponta para a direção certa? Não temos nenhuma dúvida? Não há a possibilidade de errarmos no caminho? Não são poucas as pessoas que nos dias atuais sofrem porque não são o que planejaram ser, mas nunca pensaram se não são o que deveriam ser. Será que não estamos no lugar e na hora em que deveríamos estar?

A precisão matemática é importante para lidarmos com números, proporções, economia, geografia, mas na vida...
Por: Rosemiro A. Sefstrom  Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

VOCÊ DEVERIA MUDAR!

No consultório de um filósofo de vez em quando aparecem pessoas que querem mudar, achando que o seu modo de viver é errado. Estas pessoas entendem que a maneira como vivem ou agem diante das situações da vida está errada e por isso precisam mudar. No entanto, não raras vezes, depois que o filósofo colhe os dados da historicidade da pessoa descobre que não há nada de errado. Na verdade o que acontece é que o pai, a mãe, o tio, um amigo, uma pessoa que a encontrou em um curso de final de semana, lhe disse que ela estava equivocada no seu jeito de ser. Ao ouvir a sentença do outro sobre seu jeito de ser, a pessoa entende que seria ideal mudar, pois ela não quer estar errada se há um jeito certo.

Em Filosofia Clínica, um dos princípios básicos é a singularidade, ou seja, para um filósofo clínico cada pessoa é única. Por isso, ao receber uma pessoa em seu consultório ele nada mais sabe do que aquilo que se apresenta em sua frente, se a pessoa é alta, baixa, magra, gorda, loira, morena, enfim. Esse entendimento faz com que o terapeuta filosófico olhe para cada pessoa como um fenômeno único, que jamais se repetirá, ou seja, é singular. Com base nesse princípio, quando ele ouve uma pessoa, entende que seu modo de ser é assim por uma série de razões, que muitas vezes a própria razão desconhece.

Mas, para muitas pessoas acostumadas a verem a novela das sete, os filmes de Hollywod, A Fazenda, Big Brother, para estas existe um padrão social do qual todos são reféns e têm de se adaptar. Por isso escutam-se muitas vezes cursos e livros anunciando, por exemplo, “receita para uma mulher poderosa”, onde existe uma lista de predicados necessários a uma mulher para fazê-la poderosa. No entanto estes textos deixam de lado a singularidade, levam em conta um padrão, um modelo estereotipado de mulher poderosa. Imagine você, o que seria uma mulher poderosa: pode ser que seja uma mulher alta, curvilínea, imponente, sedutora, falante, expressiva, será que essa é uma mulher poderosa? Pode ser que seja apenas uma fachada escondendo uma mulher tímida que sofre muito pode ter de fazer de conta ser alguém que não é.

De acordo com a história de vida de cada pessoa pode-se ver que algumas mulheres são tímidas porque aprenderam que homens gostam de mulheres mais recatadas. E, do seu jeito aprenderam a lidar com sua timidez, dominam o lar, o marido e os filhos, mesmo com a timidez. É básico em Filosofia Clínica e até mesmo para a vida entender que, em cada contexto características peculiares podem ou não ser bem vindas. Imagine que essa mulher tímida, pouco expressiva, quase invisível se torne uma mulher poderosa, faça um curso que mude a sua vida. Agora ela é uma mulher poderosa, mas uma péssima mãe, deixa o marido de lado, perde os valores do casamento e assim por diante. O poder que ela acumulou de um lado, fez dela uma mulher fraca de outro, o que era para ser uma qualidade acabou por se mostrar seu mais novo defeito.

Mas, não se pode dizer que não se deve mudar, claro que se pode mudar, mas ao fazer isso, cuidar para que você se torne cada vez mais você mesmo. Para isso invista naquilo que é seu, que faz parte de você, deixe de pensar que o jeito do outro é o correto ou melhor. Quando alguém lhe recomendar que você deve mudar, antes de mais nada, veja se essa pessoa é um bom exemplo naquilo que diz. Mais ainda, veja se o seu estilo de vida combinaria com o dela ou se a sua história de vida é igual a dela. Provavelmente cada um tem sua história, seu jeito de ser, sua singularidade e se precisa mudar, não é para ser um marionete social.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

DIFICULDADE

Para os que não são professores começo contextualizando o artigo de hoje. A cada final de bimestre, trimestre ou semestre os professores se reúnem para falar do desempenho dos alunos e avaliar possíveis estratégias para os próximos períodos. Muitos alunos, têm notas baixas. Alguns por falta de interesse, outros por excesso de conversa, outros porque não entregam os trabalhos, mas há uma parcela que são aqueles que se diz que “têm dificuldade”. Mas o que seria ter dificuldade? Ao consultar o dicionário há diversas definições para o termo Dificuldade, dentre os significados pode-se destacar: O que impede a realização de alguma coisa; aquilo que estorva ou atrapalha o desenvolvimento de algo; impedimento ou obstáculo: preciso ultrapassar aquela dificuldade. Então, de acordo com a definição do dicionário dificuldade é o que impede a realização de algo, um dia de chuva, por exemplo, pode ser uma dificuldade para secar a roupa.

Em Filosofia Clínica quando uma pessoa relata sua historicidade e usa termos como: não posso; não consigo; não é possível; não dá; estou impedido e afins, está denunciando uma Armadilha Conceitual. Uma Armadilha Conceitual pode ser definida como algo que tem a capacidade de impedir, travar, bloquear o movimento existencial em determinada direção. Então, quando alguém diz que tem dificuldade, está dizendo que há algo que trava ou dificulta a caminhada em determinada direção. Quanto a um aluno de Ensino Médio do ensino regular, qual ou quais poderiam ser as dificuldades que ele teria para tirar boas notas? É importante ter em conta que não é possível que eu atribua uma Armadilha Conceitual ao outro, ou seja, não tenho como dizer que o outro tem dificuldade, somente ele pode fazê-lo.

As dificuldades que existem somente podem ser anunciadas pela pessoa que vive a dificuldade. Se um colega de trabalho demora para fazer um trabalho ou não está fazendo bem feito não se pode dizer que ele está com dificuldades, não consegue ou não tem capacidade. Isso porque o demorar ou não fazer bem feito pode ser a maneira como o colega de trabalho encontrou para protestar contra o seu gestor. O mesmo acontece com um aluno em sala de aula, tira notas baixas, mas qual será o real motivo para estas notas, onde estarão as dificuldades? Os que trabalham em sala de aula sabem que muitos alunos melhoram suas notas apenas quando recompensados pelos pais. Sabem também que alguns alunos somente estudam o que gostam. Outros ainda apenas tiram notas altas quando passam a gostar do professor.

Se alguém pode dizer que tem dificuldades para tirar boas notas é o próprio aluno, ele é quem pode dizer o que lhe impede ou torna mais árduo obter bons resultados. Esta é uma lição que dificilmente se vai aprender enquanto o outro for não for visto com um indivíduo. Ele não é um funcionário, não é um aluno, mas é o João, o José, o Marcos, a Rita, a Bruna, enfim, é uma pessoa que diz por si mesmo do que padece. A proposta que fica é de que aquele que percebe que o resultado está abaixo do esperado ou desejado que vá até a pessoa e converse com ela. Ao conversar mostre os resultados e veja o método que a pessoa está seguindo para chegar ao resultado. Em muitos casos o aluno não tem dificuldades, mas está estudando de maneira inadequada. O mesmo acontece com um funcionário que não segue o procedimento e faz sua atividade de forma incorreta. É ainda preciso estar atento, pois a “dificuldade” pode ser apenas uma forma de esconder o real problema. (http://www.dicio.com.br/dificuldade/, acesso: 10.10.2014)
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

terça-feira, 25 de novembro de 2014

ADULTO

Algumas pessoas deitaram-se aos dezessete anos e acordaram aos quarenta, cinquenta anos, olharam para si mesmas e não se reconheceram. Olham o espelho e não conseguem se identificar na mulher ou homem que se tornaram, olham a casa, os filhos e as responsabilidades e se entendem estranhas em meio a tudo isso. Olham para os filhos, sabem que são seus filhos, mas sentem-se incapazes de serem pais ou mães. Chegam ao trabalho, sobre a mesa repousa um crachá onde se lê “gerente”, mas não entendem como chegaram até a gerência! O estranhamento consigo mesmo se deu após uma visita na casa dos pais em que a mãe, uma senhorinha muito simpática anunciou à filha, já com seus quarenta e cinto anos: “Minha filha, quem diria que um dia você seria essa mulher forte, corajosa, mãe de dois filhos, gerente de uma empresa. Enfim, uma mulher adulta”.

Não foi intencional, mas a mãe colocou a filha diante do espelho, algo que até então ela não tinha feito. O interessante é que ao se ver, ela não se reconheceu como uma mulher com quarenta e cinco anos, mãe de dois filhos e gerente de uma empresa. O que ela vê dela mesma é aquela menina que terminou o ensino médio, a menina que recém começou o namoro, que queria ser advogada. O que aconteceu para que, ao ser colocada diante de si mesmo tivesse este estranhamento? Como que desde os dezessete até os quarenta e cinco anos não houve esse estranhamento? Ocorre que ao longo desses vinte e oito anos a menina apenas seguiu o curso das coisas. Pouco tempo depois de arrumar o namorado acabou por engravidar e o sonho de ser advogada foi abortado em detrimento ao filho que nasceu. Seu namoro com o que parecia ser o amor de sua vida durou o suficiente para ter mais um filho, exatamente dez anos.

Essa mulher de quarenta e cinco anos agora tem uma crise de identidade e idade, primeiro, porque ela não tem a idade que tem e depois porque não é quem a mãe descreveu. Diante desta crise vem parar na terapia, porque alguns dias depois de se reconhecer como uma menina de dezessete anos em um corpo de quarenta e cinco a mãe de dois filhos começa a se comportar como uma adolescente. Natural, o que ela reconhece dela mesma tem dezessete anos, mais nova que sua filha mais nova que tem dezoito. A filha estranha as novas roupas da mãe, principalmente o comportamento sexual da mãe, que agora namora um rapaz muito mais jovem, fez uma tatuagem de borboleta e agora fala gírias. Na vida profissional a situação fica interessante, ela volta a estudar, vai fazer direito, nada de estranho, vai retomar de onde parou. Mas e a vida adulta que ela tinha até dias atrás?

A grande dificuldade para esta mulher pode ser entrar num consenso entre a idade que ela voltou a ter, dezessete, e a idade que realmente tem, quarenta e cinco. Em Filosofia Clínica o que se faz para que esta pessoa consiga equacionar todos os elementos que entraram em movimento com os que já estavam em movimento chama-se atualização. A mãe de dois filhos pode buscar elementos da juventude dela que ela pode viver hoje, adaptando-os à realidade atual. Esta adaptação se faz necessária para que os elementos de sua adolescência possam compor com os elementos de sua vida adulta. A partir da história de vida desta mulher, o filósofo buscará os elementos da juventude e junto com ela irá adaptá-los a sua vida adulta. A questão não é deixar de viver aos quarenta coisas da juventude, mas de viver a juventude do jeito que é possível aos quarenta. Algumas pessoas não se tornam adultas, mas acordam um dia adultas e precisam equacionar o jovem que tem dentro de si com o adulto que precisam ser.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/



segunda-feira, 17 de novembro de 2014

APOSTA

Se você tivesse certeza de que iria perder, em qualquer tipo de jogo, apostaria? Uma aposta é o comportamento de colocar algo em jogo contra alguma ou algumas pessoas, na dependência de que algo aconteça. Quando esse algo acontecer tende a favorecer um dos apostadores em detrimento de outros. Assim, se você aposta cem reais que o resultado do jogo de seu time será de dois a zero contra o time do seu amigo, se o resultado for o que você previu, você é o ganhador e ele é o perdedor. No entanto, dificilmente alguém apostaria somente por apostar, provavelmente quem aposta espera ganhar. O problema do termo aposta é a falta de controle sobre os elementos pelos os quais se aposta, caso contrário, diz-se que o jogo está “viciado” ou que houve trapaça. Apostar é colocar-se diante de algo sobre o qual não se pode controlar e que pode ou não dar o resultado esperado.


Em alguns momentos da vida apostar pode ser necessário, como aquele jovem de vinte e poucos anos que recebe a proposta de se associar ao amigo e abrir uma pequena empresa. Um investimento pequeno de tempo e dinheiro. Ele pode ou não apostar no sucesso da ideia, mas tanto ele quanto o amigo controlam os fatores que determinam o sucesso ou o fracasso do negócio. Esse controle, ainda que seja precário, faz com que o que o rapaz fez não seja uma aposta, mas um investimento de risco. Por mais que ele tenha riscos, ele os conhece e pode se prevenir deles e inclusive sair do investimento quando lhe parecer oportuno. Numa aposta, depois de apostado, somente quando o resultado sair, até lá você está nas mãos da sorte.

Em outros departamentos da vida o investimento é diferente e apostar pode ser muito perigoso. Imagine que este mesmo jovem rapaz, que obteve sucesso em sua sociedade com o amigo, encontrou uma moça, uma menina desconhecida. Da mesma forma que fez em seu negócio, ele vai apostar no relacionamento com a moça, apostar ou investir? Assim como na sociedade com o amigo, o compromisso com o sucesso da organização deve ser mútuo, o negócio até pode fazer sucesso com o trabalho de apenas um, mas qual será o tamanho do investimento? No relacionamento que o rapaz tem com a moça não é muito diferente, tanto ele quanto ela estão investindo na relação. Pode dar certo com os investimentos de somente um dos dois, mas até quando será sustentável?

A diferença entre aposta e investimento é que na aposta existe algo que condiciona o ganho ou a perda. Além do que numa aposta somente um ou alguns ganham enquanto todos os outros perdem. Num investimento todos os envolvidos têm interesse no mesmo resultado, não há divisão entre ganhadores e perdedores. Outro elemento importante do investimento é que num investimento o resultado positivo faz de todos ganhadores. Retornando ao negócio e ao relacionamento do rapaz, se ele investir de forma responsável e com pessoas que queiram o mesmo que ele, suas chances de sucesso aumentam. Se, no entanto, ele investir com pessoas com ideias ou ideais diferentes das suas ou seus, o risco é grande de que ambos saiam perdendo.

Num negócio e num relacionamento cada um coloca algo não para perder ou ganhar, mas como forma de multiplicar. Se você coloca no seu investimento amor, carinho, sinceridade, tempo, dedicação e do outro lado a pessoa também investe elementos como amor, carinho, compreensão, as chances do investimento dar frutos são boas. Mas se há uma aposta, um coloca amor e o outro coloca segurança, ao fim do girar da roleta, quem ganhar leva os dois, o amor e a segurança.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

LÍDER DE DIREITO E LÍDER DE FATO

O termo Direito pode ser entendido de diversas formas. A definição mais comum pode ser encontrada na internet, citada como a palavra que deriva do latim directus que significa: “que segue regras pré-determinadas ou um dado preceito”. O Direito se divide em muitas áreas, e cada uma delas tenta ajustar as relações para que cada um cumpra o seu papel sem ferir ao outro. Em casos onde uma pessoa ou instituição vai além dos seus limites e acaba por ferir uma pessoa ou outra instituição, o Direito entra como mediador para reparar ou penalizar quem passou dos limites. O outro termo citado é Fato, o qual também tem muitas traduções e a depender do seu uso pode ser significado de modos diferentes. Fato é entendido como algo evidente, ou seja, que pode ser verificado na prática. Você está vivo, isto é Fato, pode ser verificado por saber que está lendo este artigo.

Depois de um bom tempo de pesquisa em Filosofia Clínica no ambiente organizacional, verifica-se que os líderes podem ser divididos em apenas dois tipos: os líderes de Direito e os líderes de Fato. Um líder de direito é aquele designado pela organização para desempenhar o papel de gestor de pessoas e processos em uma área específica da organização. A palavra direito quer dizer que cabe a ele organizar as pessoas de modo que cada uma cumpra o seu papel sem ferir o outro com quem trabalha. Um líder de direito é organizacionalmente instituído, recebe um salário diferenciado para exercer sua liderança, tem cor de uniforme diferente e crachá. O direito de liderar foi adquirido de acordo com os requisitos estabelecidos pela organização.

Diferente do líder de direito existem os líderes de fato, que são aqueles que naturalmente tomam o controle da situação e começam a gerir pessoas e processos. Este tipo de líder surge de diversas formas e por diversos motivos. O que se sabe é que eles têm a capacidade envolver as pessoas e direcioná-las criando nelas um espírito de coletividade. Diferente do líder de direito, o líder de fato não é organizacionalmente instituído, não recebe salário diferenciado, não tem cor de uniforme diferente, nem nome em crachá diferenciado. O fato de liderar foi conquistado de acordo com os requisitos necessários para agregar as pessoas em sua volta, requisitos estes que são diferentes para cada organização.

O melhor dos mundos é quando uma organização consegue ter um líder de Direito que também é líder de Fato. Um líder de fato é aquele que consegue impregnar nas pessoas que estão ao seu redor o seu estilo de vivenciar a organização. Assim, um líder de fato que tem como ponto forte a ligação com as pessoas, tende a formar uma equipe onde as pessoas são o ponto mais importante. Já um líder de fato que tem como ponto principal os resultados, formará uma equipe onde os resultados se sobrepõem ao restante das questões. A liderança exercida de fato é muito mais do que orientar as pessoas de acordo com os interesses da organização: trata-se da capacidade em fazer com que as pessoas que estão ao seu redor tenham o mesmo padrão de comportamento.

De forma grosseira um líder de fato consegue tracionar a Estrutura de Pensamento das pessoas com quem trabalha para que tenham, em linhas gerais, uma mesma estruturação. Essa estruturação formada a partir da Estrutura de Pensamento do líder em contato com as pessoas é o que chamamos de Estrutura de Pensamento Coletiva. Quando uma organização tem um líder de direito e as características do grupo abaixo desta liderança não correspondem ao seu “jeito de ser” é porque, provavelmente, existe um líder de fato que está direcionando as pessoas e formando a Estrutura de Pensamento do grupo.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

PARA COMPREENDER KANT

Kant escreveu em 1762: "Eu me veria a mim mesmo como mais inútil do que um simples trabalhador manual se não acreditasse que esta ocupação (a filosofia) pode acrescentar valor a todas as outras e ajudá-las a estabelecer os direitos da humanidade."

Homem de maturação lenta, aos trinta e oito anos ele descobria o que viria a ser a meta constante do resto da sua vida: "estabelecer os direitos da humanidade", demolir a autoridade da tradição e do hábito, criar a sociedade racional governada por um Estado racional educador de seres humanos racionais, prontos a agir sob o ditame de regras universais em vez de seguir seus instintos como os animais ou os padres como um camponês medieval.

Tudo o que ele fez desde o momento daquela declaração de princípios foi para servir a esse objetivo, ao qual mesmo os feitos filosóficos mais notáveis que ele realizou ao longo do caminho se subordinam como meios para um fim.

Ele acreditava que esse fim não somente era desejável, mas estava inscrito na própria evolução histórica da humanidade como uma meta final a que tudo tendia de maneira tortuosa e problemática, mas constante e irreversível. Quando Kant reconhece que os seres humanos podem falhar em atingir essa meta, ele deixa claro que nenhuma outra existe: assim, entre a sociedade racional kantiana e a barbárie," tertium non datur".

A obra filosófica de Kant, no seu conjunto e nas suas partes, se dirige invariavelmente à consecução de metas que afetarão toda a sociedade, toda a cultura, toda a política, a moral, a religião, o direito, a educação, as relações familiares, a vida humana, enfim, na sua totalidade.

Kant não foi, de maneira alguma, um pensador isolado, extramundano, desinteressado, envolvido em abstrações que só atraem um número insignificante de estudiosos especializados. Tanto quanto Platão, Lutero ou Karl Marx, ele foi um reformador da humanidade, um reformador do mundo. Foi isso o que ele quis ser, e foi isso o que ele se tornou. Nada do que ele escreveu e ensinou pode ser compreendido fora desse projeto grandioso – ou, se quiserem, megalômano.

O que pode encobrir essa realidade ao ponto de torná-la inapreensível são três fatores:

1 Na maior parte das suas obras, Kant faz uso de um vocabulário especial tão inusitado e de uma linguagem tão abstrusa, que parece empenhado antes em limitar o círculo dos seus leitores às dimensões de uma seita esotérica do que em influenciar o público maior.

2 Algumas partes especiais da sua filosofia são tão complexas, tão dificultosas e tão brilhantemente realizadas, que tendem a aparecer como monumentos isolados, remetendo a um discreto segundo plano os objetivos mais amplos a cujo serviço foram construídas.

3 Por isso mesmo, muitos estudiosos do kantismo, e entre eles alguns dos mais competentes, tenderam a descrever a estrutura do pensamento de Kant tomando esses monumentos como centros articuladores do conjunto, reduzindo tudo o mais à condição de opiniões periféricas ou mesmo a episódios de valor puramente histórico-biográfico.

Contra esses três fatores, resta o fato incontestável de que o próprio Kant proclamou repetidas vezes, até a extrema velhice, os mesmos objetivos gerais, constantes e finais que o inspiravam. Nenhuma interpretação engenhosa de uma filosofia deve obscurecer o modo como o próprio filósofo a compreendia.

É verdade que esses objetivos aparecem somente em escritos menores, e não nas “obras-primas” como a Crítica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo, mas o fato de que Kant continuasse a reiterá-los longo tempo depois da publicação dessas obras mostra que ele jamais perdeu de vista as metas que desejava alcançar, e que nem muito menos se deslumbrou com seus sucessos parciais ao ponto de permitir que eles, por si só , tomassem o lugar da ambição maior.

Bem ao contrário, se ele concedeu uma longa e concentrada atenção a determinados problemas específicos, não foi porque tivesse se desviado dessa ambição, mas porque entendeu que esta não poderia ser realizada no mundo histórico-social sem que esses problemas fossem resolvidos antes.

Quando, no empenho de submeter o destino humano ao império da Razão, ele se dedica ao exame crítico desta última e de suas limitações em vez de exaltar acriticamente as virtudes da potência racional, Kant mostra apenas que é um guerreiro sério, que não entra em combate sem ter avaliado meticulosamente as possibilidades e limites do equipamento bélico que carrega. E, quando restringe o alcance da razão em vez de estendê-lo até o infinito, não faz senão concentrar as forças do seu exército em vez de dispersá-las.

É isso precisamente o que o seu contemporâneo Napoleão Bonaparte aprenderá a fazer no campo de batalha.

De todos os reformadores do mundo, Kant foi talvez o mais sutil e engenhoso. Evitando dirigir-se à massa popular, restringindo o seu público aos intelectuais "high brow", salvou-se de ataques grosseiros que nunca faltaram a Lutero e a Marx e se impôs ao mundo com uma aura de respeitabilidade inatacável, como uma divindade misteriosa e distante.

Sobretudo, o fato de tratar os seus ideais não como verdades dogmáticas e sim como fontes de problemas, contradições e dificuldades sem fim, permitiu que sua influência se alastrasse para muito além de grupos de aderentes explícitos e se espalhasse anonimamente por toda parte, até adquirir aquilo que Antonio Gramsci sonhava obter para o Partido Comunista: "o poder onipresente e invisível de um imperativo categórico".
Por: Olavo de Carvalho é jornalista, ensaísta e professor de Filosofia

terça-feira, 28 de outubro de 2014

VOCÊ SABE LER?

Se parassem você pela rua e lhe perguntassem se você sabe ler, qual seria sua resposta? Provavelmente, pela leitura que está fazendo neste momento, seria de que sim, sabe ler. Mas se perguntássemos se você entende os signos que forma o significado do que você lê? Agora já ficou um pouquinho mais complicado, mas acredito que muitos ainda diriam que sim. Essa afirmação encontra fundamento no fato de que, quando lê o texto você o compreende, ou seja, entender o significado do conteúdo do texto. Mas se perguntasse se você saber ler símbolos, ou seja, a junção entre vários signos que formam um significado de caráter convencional? Estudando filósofos como Ferdinand de Saussure e Charles Sander Peirce e outros nos pegamos com alguns problemas de ordem do entendimento da linguagem.

Quando você lê um livro, você se pergunta se entendeu o que o autor quis dizer? Interessante, esta é a mesma pergunta que as professores de interpretação de texto fazem muitas vezes aos seus alunos. O interessante é que depois que cada aluno expõe sua idéia sobre o que o autor quis dizer a professora corrige e classifica em certos e errados. Mas se eu perguntasse a você o que quero dizer com a frase: “Amo acordar e sentir o cheiro do orvalho pela manhã”. Não passou pela sua cabeça que quero dizer exatamente isto, “amo acordar e sentir o cheiro do orvalho pela manhã”. Se eu pedir a você que interprete o que disse, o que quiseres interpretar estará correto, pois solicitei que unisse o seu conteúdo ao que eu disse. Não teria como dizer que está errado o que pensou a respeito do que disse, uma vez que é interpretação sua. Quantos problemas seriam resolvidos se simplesmente levássemos ao pé da letra o que está escrito.

Se me colocar na posição de quem tem de interpretar o que o autor escreveu, meu filho disse, minha mulher pintou, o jardineiro construiu, estou construindo um mundo de significados. Se olhar para sua esposa e ouvir o que ela diz talvez você entenda que ela está cansada, que precisa de ajuda, que quer mais sua presença. Não é preciso interpretar as notas ruins de seu filho na escola, basta perguntá-lo e, provavelmente, ele lhe responderá. É dispensável interpretar o que seu chefe quis dizer quando falou que seu trabalho precisa melhorar, basta fazer o que exatamente foi dito, melhorar.

Retomo a pergunta que fiz no início, você saber ler? Se você está escutando o que não foi dito, vendo o que não foi mostrado, percebendo o que não foi insinuado, provavelmente sua leitura está muito ruim. A abertura dos ouvidos, olhos, nariz, boca, dos poros para ouvir o outro é uma atitude de leitura nobre. Colocar-se diante do livro e ver o que ele disse é uma postura de quem valoriza as páginas de quem escreveu para dizer e não para ser interpretado.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/





sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A AMBIÇÃO FILOSÓFICA

O que caracteriza e distingue a filosofia no meio de tantos outros empreendimentos humanos é a peculiar sofisticação, riqueza e precisão dos meios intelectuais que ela põe a serviço do seu projeto.


Não existe filosofia modesta. Toda filosofia é uma intervenção de longo prazo e larga escala no mundo dos acontecimentos humanos. Enquanto os decretos dos governantes passam e se desfazem em pó no esquecimento, as filosofias permanecem ativas e influentes decorridos séculos ou milênios do falecimento dos seus criadores, afetando ou modelando o curso das discussões científicas, morais, políticas e religiosas. Revelam, nisso, uma força auto-revigorante quase miraculosa. Milhares de biografias de Napoleão e Júlio César não trariam de volta os seus impérios, mas às vezes basta um debate erudito ou um ensaio de reinterpretação para que uma filosofia que parecia esquecida ressurja das cinzas e, adornada ou não do prefixo “neo”, venha interferir na vida contemporânea como se tivesse sido publicada ontem.

Não imaginem que esse fenômeno se deva somenteao zelo de admiradores e discípulos tardios que, à revelia e sem a mínima participação de seus mestres e inspiradores mortos, não deixam que a chama se apague. Ao contrário, foram esses mestres e inspiradores mesmos que, concebendo metas de longo prazo e colocando a serviço delas as mais complexas e poderosas estratégias cognitivas, deixaram aberta ou fomentaram conscientemente a possibilidade de sucessivos renascimentos.

Em algumas filosofias a meta ambicionada é tão evidente que não precisa nem ser declarada. Ninguém pode duvidar de que Sto. Agostinho, Sto. Tomás ou Pascal sonhavam apenas em expandir o domínio hegemônico da Igreja Católica e converter, se possível, a humanidade inteira. Isso transparece em cada linha que escreveram. Os três divergem somente nas estratégias intelectuais com que planejam realizar esse objetivo, as quais escapam ao assunto deste artigo.

Em outros casos – Marx, por exemplo, ou Nietzsche --, o objetivo é tão enfaticamente reiterado que basta citar esses nomes para que venha imediatamente à memória do público a imagem da utopia socialista ou a do Super-Homem que emerge soberanamente livre no deserto do nada após a destruição de todos os valores.

Porém mais interessante é o caso daqueles filósofos que sussurram seus objetivos tão discretamente, quase em segredo, que estes podem passar despercebidos ou ser negligenciados durante décadas ou séculos por estudiosos que nada mais vêem nas obras deles senão a poderosa arquitetura dos meios, chegando a tomá-la como se fosse o fim.

A mais mínima hesitação do filósofo em colocar a declaração de fins bem visível no pórtico ou no topo da sua filosofia pode levar a esse resultado. Porque os fins, em si mesmos, são por assim dizer anteriores à filosofia e, determinando-lhe a forma de conjunto, não são por ela afetados exceto no que diz respeito aos seus meios de realização. Os fins de uma filosofia não são exclusivos dela: podem ser compartilhados por uma multidão de não-filósofos que talvez nem tenham o vigor intelectual necessário para compreendê-la. O exemplo mais didático, nesse sentido, é o já citado de Agostinho, Tomás e Pascal. Eles queriam expandir o cristianismo? Sim. É esse o objetivo que norteia todo o seu esforço filosófico? Sim. Mas quantos homens não queriam o mesmo sem ser filósofos?

O que caracteriza e distingue a filosofia no meio de tantos outros empreendimentos humanos é a peculiar sofisticação, riqueza e precisão dos meios intelectuais que ela põe a serviço do seu projeto. Enquanto outros pregam os fins e tentam realizá-los na prática ou morrem por eles no campo de batalha, o filósofo se empenha em remover os mais árduos obstáculos cognitivos que se interpõem entre a humanidade presente e a consecução desses fins, erguendo novos arcabouços intelectuais que a viabilizem. Esses obstáculos podem consistir de crenças do senso comum, erros de percepção ou de raciocínio, doutrinas religiosas, científicas ou mesmo filosóficas equivocadas, símbolos inadequados ou mal interpretados que bloqueiam a imaginação, fraquezas da psique humana etc. etc.

Josiah Royce distinguia, com razão, entre o “espírito” de uma filosofia e a sua “realização técnica” – o ideal inspirador e a forma acabada da sua cristalização em obra filosófica. Tão ampla é a esfera dos problemas envolvidos na “realização técnica”, tão árdua a tarefa de resolvê-los, tão complexo o equipamento intelectual que tem de ser usado (e às vezes criado) na sua construção, e não raro tão dificultosa a sua absorção pelo leitor, que, se não advertido quanto aos fins e ideais subjacentes, este pode prolongar o exame da maquinaria indefinidamente até o ponto de tomá-la como se ela fosse a finalidade de si mesma. Sem contar, é claro, o prazer vaidoso que o pedantismo erudito pode extrair do destrinchamento interminável de miudezas técnicas, em que as questões fundamentais são adiadas para o dia de são nunca em nome de uma aparência de “rigor”. Para piorar as coisas, muitos elementos da “realização técnica” têm mesmo um valor autônomo, que permite integrá-los em outros projetos filosóficos alheios ou hostis aos fins originários a que serviram. Não é preciso ser tomista nem marxista para tirar proveito de parcelas inteiras do tomismo ou do marxismo.

É claro, no fim das contas, que o desvio de foco se comete menos facilmente com os filósofos que declararam abertamente os seus fins, ou com aqueles onde estes são auto-evidentes, do que com os tipos ambíguos e escorregadios que, por medo do escândalo ou por aversão a polêmicas, preferiram ser mais discretos ou obscuros.

Cometem-se menos desatinos por fuga do essencial na interpretação de Marx, de Sto. Tomás de Aquino ou de Pascal que na de Maquiavel, Kant ou Descartes.
Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.