terça-feira, 5 de novembro de 2013

DIÁRIO DA EUROPA

1.

São os objectos das vítimas que mais impressionam em Auschwitz. Entramos no campo, visitamos o "museu" e lá estão: atrás do vidro, uniformes, malas, sapatos, pentes, escovas de dentes etc.

Quando estive em Auschwitz - infeliz frase, esta: "quando estive em Auschwitz" - um dos turistas desmaiou à minha frente. Dizem que acontece várias vezes e normalmente naquela sala. Como se os objectos dos mortos transportassem ainda a evidência tangível dos crimes.

Nada que tenha impedido alguns mercenários de colocarem no eBay dezenas de itens do Holocausto. A começar por um daqueles uniformes que vemos nos filmes, à venda por US$ 18 mil (R$ 41 mil). A empresa desculpou-se pelo lapso, removeu a "memorabilia" do Holocausto e prometeu apertar a vigilância dos produtos que vão a leilão. Fez bem.
Mas, pessoalmente, a única dúvida que fica é saber que tipo de gente estaria disposta a dar R$ 41 mil pelo uniforme de um padeiro polonês assassinado na câmara de gás.

Tarados existem em todo o lado, sim. Mas o único motivo pelo qual lamento o cancelamento do leilão está na impossibilidade de sabermos, agora, quem gostaria de ter em casa, provavelmente para usar como pijama, o tipo de roupa que costuma fazer desmaiar os turistas que vão a Auschwitz.

2.
E para continuar no mesmo espírito: por que não usar mais vezes a guilhotina na execução de condenados à morte? A pergunta foi formulada recentemente por John Kruzel na "Slate". Faz todo o sentido.

Sou contra a pena de morte porque existem certos avanços morais e civilizacionais que não devem ser jogados pelo cano. John Kruzel também é contra.

Mas se os Estados Unidos têm experimentado dificuldades no acesso aos químicos que permitem a injecção letal, então a boa e velha lâmina do dr. Guillotin talvez fosse uma hipótese a considerar. E com vantagens. Três, escreve Kruzel. Subscrevo cada uma delas.

A primeira é que os órgãos dos executados poderiam ser usados em transplantes (o que não acontece nas execuções eléctricas ou químicas, que danificam irremediavelmente o organismo).

A segunda é que o método é barato, rápido e consta que indolor (pelo menos, não há nenhum histórico de queixas sobre o assunto).

E a terceira é que permitiria aos adeptos da causa a contemplação empírica do acto punitivo que defendem. Aliás, acrescento: se as decapitações fossem transmitidas pela tv, de preferência na hora do jantar, melhor ainda.

É fácil defender a pena de morte quando não sabemos o que isso realmente significa. A guilhotina seria pelo menos uma ajuda visual para quem sofre de certas formas de cegueira.

3.
Começou Novembro com o seu Dia de Finados. Os cemitérios portugueses recebem as famílias que ainda prestam homenagem aos falecidos. No Brasil presumo que seja igual.

Mas esse ano comprovei um fenómeno que se adensa ano após ano: são poucas as pessoas com menos de 40 anos nos cemitérios. Com menos de 30, uma absoluta raridade. O que significa tudo isso? Que Evelyn Waugh acertou com meio século de avanço.

No seu hilariante "The Loved One", o escritor inglês já tinha retratado uma sociedade que tudo faz para negar a morte e que até transforma os funerais em espectáculos "kitsch" que servem o mesmo propósito: apagar a inevitabilidade dolorosa do fim.

Hoje, dominados pela cultura da Saúde e da Juventude (as únicas divindades adoradas no mundo pós-cristão), não admira que os cemitérios se esvaziem ano após ano. Eles são a recordação tangível dessa doença chamada "mortalidade".

Desconfio até que, no futuro próximo, os defuntos passarão a ser despachados por mecanismos mais rápidos e higiénicos, como nas descargas dos vasos sanitários.

E os cemitérios serão como as ruínas pré-históricas de Stonehenge: simples resquícios de culturas primitivas como a nossa.

Por: João Pereira Coutinho Folha de SP

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