sábado, 8 de março de 2014

UMA ODE À CIVILIZAÇÃO CONTRA O GRITO DOS RESSENTIDOS


No filme “A menina que roubava livros”, há uma cena em que a personagem principal começa a recitar trechos de literatura, no caso um livro de H.G. Wells, em um abrigo em meio a um bombardeio aéreo durante a Segunda Guerra. A cena retrata bem o esforço individual de se preservar a beleza, a cultura e a própria civilização quando tudo em volta parece ruir. A própria beleza da menina já era um obstáculo a toda a feiura que os bárbaros nazistas espalhavam pelo mundo.

Uma cena semelhante se passa em “Titanic”, quando um quarteto segue tocando música clássica mesmo com o navio já afundando. É verdade que, aqui, a desgraça que se abateu sobre eles foi natural, causada por um iceberg, e não por seres humanos bárbaros. Mas a plasticidade da cena continua tocante: mesmo quando a morte certa está à espreita, há aqueles que conseguem manter vivo o último suspiro de civilização.

Esse é o tema de Our Culture, What’s Left of It, de Theodore Dalrymple: uma ode à civilização, uma tentativa de preservar a cultura em meio às ruínas, ainda que seja um esforço individual fadado ao fracasso. No livro, Dalrymple nos conta uma história bem similar a esta acima: um grupo de amigos realmente teria continuado a tocar música clássica, quartetos de Beethoven, mesmo quando os nazistas da Gestapo efetuavam prisões e eles poderiam ser os próximos alvos. Esse tipo de coisa ocorre na vida real.

Outro exemplo foi Myra Hess tocando Mozart na Galeria Nacional de Londres durante bombardeios nazistas. O ato era repleto de simbolismo, já que Hesse era judia e tocava um compositor austríaco, da mesma nacionalidade de Hitler, o autor dos bombardeios. Era a força do que há de melhor na civilização combatendo a barbárie, um jeito de desafiar os brutos.

O médico britânico, em vários ensaios, mostra como a civilização vem sendo atacada há décadas por gente que deliberadamente deseja destruir em vez de criar. É o grito dos ressentidos, que abominam o que há de mais belo no mundo. Após a tragédia da Segunda Guerra, Theodor Adorno chegou a declarar a morte da arte: não seria mais possível fazer poesia depois do Holocausto. Mas essa desistência seria fatal, seria a derrota final da civilização pela barbárie.

Várias obras magníficas foram criadas justamente em épocas de terror, de guerras, de desgraças. Vermeer, por exemplo, viveu durante a Guerra dos Trinta Anos, que dizimou boa parte da população alemã e instaurou o caos social na região, mas isso não o impediu de pintar lindos quadros, capturando momentos sublimes do cotidiano, como em “The Milkmade”, onde um simples derramar de leite se torna eternamente belo por seus pincéis.

Se Adorno tivesse decretado o final do prazer sexual ou da boa culinária, não seria levado tão a sério. Mas ao decretar a morte da arte, muitos aceitaram passivamente, pensando que a arte não é necessariamente o campo do belo. Estava inaugurada a época em que a arte seria o campo da feiura, do ataque ao belo, do “vale tudo”. Miró chegou a declarar abertamente que sua intenção era “assassinar a pintura”, rebelar-se contra todas as convenções.

Os revolucionários acreditam que nenhum tributo precisa ser prestado ao passado, aos gênios que nos antecederam, que ajudaram a criar aquilo que chamamos cultura. Podem fazer tabula rasa da civilização e começar do zero. Lenin, ícone desse senso de destruição, chegou a se negar os prazeres de escutar Beethoven porque isso o reconciliava com o mundo, uma fraqueza terrível em alguém que desejava bater com força no mundo todo, que acreditava no poder liberador da violência.

Os artistas pós-modernos passaram a ver a transgressão como desejável por si mesma. Quebrar tabus era louvável, independentemente de qual tabu fosse o alvo, de sua importância ou não para o mundo (o incesto, por exemplo, é um tabu). Oscar Wilde certa vez disse que não há algo como um livro imoral, e sim livros bem ou mal escritos. Se Hitler tivesse uma habilidade maior como escritor, devemos supor que Mein Kampf não seria imoral então?

Se quebrar tabus passa a ser o maior mérito da arte, então logo toda quebra de tabu se torna arte. Além disso, por que o privilégio de somente artistas poderem quebrar tabus em obras de “arte”? O tabu existe para todos, e logo muitos pensarão que também têm direito de ignorar os tabus não apenas simbolicamente, mas na realidade. Artistas são, para o bem e para o mal, formadores de opinião.

O niilismo estético é uma forma de destruição da civilização. Os artistas pós-modernos acreditam que não há padrão algum que não deva ser violado, o que em si se torna o novo padrão “artístico”. Como dizia Ortega y Gasset, esse é o começo da barbárie. Duchamp com seu penico, Damien Hirst com seus pedaços de animais em formol, quanto mais “ousado” contra tudo aquilo tradicional, melhor. A virtude está em chocar.

O homem autêntico moderno é aquele que rejeita todas as convenções sociais, que não encontra restrição alguma a seus apetites, ao livre exercício de suas vontades. Isso se aplica tanto à estética como à moral. É o relativismo como nova convenção social: só aquele que cospe em tudo que existe tem valor.

Uma combinação venenosa entre o pedantismo intelectual dos artistas esnobes e a admiração por tudo aquilo que é popular, como se a voz das massas fosse a voz de Deus, gerou um quadro de desprezo a toda arte nobre, vista como elitista e preconceituosa. A sua destruição deliberada é o tributo que os “intelectuais” prestam não exatamente ao proletário, mas àquilo que eles julgam ser o proletário. Precisam provar a pureza de seu sentimento ideológico com a estupidez de sua produção “artística”.

Nesse ambiente mental, os artistas são levados a produzir aquilo que é visualmente revoltante, chocante, para estar em sintonia com o mundo violento, injusto. Sem isso, o artista não consegue provar sua boa fé ideológica, teme ser visto como elitista, preconceituoso, reacionário. Tudo aquilo que é convencionalmente belo deve ser atacado, destruído.

Civilização, segundo Dalrymple, é a soma total daquelas atividades que permitem ao homem transcender a mera existência biológica e alcançar uma vida espiritual, mental, estética e material mais elevada. Restringir instintos básicos e apetites é fundamental nessa empreitada civilizatória. Fracassar nisso é liberar a besta dentro de nós, o que nos torna pior do que os animais, pois temos a capacidade de agir diferente, de forma mais refinada, civilizada.

A paixão pela destruição pode se alimentar de si mesma, em vez de ser também construtora, como acreditava o anarquista russo Bakunin. Uma vez que as forças destrutivas são liberadas, elas podem se tornar autônomas, sem propósito algum além da própria destruição. Destruir por destruir, algo que acaba arrastando uma legião de ressentidos. É um grito de angústia e desespero daqueles incapazes de apreciar o que existe de melhor no mundo.

Alguns dão vazão a este sentimento poderoso com máscaras no rosto e pedras nas mãos, outros com pincéis e canetas. A ignorância se revolta contra o conhecimento. O feio contra o belo. O inferior contra tudo aquilo que enxerga como superior, mais elevado. O próprio conceito de civilização precisa ser destruído ou relativizado: quem somos nós para saber o que é civilizado ou bárbaro? Civilização existe tanto quanto o monstro de Loch Ness ou o abominável Homem das Neves; um mito no qual apenas os ingênuos acreditam.

Ao mesmo tempo, todas as conquistas da civilização são tomadas como dadas, garantidas, como se sempre tivessem existido, e como se não corressem o menor risco de desaparecer. Nada precisa, então, ser preservado com nosso esforço, porque tudo vem de graça como um presente da Natureza. Infelizmente, parafraseando Burke, tudo que é necessário para o triunfo da barbárie é que os homens civilizados nada façam.

Vivemos, hoje, uma situação pior: os homens civilizados, em vez de nada fazer, têm ativamente colaborado com a destruição dos valores civilizados. Eles têm negado qualquer distinção entre o melhor e o pior, quase sempre preferindo o último. Eles têm rejeitado as grandes conquistas culturais em troca de diversões efêmeras e puro entretenimento vulgar. Eles têm tratado com estima qualquer sinal de comportamento depravado. Eles têm colaborado com o avanço da barbárie e a destruição da civilização. E vale lembrar que Roma não foi destruída em um só dia; foi obra de contínuos ataques, tanto de fora como de dentro.
Rodrigo Constantino Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/


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