quarta-feira, 19 de setembro de 2012

SAUDADES DO POLITEÍSMO


A sensação de "déjà-vu" é inescapável. No início de 2006, foram os protestos que se seguiram à publicação, por um jornal dinamarquês, de charges ridicularizando o profeta Maomé. Cem mortos.


Alguns meses depois, muçulmanos foram às ruas para pedir a cabeça do papa Bento 16, por ter supostamente afirmado que o islã era uma religião violenta. Ao menos uma freira foi assassinada. Agora, os tumultos têm como pretexto um obscuro filme anti-islâmico postado no YouTube. É cedo para contabilizar os mortos.

Não sou um especialista em exegese corânica, mas não creio que possamos atribuir a, vá lá, veemência islâmica a especificidades de seu texto sagrado. O Antigo Testamento, que é canônico para judeus e cristãos, traz injunções tão ou mais violentas do que o Corão. Quem duvida pode consultar o Deuteronômio, 13:7-11, onde somos instados a apedrejar nossos familiares que tenham se afastado de Iahweh.

A diferença entre o islã e o Ocidente, creio, está no fato de que, por aqui, passamos por um processo de secularização que teve início no Iluminismo e afastou a maioria dos fiéis de interpretações literais da Bíblia. Os muçulmanos estariam apenas no início dessa jornada, que, na melhor das hipóteses, ainda levará décadas.

Se há um problema mais propriamente teológico, ele é comum às três religiões abraâmicas e reside no fato de elas se pretenderem universais e fundadas numa verdade revelada pelo próprio Deus. Assim, se os cristãos estão certos, judeus e muçulmanos estão necessariamente em apuros e vice-versa duas vezes.

Sob esse aspecto, éramos mais felizes nos tempos do politeísmo, cujos deuses não eram tão exclusivistas nem ciumentos. Gregos, romanos e acádios podiam passar boas horas bebendo e apontando as semelhanças entre Afrodite, Vênus e Ishtar. É verdade que isso não os impedia de se matar logo depois, mas pelo menos não era por causa da religião.

Hélio Schwartsman


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

IPAD BABY


Vivemos numa era narcísica. Mas o narcisismo pode assumir formas mais sofisticadas do que ficar se olhando no espelho e escrevendo imbecilidades no Facebook: "Olha eu vomitando!".

Mesmo ter filhos, hoje, pode ser uma das faces mais comuns do narcisismo. Ter filho é narcisismo quando ele é parte de seu ferramental de sucesso: trabalho, casa própria, sexo saudável, carro novo, ioga, alimentação balanceada, filho.

Quando vir uma mãe tirando muitas fotos histéricas dela mesma com seu filho, saiba que você está diante de um poço de narcisismo que afoga a pobre criança num mar de projeções de si mesma. Segura o filho nas mãos como troféu de sua própria suposta beleza e saúde.
Sim, ser mãe pode ser objeto de enorme crítica. Ou pai. Falar mal da maternidade ou paternidade é para iniciantes e coisa de crítica festiva.

Mães são autoritárias, chantagistas, loucas, ausentes, presentes demais, enfim, infernais às vezes. Mas hoje, numa época dominada pela covardia chique, que teme dizer seu nome, covardia, covardia, covardia, podemos fazer um discurso chique para negar a maternidade.

Com isso não quero dizer que toda mulher deva ser mãe. Longe de mim achar isso. Acho que você pode não ser mãe e não ser ridícula por isso. Suspeito apenas da negação da maternidade quando ela vem acompanhada de uma "ira contra a mãe" ou quando vem acompanhada de alguma "teoria" contra a maternidade. Sempre suspeito de teorias e não de práticas.

Trata-se de um caso semelhante ao ateísmo: todo ateísmo militante é infantil e reativo. Toda crítica à maternidade é infantil e reativa. Um ateu e uma mulher que não quer ser mãe devem ser blasé com relação a Deus e a ter filhos. Se o lábio tremer ao falar de Deus e das mães, você está diante de um ressentido.

O filósofo francês do século 17, Blaise Pascal, dizia que variamos as formas de "divertissement" (divertimento, autoengano), mas a fuga sempre fracassa. Sempre reencontro a causa da minha fuga, o medo do vazio. O narcisista é uma criança em pânico diante desse vazio.

Vivemos a época mais covarde da história humana. A emancipação moderna se revelou um retrocesso em termos de coragem: todo mundo tem medo, mas nega e critica as formas de vínculos afetivos longos (maternidade, paternidade, casamento, etc.) para não enfrentar seus fracassos afetivos. Sou um miserável solitário, mas minto dizendo que escolhi sê-lo.

Mas voltemos ao filho como troféu narcísico. Outro dia, num desses domingos preguiçosos (o ócio nos aparenta aos deuses), fui almoçar, minha mulher e eu, num desses lugares frequentados pela classe chique da zona oeste paulistana. Uma região habitada por "bikes". Precisa dizer qual é?

Interessante como gente pobre sempre andou de bicicleta, mas agora, quando a bicicleta virou "bike", virou assunto da prefeitura. O trânsito, sofrido, tem que abrir espaço para as "bikes".

Em Copenhague, capital da Dinamarca, uma das capitais mundiais das "bikes", podemos ver o "ethos" dessa moçada que se acha salvadora do mundo: lá eles atropelam gente e caminhões, movidos pela sua consciência de (falsa) superioridade moral urbana. Aqui já começa o mesmo processo.

Mas dizia que estávamos num desses restaurante "descolados", mas rotineiros, da classe chique da zona oeste paulistana. Perto, um casal "desfilava" seu filho. Durante algum tempo, todo mundo era obrigado a ouvir a beleza estridente da maternidade narcísica.

Trajes descolados, jeans rasgados e caros, camisetas tipo Hering, tênis surrados. Cabelos assanhados no modo correto, iPhones, bebê brincando com iPad, risadas altas.

A criança, coitada, era quem menos gritava. Os pais, já os pais, estes faziam tudo para ele berrar, como numa demonstração de que, sim, "somos pais descolados que amam seu filho e
queremos que ele grite e brinque para mostrar que não o reprimimos". O filho ali tinha o mesmo estatuto que o iPad: um trunfo numa era narcísica. Assim como um carro coreano branco enorme.

E fotos, muitas fotos, em todas as posições imagináveis em meio à pasta de domingo. Imagino que postaram no "Face". Por: Luiz Felipe Pondé, Folha de SP

CETICISMO ELEITORAL

Querido leitor e querida leitora, paz! Hoje vamos refletir sobre o ceticismo, ou céticos.

E inicio lembrando que qualquer foca no jornalismo sabe que o correto e ético em qualquer matéria é sempre ouvir os envolvidos, independentemente de quantos sejam. Por isso, trago para nossa reflexão de hoje o filósofo Pirro, que viveu de 365 - 270 antes de Cristo.

Pirro foi a primeira pessoa que se tem notícias a fazer do ceticismo o foco de seu pensamento, adotando como uma filosofia. Filosofia esta que consiste numa recusa ativa em acreditar em qualquer coisa. Nesse sentido, ele lançou uma escola de filósofos que ficaram conhecidos como os céticos, que com seu ceticismo sistemático, filosófico e abrangente é reconhecido até hoje como pirronismo.
Então tentemos entender um pouco melhor esse ceticismo de Pirro. 

Para quase tudo que um povo acredita, em outro lugar há outras pessoas que acreditam exatamente no oposto. Quando deparados com alguma coisa, algum fato, segundo Pirro, nunca devemos assumir a verdade de uma explicação em detrimento de qualquer outra. 

Pirro foi um integrante ativo do exército de Alexandre o Grande que, depois de visitar mundos diversos em que crenças e costumes diferentes desafiavam o mundo grego, ele se embebedou dessa filosofia de vida. Vivenciou costumes que se confrontavam, como por exemplo, de se alimentar de carne de vacas da Grécia era banquete, já na Índia era sacrilégio. 

Pirro teve um discípulo como sucessor, Tímon de Flio. Após a morte deste, foi sucedido por Arcesilau que assumiu a liderança na academia de Platão, ficando nas mãos dos céticos por duzentos anos. Arcesilau tinha dois métodos de ensino: o primeiro era expor argumentos igualmente poderosos para os dois lados de uma questão e o segundo era refutar qualquer caso proposto por um de seus alunos. 

Assim, o ceticismo desempenhou um papel importante na história da filosofia daquela época e também nos dias atuais. Para os céticos, a certeza simplesmente não está disponível no nível do argumento, nenhuma certeza é definitiva.

Já o escocês David Hume atenua o ceticismo quando diz que no cotidiano de nossas vidas temos que tomar perpetuamente opções e decisões, nos forçando a formar julgamentos sobre o modo como as coisas são, queiramos ou não. Como a certeza não está ao nosso dispor, temos que fazer as melhores avaliações possíveis da realidade que enfrentamos e isso não é possível se considerarmos todas as alternativas com igual ceticismo.

Querido leitor e querida leitora, vale lembrar que nessa época de decisões eleitorais, algumas pessoas ouvem um candidato e agendam suas propostas como a única verdade sem antes ouvir outros candidatos. Não se trata de sermos céticos, pelo contrário, se trata de sermos éticos conosco mesmos. 

O momento é ímpar, de decisão muito importante para nossas cidades. Quem sabe, nesse momento aprendamos com os céticos em não acreditar em qualquer proposta que nos apareça e aproveitar o momento para ouvir todos os lados?

É assim como o mundo me parece hoje. E você, pratica o ceticismo eleitoral? Por: Beto Colombo

domingo, 16 de setembro de 2012

SE BEBER, NÃO DIRIJA


Se beber, não dirija. Também não faça declarações.


Trinta e cinco mil pessoas por ano perdem a vida em decorrência de acidentes de trânsito no Brasil. Preste atenção: 35 mil!!! Quase cem pessoas por dia!!! Estes números são alarmantes e a tendência é de crescimento. Segundo o Ministério da Saúde, metade destas mortes está relacionada ao uso de álcool por motoristas.

O álcool é um forte depressor do Sistema Nervoso Central. Inicialmente quem bebe perde a inibição e sente-se mais corajoso, mas com a progressão da ingestão, passa a ter reflexos mais lentos, perde a noção de distância e torna-se sonolento, sendo uma vítima e um agressor potencial ao volante.

Campanhas educacionais não foram eficazes para estancar esta mortandade alcoólica automotiva. Os números cresciam ano a ano. Quando a sociedade ameaça entrar em colapso devido a determinado comportamento funesto, o governo está autorizado a regulamentar tal conduta criando uma lei para preencher o vazio. A lei invade o território da ética para evitar uma degradação ainda maior. 

Foi com este espírito que surgiu a “Lei Seca”, apelido carinhoso da lei 11.705 do Código de Trânsito Brasileiro que penaliza o indivíduo que estiver dirigindo com uma taxa maior que 0,1 grama de álcool por litro de sangue (0,1%) em 957 reais e suspende seu direito de dirigir por um ano.

Esta dosagem sanguínea de álcool é atingida com a ingestão de apenas uma lata de cerveja ou um cálice de vinho. Na medida em que a dosagem aumenta, a lei torna-se mais rígida. Se o individuo estiver com uma medida superior a 0,6% (equivalente a 2 latas de cerveja) a infração é considerada crime e a punição envolve prisão em flagrante, detenção entre 6 meses a 3 anos, multa e suspensão ou proibição de obter a permissão ou habilitação para dirigir veiculo automotor.

Barreiras policiais são montadas aleatoriamente e os motoristas são submetidos a testes de ingestão alcoólica através do etilômetro ou bafômetro (aparelho que permite determinar a concentração sanguínea de álcool analisando o ar exalado dos pulmões).

Apesar desta iniciativa louvável, muito ainda precisamos progredir para coibir a mistura álcool e direção. Além de o Brasil ostentar o triste titulo de detentor de um dos mais altos índices de mortes no trânsito por habitante, o povo brasileiro é o campeão em criatividade no quesito malandragem para burlar a lei.

Não bastassem os traumatismos e seqüelas físicas que o álcool pode causar ao volante, preocupo-me sobremaneira com os abalos, ferimentos e mortes emocionais causadas por atitudes decorrentes da ingestão alcoólica. Certamente este número ultrapassa em muito os 35 mil óbitos/ano nas estradas.

O individuo começa a beber, fica sociável, alegre, torna-se sábio, acha-se bonito, perde a inibição, cria coragem, faz declarações, fala alto, paga contas... A bebida vai descendo e o individuo entra em um estágio no qual perde a noção do ridículo, acredita que as pessoas estão rindo com ele e não dele, leva para a cama uma deusa e acorda ao lado de uma bruxa e pior de tudo, vai ficando desmemoriado. Por vezes no outro dia não lembra o que fez ou finge que esqueceu.

Imagine quantos pedidos de casamento, declarações de amor, convites para transar, beijos, agressões, humilhações, rompimentos foram realizados no embalo etílico. Não seria justo uma dosagem do teor alcoólico para verificar a credibilidade das propostas? Um bafômetro retirado da bolsa no momento certo pode evitar tanto desastres físicos como emocionais.

Claro que não fosse pelo estimulo de uma cerveja ou de um espumante, muitos romances não teriam iniciado. A bebida é responsável por muitas mortes, mas também por muitos nascimentos, alguns indesejados. O álcool é capaz de provocar grandes metamorfoses, discursos eloqüentes e atitudes imponentes, porém vale lembrar que a mistura álcool e paixão quase sempre faz perder a razão.

Geralmente quando se cometem excessos sem danos físicos, panos quentes são colocados e a culpa recai sobre a bebida, que é socialmente aceita e oferecida sem limites nas grandes comemorações. O problema são as conseqüências. Uma palavra mal dita pode destruir uma vida. Será que o álcool pode ter alguma influência?

Talvez o conselho de Ernest Hemmingway seja útil: “Faça sempre lúcido aquilo que você disse que faria bêbado. Isto o ensinará a manter sua boca fechada”.

Se beber não dirija. Também não faça declarações. Por: Ildo Meyer

FUGINDO DA FILOSOFIA


A busca da perfeita (ou mais perfeita) consistência lógica é antes ocupação de continuadores e epígonos que dos espíritos criadores. Na exploração do desconhecido, uma certa margem de imprecisão e nebulosidade é inevitável.


Na universidade brasileira – e refiro-me somente às mais prestigiadas –, a lógica e a filologia foram consagradas como os refúgios convencionais da impotência filosófica. Ambas constituem, é claro, domínios autônomos, com seus objetos e métodos respectivos, que às vezes podem ser frequentados indefinidamente sem nenhum suporte filosófico especial, mas que, como todas as demais ciências, podem suscitar problemas de ordem filosófica para os quais não encontram solução dentro dos seus critérios e terrenos próprios.

Nenhuma das duas é a filosofia, embora ambas prestem a ela os serviços de ciências auxiliares frequentemente indispensáveis.

A lógica está para a filosofia como a gramática está para a literatura. Idealmente, espera-se que tudo o que um escritor escreve seja compatível com as regras consagradas da gramática, seja por segui-las em sentido estrito, seja por transcendê-las criativamente, seja por transgredi-las em detalhes menores amplamente compensados – ou até justificados -- pelo valor do conjunto. O que não se espera nunca é que um escritor sacrifique a vivacidade direta das suas intuições estéticas às exigências de algum gramático ranheta. Do mesmo modo, espera-se que aquilo que um filósofo diz resista ao teste da consistência lógica, mas não que ele próprio forneça a cabal demonstração lógica de tudo o que disse.

Isso é assim por dois motivos. O primeiro deles: em filosofia não há cabal demonstração lógica de praticamente nada. Todas as teses filosóficas podem ser recolocadas em questão à medida que se descobrem nelas novas nuances insuspeitadas à primeira vista ou que o desenvolvimento das ciências traz à luz novos aspectos dos seus objetos. 

Segundo: o trabalho de demonstração lógica exaustiva só é possível em questões filosóficas já longamente elaboradas por uma tradição de interpretações e debates, quando as dificuldades de expressão foram superadas e os conceitos estabilizados. Acontece, por fatalidade, que essa condição quase nunca é cumprida pelas grandes filosofias. 

O que caracteriza essas filosofias – acima de tudo a de um Platão, a de um Aristóteles – é que desbravam continentes desconhecidos, para os quais não há ainda uma linguagem consagrada nem conceitos descritivos prontos. A busca da perfeita (ou mais perfeita) consistência lógica é antes ocupação de continuadores e epígonos que dos espíritos criadores. Na exploração do desconhecido, uma certa margem de imprecisão e nebulosidade é inevitável. Prova-o acima de qualquer possibilidade de dúvida o fato de que, decorridos dois milênios e picos, ainda se discute o sentido preciso de tais ou quais termos nos escritos daqueles dois filósofos.

É aí, precisamente, que entra a filologia. Sua tarefa é reconstituir a forma e, se possível, o sentido originário dos textos antigos – ou não tão antigos --, de modo a que o estudioso deles tenha em mãos um material confiável, de onde se depreenda com clareza máxima o pensamento dos autores, bem como o seu encadeamento histórico e os seus nexos com o ambiente social e mental das épocas respectivas.

Com isso chegamos um pouco mais perto da filosofia. Estudar e compreender os escritos dos grandes filósofos já é, de algum modo, tomar parte numa atividade filosófica. Tanto que aqueles que a praticam se consideram filósofos. Alguns até acreditam que nisso e somente nisso consiste a filosofia. O prof. José Arthur Gianotti declarou peremptoriamente ser a filosofia, em essência, "um trabalho com textos". Não lembro se a expressão foi bem essa, mas era a ideia.

Essa ideia tem o mérito de demarcar precisamente a diferença entre a filosofia e o que dela se transmite, na melhor das hipóteses, aos estudantes das universidades brasileiras. Estes ocupam-se de textos (quando se ocupam de alguma coisa). 

Os grandes filósofos, ao contrário, não se dedicavam eminentemente ao estudo de seus próprios textos, nem mesmo ao dos seus antecessores, contemporâneos e concorrentes, mas ao estudo de objetos que existiam antes, fora e independentemente da filosofia: Deus, a vida após a morte, a constituição dos Estados e governos, a sociedade e os costumes, a conduta moral ou imoral dos seres humanos, os sonhos e emoções, a ordem do universo material,a estrutura da realidade.

Nenhum desses objetos foi inventado pelos filósofos. Estes os encontraram prontos na experiência da vida (que inclui, é claro, uma parcela de herança filosófica), e fizeram um gigantesco esforço de compreendê-los. Desse esforço sempre fez parte, é claro, a meditação do que os filósofos anteriores – ou os homens cultos em geral – haviam dito a respeito.

Aristóteles diz mesmo que o exame das opiniões inteligentes é bom começo de investigação filosófica; e esse começo, decerto, exige a leitura dos textos. A diferença é que Aristóteles os lia para encontrar, justamente, o que não estava neles: o objeto enquanto tal, que só muito parcialmente, e não raro impropriamente, transparecia nas opiniões estudadas. Dito de outro modo, ele usava os textos como perspectivas auxiliares para enriquecer, às vezes por contraste, a sua própria experiência direta dos objetos. Foi nesse sentido que Eric Voegelin aconselhava a seus alunos: "Não estudem a filosofia de Eric Voegelin. Estudem a realidade." A transmutação da realidade em conceito filosófico requer uma técnica apropriada, a técnica filosófica, elaborada ao longo de milênios de experiência, que descrevi breve e toscamente no livro A Filosofia e seu Inverso. Essa técnica é especificamente diversa da lógica e da filologia e não pode ser adquirida pelo estudo exaustivo, ou mesmo maníaco, dessas duas disciplinas.

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.

FILOSOFIA DA CIÊNCIA FAZ FALTA




A falta que faz uma filosofia que leve em consideração este pequeno "detalhe", a realidade.


É até bastante interessante perceber como a ausência de facto de uma autêntica filosofia da ciência permitiu os absurdos éticos que vemos hoje.

Explico: na medida em que a "filosofia" moderna (entre aspas, porque é menos uma filosofia real que um simples raciocinar sobre o raciocinar, masturbação intelectual sem pés no real "inatingível") nega a possibilidade de apreensão da realidade, na medida em que um "filósofo" moderno (ou, ai, pós-moderno) nega-se a aceitar a evidência de seus sentidos, não é mais possível aceitar aquilo que é a base de toda a ciência experimental. 

Não é possível aceitar um teste de duplo-cego se não se pode ter certeza da própria existência do laboratório!

O resultado disso é que hoje temos dois mundos paralelos: um estranho hiperurânio onde se escondem os ditos "filósofos", "filosofando" sobre a filosofada de outros "filósofos" sem perceber que há um mundo real, e um mundo material onde, sem a menor noção de que pode haver algo about what all this is, cientistas divertem-se fazendo clones humanos para experiências com células-tronco.

Isto, quando vemos aplicado, ai, ai, ai, às ciências ditas "do homem", torna-se ainda mais amedrontador. Temos hoje um professor de bio-ética em Princeton (Prof. Singer) que "canta" que é a consciência que dá valor à vida. Assim, para ele, não há absolutamente problema moral algum em matar bebês de um ano, mas há si problema sério em matar uma galinha. Afinal, a galinha foge de quem tenta pegá-la, o que "prova" que ela tem consciência de estar viva. Do mesmo modo, em decorrência deste divórcio litigioso entre ciência (experimental e humana) e filosofia, vimos o crescimento dos totalitarismos (comunismo, nazismo...) e da ganância elevada a modo de organização da sociedade (liberalismo) neste século que já foi tarde.

O que são o marxismo e o liberalismo senão economia sem filosofia? O que é a eutanásia e o aborto senão medicina sem filosofia? O que são o Carandiru e a Febem senão direito sem filosofia?

Tive recentemente duas conversas bastante interessantes neste sentido. Em uma, procurei convencer uma moça, bastante inteligante, que está tentando fazer funcionar a escolinha que ela fundou há pouco tempo. A dita escolinha é construtivista. Ora, mandei-a estudar Platão. Não sou lá muito de Platão (apesar de ter gostado bastante do livro da Catherine Pickstock sobre a Liturgia Tradicional), mas ora bolas, construtivismo é platonismo aplicado. A moça nunca seria capaz de fazer de sua escola algo melhor que as fábricas de antas em que já lecionei se não tiver uma vaga noção, ao menos, da filosofia subjacente à escola (pseudo-)pedagógica que escolheu.

Na outra, um rapaz bastante inteligente estava querendo desistir da faculdade de filosofia na UCP (tomista) para correr atrás da cenoura pós-moderna da UERJ. Creio que foi quando eu disse que "o filósofo moderno ou pós-moderno tem que abdicar de toda a sua filosofia na hora que o estômago ronca, ou que a cabeça dói e ele toma uma aspirina" que ele mudou de idéia, graças a Deus. 



Carlos Ramalhete é professor.

TUDO É NOTÍCIA


A última das novidades é que se pode decidir (em termos) sobre nossa própria morte e deixar tudo escrito 

Todo dia aparece uma novidade que ocupa o noticiário; passa o tempo, e um dia vem outra, muitas vezes desdizendo a primeira. Um exemplo: há anos os dermatologistas dizem que não se pode sair de casa, nem para ir na banca de jornal, sem protetor solar; alguns, mais radicais, mandam usar protetor até em escritórios onde a luz é fria, e raros são os liberais, que deixam que se tome dez minutos de sol às 7h da manhã -e mesmo assim, usando protetor no corpo inteiro. 

Acontece que não se vai à praia só por prazer; praia, aliás, é das coisas mais desconfortáveis que existem, e onde se vai, sobretudo, para pegar uma cor; só que, com o protetor, passamos o verão inteiro cor de bicho de goiaba (branca), o que não é justo. Aí eu vejo centenas, milhares de pessoas tomando sol até três, quatro da tarde, gente bronzeada mostrando seu valor; abro uma revista e vejo fotos das mais lindas atrizes, nas mais maravilhosas praias, todas parecendo irmãs de Gabriela, e fico pensando. Será que o sol da Sardenha e de St. Tropez é diferente do nosso? 

Afinal, achar um lugarzinho na areia, morrer de calor debaixo do sol e sair branquinha não tem nenhuma graça, e um passeio de barco é um castigo que não se deve desejar a nenhum inimigo: o barco balança, a comida é ruim e pouca, e o gelo acaba na primeira meia hora. Branca para sempre? Mas que castigo. 

Mas eis que surge uma nova onda; segundo ela, usando o tal protetor, o cálcio, tão importante na vida até mesmo dos bebês, não é absorvido pelo organismo, e a falta de cálcio é um convite à osteoporose, o que faz total sentido. A vida é um problema. 

Durante um bom tempo, falou-se muito de bullying, e as psicólogas e educadoras deram as mais inteligentes opiniões sobre o assunto, que afinal nem é tão novo -só o nome é novidade. Sempre se soube o quanto as crianças podem ser cruéis, e desde que o mundo é mundo maltratam os colegas que não são iguais a elas, ou porque têm cabelo vermelho, ou porque usam óculos e por aí vai; vão aprender, mas só com o tempo -e nunca mais se falou no tal de bullying. 

A última das novidades é que se pode -ou se deve- decidir (em termos) sobre nossa própria morte, e deixar tudo por escrito, isto é, como encarar a hora final. É uma ideia, mas uma ideia -data vênia- dolorosa, pensar e depois escrever como programar nossos últimos minutos. E quem dá a ordem ao médico para desligar os aparelhos? E se houver ainda uma esperança de vida e o médico tiver se enganado? E se, e se, e se? Um pesadelo, e até o momento, não me vejo com coragem de enfrentar o assunto; mas mesmo sem querer, pensei nele outro dia. 

Foi curioso; eu sofro de insônia, e já acordo ligada, sempre. Mas ontem, quando acordei, estava sonolenta. Sabe quando a gente diz "estou morrendo de sono?", coisa que aliás não acontece nunca aos insones? Pois foi assim. Não sei quanto tempo durou, mas foi muito bom eu estar "morrendo de sono" e poder ficar na cama, aproveitando esse momento raro, dormindo mais um pouquinho. E pensei: isso não se pode deixar por escrito, mas seria bem bom terminar a vida assim: morrendo de sono. 

Mas quem pode nos dar essa felicidade? Um parente, um amigo, o médico? Sei lá, pois delegar a alguém essa responsabilidade não é fácil. E quem quer ter esse poder? Um filho, um amigo? Não penso que eu aceitaria, se alguém me pedisse. 

O que me leva a uma só conclusão: a vida já foi mais simples, e a morte também.Por: Danuza Leão Folha de SP

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

LOUCOS E SANTOS

Querido leitor, hoje vamos falar de um interessante tema: loucos e santos.

Oscar Wilde, dramaturgo, escritor e poeta irlandês, que se destacou na Inglaterra por seus escritos no período Vitoriano, escreveu um poema que não tem tempo. É atemporal. Loucos e Santos é o seu título. Antes de prosseguir com o poema, vale a pena dizer que Wilde foi preso e humilhado perante a sociedade por causa de uma opção, a opção sexual: ele era homossexual. Isso levou-o, inclusive a prisão. 

Voltemos aos loucos, aos Loucos e Santos.

Escreveu Oscar Wilde: “Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos”. Lembrando que naquela época um desejo ruim era o de que os inimigos contraíssem maus hábitos. “Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo”, continuou o poeta. “Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco”.

Mas como tudo tem, no mínimo, os dois lados, ele que dizia preferir os loucos, agora se curva aos santos, lembrando que homem santo e mulher santa nada mais é do que homem são, mulher sã.

“Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças. Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria”.

Da obra de Wilde foram baseados vários filmes como “A liga extraordinária”, “Dorian Gray”, mas a vida de Oscar Wilde é quem deu subsídios para o filme “Wilde”.

Diz o autor: “Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.” O irlandês toca fundo quando diz: “Não quero amigos adultos nem chatos”.

Ainda prosseguindo no poema deste ser humano sensível: “Quero-os – os amigos - metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa”.

Ao finalizar, Oscar Wild expõe: “Tenho amigos para saber quem eu sou, pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que normalidade é uma ilusão imbecil e estéril”.

Faço deste poema, o meu poema.

É assim como o mundo me parece hoje. E você, o que pensa dos loucos? O que acha sobre os santos?
Por: Beto Colombo

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

SOMOS O QUE COMEMOS?

Querido leitor, que você esteja bem. Nós somos o que comemos?

Na semana passada, ouvi um comentário de um colega na Rádio Som Maior, de Criciúma, afirmando categoricamente que nós somos o que comemos. Aquela afirmação me alcançou como uma flecha que ainda me cutuca até hoje. Será que somos mesmo o que comemos?

Para mim, um dos homens mais sábios de todos os tempos foi o grego Aristóteles, ao que Dante Alighieri, poeta italiano, referia-se como o "Mestre dos que sabem". Dentre tantas, a questão-chave da qual partiu Aristóteles, nesse caso, foi: O que são os objetos neste mundo? O que é ser? Sua primeira conclusão foi que as coisas não são apenas a matéria de que se constituem materialmente.

Tentando explicar melhor. Se um construtor que você contratou para fazer sua casa descarregasse em seu terreno tijolos, madeira, azulejos, e dissesse "pronto aqui está sua casa", você concordaria com isso? Ali estaria uma pilha de materiais, mas para ser uma casa, tudo precisaria estar reunido, com uma estrutura específica e detalhada, e em virtude dessa estrutura é que seria uma casa. Pois a casa pode ser feita de vários outros materiais como concreto, vidro, metal, dentre tantos outros.

O exemplo mais notável de Aristóteles para isso são os seres humanos, a matéria que consiste seu corpo muda a cada dia, ao cabo de alguns anos. Mas ao longo de sua vida continua a ser a mesma pessoa, continua a ser um ser humano, uma pessoa. 

Pegaremos o próprio Aristóteles, por exemplo. Não se pode argumentar que ele é a matéria de que seu corpo consiste. Estendendo esse argumento, as espécies inteiras não chamamos de cão, todos os diferentes tipos de cães porque são feitos de algum material distintivo, mas sim porque em virtude de uma organização e uma estrutura distinta que eles compartilham, e que os diferencia de outros animas, também feitos de carne, sangue e ossos.

Muitos filósofos já dissertaram sobre esse assunto. Há os que dizem que somos "pensamentos", há os que dizem que somos "matéria", apenas matéria. Há os que dizem que somos cópia perfeita de uma outra dimensão, há os que dizem que somos "seres espirituais vivendo uma experiência humana", há os que dizem que somos "energia condensada”, há os que dizem que somos uma sombra entre o animal e o super-homem. Também há os que garantem que somos a imagem e semelhança de Deus, que dizem que somos filhos de Deus. Afinal, o que somos nós?

Ainda em Aristóteles, o mestre dos que sabem, “nós não somos aquilo que pensamos, que sentimos, que falamos, enfim, nó somos, claro, o que pensamos, o que sentimos, o que falamos também, mas não só. Nós somos fundamentalmente o que fazemos. Contudo, pondera Guerdjef, como nós não nos observamos tanto, nós pensamos que somos só aquilo que pensamos, que sentimos, que falamos, que comemos.

Talvez sejamos isso, talvez não sejamos nada disso, ou até parte disso. Mas provavelmente eu sou, em parte, aquilo que me alimento, mas também sou mais que isso.

É assim como o mundo me parece hoje. E você, do que é composto?
Por: Beto Colombo

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

NÓS, OS INÚTEIS


Posso oferecer uma sugestão de leitura? "The Revolt of Man" (a revolta do homem), de Walter Besant (1836-1901). O leitor não conhece? Acredito. Sir Walter foi um respeitável cavalheiro vitoriano que a história da literatura inglesa acabou por esquecer.

Injusto. O livro, uma novela distópica brilhantemente escrita, é um exemplo de misoginia que diverte as almas saudáveis.

Enredo: na Inglaterra do futuro, o mundo é governado pelas mulheres. Elas controlam tudo: política, economia, cultura, trabalho. E os homens? Os homens, pobre raça, são reduzidos a bestas de carga e escravos sexuais das triunfantes donzelas.

Fatalmente, essa vaginocracia começa a sair dos eixos: a sociedade a empobrecer, o caos a reinar, as instituições a colapsar --e as mulheres, em desespero de causa, apelam aos homens para salvar a honra do convento.

São eles que regressam das catacumbas para repor a ordem e a felicidade universal.
Besant viveu no século 19. Mas o que diria ele do nosso século 21?

Olho em volta. E concluo que só tenho amigas solteiras ou divorciadas. Casamento é artigo raro e breve por estas bandas.

A situação, confesso, seria a ideal para um rapaz disponível como eu, com hábitos de higiene adquiridos e uma sanidade mental, digamos, satisfatória. O problema é que os homens deixaram de ser ideais para elas.

As solteiras encontraram no trabalho a independência econômica que as mães e avós não tinham. Os homens, quando muito, servem para necessidades ocasionais que esta Folha, um jornal de família, me impede de mencionar.

As divorciadas já passaram pela experiência e não gostaram. Depois da paixão e do idílio dos primeiros anos (ou meses), descobriram com espanto que o príncipe, afinal, sempre foi um sapo. A barriga do infeliz cresceu. A comunicação desapareceu. E o sexo passou a ser, nas imortais palavras de Nelson Rodrigues, "uma mijada". Conclusão?

Depois de o amor virar farsa, elas pegaram nos respectivos girinos e jogaram-nos no charco da inutilidade.

Homem só atrapalha. E nem para filhos serve mais: ser mãe é como fazer inscrição na academia. Basta escolher o banco certo e a questão, nove meses depois, está resolvida.

Um livro recente, aliás, enfrenta o problema. Foi escrito por Hanna Rosin, intitula-se apocalipticamente "The End of Men: And the Rise of Women" (o fim do homem: e a ascensão da mulher) e, segundo resenha da "Economist", tem números que podem interessar aos brasileiros: 1/3 das mulheres do país já ganham mais do que os seus companheiros. Existe até um grupo de apoio para esses homens infelizes, sintomaticamente intitulado "Homens de Lágrimas". Será verdade, leitor? Não minta, não minta.

O Brasil não é caso único. Na Coreia do Sul, o excesso de mulheres na carreira diplomática obrigou o governo a instituir as fatídicas cotas para homens.

Moral da história? Os homens começam a ser bichos em vias de extinção. Sem a importância econômica, reprodutiva ou até social de outros tempos, os pobres coitados ainda tiveram uma suprema humilhação com a crise financeira de 2008: conta a mesma "Economist" que 3/4 dos empregos destruídos pela hecatombe --nas finanças, nas fábricas, na construção civil-- eram tradicionalmente masculinos.

Pelo contrário: a nova economia emergente, baseada cada vez mais em qualidades como "comunicação" e "adaptação", está pronta para o triunfo da sensibilidade feminina.

Se Edward Besant viajasse do século 19 para o século 21, imagino que a sua distopia seria outra: sim, o mundo estaria nas mãos das mulheres. Mas, dessa vez, os homens já não existiriam para o salvar. Estariam demasiado ocupados, de bermudão e cerveja, com os amigos no botequim.

Porque essa talvez seja a verdade mais dolorosa de todas, que a "Economist" refere sem desenvolver o tema competentemente: não foi a economia ou a libertação sexual feminina que fez dos homens seres inúteis.

Os homens deixaram de ser úteis quando deixaram de ser homens --na atitude, nos comportamentos, nos "hobbies", até no vestuário e nas "tendências" (horrenda palavra).
Nenhuma mulher gosta de ter em casa dois adolescentes retardados: o filho e o pai.
Por: João Pereira Coutinho, Folha de SP