quinta-feira, 14 de novembro de 2013

KUBRICK DE OLHOS BEM ABERTOS

Depois de ler sobre pré-história, minha percepção do mundo mudou. Para começo de conversa, o tema da violência na condição humana é melhor compreendido quando olhamos para nossos ancestrais do Paleolítico Superior do que quando tentamos compreendê-lo a partir de ideias como "o modelo social está ultrapassado", apesar de saber que frases como essa dão orgasmo em muita gente.

Somos seres do desejo, e não de razão. Com isso não quero dizer que não sejamos racionais, mas sim que o desejo se impõe à razão. Freud e Lacan bem sabem disso. Schopenhauer e Nietzsche também sabem isso. Devoramos tudo à nossa volta por conta dessa força irracional chamada desejo.

O cineasta Stanley Kubrick (que aliás está "nos visitando" no Museu da Imagem e do Som, o MIS) entendeu bem esse aspecto: é na pré-história e no desejo que melhor entendemos nossa desorganização interna, nossas contradições e a luta que temos cotidianamente contra elas. Refiro-me a dois dos seus filmes, "2001, Uma Odisseia no Espaço", de 1968, e "De Olhos Bem Fechados", de 1999.

O primeiro se abre com o momento descrito como "aurora". Nessa sequência, dois bandos de homens pré-históricos disputam a posse de um pequeno lago. O mais fraco perde. Depois, acuados, comem ervas embaixo de uma pedra, atormentados por predadores à noite.

Um deles, na manhã seguinte, descobre que, tendo um osso nas mãos, consegue ficar mais forte. Matam um animal grande e "se tornam" carnívoros (o vegetarianismo é um comportamento ultrapassado evolucionariamente).

Mais tarde, munidos de ossos nas mãos, atacam o bando que os haviam expulsado do lago. O "novo homem", com uma arma na mão, retoma o lago. Na cena seguinte, joga o osso para cima e este vira uma nave espacial. Chegamos ao futuro da pré-história.

Já na última parte do filme, vemos o primeiro computador com inteligência artificial se "revoltar" contra os dois astronautas da nave. O que o filme nos revela? Que o "avanço técnico" seguramente está associado à violência.

Isso não significa que seja "bonito". Hoje em dia, por causa do modo como se dá o debate público, baseado em caricaturas do outro, difamação e simplificação ridícula (tipo: quem não pensa como eu é racista, "sequicista" e a favor da TFP), torna-se necessário fazermos reparos como esse: reconhecer a relação de implicação entre melhoria material da vida, avanço cultural e uma dose de violência não significa achar isso bonito, mas sim reconhecer o grau de ambivalência que marca nossa condição. Mas, num mundo de mimados, como é o nosso, dizer isso parece ser "gostar" disso.

O que Kubrick está dizendo aqui é que provavelmente nossa história de ganhos técnicos implica um alto grau de risco. O problema é que queremos os ganhos, mas, no mundo da carochinha, no qual vivem os mimados, parece ser possível zerar a ambivalência. Nada disso quer dizer que devemos cultivar a violência, mas que não adianta pintar sua cara com cores de anjo porque só vai convencer gente boba.

No outro filme, "De Olhos Bem Fechados", Kubrick dialoga profundamente com Freud. O filme é baseado, em última instância, num sonho de Freud no qual ele entra num trem e um aviso diz que ali só permanecem pessoas de olhos bem fechados.

O sonho está dentro do processo de "autoanálise" de Freud, no qual ele descobre o complexo de Édipo e sua vergonha pelo fato de o pai não ter reagido a uma humilhação feita por um grupo de antissemitas testemunhada pelo menino Sigmund. O tema envolve a ambivalência dos sentimentos e desejos da criança para com os pais.

No filme, a mulher (a deusa Nicole Kidman) conta para o marido (Tom Cruise) que um dia desejou fazer sexo violento com um oficial da Marinha que ela tinha visto num hotel quando eles estavam num momento "família" (quis ser a "puta" dele). Com isso, ela joga o marido num total desespero, que só se encerra quando ela o chama para trepar ("let's fuck").

O desejo da bela e bem comportada mulher revela ao marido que nem ela escapa da desorganização do desejo sexual "ilegítimo". A vida ordenada está sempre por um triz.

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

ponde.folha@uol.com.br

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

RÚSSIA MUÇULMANA?


O assassinato a facadas de Yegor Shcherbakov, de 25 anos, de etnia russa, ocorrido em 10 de outubro, cometido aparentemente por um muçulmano do Azerbaijão, desencadeou distúrbios anti-migração em Moscou,vandalismo e agressões, detenção de 1.200 pessoas trazendo à tona uma grave tensão na vida dos cidadãos russos.

Além da etnia muçulmana contar com cerca 21 a 23 milhões dos 144 milhões de habitantes do total da população russa, ou seja 15%, sua proporção vem aumentando rapidamente. Diz-se que alcoólatras de etnia russa contam com a taxa de natalidade européia e a taxa de mortandade africana, sendo a natalidade de apenas 1,4 filhos por mulher e a mortandade de homens em torno dos 60 anos. Em Moscou, a taxa de natalidade dos cristãos é de 1,1.

Orações do Eid al-Fitr em Moscou em 15 de outubro, mostrando o peso e solidariedade dos muçulmanos na cidade.

Em contrapartida, as muçulmanas têm 2,3 filhos em média com menos abortos do que as russas. Em Moscou, as mulheres tártaras têm 6 filhos e as chechenas e ingúchias 10. Além disso, de 3 a 4 milhões de muçulmanos mudaram para a Rússia vindos das ex-repúblicas da URSS, principalmente do Azerbaijão e do Cazaquistão, sem contar aqueles de etnia russa que estão se convertendo ao islamismo.

Essa tendência aponta para o declínio dos cristãos em 0,6% ao ano e o crescimento nessa mesma porcentagem de muçulmanos, que terá um efeito dramático com o passar do tempo. Alguns analistas preveem que os muçulmanos serão maioria já no século XXI, uma revolução demográfica que mudaria a essência do caráter do país. Paul Goble, especialista em minorias russas, conclui que a "Rússia está passando por uma transformação religiosa que trará consequências ainda maiores para a comunidade internacional do que o colapso da União Soviética". Ele cita um analista russo que prevê uma mesquita na Praça Vermelha em Moscou. Segundo ele, a ingênua premissa de que Moscou está e continuará voltado para o Ocidente "não se justifica mais". Acima de tudo, prevê que o incremento demográfico muçulmano "terá um impacto profundo na política externa russa".

Em alguns anos, serão cinquenta por cento dos alistados no exército russo. Joseph A. D'Agostino do Instituto de Pesquisa Populacional pergunta: "Será que um exército assim irá funcionar de forma adequada, dada a fúria que muitos muçulmanos russos sentem em relação às táticas das forças armadas russas na região da Chechênia? E se outras regiões da Rússia, algumas com enormes reservas de petróleo, se rebelassem contra Moscou? Será que os soldados muçulmanos iriam combater e matar para mantê-las parte da terra natal russa"?

Os muçulmanos russos estão cada vez mais confiantes, compõem a maioria dos grupos étnicos do país, ou seja 57 dos 182 grupos, começaram a usar o termo Rússia Muçulmana para sinalizar suas ambições. Segundo o analista muçulmano Daniyal Isayev, o termo afirma que o Islã é "parte inalienável da Rússia" e que a "Rússia como estado e civilização não poderia existir sem o Islã e os muçulmanos". Ele observa que os muçulmanos precedem a etnia russa na maior parte do território que hoje compõe a Rússia. Suas alegações, radicais, a favor dos muçulmanos incluem exageros, como contribuições cruciais à cultura russa bem como suas vitórias militares.

Conversas dessa natureza fazem com que a etnia russa sinta calafrios quanto à perda populacional do país de pelo menos 700.000 habitantes por ano, pessoas estas que poderiam retornar à sua fé e se voltar contra os muçulmanos. As consequências se revertem em personificações preconceituosas na mídia, ataques a mesquitas e outros crimes, iniciativas para impedir a imigração de muçulmanos e a ascensão de grupos russos nacionalistas radicais, como o "Movimento contra a Imigração Ilegal" de Alexander Belov.

Russos étnicos gritando "Rússia para os russos" em uma manifestação anti-migração após o assassinato de Yegor Shcherbakov.


O Kremlin reagiu de forma contraditória. O então presidente em 2009, Dmitry Medvedev, tentou apaziguar a situação realçando a importância do Islã para a Rússia, observando que os "fundamentos muçulmanos trazem uma contribuição importante para promover a paz na sociedade, fornecendo educação espiritual e moral para muita gente, bem como o combate ao extremismo e à xenofobia". Ele disse também que, devido à grande população muçulmana, a "Rússia não precisa procurar a amizade com o mundo muçulmano: nosso país é parte orgânica desse mundo".

Ilustração de Alexander Hunter para o The Washington Times.


Mas, segundo Ilan Berman do American Foreign Policy Council, "o Kremlin discriminou a minoria muçulmana e ignorou (até ajudou) no crescimento da xenofobia corrosiva entre seus cidadãos. Isso gerou ressentimento e alienação nos muçulmanos russos, sentimentos que grupos radicais islâmicos não viam a hora de tirar proveito". Somado às atitudes de supremacia islâmica já existentes, resulta em uma incontrolável minoria muçulmana.

Discussões sobre o islamismo na Europa tendem a se concentrar em países como a Grã Bretanha e a Suécia, não a Rússia, país com a maior comunidade muçulmana tanto em termos relativos como absolutos, é de suma importância para se ficar atento. A violência anti-migrante dessa semana irá com toda certeza resultar em maiores problemas.

Por: Daniel Pipes

Publicado no The Washington Times.

Original em inglês: Muslim Russia?

Tradução: Joseph Skilnik

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A NATUREZA DAS COISAS

Aristóteles discerniu, 23 séculos atrás, algo que nossa sociedade tenta esquecer: há uma ordem no universo, englobando tudo o que existe. Em outras palavras: as leis da física, da química, da política e da moral são apenas aspectos de uma ordem muito maior em que estamos todos inseridos, do homem mais sábio à partícula subatômica mais distante.

O modo como nos inserimos nesta ordem é o da nossa natureza; o cachorro é essencialmente diferente da samambaia, que é diferente do homem. Cada um desses seres tem uma natureza distinta. Essa natureza é ineludível; é impossível transformar um homem em cachorro ou um cacto em um gato. Só é possível, ainda que daninho, negar temporariamente um ou outro aspecto de uma natureza; é o que se faz quando se tranca um cão (e se o enlouquece!), negando o gregarismo da natureza canina.

Nossa sociedade é tão useira e vezeira em fazer este tipo de coisa que acaba se convencendo de que as naturezas não existem. Faleceu há pouco tempo um senhor que fizera operações plásticas sucessivas até adquirir uma aparência supostamente felina. Nasceu homem e morreu homem, todavia; qualquer gato que o cheirasse não teria dúvida disso.

Mas vivemos sob luzes artificiais, em ambientes em que o cinza predomina, comendo coisas que vêm em caixinhas com códigos de barra, sem jamais tocar os pés nus na terra úmida de orvalho, sem ter consciência das fases da lua (mesmo as mulheres, tão intimamente ligadas a ela, frequentemente não se dão conta de como variam seus ciclos hormonais).

É nesta artificialidade do nosso modo de viver que vêm as negações mais radicais da natureza humana: os comunistas e nazistas, no século passado, mataram milhões de inocentes em tentativas naturalmente frustras de criar um Novo Homem. E ainda há, entre nossos poderosos, quem não tenha desistido.

Alguns se especializam em devaneios ligados à sexualidade, tentando reduzir o que é essencialmente um sistema reprodutivo a seus incentivos sensíveis acidentais, como se a degustação de chicletes fosse o mesmo que a nutrição. Outros, ainda, negam a agressividade humana e se dedicam à impossível tarefa de “recuperar” sociopatas ou, pior ainda, de pregar que eles seriam as verdadeiras vítimas, por não terem tido colinho, todinho ou carrinho. Para estes, as palmadas devem ser proibidas e as cadeias, fechadas.

Estão todos cegos para o essencial: a natureza humana não é um construto social, mas algo dado que nos cabe viver dentro da ordem de todas as coisas. Só assim se pode ter uma sociedade sã.

Por: Carlos Ramalhete professor.

Publicado no jornal Gazeta do Povo.

domingo, 10 de novembro de 2013

POR QUE O RETORNO AO MUNDO NATURAL TEM TANTO APELO, MAS NÃO LEVA A LUGAR NENHUM


BOM PRA QUEM, CARA PÁLIDA? 
Na raiz de todo ativismo violento está a noção utópica e errônea de que Thomas Hobbes pensou errado e, portanto, a vida selvagem é idílica, prazerosa e fraternal (Deagostini/Getty Images)

Por Eurípedes Alcântara, na VEJA:
“Sou homem. Nada do que é humano me é estranho”, já dizia o romano Terêncio, dramaturgo de apenas relativo sucesso do segundo século antes de Cristo. Mas temos de concordar com ele. Eta espécie complicada esta nossa. Depois de ralar durante milênios para construir uma civilização tecnológica com aviões, carros, internet, vacinas, antibióticos e anestesia, o bacana agora é lutar pela volta ao mundo natural. Depois de experimentar toda a sordidez da servidão humana aos mais sanguinários tiranos e de sofrer no lombo os mais odiosos arranjos coletivistas totalitários, ainda temos entre nós quem se encante com aiatolás-presidentes, mulás-chefes de po­lícia e caudilhos latino-americanos cobertos de adereços indígenas, medalhas no peito ou pancake no rosto. Depois de rios de sangue derramados para arrancar dos poderosos o compromisso inarredável com os direitos humanos, a justiça igualitária, o rodízio pacífico de poder, a organização econômica baseada no respeito à propriedade, aceitamos que mascarados aterrorizem as grandes cidades quebrando e queimando indiscriminadamente apenas porque estão incomodados com o estilo de vida da maioria. Depois do sacrifício dos mártires que deram a vida para impor o uso apenas legítimo da força pelos governantes, impedindo que o Estado use brucutus para impor a vontade dos ricos sobre os pobres, dos fortes sobre os fracos, ficamos contra os policiais que tentam impedir o triunfo do reino de terror nas ruas. Depois de tudo isso, esquecemos que o que nos trouxe ao atual estágio civilizatório foi o trabalho obstinado e austero de mentes brilhantes em ambientes monásticos e idolatramos os barulhentos ativistas.

A ÚNICA CHANCE?de salvar os cães é nos salvar, ou seja, acelerar os avanços científicos e tecnológicos, e não colocar obstáculos intransponíveis a eles

?Esse é o dilema oculto do ativista, a pessoa que se cansou de esperar que as coisas ocorram naturalmente da maneira como ela imagina, e vai à luta para tentar embicar o mundo para o rumo que ela acha certo e com o uso das armas que ela própria acha conveniente usar. Os ativistas que libertam cães em São Paulo, que quebram vitrines em Londres e Paris, que se propõem a ocupar Wall Street, em Nova York, têm em comum a ideia de que a lei e a ordem existem apenas para garantir o modo de vida das pessoas das quais eles discordam – ou, frequentemente, que eles odeiam. Outro ponto comum, em geral inconsciente, para a maioria deles, é a negação do que em sociologia se chama “contrato social”, que nada mais é do que a aceitação da tese de que sua liberdade termina onde começa a do outro. Os filósofos da baderna sustentam que isso que denominamos civilização não passa de uma grande e castrante prisão, à qual somos moldados desde o nascimento, primeiro pelo amor materno e paterno, depois pela educação formal, mais tarde pela democracia representativa, pelo consumo, pela arte degenerada e pelos remédios antidepressivos.

Para quem pensa assim, nós todos vivemos uma vida vicária, uma vida substituta, uma vida no lugar da verdadeira vida que está… que está… que está onde? Ora, na natureza, no mundo selvagem, nas selvas, florestas e savanas, na cova dos leões onde seremos recebidos com lambidas fraternas como aquelas que as feras ofereceram ao profeta Daniel. O que muito se discute atualmente é se a ideia de que o homem solto na natureza, fora do alcance das leis, das instituições, completamente alheio às convenções sociais, estaria mesmo condenado à perversão moral e ao sofrimento físico, vítima da “guerra de todos contra todos”, como o inglês Thomas Hobbes disse ser a vida humana “em estado natural”. É disso que se trata. A vontade de ser seu próprio juiz, único e absoluto, do que é certo ou errado é o traço filosófico que une os ativistas que desprezam as leis, que lutam contra moinhos de vento ditatoriais em pleno regime democrático, contra as injustiças sociais em um Brasil onde há pleno emprego, contra a violência policial quando são eles que mais agridem e vandalizam. Thomas Hobbes escreveu que, fora dos arranjos sociais em que as pessoas obedecem a regras em troca do direito à convivência em sociedade, a vida do homem é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”. Hoje, o bacana é apostar que Hobbes pensou errado e que a verdadeira conquista é escapar dos contratos sociais. O preço a pagar para testar aquela hipótese é muito alto. Como é impagável também o preço de um mundo sem ativismo, sem idealismo, sem sonhos.

A REVOLTA DA VACINA – No Rio Janeiro, em 1904, o medo da vacinação obrigatória contra a varíola gerou protestos violentos, como este na Praça da República?

O engajamento solidário em causas consideradas justas é uma das grandes conquistas da modernidade. Divisor de águas é o caso do jovem capitão Alfred Dreyfus, judeu falsamente acusado de espionagem e condenado no fim do século XIX em uma França antissemita. A injustiça contra ele foi tão flagrante que se mobilizaram em sua defesa cientistas, artistas, escritores e estudantes . “Meu dever é falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele não cometeu”, dizia a famosa carta aberta ao presidente da República escrita por Émile Zola em um jornal sob o título: “Eu Acuso…!”. Por serem homens de letras e de ciências, os defensores de Dreyfus eram chamados de modo depreciativo de “intelectuais”. Logo o termo ganhou a conotação positiva de “sábio engajado”. Claro que havia idealismo, sacrifício e nobreza de espírito antes do caso Dreyfus, mas nunca antes tantas pessoas haviam se mobilizado por uma causa sem que tivessem interesse direto nela – seja partidário, religioso, nacionalista, patriótico ou étnico. Elas se mobilizaram contra uma injustiça flagrante. Contra isso sempre valerá a pena lutar.

Por Reinaldo Azevedo

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

APRENDER

Há muitos pais que reclamam do comportamento dos filhos em relação à vida escolar. Em geral, porque eles não se esforçam, acham muito chato aprender e dizem que não gostam de estudar; também porque resistem até o fim para sentar em casa e realizar a tarefa e/ou rever a matéria; e porque não conseguem prestar atenção. Além desses, há os que afirmam que o filho apresenta "dificuldade de aprendizagem".


Em relação a essa última questão, é preciso considerar que essa frase é vazia, sem sentido. Aprender algo novo é sempre difícil, por mais que a pessoa queira ou goste. Para aprender, é preciso reconhecer a própria ignorância, e isso tem sido cada vez mais difícil no nosso mundo.

Em resumo: todos nós temos dificuldades de aprendizagem, por isso seria interessante deixarmos de lado esse rótulo quando nos referimos aos mais novos.

Retomemos as primeiras razões das reclamações dos pais e vamos pensar no quanto eles mesmos colaboram para que tudo aquilo aconteça com o filho, sem que eles percebam sua contribuição.

E, de largada, vamos lembrar: quando a criança inicia seus estudos formais, ela terá de persistir, se esforçar, encarar o erro e procurar não repeti-lo, aprender a "grudar a bunda na cadeira" cada vez por mais tempo e a seguir um processo.

A maioria dos pais reconhece tais requisitos mas, na hora de tentar passar aos filhos, comete um equívoco: o de dizer à criança o que ela precisa fazer, na esperança de que ela apreenda as lições dos pais e passe a aplicá-las nos estudos. Costuma ser em vão essa estratégia, porque as crianças continuam com os mesmos comportamentos.

É que elas precisam aprender isso com os pais no cotidiano. Para ilustrar essa questão, vou usar um exemplo muito presente na vida dos mais novos: os convites para comparecer a festas de aniversários. Aliás, nunca antes as crianças tiveram tantas demandas para eventos sociais. Será bom para elas essa alta frequência? Ainda não sabemos.

Qual costuma ser o comportamento das crianças em relação aos convites que recebem? Primeiramente, elas não pensam se querem mesmo ir ou não. Desconfio que elas acham que o comparecimento a essas festas é obrigatório, como ir à escola.

Elas não pensam porque os pais não as levam a isso. Perguntar ao filho qual ou quais motivos ele tem para querer ir à festa pode ser um bom começo. Ele gosta do colega? Tem boa convivência com ele? Quer brincar com outras crianças? Entretanto, o motivo mais utilizado, o de que "todo mundo vai", não deve ser suficiente para convencer os pais.

Depois disso, sair em busca de um presente para o colega. Pensar na idade dele, do que ele gosta, de suas características, usar uma faixa de preço para escolher, ir com os pais até a loja e --por que não?-- contribuir com parte de sua mesada são questões que também ajudam a criança a vivenciar um processo do começo ao fim dele.

Ir a uma festa exige uma preparação: não é apenas ir e se divertir, não é verdade?

Muitas crianças só se defrontam com os processos da vida na escola e, por isso, resistem tanto, reclamam tanto, acham tão chato. A escola tem sido, para muitas delas, a única instituição a exigir delas dedicação, esforço, perseverança, espera, contenção, planejamento etc.

Desde antes dos sete anos a criança já pode, em família, começar a vivenciar todas essas questões. Afinal, pertencer a uma família já é um processo que exige muito, não é?

Mas parece que temos deixado a criança concluir que pertencer a uma família é puro desfrute e que aprender algo deve ser fácil.
Por: Rosely Sayão  Folha de SP

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

DOENÇA

Psiquiatra diz que a medicina transformou comportamentos normais em doença


A "caixa da normalidade" está cada vez menor e a culpa é do excesso de diagnósticos de doenças mentais, diz o psiquiatra americano Dale Archer, autor do best-seller "Better than Normal", recém-lançado no Brasil com o título "Quem Disse que É Bom Ser Normal?" (Sextante, 224 págs., R$ 24,90).

Archer, 57, é psiquiatra clínico desde 1987 e fundou um instituto de neuropsiquiatria em Lake Charles, Louisiana (EUA). Em 2008, ele notou que havia algo errado com os seus pacientes: a maioria dizia ter um transtorno mental e precisar de remédios --só que eles não tinham nada.

"Estamos 'patologizando' comportamentos normais. E isso não é só culpa da psiquiatria", disse Archer, à *Folha, por telefone.

Um quarto dos adultos americanos têm uma ou mais doenças mentais diagnosticadas, segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA. "Isso está errado. Há uma gama de comportamentos que não são doença."

Em um ativismo "pró-normalidade", Archer descreve oito traços de personalidade comumente ligados a transtornos, como ansiedade (veja acima), e afirma que não há nada errado com essas características, a não ser que sejam muito exacerbadas.

"O remédio tem que ser o último recurso, e não é o que eu vejo. As pessoas entram em um consultório e saem com uma receita médica. A psicoterapia é subestimada."

De outubro de 2012 a setembro de 2013, o mercado de antidepressivos e estabilizadores de humor movimentou mais de R$ 2 bilhões no Brasil, segundo dados da consultoria IMS Health. Nos últimos cinco anos, o número de unidades vendidas desses remédios cresceu 61%.

Para Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, os diagnósticos aumentaram, sim, mas da mesma forma como aumentou os de outras doenças, de diabetes a câncer. "Isso é resultado da evolução da medicina e da facilidade de acesso."

O mesmo pensa o psiquiatra Fabio Barbirato, da Santa Casa do Rio de Janeiro. "Também aumentou o número de prescrições de insulina e anti-hipertensivo. Isso ninguém questiona. Mas quando se fala de mente, da psique, todos têm uma opinião", afirma.

Segundo Silva, o problema é o subdiagnóstico. Para ele, há mais deprimidos sem tratamento do que pessoas sem depressão sendo tratadas.

Barbirato dá como exemplo o TDAH (transtorno do deficit de atenção e hiperatividade). "O número de crianças com prescrição de remédios não chega a 1,5% no Brasil, e a estimativa mais baixa de presença de TDAH no país é de 1,9%. Há crianças sem tratamento."

CRITÉRIO ANTIGO
Para a psicóloga Marilene Proença, professora da USP, a sociedade está "medindo" as crianças com réguas antigas. "Os critérios de diagnóstico de TDAH esperam uma criança que brinque calmamente, que levante a mão para perguntar algo. Isso não condiz com o papel da criança na sociedade. Ela está exposta a muitos estímulos e é tudo muito competitivo", diz.

Para a psiquiatra e psicanalista Regina Elisabeth Lordello Coimbra, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, as pessoas estão menos tolerantes às emoções.

"Há pouco lugar para a tristeza. E a exaltação e excitação são confundidas com felicidade. Vivemos de uma forma mais estimulante, na qual emoções mais depressivas, reflexivas, não têm espaço."

De acordo com Silva, o que caracteriza a doença mental é a gravidade dos sintomas. "Deixa de ser normal quando a pessoa tem prejuízo, quando está tão triste que não consegue sair da cama."

Ele argumenta que "invariavelmente" encaminha os pacientes para a psicoterapia. E garante: nem sempre eles saem do consultório com uma receita médica.
JULIANA VINES  DE SÃO PAULO  FOLHA DE SP

terça-feira, 5 de novembro de 2013

DIÁRIO DA EUROPA

1.

São os objectos das vítimas que mais impressionam em Auschwitz. Entramos no campo, visitamos o "museu" e lá estão: atrás do vidro, uniformes, malas, sapatos, pentes, escovas de dentes etc.

Quando estive em Auschwitz - infeliz frase, esta: "quando estive em Auschwitz" - um dos turistas desmaiou à minha frente. Dizem que acontece várias vezes e normalmente naquela sala. Como se os objectos dos mortos transportassem ainda a evidência tangível dos crimes.

Nada que tenha impedido alguns mercenários de colocarem no eBay dezenas de itens do Holocausto. A começar por um daqueles uniformes que vemos nos filmes, à venda por US$ 18 mil (R$ 41 mil). A empresa desculpou-se pelo lapso, removeu a "memorabilia" do Holocausto e prometeu apertar a vigilância dos produtos que vão a leilão. Fez bem.
Mas, pessoalmente, a única dúvida que fica é saber que tipo de gente estaria disposta a dar R$ 41 mil pelo uniforme de um padeiro polonês assassinado na câmara de gás.

Tarados existem em todo o lado, sim. Mas o único motivo pelo qual lamento o cancelamento do leilão está na impossibilidade de sabermos, agora, quem gostaria de ter em casa, provavelmente para usar como pijama, o tipo de roupa que costuma fazer desmaiar os turistas que vão a Auschwitz.

2.
E para continuar no mesmo espírito: por que não usar mais vezes a guilhotina na execução de condenados à morte? A pergunta foi formulada recentemente por John Kruzel na "Slate". Faz todo o sentido.

Sou contra a pena de morte porque existem certos avanços morais e civilizacionais que não devem ser jogados pelo cano. John Kruzel também é contra.

Mas se os Estados Unidos têm experimentado dificuldades no acesso aos químicos que permitem a injecção letal, então a boa e velha lâmina do dr. Guillotin talvez fosse uma hipótese a considerar. E com vantagens. Três, escreve Kruzel. Subscrevo cada uma delas.

A primeira é que os órgãos dos executados poderiam ser usados em transplantes (o que não acontece nas execuções eléctricas ou químicas, que danificam irremediavelmente o organismo).

A segunda é que o método é barato, rápido e consta que indolor (pelo menos, não há nenhum histórico de queixas sobre o assunto).

E a terceira é que permitiria aos adeptos da causa a contemplação empírica do acto punitivo que defendem. Aliás, acrescento: se as decapitações fossem transmitidas pela tv, de preferência na hora do jantar, melhor ainda.

É fácil defender a pena de morte quando não sabemos o que isso realmente significa. A guilhotina seria pelo menos uma ajuda visual para quem sofre de certas formas de cegueira.

3.
Começou Novembro com o seu Dia de Finados. Os cemitérios portugueses recebem as famílias que ainda prestam homenagem aos falecidos. No Brasil presumo que seja igual.

Mas esse ano comprovei um fenómeno que se adensa ano após ano: são poucas as pessoas com menos de 40 anos nos cemitérios. Com menos de 30, uma absoluta raridade. O que significa tudo isso? Que Evelyn Waugh acertou com meio século de avanço.

No seu hilariante "The Loved One", o escritor inglês já tinha retratado uma sociedade que tudo faz para negar a morte e que até transforma os funerais em espectáculos "kitsch" que servem o mesmo propósito: apagar a inevitabilidade dolorosa do fim.

Hoje, dominados pela cultura da Saúde e da Juventude (as únicas divindades adoradas no mundo pós-cristão), não admira que os cemitérios se esvaziem ano após ano. Eles são a recordação tangível dessa doença chamada "mortalidade".

Desconfio até que, no futuro próximo, os defuntos passarão a ser despachados por mecanismos mais rápidos e higiénicos, como nas descargas dos vasos sanitários.

E os cemitérios serão como as ruínas pré-históricas de Stonehenge: simples resquícios de culturas primitivas como a nossa.

Por: João Pereira Coutinho Folha de SP

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

DA FALSIDADE

Dias sombrios. Nesses momentos, volto às minhas origens filosóficas, o jansenismo francês do século 17 e seu produto essencial, "les moralistes" (que em filosofia nada tem a ver com "moralista" no senso comum). Os moralistas franceses eram grandes especialistas do comportamento, da alma e da natureza humana. Nietzsche, Camus, Bernanos e Cioran eram leitores desses gênios da psicologia. Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère foram os maiores moralistas.


O Brasil, que sempre foi violento, agora tem uma nova forma de violência, aquela "do bem". E, aparentemente, quase todo mundo supostamente "inteligente" assume que é chegada a hora de quebrar tudo. Nada de novo no fronte: os seres humanos sempre gostaram da violência e alguns inventam justificativas bonitas pra serem violentos.

Impressiona-me a face de muitos desses ativistas que encheram a mídia nas ultimas semanas. Olhar duro, sem piedade, movido pela certeza moral de que são representantes "do bem". Por viver a milhares de anos-luz de qualquer possibilidade de me achar alguém "do bem", desconfio profundamente de qualquer pessoa que se acha "do bem". Quando o país é tomado por arautos do "bem social", suspeito de que chegue a hora em que a única saída seja fugir.

A fuga do mundo ("fuga mundi") sempre foi um tema filosófico, inclusive entre os jansenistas, conhecidos como "les solitaires" por buscarem viver longe do mundo. Eles tinham uma visão da natureza humana pautada pela suspeita da falsidade das virtudes. O nome "jansenista" vem do fato de eles se identificarem com a versão "dura" (sem a graça de Deus, o homem não sai do pecado) da teoria da graça agostiniana feita pelo teólogo Cornelius Jansenius, que viveu no século 16.

Pascal, La Fontaine e Racine eram jansenistas. Aliás, grande parte da elite econômica e intelectual francesa da época foi jansenista. Por isso, apesar de Luís 13 e 14 (e de seus cardeais Richelieu e Mazarin) e da Igreja os perseguirem, nunca conseguiram de fato aniquilá-los.

Hoje, por termos em grande medida escapado das armadilhas morais do cristianismo (não que eu julgue o cristianismo um poço de armadilhas, muito pelo contrário), tais como repressão do outro, puritanismo, intolerância, assumimos que escapamos da natureza humana e de sua vocação irresistível à repressão do outro, ao puritanismo e à intolerância.

Elas apenas trocaram de lugar. A face do ativista trai sua origem no inquisidor.

Uma das maiores obras do jansenismo é "La Fausseté des Vertus Humaines" (a falsidade das virtudes humanas), de Jacques Esprit, do século 17. Ele foi amigo pessoal do Conde de La Rochefoucauld. Alguns especialistas consideram o conde um discípulo de Esprit. A edição da Aubier, de 1996, traz um excelente prefácio do "jansenista contemporâneo" Pascal Quignard.

O pressuposto de Esprit é que toda demonstração de virtude carrega consigo uma mentira e que as pessoas que se julgam virtuosas são na realidade falsas, justamente pela certeza de que são virtuosas.

A certeza acerca da sua retidão moral é sempre uma mistificação de si mesmo. Os jansenistas sempre disseram que os que se julgam virtuosos são na verdade vaidosos. Suspeito que o que vi nos olhos desses ativistas nessas últimas semanas era a boa e velha vaidade.

Mas hoje, como saiu de moda usar os pecados como ferramentas de análise do ser humano e passamos a acreditar em mitos como dialética, povo e outros quebrantos, a vaidade deixou de ser critério para analisarmos os olhos dos vaidosos. Melhor para eles, porque assim podem ser vaidosos sem que ninguém os perceba. Vivemos na época mais vaidosa da história.

"A verdade não é primeira: ela é uma desilusão; ela é sempre uma desmistificação que supõe a mistificação que a funda e que ela (a desmistificação) desnuda", afirma Pascal Quignard no prefácio do livro de Esprit. Eis a ideia de moral no jansenismo: a verdade moral é sempre negativa, sempre ilumina a sombra que se esconde por trás daquele que se julga justo.

Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas.

Por: Luis Felipe Pondé  Folha de SP

domingo, 3 de novembro de 2013

APOSTAR NA EXISTÊNCIA DE DEUS OU NÃO?

Querido leitor, que você esteja em paz. Quem ou o que é Deus? Há conceitos e explicações das mais diversas e, é claro, a filosofia e também seus filósofos, tentaram e ainda tentam desmistificar geralmente pela razão. Para tanto hoje, então, trago Blaise Pascal, filósofo, teólogo e matemático francês, nascido em Clemont no ano de 1623, que certa vez comentou: "O coração tem suas razões que a própria razão desconhece”.


Em seu livro Pensamentos, Blaise Pascal escreve que a imaginação dispõe de tudo, ela produz beleza, justiça e felicidade. Mas como a imaginação, em geral, leva ao equívoco, então a beleza, a justiça e a felicidade que ela produz normalmente são falsas. 

Por intermédio desse escrito, um de seus objetivos era mostrar aos Libertins que a vida de prazer que haviam escolhido não era o que eles imaginavam. Embora acreditassem que tinham eleito o caminho pela razão, eles teriam sido, de fato, iludidos pelo poder da imaginação.

Para os Libertins retornarem à igreja, Pascal criou um argumento conhecido como aposta de Pascal. Aqui ele admitia que não era possível dar bons fundamentos racionais para a crença religiosa, como queriam os Libertins, porém, Pascal tentou oferecer bons fundamentos racionais para se querer ter tais crenças. E quais eram esses fundamentos? 

Consistiam em comparar os possíveis ganhos e perdas ao se fazer uma aposta na existência de Deus. 

O filósofo argumentou que, ao apostar que Deus não existe, há a possibilidade de perder muito - a felicidade infinita no céu - ou ganhar pouco - um sentido finito de independência neste mundo. Já a aposta de que Deus existe traz o risco de perder pouco ou a chance de ganhar muito. Assim, seria mais racional, sob esse aspecto, acreditar em Deus. Naquele mundo racional me parece ser um bom argumento, o que você pensa sobre isso?

Se por esse motivo ou não, o certo é que alguns libertins, tempos depois, começaram uma jornada lenta de retorno a Igreja metodista no qual Blaise Pascal era teólogo e um dos fundadores. Assim como Pascal, muitos outros filósofos racionalistas tentaram provar a existência de Deus pela razão.

Então Deus é razão ou é sentimento? Deus é verbo ou substantivo? 

Lembrando que isso era assim para Blaise Pascal.

Por: Beto Colombo Do site: www.filosofiaclinicasc.com.br 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A HISTÓRIA DO GRANDE RACIONAMENTO DE PALAVRAS

Conto de Tage Danielsson 

Tradução do sueco de Janer Cristaldo 


Um dia disse Nosso Senhor à sua mulher: 

- Ouve, Elvira, é algo absolutamente incrível o que os homens falam e falam sem parar. Acho que a situação piorou nos últimos tempos com tagarelices cada vez mais sem sentido. Para alguém como eu que tudo vê e tudo ouve, devo confessar que isso se torna um pouco irritante. 

- Não seja idiota, Karl-Ragnar - disse a mulher de Nosso Senhor -. Uma conversinha de quando em quando, podes muito bem permitir aos pobres coitados. 

- Besteiras aqui, besteiras lá, besteiras por todo lado - disse Nosso Senhor - mas agora vou terminar com este eterno blá-blá-bá. Acho que vou racionar um pouco as palavras. 

- Então faz o favor de te limitar aos teus homens - atalhou a mulher de Nosso Senhor -. Não te mete com minhas colegas, lembra-te bem disto. 

- Não vamos brigar por uma coisinha destas - disse Nosso Senhor, conciliante -. Se todos os homens se tornam um pouco mais silenciosos, a coisa já melhora. 

Nosso Senhor sentou-se e pensou: "Não será agora que vou ser parcimonioso, mas, pelo contrário, fartamente generoso. Vou dar-lhes dez mil palavras por dia, isto certamente lhes será suficiente. Vejamos... isto dá três milhões e seiscentas e cinqüenta mil palavras ao ano... acho que posso deixar de lado um acréscimo extra para os anos bissextos, este dia eles podem muito bem calar a boca em nome da paz... e assim em 78 anos teremos... bem, se ofereço a cada um cem milhões de palavras, contadas desde o nascimento, eles têm em todo caso uma boa margem para conversa fiada".

Nosso Senhor expediu uma circular com este conteúdo a todos os seres humanos do sexo masculino. Comunicava ainda que cada ocasião que alguém ultrapassasse a cifra exata de um milhão de palavras, soaria uma pequena campainha no ouvido do próprio. E quando a provisão de palavras estivesse quase esgotada e restassem apenas dez palavras, a campainha emitiria sinais curtos durante um minuto. 

Nosso Senhor calculara certo, como sempre. A consciência de que a provisão de palavras era racionada fez com que muitos dos mais loquazes senhores na terra se pusessem a pensar um pouco mais cada vez que soava a campainha. Talvez eu tenha falado demais, pensavam. Talvez eu deva pensar um pouco mais e falar um pouco menos. E assim pensavam um pouco antes de continuar a falar. Para suas alegrias, observaram que suas conversas dali por diante se tornaram mais coerentes e interessantes de serem ouvidas, e tiveram grande sucesso na vida graças à sábia decisão de Nosso Senhor. Até aqui, apenas três pessoas deram cabo de suas cem milhões de palavras. 

O primeiro foi um sacerdote que durante muitos anos de serviço desfiava as escrituras em tão longas prédicas que a campainha lhe tilintava freqüentemente no ouvido. Ele no entanto não se preocupava muito com aqueles avisos da campainha, pois achava que na condição de servidor de Nosso Senhor, certamente teria direito a uma reserva extra de palavras caso sua quota chegasse ao fim. 

Um dia, justo quando havia começado sua prédica dominical, ouviu os curtos e insistentes sinais que significavam que agora ele tinha apenas dez palavras. Mas nem ligou para isso. "O chefe certamente me fornecerá um acréscimo extra, bom como ele é", pensou despreocupadamente. 

Encontrava-se em meio a um raciocínio que começara com a caminhada de Jesus sobre as águas e continuava com uma comparação entre o passeio divino e o comportamento ímpio que dão prova muitos escravos do pecado em nossos tempos dissolutos ao banharem-se embriagados e nus, à noite, nos chafarizes em frente a nossos museus e instituições de cultura. E continuou como se nada tivesse acontecido em seus ouvidos: 

- Objetará então o pecador: não é pecado gozar a vida. 

Um silêncio divino inundou a igreja. Os paroquianos despertaram surpresos de suas semi-sonolências. Terminaria a prédica com estas palavras? Sim, pelo jeito, pois o pastor mantinha o rosto entre as mãos e nada mais dizia. Após alguns instantes, um órgão perplexo começou a soar. 

Naquele dia todos chegaram alegres da missa em bom tempo para escutar programas da velha guarda, fortalecidos na alma pelas palavras finais do pastor que diziam não ser pecado gozar a vida. 

- Foi uma prédica extraordinariamente linda - diziam os paroquianos um para o outro, e ninguém entendeu porque depois daquele domingo o pastor foi conduzido para um silencioso serviço na secretaria da paróquia. 

O segundo pela ordem a ser atingido pelo racionamento de palavras foi um relações-públicas do ramo de detergentes. Sua profissão consistia em ser excepcionalmente gentil, da manhã à noite, e em especial durante o almoço e a janta, com todas as pessoas que sua firma entrava em contato. Então vocês podem imaginar que o relações-públicas conhecia todas as histórias engraçadas sobre detergentes que existiam e mais algumas ainda, e além disso dominava a arte de sorrir todo o tempo com seus dentes alvíssimos enquanto falava, de forma que as pessoas ficavam loucas por ele e por seus detergentes. 

- Cada vez que eu abro a boca, um par de meias é jogado em nosso detergente em alguma parte do mundo - costumava dizer com seu sorriso irresistível e, como isto havia sido calculado pelo departamento de estatística de sua firma, era indubitavelmente verdade. 

Para um tal relações-públicas, a campainha evidentemente soava com freqüência. Após cada sinal ele ficava algo pensativo e naquele dia não tomava nenhum Dry Martini, pois Dry Martini lhe soltava de tal modo a língua que lindas palavras e lindos slogans lhe fluíam da boca sorridente como um lindo rio onde as associações de donas-de-casa e revendedores se afogavam prazerosamente. 

Quando soaram os últimos e repetidos sinais curtos em seus ouvidos ele estava almoçando, por custa de sua firma, com uma delegação do Instituto de Pesquisas Domésticas. Já havia tomado seu Dry Martini aquele dia, e antes de perceber exatamente que soara o último sinal, deixou escapar: 

- Apanhem o detergente que quiserem e comparem-no ao nosso. 

Então controlou-se. Por Deus, a campainha das dez palavras. E nove já haviam sido ditas! Uma única palavra, pensou ele, uma única! 

Enfiou a mão no elegante bolso de seu casaco e apanhou um pacotinho com o deteergente de sua firma, que sempre carregava consigo. Despejou uma dose mortal do detergente em sua taça de vinho, ergueu com seu sorriso alvíssimo a taça ante os encantados delegados do Instituto de Pesquisas Domésticas e disse: 

- Delicioso. 

Bebeu e caiu, elegantemente morto. Pois um relações-públicas não pode viver sem a possibilidade de dizer sem cessar coisas lindas. 

Naturalmente agora vocês se perguntam quem foi o terceiro homem a dar cabo de suas cem milhões de palavras. Pois bem, vou dizer-lhes, foi um político. Ele desenrolava textos e conversava fiado e lançava acusações e sofismava e esbravejava tanto que antes mesmo de ter chegado aos cinqüenta a campainha já havia soado em seus ouvidos noventa e nove vezes. E agora se aproximavam as eleições e nosso político sentou-se em uma mesa em companhia de seus adversários e de um apresentador, para um debate na TV. 

O político do qual falo olhava fixamente para a câmara e disse no seu minuciosamente ocupado espaço onze mil quinhentas e sessenta e três palavras, entre as quais podemos escolher, ao azar: segurança, todos, aposentadoria, vocês mentem, padrão de vida, conspiração, eleitores querem saber, aposentadoria, besteiras, 1956, orçamento, homens do povo, grupos de baixo salário, confiança e aposentadoria. Ao chegar ao apelo final soaram os pequenos sinais curtos nos ouvidos daquele político. Ficou tão estupefato que disse espontaneamente a todo mundo: - Já disse tantas bobagens que agora eu calo a boca. 

Graças a este apelo final aquele político foi escolhido para ministro e governou por muitos anos. Como não podia mais dedicar-se a cacetear os eleitores com conversa fiada, dispunha então do dia inteiro para pensar um pouco e executar uma série de medidas, de modo que se tornou um dos melhores ministro de Estado que este país teve, como consta nos Anais do Partido. E se não estivesse morto, estaria governando ainda. 

Enquanto vocês lêem isto, Nosso Senhor fez um levantamento para sua mulher do resultado de seu grande racionamento de palavras. 

Podes notar que tudo ficou significativamente mais silencioso agora, Elvira - disse ele -. Seria agora o caso de pensarmos em estender as determinações de racionamento inclusive ao campo das mulheres, não achas? Hás de convir, tu que falas a todo instante de emancipação e dessa papagaiada toda. (Lá no fundo, Nosso Senhor pensou que seria melhor se inclusive sua mulher fosse submetida ao racionamento, mas evidentemente nem tocou no assunto). 

- Emancipação aqui, emancipação acolá - disse a mulher de Nosso Senhor -. Mas um racionamento desses para mulheres tu só vais estabelecer em cima de meu cadáver, Karl-Ragnar. 

E o fato é que a mulher de Nosso Senhor nunca morre. Esta é a sorte de vocês, adoráveis tagarelas. 
Por: Janer Cristaldo