domingo, 4 de janeiro de 2015

A FALIBILIDADE HUMANA


“Tolerância é a conseqüência necessária da percepção de que somos pessoas falíveis: errar é humano, e estamos o tempo todo cometendo erros.” (Voltaire)

O filósofo Karl Popper considerava que encobrir erros é o maior pecado intelectual. Somos humanos e, portanto, falíveis. O poeta Xenófanes, que escreveu cerca de 500 anos antes de Cristo, já havia capturado esta idéia quando disse: “Verdade segura jamais homem algum conheceu ou conhecerá sobre os deuses e todas as coisas de que falo”. Porém, isso não significa relativismo total, pois podemos obter conhecimento objetivo, como o poeta mesmo deixa claro depois: “Os deuses não revelaram tudo aos mortais desde o início; mas no decorrer do tempo encontramos, procurando, o melhor”. Mas é a possibilidade de estarmos errados que nos faz mais tolerantes com os outros e que nos coloca sempre na busca por mais conhecimento, já que podemos defender algo que se prova errado amanhã. Tal postura é oposta àquela que Epíteto condena quando diz: “É impossível para um homem aprender aquilo que ele acha que já sabe”.

O conhecimento humano é possível. Conhecimento é a busca pela verdade, a busca de teorias explanatórias, objetivamente verdadeiras. Mas não é a busca por certeza. Entender que errar é humano é reconhecer que devemos lutar incessantemente contra o erro, mas que não podemos eliminá-lo totalmente com certeza. Como diz Popper, “mesmo com o maior cuidado, nunca podemos estar totalmente certos de que não estejamos cometendo um erro”. Essa distinção entre verdade e certeza é fundamental segundo Popper, pois vale a pena sempre buscarmos a verdade, mas devemos fazê-lo principalmente buscando erros, para corrigi-los. Por isso o método científico é o método crítico, o método da “busca por erros e da eliminação de erros a serviço da busca da verdade, a serviço da verdade”. Alguns acusaram Popper de relativista por conta desta postura, mas ele explica isso com base nesta confusão entre verdade e certeza, e é enfático ao recusar tal rótulo: “O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais; é uma traição à razão, e à humanidade”.

Popper encara o conhecimento no sentido das ciências naturais como um conhecimento conjectural, ou seja, um ousado trabalho de adivinhar. Mas se trata de um adivinhar disciplinado pela crítica racional. Isso, para ele, “torna a luta contra o pensamento dogmático um dever”. A modéstia intelectual também vira um dever de pensadores sérios. E, sobretudo o cultivo de uma linguagem simples e despretensiosa passa a ser um dever de todo intelectual. Na mesma linha, Isaiah Berlin, em seu livro A Força das Idéias, ataca basicamente o mesmo ponto, quando diz: “Uma retórica pretensiosa, uma obscuridade ou imprecisão deliberada ou compulsiva, uma arenga metafísica recheada de alusões irrelevantes ou desorientadoras a teorias científicas ou filosóficas (na melhor das hipóteses) mal compreendidas ou a nomes famosos, é um expediente antigo, mas no presente particularmente predominante, para ocultar a pobreza de pensamento ou a confusão, e às vezes perigosamente próximo da vigarice”.

Mises, logo na introdução de seu clássico Human Action, corrobora com essa visão também, reconhecendo que não há algo como perfeição no conhecimento humano. A onisciência é negada aos homens. Uma teoria, por mais elaborada que seja, pode sempre ser superada por outra nova e melhor. A ciência não nos dá certeza absoluta, ela apenas nos dá segurança dentro dos limites de nossas habilidades mentais. O sistema científico é, portanto, um estágio no progresso infindável de busca do conhecimento. A vida é composta pela imperfeição e pela mudança. Aceitar esse fato da vida não impediu Mises de galgar importantes degraus na escada do conhecimento humano, com suas teorias lógicas sobre a praxeologia. Pelo contrário, essa postura humilde é que fez com que ele respeitasse todo tipo de crítica e possíveis evidências contraditórias, tendo que reforçar a teoria com base na realidade.

Em resumo, nenhum ser humano é infalível, e é o reconhecimento deste fato que nos permite maior tolerância e eterna busca pelo aprendizado. Os homens possuem a faculdade do raciocínio e devem questionar qualquer crença, buscando evidências que sustentem sua veracidade. “Só pelo conhecimento podemos nos libertar espiritualmente – da escravidão por falsas idéias, preconceitos e ídolos”, diz Popper. O apelo à autoridade não é um bom argumento, tampouco diz algo sobre o embasamento do que está sendo afirmado. Um argumento sólido deve se sustentar pela sua própria solidez, independente de quem o profere. O conhecimento objetivo é possível e desejável. Mas a noção de que podemos estar errados é importante. Acredito que o mundo tem muito a melhorar se todos entenderem que somos seres falíveis. Errar é humano, e somos todos humanos. Insistir no erro é que é burrice.
Imagem: Xenófanes, filósofo grego
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.
Por: Rodrigo Constantino  Publicado no site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/

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