segunda-feira, 4 de novembro de 2013

DA FALSIDADE

Dias sombrios. Nesses momentos, volto às minhas origens filosóficas, o jansenismo francês do século 17 e seu produto essencial, "les moralistes" (que em filosofia nada tem a ver com "moralista" no senso comum). Os moralistas franceses eram grandes especialistas do comportamento, da alma e da natureza humana. Nietzsche, Camus, Bernanos e Cioran eram leitores desses gênios da psicologia. Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère foram os maiores moralistas.


O Brasil, que sempre foi violento, agora tem uma nova forma de violência, aquela "do bem". E, aparentemente, quase todo mundo supostamente "inteligente" assume que é chegada a hora de quebrar tudo. Nada de novo no fronte: os seres humanos sempre gostaram da violência e alguns inventam justificativas bonitas pra serem violentos.

Impressiona-me a face de muitos desses ativistas que encheram a mídia nas ultimas semanas. Olhar duro, sem piedade, movido pela certeza moral de que são representantes "do bem". Por viver a milhares de anos-luz de qualquer possibilidade de me achar alguém "do bem", desconfio profundamente de qualquer pessoa que se acha "do bem". Quando o país é tomado por arautos do "bem social", suspeito de que chegue a hora em que a única saída seja fugir.

A fuga do mundo ("fuga mundi") sempre foi um tema filosófico, inclusive entre os jansenistas, conhecidos como "les solitaires" por buscarem viver longe do mundo. Eles tinham uma visão da natureza humana pautada pela suspeita da falsidade das virtudes. O nome "jansenista" vem do fato de eles se identificarem com a versão "dura" (sem a graça de Deus, o homem não sai do pecado) da teoria da graça agostiniana feita pelo teólogo Cornelius Jansenius, que viveu no século 16.

Pascal, La Fontaine e Racine eram jansenistas. Aliás, grande parte da elite econômica e intelectual francesa da época foi jansenista. Por isso, apesar de Luís 13 e 14 (e de seus cardeais Richelieu e Mazarin) e da Igreja os perseguirem, nunca conseguiram de fato aniquilá-los.

Hoje, por termos em grande medida escapado das armadilhas morais do cristianismo (não que eu julgue o cristianismo um poço de armadilhas, muito pelo contrário), tais como repressão do outro, puritanismo, intolerância, assumimos que escapamos da natureza humana e de sua vocação irresistível à repressão do outro, ao puritanismo e à intolerância.

Elas apenas trocaram de lugar. A face do ativista trai sua origem no inquisidor.

Uma das maiores obras do jansenismo é "La Fausseté des Vertus Humaines" (a falsidade das virtudes humanas), de Jacques Esprit, do século 17. Ele foi amigo pessoal do Conde de La Rochefoucauld. Alguns especialistas consideram o conde um discípulo de Esprit. A edição da Aubier, de 1996, traz um excelente prefácio do "jansenista contemporâneo" Pascal Quignard.

O pressuposto de Esprit é que toda demonstração de virtude carrega consigo uma mentira e que as pessoas que se julgam virtuosas são na realidade falsas, justamente pela certeza de que são virtuosas.

A certeza acerca da sua retidão moral é sempre uma mistificação de si mesmo. Os jansenistas sempre disseram que os que se julgam virtuosos são na verdade vaidosos. Suspeito que o que vi nos olhos desses ativistas nessas últimas semanas era a boa e velha vaidade.

Mas hoje, como saiu de moda usar os pecados como ferramentas de análise do ser humano e passamos a acreditar em mitos como dialética, povo e outros quebrantos, a vaidade deixou de ser critério para analisarmos os olhos dos vaidosos. Melhor para eles, porque assim podem ser vaidosos sem que ninguém os perceba. Vivemos na época mais vaidosa da história.

"A verdade não é primeira: ela é uma desilusão; ela é sempre uma desmistificação que supõe a mistificação que a funda e que ela (a desmistificação) desnuda", afirma Pascal Quignard no prefácio do livro de Esprit. Eis a ideia de moral no jansenismo: a verdade moral é sempre negativa, sempre ilumina a sombra que se esconde por trás daquele que se julga justo.

Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas.

Por: Luis Felipe Pondé  Folha de SP

domingo, 3 de novembro de 2013

APOSTAR NA EXISTÊNCIA DE DEUS OU NÃO?

Querido leitor, que você esteja em paz. Quem ou o que é Deus? Há conceitos e explicações das mais diversas e, é claro, a filosofia e também seus filósofos, tentaram e ainda tentam desmistificar geralmente pela razão. Para tanto hoje, então, trago Blaise Pascal, filósofo, teólogo e matemático francês, nascido em Clemont no ano de 1623, que certa vez comentou: "O coração tem suas razões que a própria razão desconhece”.


Em seu livro Pensamentos, Blaise Pascal escreve que a imaginação dispõe de tudo, ela produz beleza, justiça e felicidade. Mas como a imaginação, em geral, leva ao equívoco, então a beleza, a justiça e a felicidade que ela produz normalmente são falsas. 

Por intermédio desse escrito, um de seus objetivos era mostrar aos Libertins que a vida de prazer que haviam escolhido não era o que eles imaginavam. Embora acreditassem que tinham eleito o caminho pela razão, eles teriam sido, de fato, iludidos pelo poder da imaginação.

Para os Libertins retornarem à igreja, Pascal criou um argumento conhecido como aposta de Pascal. Aqui ele admitia que não era possível dar bons fundamentos racionais para a crença religiosa, como queriam os Libertins, porém, Pascal tentou oferecer bons fundamentos racionais para se querer ter tais crenças. E quais eram esses fundamentos? 

Consistiam em comparar os possíveis ganhos e perdas ao se fazer uma aposta na existência de Deus. 

O filósofo argumentou que, ao apostar que Deus não existe, há a possibilidade de perder muito - a felicidade infinita no céu - ou ganhar pouco - um sentido finito de independência neste mundo. Já a aposta de que Deus existe traz o risco de perder pouco ou a chance de ganhar muito. Assim, seria mais racional, sob esse aspecto, acreditar em Deus. Naquele mundo racional me parece ser um bom argumento, o que você pensa sobre isso?

Se por esse motivo ou não, o certo é que alguns libertins, tempos depois, começaram uma jornada lenta de retorno a Igreja metodista no qual Blaise Pascal era teólogo e um dos fundadores. Assim como Pascal, muitos outros filósofos racionalistas tentaram provar a existência de Deus pela razão.

Então Deus é razão ou é sentimento? Deus é verbo ou substantivo? 

Lembrando que isso era assim para Blaise Pascal.

Por: Beto Colombo Do site: www.filosofiaclinicasc.com.br 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A HISTÓRIA DO GRANDE RACIONAMENTO DE PALAVRAS

Conto de Tage Danielsson 

Tradução do sueco de Janer Cristaldo 


Um dia disse Nosso Senhor à sua mulher: 

- Ouve, Elvira, é algo absolutamente incrível o que os homens falam e falam sem parar. Acho que a situação piorou nos últimos tempos com tagarelices cada vez mais sem sentido. Para alguém como eu que tudo vê e tudo ouve, devo confessar que isso se torna um pouco irritante. 

- Não seja idiota, Karl-Ragnar - disse a mulher de Nosso Senhor -. Uma conversinha de quando em quando, podes muito bem permitir aos pobres coitados. 

- Besteiras aqui, besteiras lá, besteiras por todo lado - disse Nosso Senhor - mas agora vou terminar com este eterno blá-blá-bá. Acho que vou racionar um pouco as palavras. 

- Então faz o favor de te limitar aos teus homens - atalhou a mulher de Nosso Senhor -. Não te mete com minhas colegas, lembra-te bem disto. 

- Não vamos brigar por uma coisinha destas - disse Nosso Senhor, conciliante -. Se todos os homens se tornam um pouco mais silenciosos, a coisa já melhora. 

Nosso Senhor sentou-se e pensou: "Não será agora que vou ser parcimonioso, mas, pelo contrário, fartamente generoso. Vou dar-lhes dez mil palavras por dia, isto certamente lhes será suficiente. Vejamos... isto dá três milhões e seiscentas e cinqüenta mil palavras ao ano... acho que posso deixar de lado um acréscimo extra para os anos bissextos, este dia eles podem muito bem calar a boca em nome da paz... e assim em 78 anos teremos... bem, se ofereço a cada um cem milhões de palavras, contadas desde o nascimento, eles têm em todo caso uma boa margem para conversa fiada".

Nosso Senhor expediu uma circular com este conteúdo a todos os seres humanos do sexo masculino. Comunicava ainda que cada ocasião que alguém ultrapassasse a cifra exata de um milhão de palavras, soaria uma pequena campainha no ouvido do próprio. E quando a provisão de palavras estivesse quase esgotada e restassem apenas dez palavras, a campainha emitiria sinais curtos durante um minuto. 

Nosso Senhor calculara certo, como sempre. A consciência de que a provisão de palavras era racionada fez com que muitos dos mais loquazes senhores na terra se pusessem a pensar um pouco mais cada vez que soava a campainha. Talvez eu tenha falado demais, pensavam. Talvez eu deva pensar um pouco mais e falar um pouco menos. E assim pensavam um pouco antes de continuar a falar. Para suas alegrias, observaram que suas conversas dali por diante se tornaram mais coerentes e interessantes de serem ouvidas, e tiveram grande sucesso na vida graças à sábia decisão de Nosso Senhor. Até aqui, apenas três pessoas deram cabo de suas cem milhões de palavras. 

O primeiro foi um sacerdote que durante muitos anos de serviço desfiava as escrituras em tão longas prédicas que a campainha lhe tilintava freqüentemente no ouvido. Ele no entanto não se preocupava muito com aqueles avisos da campainha, pois achava que na condição de servidor de Nosso Senhor, certamente teria direito a uma reserva extra de palavras caso sua quota chegasse ao fim. 

Um dia, justo quando havia começado sua prédica dominical, ouviu os curtos e insistentes sinais que significavam que agora ele tinha apenas dez palavras. Mas nem ligou para isso. "O chefe certamente me fornecerá um acréscimo extra, bom como ele é", pensou despreocupadamente. 

Encontrava-se em meio a um raciocínio que começara com a caminhada de Jesus sobre as águas e continuava com uma comparação entre o passeio divino e o comportamento ímpio que dão prova muitos escravos do pecado em nossos tempos dissolutos ao banharem-se embriagados e nus, à noite, nos chafarizes em frente a nossos museus e instituições de cultura. E continuou como se nada tivesse acontecido em seus ouvidos: 

- Objetará então o pecador: não é pecado gozar a vida. 

Um silêncio divino inundou a igreja. Os paroquianos despertaram surpresos de suas semi-sonolências. Terminaria a prédica com estas palavras? Sim, pelo jeito, pois o pastor mantinha o rosto entre as mãos e nada mais dizia. Após alguns instantes, um órgão perplexo começou a soar. 

Naquele dia todos chegaram alegres da missa em bom tempo para escutar programas da velha guarda, fortalecidos na alma pelas palavras finais do pastor que diziam não ser pecado gozar a vida. 

- Foi uma prédica extraordinariamente linda - diziam os paroquianos um para o outro, e ninguém entendeu porque depois daquele domingo o pastor foi conduzido para um silencioso serviço na secretaria da paróquia. 

O segundo pela ordem a ser atingido pelo racionamento de palavras foi um relações-públicas do ramo de detergentes. Sua profissão consistia em ser excepcionalmente gentil, da manhã à noite, e em especial durante o almoço e a janta, com todas as pessoas que sua firma entrava em contato. Então vocês podem imaginar que o relações-públicas conhecia todas as histórias engraçadas sobre detergentes que existiam e mais algumas ainda, e além disso dominava a arte de sorrir todo o tempo com seus dentes alvíssimos enquanto falava, de forma que as pessoas ficavam loucas por ele e por seus detergentes. 

- Cada vez que eu abro a boca, um par de meias é jogado em nosso detergente em alguma parte do mundo - costumava dizer com seu sorriso irresistível e, como isto havia sido calculado pelo departamento de estatística de sua firma, era indubitavelmente verdade. 

Para um tal relações-públicas, a campainha evidentemente soava com freqüência. Após cada sinal ele ficava algo pensativo e naquele dia não tomava nenhum Dry Martini, pois Dry Martini lhe soltava de tal modo a língua que lindas palavras e lindos slogans lhe fluíam da boca sorridente como um lindo rio onde as associações de donas-de-casa e revendedores se afogavam prazerosamente. 

Quando soaram os últimos e repetidos sinais curtos em seus ouvidos ele estava almoçando, por custa de sua firma, com uma delegação do Instituto de Pesquisas Domésticas. Já havia tomado seu Dry Martini aquele dia, e antes de perceber exatamente que soara o último sinal, deixou escapar: 

- Apanhem o detergente que quiserem e comparem-no ao nosso. 

Então controlou-se. Por Deus, a campainha das dez palavras. E nove já haviam sido ditas! Uma única palavra, pensou ele, uma única! 

Enfiou a mão no elegante bolso de seu casaco e apanhou um pacotinho com o deteergente de sua firma, que sempre carregava consigo. Despejou uma dose mortal do detergente em sua taça de vinho, ergueu com seu sorriso alvíssimo a taça ante os encantados delegados do Instituto de Pesquisas Domésticas e disse: 

- Delicioso. 

Bebeu e caiu, elegantemente morto. Pois um relações-públicas não pode viver sem a possibilidade de dizer sem cessar coisas lindas. 

Naturalmente agora vocês se perguntam quem foi o terceiro homem a dar cabo de suas cem milhões de palavras. Pois bem, vou dizer-lhes, foi um político. Ele desenrolava textos e conversava fiado e lançava acusações e sofismava e esbravejava tanto que antes mesmo de ter chegado aos cinqüenta a campainha já havia soado em seus ouvidos noventa e nove vezes. E agora se aproximavam as eleições e nosso político sentou-se em uma mesa em companhia de seus adversários e de um apresentador, para um debate na TV. 

O político do qual falo olhava fixamente para a câmara e disse no seu minuciosamente ocupado espaço onze mil quinhentas e sessenta e três palavras, entre as quais podemos escolher, ao azar: segurança, todos, aposentadoria, vocês mentem, padrão de vida, conspiração, eleitores querem saber, aposentadoria, besteiras, 1956, orçamento, homens do povo, grupos de baixo salário, confiança e aposentadoria. Ao chegar ao apelo final soaram os pequenos sinais curtos nos ouvidos daquele político. Ficou tão estupefato que disse espontaneamente a todo mundo: - Já disse tantas bobagens que agora eu calo a boca. 

Graças a este apelo final aquele político foi escolhido para ministro e governou por muitos anos. Como não podia mais dedicar-se a cacetear os eleitores com conversa fiada, dispunha então do dia inteiro para pensar um pouco e executar uma série de medidas, de modo que se tornou um dos melhores ministro de Estado que este país teve, como consta nos Anais do Partido. E se não estivesse morto, estaria governando ainda. 

Enquanto vocês lêem isto, Nosso Senhor fez um levantamento para sua mulher do resultado de seu grande racionamento de palavras. 

Podes notar que tudo ficou significativamente mais silencioso agora, Elvira - disse ele -. Seria agora o caso de pensarmos em estender as determinações de racionamento inclusive ao campo das mulheres, não achas? Hás de convir, tu que falas a todo instante de emancipação e dessa papagaiada toda. (Lá no fundo, Nosso Senhor pensou que seria melhor se inclusive sua mulher fosse submetida ao racionamento, mas evidentemente nem tocou no assunto). 

- Emancipação aqui, emancipação acolá - disse a mulher de Nosso Senhor -. Mas um racionamento desses para mulheres tu só vais estabelecer em cima de meu cadáver, Karl-Ragnar. 

E o fato é que a mulher de Nosso Senhor nunca morre. Esta é a sorte de vocês, adoráveis tagarelas. 
Por: Janer Cristaldo

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O HOMEM QUE RESSUSCITOU A FILOSOFIA NO BRASIL

Olavo de Carvalho volta sua mente para problemas reais e tenta solucioná-los à luz de uma inegável erudição filosófica, sem medo de ser acusado de ecletismo.


Historicamente, a filosofia se situa entre o laboratório e o templo. Enquanto o cientista é o escravo dos fatos e o sacerdote é o servo da fé, o filósofo é filho da liberdade de pensamento e sua atividade intelectual não encontra limites. A função essencial da filosofia, mais do que oferecer respostas, é formular perguntas. Ela não se rende, de antemão, nem ao experimento nem ao milagre e submete um e outro ao escrutínio da razão — desconfiando da própria racionalidade. Isso faz com que a dúvida seja o alimento essencial do filósofo, não para negar a verdade, mas para buscá-la em sua pureza, mesmo sabendo que, no mais das vezes, essa é uma missão inglória. Buscar a verdade é tarefa de Sísifo, o personagem da mitologia grega condenado a empurrar uma pedra até o topo de um monte apenas para vê-la rolar outra vez ao chão, tendo de repetir para sempre o esforço inútil.

Mas, em sua luta vã com a verdade, o filósofo antigo iluminava o mundo. Desde que os gregos emanciparam a filosofia da religião, ousando questionar os deuses, o filósofo libertou ao máximo a força criativa do homem, contribuindo para o advento da ciência e a consolidação das instituições políticas. Basta lembrar que, entre 343-342 a.C., Aristóteles foi convidado por Felipe da Macedônia para ser o preceptor de Alexandre, o Gran­de, então com 13 anos de idade. “Aristóteles, desejando renovar suas antigas relações com a corte macedônica e atribuindo grande importância à educação de futuros soberanos, como podemos ver na ‘Política’, aceita o convite”, conta o filósofo escocês William David Ross (1877-1971) em sua obra sobre Aristóteles, publicada em 1923.

Segundo W. D. Ross, pouco se sabe sobre a educação que Aristóteles ministrava a seu pupilo, mas acredita-se que provavelmente tratava de Homero e dos trágicos, cujo estudo constituía o fundamento da educação grega. Além disso, Aristóteles compôs para Alexandre uma obra sobre a monarquia e outra sobre as colônias, temas de especial interesse para o futuro imperador. Mas, com o avanço da ciência, o conhecimento se tornou cada vez mais especializado e o filosofo perdeu esse lugar social de codificador do saber. Cada vez mais, a filosofia tende a se ver como uma espécie de juízo sobre a própria capacidade do conhecimento humano, tendência que ganharia força com as decisivas contribuições de David Hume (1711-1776) a esse ramo da filosofia.

Uma cultura de comentadores 
Há centenas, senão milhares de definições de filosofia. Elas são quase tão numerosas quanto os pensadores ao longo dos séculos, pois cada filósofo tende a definir a filosofia à sua imagem e semelhança. Em seu monumental “Diccio­nario de Filosofia”, o filósofo espanhol José Ferrater Mora (1912-1991), citando Josef Pieper, observa que, “enquanto perguntar ‘Que é a física?’ não é formular uma pergunta pertencente à ciência física, senão uma pergunta prévia, perguntar ‘Que é a filosofia?’ é formular uma pergunta filosófica — uma pergunta eminentemente filosófica”. Dessa forma, conclui Ferrater Mora, “cada sistema filosófico pode valer como uma resposta à pergunta acerca do que é a filosofia e também acerca do que a atividade filosófica representa para a vida humana”.

Todavia, como sustenta o filósofo italiano Nicola Abbagnano (1901-1990), também autor de um “Dicionário de Filosofia”, a despeito da disparidade de significações de “filosofia”, é possível reconhecer nelas algumas constantes, entre as quais, segundo ele, “a que mais se presta a relacionar e articular os diferentes significados desse termo é a definição contida no ‘Eutidemo’ de Platão: filosofia é o uso do saber em proveito do homem”.

E assim chegamos a Olavo de Carvalho — o homem que ressuscitou a filosofia no Brasil. Sim, talvez sem exagero, pode-se atribuir a ele esse feito — o de repor a filosofia no seu curso natural preconizado por Platão, isto é, como “uso do saber em proveito do homem”. Antes de Olavo de Carvalho, a filosofia brasileira estava confinada às universidades, transformada em atividade eminentemente historiográfica, como denunciou o filósofo equatoriano, radicado em Goiás, Gonçalo Armijos Palácios no delicioso e antológico “De Como Fazer Filosofia Sem Ser Grego, Estar Morto ou Ser Gênio”, opúsculo de 74 páginas originalmente publicado pela Universidade Federal de Goiás em 1997.

“Ainda não há no Brasil — lamentavelmente — uma cultura de filósofos e sim uma cultura de comentadores”, dizia taxativamente Gonçalo Palácios na primeira edição de seu livro, que teve edições revisadas posteriormente. Além de ser declaradamente de esquerda, o que o põe quase a salvo da patrulha politicamente correta, Gonçalo Palácios dispõe de inegável autoridade para criticar os problemas da academia: tem dois doutorados em filosofia, um no Equador e outro nos Estados Unidos, e é professor titular da Universidade Federal de Goiás desde 1992, ocupando vários cargos de direção e pesquisa na instituição. Ninguém pode negar que ele conhece a academia por dentro.

Isso torna insuspeita sua contundente avaliação sobre o ensino de filosofia no País. No opúsculo citado, Gonçalo Palácios sustenta: “A academia não produziu uma cultura filosófica brasileira, mas uma subcultura dependente, quase que absolutamente, do que se faz em culturas estrangeiras (às custas do dinheiro público, permita-me dizer)”. E reitera: “Não me passa pela cabeça dizer que se deve fazer uma filosofia ‘brasileira’. Só exijo que se faça ‘qualquer’ filosofia, mas que se faça, se produza, filosofia ‘no’ Brasil". É o que Olavo de Carvalho se propôs a fazer e fez — talvez, por isso, seja tratado como réprobo nas universidades brasileiras.

Dedo em riste na cara do leitor
Ao contrário dos filósofos acadêmicos, que se limitam a “fazer leitura” e “trabalhar conceitos”, geralmente de um só autor, Olavo de Carvalho volta sua mente para problemas reais e tenta solucioná-los à luz de uma inegável erudição filosófica, sem medo de ser acusado de ecletismo. Paulista de Campinas, onde nasceu em 1947, é autor de uma vasta obra filosófica, que inclui “O Jardim das Aflições”, talvez sua obra-prima, publicado já em forma de livro e não como coletânea de artigos esparsos. O livro, que reflete sobre o surgimento do Império mundial, nasceu como uma espécie de tréplica ampliada de uma palestra sobre Epicuro proferida no Masp pelo filósofo José Américo Motta Pessanha (1932-1993), idealizador da Coleção “Os Pensadores” da Editora Abril. 

É ainda autor, entre outras obras, da “Coleção História Essencial da Filosofia”, publicada pela Editora É Realizações em 32 volumes, acompanhados de DVD com palestras do autor com aproximadamente 120 minutos cada uma. Mas, para o bem ou para o mal, o Olavo de Carvalho mais conhecido é o dos polêmicos artigos de combate, reunidos primeiramente no livro “O Imbecil Coletivo”, que deu fama ao autor quando publicado em 1996, seguido de um segundo volume.

Escrevendo com extrema graça, ironizando os adversários e rindo de si mesmo, Olavo de Carvalho se firmou como um polemista imbatível na década de 90. Houve um momento em que escrevia regularmente nos jornais “O Globo”, “Zero Hora” e “Jornal da Tarde”, colaborava com a “Fo­lha de S. Paulo” e publicava nas revistas “Bravo” e “Primeira Lei­tu­ra”. Atualmente, reside nos Es­ta­dos Unidos e colabora com o “Diá­rio do Comércio”, da As­sociação Comercial de São Paulo.

Foi desse manancial de artigos que saiu “O Mínimo Que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota” (Editora Record, 2013, 616 páginas), o mais novo livro de Olavo de Carvalho, que reúne 193 artigos do filósofo publicados entre 1997 e 2013, tratando dos mais variados temas. Ao contrário de “O Imbecil Coletivo”, que remete a uma entidade na terceira pessoa, o novo livro é um dedo em riste na cara do leitor chamando-o, sem meios-termos, de “idiota”. Se tivesse sido organizado pelo próprio autor, poderia ser considerado até deselegante. Mas a organização da obra é do jornalista, tradutor e articulista Felipe de Moura Brasil, que decidiu criar, à sua maneira, uma espécie de enciclopédia “Olavo de Carvalho”. Colaborador do “Mídia Sem Máscara” e autor do bem-humorado “Blog do Pim”, Felipe Moura Brasil escreve com graça e estilo. 

Tão importante quanto se ter num só livro dezenas de artigos antológicos de Olavo de Carvalho é saber que essa coletânea foi elaborada por um jovem de vinte e poucos anos, dono de uma precoce maturidade intelectual. Como o próprio Felipe Moura Brasil explica na introdução do livro, “O Mínimo Que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota” é mais do que uma simples compilação de artigos; é sim, “uma compilação de temas essenciais — todos eles renegados à obscuridade no país —, sobre os quais os artigos vêm lançar luz, importando para a seleção menos a data e o veículo em que foram publicados do que o potencial de cada um em iluminar esses temas”. Felipe Moura Brasil diz que a seleção de textos é resultado de seus estudos da obra de Olavo de Carvalho e conta ter priorizado os textos mais sintéticos.

O peso da vanguarda revolucionária
Os artigos foram agrupados por temas, começando pelos que dizem respeito à formação do indivíduo, como “Juventude”, “Co­nhecimento” e “Vocação” e prosseguindo com aqueles que tratam de sua participação na sociedade, como “Democracia”, “Socialismo” e “Militância”. Cada tema engloba três ou mais artigos, como “Re­volução”, com oito subtemas, cada um com vários artigos. Um dos temas forma um verdadeiro capítulo do livro, que o organizador intitulou “In­telligentzia (“Ou Pode Chamar de Máfia”). É nesse tema que se enfeixa o artigo “Abaixo o povo brasileiro”, publicado em 24 de agosto de 2009 no “Diário do Comércio”, em que Olavo de Carvalho sustenta: “Nunca o abismo entre a elite falante e a realidade da vida popular foi tão profundo, tão vasto, tão intransponível. Tudo o que o povo ama, os bem-pensantes odeiam; tudo o que ele venera, eles desprezam; tudo o que ele respeita, eles reduzem a objeto de chacota, quando não de denúncia indignada, como se estivessem falando de um risco de saúde pública, de uma ameaça iminente à ordem constitucional, de uma epidemia de crimes e horrores jamais vistos”.

Essa afirmação do filósofo foi motivada por uma pesquisa da Universidade Federal de Per­nambuco, mostrando que 81% dos jovens universitários discordavam da liberação da maconha e 76% eram contra o aborto, numa prova inconteste de que o povo brasileiro — como qualquer povo mentalmente saudável — é conservador. Mas, como Olavo de Carvalho insiste em denunciar em dezenas de artigos, esse caráter conservador do povo — que abrange até os jovens universitários — não tem qualquer representação política, pois o PSDB é o máximo de “direitismo” que a esquerda dominante admite. 

Escreve Olavo de Carvalho no artigo citado: “Quando uma vanguarda revolucionária professa defender os interesses econômicos do povo mas, ao mesmo tempo, despreza a sua religião, a sua moral e as suas tradições familiares, é claro que não quer fazer o bem a esse povo, mas apenas usar aqueles interesses como chamariz para lhe impor valores que não são os dele, firmemente decidida a atirá-lo à lata de lixo se ele não concordar em remoldar-se à imagem e semelhança de seus novos mentores e patrões”.

O filósofo alerta: “É precisamente isto o que está acontecendo. Jogam ao povo as migalhas do Bolsa-Família, mas se, em troca dessa miséria, ele não passa a renegar tudo o que ama e a amar tudo o que odeia, se não consente em tornar-se abortista, gayzista, quotista racial, castrochavista, pró-terrorista, defensor das drogas e amante de bandidos, eles o marginalizam, excluem-no da vida pública, e ainda se acreditam merecedores da sua gratidão porque lhe concedem de quatro em quatro anos, democraticamente, generosamente, o direito de votar em partidos que representam o contrário de tudo aquilo em que ele crê”.

Filósofo é pai da nova direita
Em 2014, por exemplo, essa história vai se repetir. Pesquisa Datafolha, publicada na segunda-feira, 14, mostra que a quantidade de eleitores identificados com valores de direita é bem maior do que de esquerda. Enquanto a direita reúne 49% da população, a esquerda representa apenas 30% — apesar de todo o bombardeio ideológico esquerdista nas universidades, imprensa, cinema, música, telenovelas etc. Mas, como adverte a própria reportagem da “Folha de S. Paulo” sobre a pesquisa, isso produz pouco impacto nos índices de intenção de voto para presidente no próximo ano. A presidente Dilma Rousseff lidera nos três espectros ideológicos, alcançando de 49% a 56% das intenções de voto entre os eleitores de esquerda; de 40% a 42% entre os de centro-esquerda; de 41% a 43% entre os de centro; de 38% a 41% entre os de centro-direita; e de 36% a 39% entre os de direita.

O novo livro de Olavo de Carvalho — considerado um filósofo de direita, em consonância com essa maioria pesquisada pelo Datafolha — entrou na lista dos dez mais vendidos. É uma prova de que sua luta quase solitária na década de 90, que por um momento parecia inglória, rendeu frutos. Olavo de Carvalho é uma espécie de pai da nova direita intelectual brasileira, que já dispõe de alguns expoentes na imprensa nacional, como o jornalista Rei­nal­do Azevedo, o economista Rodrigo Constantino, o filósofo Luiz Felipe Pondé, o historiador Marco Antonio Villa e o filósofo Denis Lerrer Rosenfield. É claro que essa classificação não é rigorosa e, num país politicamente normal, é possível que todos os articulistas citados, inclusive Constantino, pudessem ser qualificados no centro do espectro ideológico. Mas no país em que até o esquerdista José Serra é tachado de liberal, alguém precisa fazer o papel da direita, mesmo sabendo que os rótulos são reducionistas.

Foi Olavo de Carvalho quem abriu caminho para todos esses articulistas. O sucesso de livros como “O Imbecil Coletivo” mostrou aos editores de jornal que havia espaço para um pensamento liberal e conservador, de caráter mais transcendental, diferente do liberalismo de Paulo Francis, materialista até as vísceras e, por isso mesmo, mais próximo da esquerda do que aparentava. Mas o fato de já existirem meia dúzia de liberais e conservadores escrevendo regularmente na imprensa não significa que a hegemonia da esquerda está prestes a ser quebrada. O advento dessa nova direita é sobejamente compensado pela ideologização a plenos pulmões da OAB e do Judiciário, que flertam cada vez mais com o fascismo de esquerda, travestido de politicamente correto.

Olavo de Carvalho e as universidades
Por isso, iniciativas como a do embrionário Partido Novo, que se coloca à direita do espectro político, estão fadadas ao fracasso, como alerta, aliás, o próprio Olavo de Carvalho. A hegemonia eleitoral da esquerda não será quebrada enquanto o País não produzir intelectuais conservadores e liberais com capacidade para influir nas instituições. Olavo de Carvalho fez e faz muitos discípulos, mas sua obra continua à margem das instituições de peso. Ninguém sabe de sua existência na escola básica e, no ensino superior, seu nome é temido ou desprezado. Na imprensa, seus artigos entram como um contraponto exótico ao politicamente correto, na cota do “outro lado” — papel que, por sinal, o excelente Luiz Felipe Pondé volta e meia assume de bom grado, o que me parece um grave erro.

Apesar de seu sucesso, o livro “O Mínimo Que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”, longe de romper a barreira da academia em relação à obra de Olavo de Carvalho, pode até reforçá-la. O organizador do livro, apesar de resgatar o filósofo por trás de cada artigo do polemista, faz uma interpretação autoral de sua obra, algo que os acadêmicos detestam. Felipe de Moura Brasil trata Olavo de Carvalho com a admiração que os escolásticos devotavam a Aristóteles, o que, para uma universidade intoxicada de Marx e Foucault, é uma heresia, ainda que a obra de Olavo de Carvalho já tenha começado a penetrar timidamente nos cursos de pós-graduação. Mas que aluno terá coragem de citar na sua bibliografia um livro que traz na lombada a palavra “idiota” em caracteres gigantescos? Pode ser mais um pretexto para o professor marxista banir Olavo de Carvalho da cátedra. Só Marilena Chauí xinga a classe média de “desgraça” e continua desfrutando de respeito na academia.

Um exemplo da tímida penetração de Olavo de Carvalho na academia é a dissertação de mestrado de Alex Antonio Peña-Alfaro, defendida na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Pernambuco em 2005, em que o autor utiliza fartamente o livro “Aristóteles em Nova Pers­pectiva”. Mas o único trabalho acadêmico dedicado exclusivamente a uma obra de Olavo de Carvalho ainda é a dissertação de mestrado de Lucas Patschiki, defendida na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), em que o autor analisa o sítio “Mídia Sem Máscara”, criado pelo filósofo, e o enquadra entre os “cães de guarda da classe dominante”. 

Como se vê, ainda deve demorar para que a obra de Olavo de Carvalho, sobrepondo-se às paixões ideológicas, fale à razão dos acadêmicos. Nesse dia, o mínimo que se poderá saber sobre Olavo de Carvalho é que ele não é o “profeta” de alguns de seus discípulos nem o “astrólogo” da maioria de seus detratores — é apenas um grande filósofo e um grande escritor. E isso é o máximo que um pensador pode almejar.
Por:José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.
Publicado no Jornal Opção.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

HOMENS E ANIMAIS

É uma marca de progresso: a discussão sobre os "direitos dos animais" chegou ao Brasil. Com estrondo: leio nesta Folha que centenas de cachorros foram resgatados de um instituto de pesquisa médica no Estado de São Paulo. A violência veio a seguir, com carros vandalizados ou completamente destruídos.


Nada de novo na frente ocidental. Na Inglaterra, por exemplo, tenho amigos que trabalham com ratinhos de laboratório em suas pesquisas científicas. Nenhum deles comenta o fato em ambientes, digamos, sociais. Como bares, cinemas, restaurantes. Nunca se sabe: pode haver um fanático da "libertação animal" por perto e as coisas descarrilam facilmente.

Como já descarrilaram no passado: histórias de insultos, ameaças de morte, agressões físicas e até profanação de sepulturas de familiares de cientistas fazem parte do cardápio. Na experimentação médica, o silêncio, e não o cachorro, é o melhor amigo do homem. Como se chegou até aqui?

O filósofo Roger Scruton escreveu um livro a respeito ("Animal Rights and Wrongs", editora Continuum, 224 págs.) que ajuda a explicar o fenômeno.

E o fenômeno explica-se com o declínio da religião nas sociedades ocidentais: quando os homens acreditavam que eram os seres superiores da criação, ninguém pensava nos "direitos" ou nas "sensibilidades" dos bichos. Nós, e apenas nós, tínhamos sido criados à imagem e semelhança do Pai. Não havia como confundir um ser humano com um batráquio.

A "morte de Deus" alterou a discussão: se não existe um Pai com seus filhos prediletos, então todos somos habitantes do mesmo espaço --e todos somos, como diria o extravagante Peter Singer, criaturas dotadas de "senciência", ou seja, capazes de experimentar a dor e o prazer. Donde, evitar a dor é um imperativo tão legítimo para humanos como para animais.

Claro que, nas teorias de "libertação animal", nem todos os animais desfrutam da mesma sorte empática: acredito que mesmo Peter Singer, nas tardes de insuportável calor australiano, também seja capaz de matar uma mosca ou duas. Mas o leitor entende a ideia: se conseguirmos imaginar um animal a falar e a cantar num filme Disney, por que não conceder-lhe estatuto moral pleno?

Porque isso é uma aberração filosófica, explica ainda Roger Scruton sobre o argumento Disney: existem traços básicos da nossa comum humanidade que estão ausentes do restante mundo animal. São esses traços que fazem com que "nós", e apenas "nós", sejamos seres morais no sentido pleno da palavra.

"Nós", e apenas "nós", somos capazes de julgar, meditar, revisitar o passado, planear o futuro --desde logo porque somos seres temporais por excelência, conscientes da nossa história e do nosso fim.

"Nós", e apenas "nós", somos dotados de imaginação e, sobretudo, de "imaginação moral": somos capazes de rir, corar, sentir remorsos ou alimentar indignações (e premeditadas vinganças).

E, talvez mais importante, "nós", e apenas "nós", somos capazes de reivindicar e defender "direitos", o que implica que "nós", e apenas "nós", somos capazes de entender o que significam certos "deveres". Como, desde logo, o "dever" de não infligir dano desnecessário sobre animais (moscas excluídas).

Será a pesquisa científica um "dano desnecessário sobre animais"?

Não creio, sobretudo quando contemplo as alternativas. O americano Carl Cohen, outro filósofo sobre estas matérias que também recomendo aos interessados (com o seu "The Animal Rights Debate"), é primoroso ao colocar o problema no seu duplo e potencial impasse: os defensores da libertação animal preferem que sejam os homens a tomar o lugar dos bichos nos laboratórios?

Ou preferem antes que não existam mais cobaias nos laboratórios e que os avanços científicos possam parar de vez neste ano da graça de 2013?

Boas perguntas. Esperemos pelas respostas. Mas, até lá, talvez não fosse inútil convidar os militantes da "libertação animal" a recusarem daqui para a frente todos os tratamentos médicos que têm no seu historial o uso de animais em laboratório. Em nome da coerência.

Se isso significar, no limite, a morte de alguns dos militantes, tanto melhor: unidos na vida, unidos na morte.

Por: João Pereira Coutinho Folha de SP

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

LEITURA COMO CURA

Hoje quero falar de dois sintomas que marcam nossa época. O primeiro sintoma é a falação ruidosa de nosso mundo; o segundo é a ideia de que o mundo sofre porque não nos amamos e que tudo se resolveria se nos abraçássemos e parássemos de sermos gananciosos.


Fala-se demais hoje. Todos têm opinião. Até jovens de 20 anos são chamados a dar opinião sobre o mundo e a sociedade, quando mal sabem arrumar o quarto. E quando se elegem crianças de 25 anos como arautos da sociedade (adulto que faz isso, o faz, normalmente, para ter discípulos fiéis e fanáticos, ou porque é bobo mesmo), o resultado é que acaba se pensando que o mundo começou, como diz um amigo meu muito esquisito, em "Woodstock".

Quando se pensa isso, acaba-se imaginando que o problema do mundo é mesmo aprendermos que "all you need is love"... Infelizmente, a humanidade é mais complicada do que pensa nossa vã inteligência woodstockiana. Contra essa visão infantil da realidade (este é o segundo sintoma do qual falei acima), proponho a leitura da obra do grande crítico norte-americano Edmund Wilson. Vou a ele já; antes, quero voltar ao problema do ruído mais especificamente (o primeiro sintoma do qual falei acima).

Somos um grande mundo ridículo e falastrão. Decorrente dessa falação, um ruído infernal toma conta do dia a dia. O silêncio, às vezes, é um dos maiores indicativos de maturidade, não só de uma pessoa, mas de uma civilização.

Estou falando isso por conta de um breve ensaio que caiu na minha mão esses dias, parte integrante do volume "Best American Essays 2013", editado por Cheryl Strayed.

O ensaio ao qual me refiro foi escrito pela prêmio Nobel Alice Munro e chama-se "Night". Nele, a autora conta a operação que fez quando criança para tirar o apêndice e uma "coisa do tamanho de um ovo de peru". Munro compara o comportamento atual diante de casos como o dela e o comportamento de seus pais na época. A conclusão é que hoje se falaria como o diabo do risco que ela corria na época. Mas, ao contrário, pouco se falou do assunto, "respeitando o medo" sem falação. Conta Munro que, nessa época, ela dormia num beliche com sua irmã mais nova (moravam numa espécie de granja), e que numa noite olhou para a irmã e pensou em sufocá-la.

A partir daí, não conseguia mais dormir, pensando no ímpeto que tivera de matar sua irmã. Numa das manhãs seguintes a suas noites de insônia, encontrou com seu pai, todo vestido chique, saindo de casa de manhã muito cedo. Contou para ele o que pensara e o horror que sentira.

Seu pai simplesmente lhe disse que esquecesse aquilo e que essas coisas passam. Depois, adulta, lembra como o modo simples de falar do pai a acalmou profundamente. A pequena Alice nunca mais teve insônia.

Na sequência, a prêmio Nobel comenta que nunca perguntara ao pai para onde ele ia tão cedo e tão elegante. Perguntou-se se ele ia ao banco renegociar a dívida da família ou ver a mulher que amava, mas com quem não podia ficar porque amava sua família... Silêncio. Nem uma linha de rancor. Hoje, escreveriam uma tese sobre como seu pai poderia ter sido um homem desatento ou, quem sabe, infiel. Ao lembrar do seu pai no momento do reconhecimento em que recebera o prêmio, Munro pensa em como ele teria ficado orgulhoso de sua pequena filha insone.

Nessas horas, tenho saudade do passado e lamento como nos transformamos em adolescentes barulhentos que se levam demasiadamente a sério.

O segundo autor que quero comentar é Edmund Wilson, um dos últimos críticos literários, segundo Paulo Francis, a enfrentar a literatura sem se esconder atrás de grandes teorias abstratas (que se querem "concretas").

No volume editado por Francis pela Companhia das Letras em 1991, "Onze Ensaio - Literatura, Política, História", esgotado, aparece sua "visão de mundo": a história é um longo processo através do qual as civilizações se devoram, criando e destruindo, em círculos, indo para lugar nenhum. Concordo.

Pura coragem intelectual, que tanto faz falta hoje, nesta época de líderes adolescentes que creem em Woodstock como modelo de sociedade.

Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP   ponde.folha@uol.com.br

terça-feira, 22 de outubro de 2013

A MORAL DO BRASIL


Se você quer entender e não tem medo de perceber em que tipo de ambiente mental está metido nesse nosso Brasil, nada melhor do que estudar um pouco a Teoria do Desenvolvimento Moral de Lawrence Kohlberg. Enunciada pela primeira vez em 1958 e depois muito aperfeiçoada, ela mede o grau de consciência moral dos indivíduos conforme os valores que motivam as suas ações, numa escala que vai do simples reflexo de autopreservação natural até o sacrifício do ego ao primado dos valores universais.

Kohlberg, que foi professor de psicologia na Faculdade de Educação em Harvard, desenvolveu alguns testes para avaliar o desenvolvimento moral, mas os críticos responderam que isso só media a interpretação que os indivíduos testados faziam de si mesmos, não a sua motivação efetiva nas situações reais. Essa dificuldade pode ser neutralizada se em vez de testes tomarmos como ponto de partida as condutas reais, discernindo, por exclusão, as motivações que as determinaram.

Os graus admitidos por Kohlberg são seis. No mais baixo e primitivo, em que a conduta humana faz fronteira com a dos animais, a motivação principal das ações é o medo do castigo. É o estágio da “Obediência e Punição”. No segundo (“Individualismo e Intercâmbio”), o indivíduo busca conscientemente a via mais eficaz para satisfazer a seus próprios interesses e entende que às vezes a reciprocidade e a troca são vantajosas. No terceiro (“Relações Interpessoais”), os interesses imediatos cedem lugar ao desejo de captar simpatia, de ser aceito num grupo, de sentir que tem “amigos” e distinguir-se dos estranhos, dos concorrentes e inimigos. No quarto (“Manutenção da Ordem”), o indivíduo percebe que há uma ordem social acima dos grupos e empenha-se em obedecer as leis, em cumprir suas obrigações. No quinto (“Contrato Social e Direitos Individuais”), ele se torna sensível à diversidade de opiniões e entende a ordem social já não como um imperativo mecânico, mas como um acordo complexo necessário à convivência pacífica entre os divergentes, No sexto e último (“Princípios Universais”), ele busca orientar sua conduta por valores universais, mesmo quando estes entram em conflito com os seus interesses pessoais, com a vontade dos vários grupos ou com a ordem social presente.

Essas seis motivações refletem três níveis de moralidade: os dois primeiros expressam a “moralidade pré-convencional”; os dois intermediários a “moralidade convencional”, os dois últimos a “moralidade pós-convencional”.

Se não atentamos para os discursos, mas para as escolhas reais que as pessoas fazem na vida, não é preciso observar muito para notar que os indivíduos que nos governam, bem como os seus porta-vozes na mídia e nas universidades, não passam do terceiro estágio, o mais baixo da moralidade convencional, em que a identidade, a coesão e a solidariedade interna do grupo prevalecem sobre a ordem social, as leis, os direitos dos adversários e quaisquer valores universais que se possa conceber (e que desde esse nível de consciência são mesmo inconcebíveis, embora nada impeça que sua linguagem seja macaqueada como camuflagem dos desejos do grupo).

Duas condutas típicas atestam-no acima de qualquer dúvida possível. De um lado, a mobilização instantânea e geral em favor dos condenados do Mensalão. O instinto de autodefesa grupal predominou aí de maneira tão ostensiva e tão pública sobre as exigências da lei e da ordem, que até pessoas identificadas ideologicamente ao partido governante se sentiram escandalizadas diante dessa conduta.

De outro lado, não havendo nenhum movimento político “de direita” que se oponha ao grupo dominante, este dirige seus ataques contra meros indivíduos e movimentos de opinião sem a menor expressão política, fingindo e depois até sentindo ver neles uma ameaça eleitoral ou o perigo de um golpe de Estado. Aí o instinto de autodefesa grupal assume as dimensões de uma fantasia persecutória que se traduz na necessidade de calar por todos os meios qualquer voz divergente, por mais débil e apolítica que seja.

Também não é preciso nenhum estudo especial para mostrar que essa conduta, normal na adolescência, quando a solidariedade do grupo é uma etapa indispensável na consolidação da identidade pessoal, não é de maneira alguma aceitável em cidadãos adultos investidos de prestígio, autoridade e poder de mando. Aí ela passa a caracterizar precisamente a associação mafiosa, a solidariedade no crime.

É evidente que, numa sociedade onde essa é a mentalidade do grupo dominante, os níveis superiores de consciência moral (pós-convencionais) se tornam cada vez mais abstratos e inapreensíveis, de modo que o máximo de moralidade que se concebe é o quarto grau, o apego à lei e à ordem. Os indivíduos cuja conduta evidencia essa motivação tornam-se então emblemas do que de mais alto e sublime uma sociedade moralmente degradada pode imaginar, e são quase beatificados. O ministro Joaquim Barbosa é o exemplo mais típico.

Os dois graus superiores da escala são exemplificados por um número tão reduzido de pessoas, que já não têm nenhuma presença ou ação na sociedade e passam a existir apenas em versão caricatural, como fornecedores de chavões para legitimar e embelezar as condutas mais baixas. A autopreservação paranóica do grupo dominante envolve-se com freqüência na linguagem dos “direitos humanos” (quinto grau), e qualquer imbecil que tenha lido a Bíblia já sai usando a Palavra de Deus (sexto grau) como porrete para atemorizar os estranhos e impor a hegemonia do grupo “fiel” sobre os “infiéis” e “hereges”.

Isso, e nada mais que isso, é a moralidade nacional.

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.




domingo, 20 de outubro de 2013

HOMENS DE BEM

Você, leitor, é pessoa honesta e cumpridora. Trabalha. Paga as contas. É decente com a mulher e os filhos. Mas quando olha em volta, o cenário é selvagem. Os colegas usam e abusam da dissimulação e da mentira. Sem falar da corrupção de superiores hierárquicos ou de políticos nacionais, esse câncer que permite a muitos deles terem o carro, a casa, as férias, a vida que você nunca terá.

Para piorar as coisas, eles jamais serão punidos por suas viciosas condutas. A pergunta é inevitável: será que eu devo ser virtuoso? Será que eu devo educar os meus filhos para serem virtuosos?

Essas perguntas foram formuladas por Gustavo Ioschpe em excelente texto para a "Veja". De que vale uma vida ética se isso pode representar, digamos, uma "desvantagem competitiva"?

Boa pergunta. Clássica pergunta. Os gregos, que Ioschpe cita (e, de certa forma, rejeita), diziam que a prossecução do bem é condição necessária para uma vida feliz. Mas o que dizer de todas as criaturas que, praticando o mal, o fizeram de cabeça limpa por terem falsificado a sua própria consciência?

Apesar de tudo, Gustavo Ioschpe tenciona educar os filhos virtuosamente. Não por motivos religiosos, muito menos por temer as leis da sociedade. Mas porque assim dita a sua consciência. Um dia, quem sabe, talvez o Brasil acabe premiando essas virtudes.

A resposta é boa por seu otimismo melancólico. Mas, com a devida vênia ao autor, gostaria de deixar dois conselhos para acalmar tantas angústias éticas.
O primeiro conselho é para ele não jogar completamente fora as leis da sociedade na definição de boas condutas. Porque quando falamos de vidas éticas, falamos de duas dimensões distintas: uma dimensão pública, outra privada.

E, em termos públicos, acreditar que os homens podem ser anjos (para usar a célebre formulação do "Federalista") é o primeiro passo para uma sociedade de anarquia e violência.

Na esfera pública, eu gostaria que os homens fossem anjos; mas, conhecendo bem a espécie, talvez o mínimo a exigir é que eles sejam punidos quando se revelam diabos.

Se preferirmos, não são os homens públicos que têm de ser virtuosos; são as leis que devem ser implacáveis quando os homens públicos são viciosos.

Isso significa que a principal exigência ética na esfera pública não deve ser dirigida ao caráter dos homens --mas, antes, ao caráter das leis e à eficácia com que elas são aplicadas. No limite, é indiferente saber se os homens públicos são exemplos de retidão. O que importa saber é se a República o é.

Eis a primeira resposta para a pergunta fundamental de Gustavo Ioschpe: devemos educar os nossos filhos para a virtude? Afirmativo. Ninguém deseja para os filhos a punição exemplar das leis. E, como alguém dizia, é do temor das leis que nasce a conduta justa dos homens. Desde que, obviamente, as leis inspirem esse temor.

E em privado? Devemos ser virtuosos quando nem todos seguem a mesma cartilha e até parecem lucrar com isso?

Também aqui, novo conselho: não é boa ideia jogar fora os gregos. Sobretudo Aristóteles, que tinha sobre a matéria uma posição sofisticada e, opinião pessoal, amplamente comprovada.

Fato: não há uma relação imediata entre virtude e felicidade. Mas Aristóteles gostava pouco de resultados imediatos. O que conta na vida não são as vantagens que conseguimos no curto prazo. É, antes, o tipo de caráter que "floresce" (uma palavra cara a Aristóteles) no curso de uma vida.

E, para que esse caráter "floresça", as virtudes são como músculos que praticamos e desenvolvemos até ao ponto em que a "felicidade", na falta de melhor termo, se torna uma segunda natureza.

Caráter é destino, diria Aristóteles. O que permite concluir, inversamente, que a falta de caráter tende a conduzir a um triste destino. Exceções, sempre haverá. Mas, aqui entre nós, confesso que ainda não conheci nenhuma. Não conheço maus-caracteres que tiveram grandes destinos.

Sim, leitor, não é fácil olhar em volta e ver como a mesquinhez alheia triunfa e passa impune. Mas não confunda o transitório com o essencial.

E, sobretudo, nunca subestime a capacidade dos homens sem caráter para arruinarem suas próprias vidas.

Educar os filhos para serem "homens de bem" é também ajudá-los a evitar essa ruína.
Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

ELOGIO DA SINGULARIDADE

O homem, o que é? Diariamente o homem é definido, ora é um animal dotado de razão, dali a pouco já é um bárbaro que destrói o ambiente em que vive. Qual conceito seria o mais adequado para definir o homem? O foco está na palavra “conceito”, palavra de origem grega que define todo processo de descrição, classificação e previsão dos objetos do conhecimento. Conceituar o homem quer dizer descrevê-lo, classificá-lo e ter certa previsão sobre ele. Será que isso é possível? Olhe para o lado: você convive com várias pessoas no seu dia-a-dia. Pense na pessoa que você mais “conhece” e depois tente descrevê-la. Depois de descrever tente classificá-la, como seria? Boa, má, otimista, pessimista, inteligente, ignorante, quais seriam as classes que caberiam a ela, ou seria necessário criar classes para ela? Por fim, tente prever os comportamentos desta pessoa. Talvez reconheça que em alguns casos até mesmo coisas básicas não são previsíveis. Como se pode arrogar o direito de tentar definir conceitualmente o homem?

Quem sabe seja muito difícil definir o outro. Tente então conceituar a si mesmo, descrever-se, classificar-se e prever seus próprios comportamentos. Há uma gama vasta de pessoas que se espantam consigo mesmas, admiram o próprio comportamento, não sabiam que eram capazes. Como então, seria possível que eu, que não consigo conceituar a mim mesmo tenho a pretensão de conceituar todos os outros que estão ao meu redor? Um dos grandes exemplos desta dificuldade está em conceituar Deus: o que é? Quem é? Como conceituar? Vários filósofos tentaram conceituar Deus e tiveram sérios problemas, perceberam que a complexidade é muito maior que a capacidade humana de entendimento. Será que o ser humano também não é muito mais do que se tenta conceituar? Bom, mau, pecador, santo, humilde, soberbo, são todos conceitos atrelados a comportamentos e não a pessoas.

Não há nada de mau em um conceito, o problema está em ligar um conceito a uma pessoa. Quando você pega um conceito e liga-o a uma pessoa está personalizando um conceito, tornando-o palpável. A partir deste momento aquele conceito, avarento, por exemplo, passa a ser a própria pessoa e não seu comportamento. Por isso não é recomendável dizer: “Fulano é avarento”. Ao conceituar a pessoa como avarenta ela pode ser descrita como avarenta, ser classificada como avarenta e ser previsível como avarenta. O ser humano foi reduzido ao comportamento de juntar dinheiro, avarento é um adjetivo, ou seja, um atributo do substantivo. De comportamento pode-se levar para outras áreas, em alguns lugares pelo mundo o homem é reduzido à sua crença, em outros reduzido a sua cor de pele. Aqui, em nossa região o homem pode ser reduzido ao carro que tem na garagem, à casa que tem na praia ou não tem, às roupas que veste.

Cada ser é único, “inconceituável”, não é possível, por mais tempo e conhecimento que se tenha, conceituar um ser humano, quem dirá “o” ser humano. Alguns filósofos, algumas correntes filosóficas tentaram conceituar o ser humano, muitos acharam ter conseguido completar tal tarefa. Mas, ainda hoje, dois mil e quinhentos anos depois do início da trajetória o homem ainda não foi conceituado adequadamente, um dia talvez. Ao olhar para seu filho, não o conceitue, classifique ou tente prever seu comportamento, ao contrário, tente se aproximar, conhecer e, quem sabe um dia, você verá seu filho. O conceito é uma sombra nebulosa que cobre o ser e quanto mais forte for o conceito, menos se verá o ser.

Por: Rosemiro Sefstrom Do site www.filosofiaclinicasc.com.br

terça-feira, 15 de outubro de 2013

VINICIUS DE MORAES: AS METÁFORAS DE UMA BOMBA VERSOS A VERSO

Em “Rosa de Hiroshima”, o poeta recria, metaforicamente, um cenário de destruição, incerteza e falta de perspectivas a partir da desconstrução de características cotidianas e simples de uma rosa

Desde a Antiguidade uma definição a cerca da metáfora é buscada por teóricos da área. E essa definição já foi desde a simples substituição de um termo por outro até ao embelezamento da linguagem corriqueira. Entretanto, atualmente, adota-se a posição de que metáfora é uma relação feita entre dois termos por meio da analogia, ou seja, de elementos em comum que a ideia dos termos tragam ao leitor. É uma experiência pessoal aliada ao ponto de vista e à subjetividade de seu autor sobre determinado conteúdo.

É a partir desse conceito atual que foram observadas as metáforas no poema “Rosa de Hiroshima”, de Vinicius de Moraes. Mas, o que é um poema se não a exposição de experiências e pontos de vista pessoais e subjetivos do poeta?! O conceito de metáfora e poema são idênticos? Não idênticos, mas muito próximos: a diferença fundamental é que a metáfora precisa de dois elementos em questão para que um seja ligado ao outro por meio da analogia; já o poema basta-se, não é necessário que haja outro para ampará-lo nem dar-lhe suporte.

Pode-se dizer que Vinicius de Moraes é um dos maiores e mais conhecidos autores brasileiros — e soube usar magistralmente as metáforas como aliadas de seus poemas. Em geral, a crítica costuma dividir a obra de Vinicius em três fases: a primeira, uma fase mística e religiosa, em que a mulher era posta em um pedestal, difícil de ser alcançada, e o amor quase sempre utópico e platônico; a segunda, uma fase mais realista, em que a mulher era um ser tocável, de fácil e prazeroso acesso, o amor era carnal e consumível, também surge a crítica social (e esta é a questão principal do presente texto), livre de amarras e com intenção de demonstrar por meio da beleza da poesia a tristeza do mundo; a terceira, e última, foi a fase em que Vinicius ousou na música e tornou-se um dos precursores da Bossa Nova.

Voltando aos poemas, metáforas e crítica social, “Rosa de Hi­roshima” é um dos mais tocantes textos escritos sobre a bomba atômica lançada pelos Estados Unidos no Japão. Na tentativa vitoriosa, diga-se de passagem, de que o Império do Japão se rendesse à soberania americana — na Segunda Guerra Mundial — os Estados Unidos bombardearam a cidade de Hiroshima com uma bomba nuclear que atingiu fatalmente 140 mil pessoas, sendo esse número extremamente elevado quando se fala nos que foram atingidos pela radiação. Em um cenário de tanto horror, Vinicius de Moraes consegue fazer uma crítica social por meio da brandura de uma poesia com ritmo calmo, constante e tocante.

Observando as primeiras linhas do poema — que depois foi musicado e atingiu seu ápice na voz de Ney Matogrosso, na dé­cada de 1970 —, percebe-se que são utilizados primeiro termos que remetem a paz e brandura, como “crianças”, “meninas” e “mulheres”, entretanto, tais termos são ligados de imediato a adjetivos que destoam des­sas noções iniciais de paz e bran­dura e remetem ao terror, ao inesperado.

Quando se pensa em crianças, uma das primeiras lembranças que surge é o barulho, a constante ação e aguçada percepção de todos os sentidos. Mas, ao utilizar o termo “mudas telepáticas”, Vinicius traz o choque ao leitor, destruindo essa lembrança inicial das crianças. E mais, a men­ção da telepatia — comunicação de pensamentos, sentimentos ou conhecimentos de uma pessoa para outra, sem o uso de qualquer um dos cinco sentidos — sugere que não é necessário conversas, sensações ou ações a respeito do acontecimento da bomba, as crianças que viveram tal horror estão ligadas entre si apenas por um sexto sentido.

Já o termo meninas remete à ideia de jovialidade, de descobertas do mundo, de novas visões, que logo se destrói com a expressão “cegas inexatas”. Uma das maiores crueldades a um jovem é não deixá-lo ver, conhecer por meio da observação, não deixar que tenha precisão em suas escolhas — mesmo que erradas, algumas vezes.

Mulheres? Ah, espera-se que as meninas quando transformadas em mulheres já tenham seus destinos traçados, já estejam seguindo suas rotas! Mas “rotas alteradas” são postas em seus caminhos pela crueldade da bomba, seus caminhos são alterados, destruídos, invalidados.

“Feridas como rosas cálidas” não compõe uma metáfora, é a única comparação que há no poema, e marca a mudança das consequências para os atos. A partir da figura de uma rosa quente, ardente, cálida, a imagem repulsiva de uma ferida é amenizada, embora não seja menos impressionante.

Desde então o poeta desmonta toda beleza de uma rosa por meio de adjetivos que fazem lembrar à bomba. A analogia é criada pelo formato que a explosão adotou. Com palavras como “radioativa”, “inválida” e “cirrose” todo o encanto de uma rosa é destruído, a inutilidade e a dor são trazidas por uma imagem que deveria trazer beleza e alegria.

Por fim, Vinicius de Moraes não mostra apenas as possíveis intenções a respeito de uma rosa, mas identifica categoricamente que sua aparência também é modificada: “sem cor sem perfume”, e lembra que com toda destruição não há mais possibilidade de vida: “sem rosa sem nada”.

Outros pontos marcantes no poema, que vão além das metáforas, é a ausência total de pontuação, o que pode mostrar ao leitor que há lacunas desde o início da rosa. Os verbos no imperativo: “pensem” e “não se esqueçam” pode ser visto como a imposição, a falta de escolha de quem foi atingido pela catástrofe humana.

É interessante que em instante algum o termo “bomba” foi utilizado no poema, a descrição de seus atos e consequências, além do marco referente ao local do ocorrido, foram necessários para que o leitor soubesse do que se tratava. Apesar da subjetividade e da visão pessoal do poeta é possível que se tenha uma compreensão total do que ele quer passar a partir das analogias.

Pode-se dizer, contudo, que “Rosa de Hiroshima” é um texto atemporal, ou seja, não deve ser reduzido apenas ao fato passado em Hiroshima, qualquer guerra, qualquer bomba atômica que seja utilizada vai gerar os mesmos transtornos e destruições, as mesmas dores e revoltas, os mesmos gritos e silêncios.

Cristina Patriota é tradutora. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura.