terça-feira, 15 de outubro de 2013

VINICIUS DE MORAES: AS METÁFORAS DE UMA BOMBA VERSOS A VERSO

Em “Rosa de Hiroshima”, o poeta recria, metaforicamente, um cenário de destruição, incerteza e falta de perspectivas a partir da desconstrução de características cotidianas e simples de uma rosa

Desde a Antiguidade uma definição a cerca da metáfora é buscada por teóricos da área. E essa definição já foi desde a simples substituição de um termo por outro até ao embelezamento da linguagem corriqueira. Entretanto, atualmente, adota-se a posição de que metáfora é uma relação feita entre dois termos por meio da analogia, ou seja, de elementos em comum que a ideia dos termos tragam ao leitor. É uma experiência pessoal aliada ao ponto de vista e à subjetividade de seu autor sobre determinado conteúdo.

É a partir desse conceito atual que foram observadas as metáforas no poema “Rosa de Hiroshima”, de Vinicius de Moraes. Mas, o que é um poema se não a exposição de experiências e pontos de vista pessoais e subjetivos do poeta?! O conceito de metáfora e poema são idênticos? Não idênticos, mas muito próximos: a diferença fundamental é que a metáfora precisa de dois elementos em questão para que um seja ligado ao outro por meio da analogia; já o poema basta-se, não é necessário que haja outro para ampará-lo nem dar-lhe suporte.

Pode-se dizer que Vinicius de Moraes é um dos maiores e mais conhecidos autores brasileiros — e soube usar magistralmente as metáforas como aliadas de seus poemas. Em geral, a crítica costuma dividir a obra de Vinicius em três fases: a primeira, uma fase mística e religiosa, em que a mulher era posta em um pedestal, difícil de ser alcançada, e o amor quase sempre utópico e platônico; a segunda, uma fase mais realista, em que a mulher era um ser tocável, de fácil e prazeroso acesso, o amor era carnal e consumível, também surge a crítica social (e esta é a questão principal do presente texto), livre de amarras e com intenção de demonstrar por meio da beleza da poesia a tristeza do mundo; a terceira, e última, foi a fase em que Vinicius ousou na música e tornou-se um dos precursores da Bossa Nova.

Voltando aos poemas, metáforas e crítica social, “Rosa de Hi­roshima” é um dos mais tocantes textos escritos sobre a bomba atômica lançada pelos Estados Unidos no Japão. Na tentativa vitoriosa, diga-se de passagem, de que o Império do Japão se rendesse à soberania americana — na Segunda Guerra Mundial — os Estados Unidos bombardearam a cidade de Hiroshima com uma bomba nuclear que atingiu fatalmente 140 mil pessoas, sendo esse número extremamente elevado quando se fala nos que foram atingidos pela radiação. Em um cenário de tanto horror, Vinicius de Moraes consegue fazer uma crítica social por meio da brandura de uma poesia com ritmo calmo, constante e tocante.

Observando as primeiras linhas do poema — que depois foi musicado e atingiu seu ápice na voz de Ney Matogrosso, na dé­cada de 1970 —, percebe-se que são utilizados primeiro termos que remetem a paz e brandura, como “crianças”, “meninas” e “mulheres”, entretanto, tais termos são ligados de imediato a adjetivos que destoam des­sas noções iniciais de paz e bran­dura e remetem ao terror, ao inesperado.

Quando se pensa em crianças, uma das primeiras lembranças que surge é o barulho, a constante ação e aguçada percepção de todos os sentidos. Mas, ao utilizar o termo “mudas telepáticas”, Vinicius traz o choque ao leitor, destruindo essa lembrança inicial das crianças. E mais, a men­ção da telepatia — comunicação de pensamentos, sentimentos ou conhecimentos de uma pessoa para outra, sem o uso de qualquer um dos cinco sentidos — sugere que não é necessário conversas, sensações ou ações a respeito do acontecimento da bomba, as crianças que viveram tal horror estão ligadas entre si apenas por um sexto sentido.

Já o termo meninas remete à ideia de jovialidade, de descobertas do mundo, de novas visões, que logo se destrói com a expressão “cegas inexatas”. Uma das maiores crueldades a um jovem é não deixá-lo ver, conhecer por meio da observação, não deixar que tenha precisão em suas escolhas — mesmo que erradas, algumas vezes.

Mulheres? Ah, espera-se que as meninas quando transformadas em mulheres já tenham seus destinos traçados, já estejam seguindo suas rotas! Mas “rotas alteradas” são postas em seus caminhos pela crueldade da bomba, seus caminhos são alterados, destruídos, invalidados.

“Feridas como rosas cálidas” não compõe uma metáfora, é a única comparação que há no poema, e marca a mudança das consequências para os atos. A partir da figura de uma rosa quente, ardente, cálida, a imagem repulsiva de uma ferida é amenizada, embora não seja menos impressionante.

Desde então o poeta desmonta toda beleza de uma rosa por meio de adjetivos que fazem lembrar à bomba. A analogia é criada pelo formato que a explosão adotou. Com palavras como “radioativa”, “inválida” e “cirrose” todo o encanto de uma rosa é destruído, a inutilidade e a dor são trazidas por uma imagem que deveria trazer beleza e alegria.

Por fim, Vinicius de Moraes não mostra apenas as possíveis intenções a respeito de uma rosa, mas identifica categoricamente que sua aparência também é modificada: “sem cor sem perfume”, e lembra que com toda destruição não há mais possibilidade de vida: “sem rosa sem nada”.

Outros pontos marcantes no poema, que vão além das metáforas, é a ausência total de pontuação, o que pode mostrar ao leitor que há lacunas desde o início da rosa. Os verbos no imperativo: “pensem” e “não se esqueçam” pode ser visto como a imposição, a falta de escolha de quem foi atingido pela catástrofe humana.

É interessante que em instante algum o termo “bomba” foi utilizado no poema, a descrição de seus atos e consequências, além do marco referente ao local do ocorrido, foram necessários para que o leitor soubesse do que se tratava. Apesar da subjetividade e da visão pessoal do poeta é possível que se tenha uma compreensão total do que ele quer passar a partir das analogias.

Pode-se dizer, contudo, que “Rosa de Hiroshima” é um texto atemporal, ou seja, não deve ser reduzido apenas ao fato passado em Hiroshima, qualquer guerra, qualquer bomba atômica que seja utilizada vai gerar os mesmos transtornos e destruições, as mesmas dores e revoltas, os mesmos gritos e silêncios.

Cristina Patriota é tradutora. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura.

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