segunda-feira, 19 de março de 2012

O humanitário com a guilhotina

O humanitário com a guilhotina POR ORDEMLIVRE · 24 OUTUBRO, 2007 · FILOSOFIA POLÍTICA · por Isabel Paterson A maior parte do mal do mundo é causada por pessoas boas, e não por acidente, lapso ou omissão. É o resultado de práticas deliberadas, nas quais elas insistiram por muito tempo, e que acham ser motivadas por elevados ideais, voltados a nobres objetivos. Isto é demonstrável, e é forçoso que seja. A porcentagem de pessoas más, cruéis ou corruptas é necessariamente pequena, já que nenhuma espécie conseguiria sobreviver se seus membros fossem habitual e conscientemente inclinados a prejudicar uns aos outros. É tão fácil destruir que uma minoria de pessoas mal intencionadas já seria suficiente para exterminar uma inocente maioria de pessoas bem intencionadas. O assassinato, o roubo e a destruição são possibilidades disponíveis a todos os indivíduos, em todos os momentos. Se presumirmos que é apenas o medo ou a força que segura essas pessoas, devemos perguntar do que é que elas têm medo, e quem usaria de força contra elas se todas as pessoas pensassem da mesma forma. Certamente, se fossem contabilizados apenas os males causados por pessoas conscientemente criminosas, o número de assassinatos e a extensão das perdas e danos seriam considerados insignificantes diante do total de mortes e prejuízos causados pelos seres humanos a seus semelhantes. Portanto, é óbvio que em períodos nos quais milhões são assassinados, a tortura é praticada, a fome é imposta e a opressão é uma política pública, como acontece hoje em grande parte do mundo, e como freqüentemente aconteceu no passado, isso ocorre sob o comando de pessoas boas, sendo até resultado de sua ação direta, pois elas almejam um fim que consideram válido. Quando não agem diretamente, participam dando sua aprovação, elaborando justificativas, ou então encobrindo os fatos com o silêncio e desencorajando as discussões. Obviamente, isso não poderia acontecer sem alguma causa ou razão. Vale ressaltar que, na passagem acima, por pessoas boas queremos realmente dizer pessoas boas; pessoas que, conscientemente, não tentariam agir de forma que prejudicasse seus semelhantes e não incentivariam alguém a fazê-lo, nem gratuitamente, nem em próprio benefício. As pessoas boas desejam o bem a seus semelhantes e desejam agir de acordo com esse desejo. Além disso, não pressupomos aqui nenhuma “adulteração de valores”, confundindo o bem e o mal, sugerindo que o bem produza o mal, que não haja diferença entre o bem e o mal ou entre boas e más ações. Tampouco sugerimos que as virtudes das pessoas boas não sejam realmente virtudes. Deve haver, então, um erro gravíssimo nos meios pelas quais essas pessoas buscam atingir seus fins. Talvez haja até um erro em seus axiomas primários, já que elas continuam a usar esses meios. Em algum lugar, algo está terrivelmente errado no procedimento. O que seria? Com certeza, os assassinatos cometidos de tempos em tempos por bárbaros que invadem regiões povoadas ou os cruéis caprichos de tiranos confessos não somariam um décimo dos horrores perpetrados por governantes com boas intenções. Diz-nos a história que o faraó escravizou os antigos egípcios por meio do benevolente programa de estabilização dos celeiros. Estocaram-se alimentos para evitar a fome, mas logo as pessoas foram obrigadas a negociar propriedades e até sua liberdade por tais reservas, que tinham sido formadas a partir do confisco de sua própria produção. A rigidez inumana dos antigos espartanos servia a um ideal cívico de virtude. Os primeiros cristãos foram perseguidos por razões de Estado, pelo bem-estar coletivo; e resistiram em nome do direito à personalidade, pois cada um tinha uma alma própria. Aqueles que Nero matou apenas por esporte foram poucos comparados aos condenados estritamente por razões “morais” por imperadores posteriores. Gilles de Retz, que assassinava crianças para satisfazer uma perversão animalesca, não matou mais de cinqüenta ou sessenta. Cromwell ordenou o massacre de trinta mil pessoas de uma só vez, inclusive bebês de colo, em nome da justiça. Mesmo as brutalidades do tzar Pedro, o Grande, foram justificadas por belos pretextos para que parecessem benesses aos seus súditos. A guerra atual [N. do T.: a Segunda Guerra Mundial], que começou com um tratado perverso entre duas nações poderosas (Rússia e Alemanha), que permitia que esmagassem vizinhos menores impunemente, tratado este que foi rompido por um ataque surpresa contra o colega conspirador, teria sido impossível sem o poder político interno que, em ambos os casos, foi tomado com a justificativa de fazer o bem à nação. As mentiras, a violência e os assassinatos generalizados foram utilizados, primeiramente, contra pessoas de ambas as nações por seus respectivos governos. Podemos dizer, com certa razão, que em ambos os casos os detentores do poder são hipócritas cruéis e que seus objetivos eram maus desde o começo. Apesar disso, eles não poderiam ter assumido o poder de nenhuma outra forma senão com o consentimento e a assistência de pessoas boas. O regime comunista na Rússia ganhou poder prometendo distribuir terra aos camponeses, usando uma fórmula que mesmo os que a prometiam sabiam ser mentirosa. Quando tomaram o poder, os comunistas retiraram dos próprios camponeses a terra que possuíam e exterminaram os que resistiram. Tudo isso foi feito seguindo planos e intenções e suas mentiras foram saudadas como “engenharia social” por admiradores socialistas nos Estados Unidos. Se isso é engenharia, qualquer vigarista é engenheiro. Toda a população da Rússia foi submetida à coerção e ao terror; milhares foram executados sem julgamento; milhões, aprisionados, trabalharam e passaram fome até morrer. Da mesma forma, toda a população da Alemanha foi submetida à coerção e ao terror usando os mesmos métodos. Com a guerra, tanto os russos em prisões alemãs quanto os alemães em prisões russas não estão enfrentando destino pior do que os já experimentados por um grande número de seus compatriotas, por obra de seus próprios governos, em seus próprios países. Se há alguma diferença, seria a de que talvez sofram menos com a vingança de seus inimigos declarados do que com a suposta benevolência de seus compatriotas. As nações européias, conquistadas por russos e alemães, estão experimentando somente agora o que cidadãos de ambos os países já sofrem há tempos nas mãos de seus próprios governos. Para completar, as principais figures políticas que hoje detêm o poder na Europa, incluindo aqueles que venderam seus países ao invasor, são socialistas, ex-socialistas ou comunistas; homens cujas crenças baseavam-se no bem comum. Mesmo tendo essa realidade sido exaustivamente demonstrada, ainda testemunhamos um peculiar espetáculo: o homem que condenou milhões à fome em seu governo é admirado por filantropos que, entre outras coisas, desejam a garantia de que todos no mundo tenham leite disponível para sua alimentação. Um graduado profissional da caridade atravessou meio mundo para ter uma audiência com esse mestre do seu ramo, e para compor rapsódias sobre a concessão de um tal privilégio. Para manter seu emprego, alegando o objetivo de fazer o bem, tais idealistas recebem o apoio político de corruptos, cafetões condenados e gângsteres profissionais. A afinidade entre todos esses tipos invariavelmente se revela quando chega o momento. Mas qual é o momento? Por que a filosofia humanitária do século XVIII europeu conduziu ao Reino do Terror? Isso não aconteceu por acaso, mas seguiu-se da premissa, objetivos e meios originalmente propostos. O objetivo é fazer o bem aos outros, como se isso fosse a justificativa primária da existência; os meios são o poder do coletivo; e a premissa é que o “bem” é coletivo. A raiz da questão é ética, filosófica e religiosa, envolvendo a relação entre homem e o universo e entre sua capacidade criativa e seu Criador. O desvio principal está em não reconhecer a norma da vida humana. Obviamente, uma grande parcela de dor e angústia faz parte da vida. A pobreza, a doença e o acidente são possibilidades que podem ser reduzidas a um mínimo, mas não podem ser completamente eliminadas dos riscos com que a humanidade precisa se defrontar. E não são condições desejáveis, que se deseje provocar ou perpetuar. Naturalmente, as crianças têm pais e a maioria dos adultos tem boa saúde durante a maior parte de sua vida e trabalham em atividades úteis que lhes trazem sustento. Esta é a norma e a ordem natural. As doenças são marginais. Elas podem ser aliviadas pelo excedente marginal da produção; para além disso, nada mais pode ser feito. Portanto, não se pode supor que o produtor exista somente para o não-produtor, o são exista para o doente e o competente para o incompetente; nem que qualquer outra pessoa exista para outra. (O procedimento lógico, que dizia que uma pessoa existia somente para outra, era executado em sociedades semi-bárbaras, em que a viúva ou os seguidores de um morto eram enterrados vivos na mesma sepultura.) As grandes religiões, que também são grandes sistemas intelectuais, sempre reconheceram as condições da ordem natural. Elas tomam a caridade e a benevolência como obrigações morais, a serem cumpridas a partir do excedente do produtor. Isto é, fazem disso algo secundário à produção, pela inescapável razão de que sem produção não haveria nada a ser dado. Conseqüentemente, prescrevem a regra mais severa, a ser adotada voluntariamente, para aqueles que desejam devotar suas vidas inteiramente a trabalhos de caridade, vivendo de contribuições. Tal estilo de vida é considerado uma vocação especial, porque não pode ser um meio de vida comum. Como o arrecadador de doações tem que obter dos produtores os fundos ou bens que distribui, ele não tem nenhuma autoridade para comandar; ele precisa pedir. Quando retira seu próprio sustento das doações, deve tomar não mais que o necessário para sua sobrevivência. Como prova de sua vocação, o arrecadador deve até mesmo desistir da felicidade da vida familiar, se quiser entrar para uma ordem religiosa. Ele nunca pode obter conforto para si da infelicidade alheia. As ordens religiosas mantiveram hospitais, criaram órfãos, distribuíram comida. Parte dessas doações foram dadas incondicionalmente, sem que houvesse compulsão sob o disfarce de caridade. Não é digno fazer um homem se despojar de sua alma em troca de pão. Esta é a verdadeira diferença quando a caridade é prescrita em nome de Deus, e não de princípios humanitários ou filantrópicos. Se os doentes foram curados, os que tinham fome alimentados, os órfãos criados até crescerem, a essas pessoas, sem dúvida, foi feito o bem, e esse bem não pode ser computado somente em termos físicos; essas ações foram executadas com a intenção de ajudar seus beneficiários durante um período difícil, para restabelecê-los à normalidade logo que possível. Se os beneficiários pudessem, mesmo que parcialmente, ajudar a si mesmos, melhor. Caso contrário, admitia-se este fato. Além disso, a maioria das ordens religiosas também se empenhava, simultaneamente, em ser produtiva, para poder doar seus próprios excedentes, e não só distribuir donativos. Quando realizavam um trabalho produtivo, como o de construção, de ensino por uma pequena taxa, da criação de animais e cultivo de vegetais, ou de pequena manufatura e trabalhos de arte, os resultados foram duráveis, não somente em alguns produtos em particular, mas na difusão de conhecimento e de no aprimoramento de seus métodos, de forma que, a longo prazo, a normalidade do bem-estar fosse elevada. E deve ser notado que esses resultados duradouros foram derivados do auto-aprimoramento. O que um ser humano pode realmente fazer por outro? Pode doar seus próprios recursos, seu próprio tempo ou qualquer coisa que lhe sobre. Mas ele não pode doar a alguém habilidades que a natureza negou, nem doar seu próprio sustento sob pena de ele próprio se tornar um dependente. Se ele doa parte do que ganha, deve ganhá-lo primeiro. Certamente, ele tem direito a uma vida doméstica, se pode sustentar uma esposa e filhos. Deverá então reservar o suficiente para si e sua família, para continuar produzindo. Pessoa nenhuma, mesmo que seus ganhos sejam de dez milhões de dólares ao ano, pode cuidar de todas as necessidades no mundo. Porém, supondo que ela não tenha meios próprios, e ainda imagina que pode transformar “ajudar os outros” no principal propósito de sua vida e no seu modo normal de existência – o que é exatamente a doutrina central da crença humanitária – , como essa pessoa poderia atingir seus objetivos? Têm-se publicado listas dos Casos Mais Necessitados, certificadas por fundações leigas de caridade, que pagam ótimos salários a seus próprios funcionários. Os necessitados têm sido pesquisados, não confortados. Com as doações recebidas, os funcionários pagam a si mesmos em primeiro lugar. Essa situação é embaraçosa até para o imperturbável filantropo profissional. Mas como evitar a confissão? Se o filantropo tivesse o domínio dos meios do produtor, ao invés de pedir uma parte, poderia exigir o crédito pela produção, estando assim em posição de dar ordens ao produtor. Então, poderia culpar o produtor por não atender suas ordens de produzir mais. Se o objetivo primário do filantropo, sua razão de viver, é ajudar os necessitados, seu bem em última instância depende de que outros passem necessidades. Sua alegria é o outro lado dos infortúnios deles. Se deseja ajudar a “humanidade”, toda a humanidade deve passar necessidades. O humanitário deseja ser o principal motor da vida dos outros. Ele não pode admitir a existência nem da ordem divina nem da natural, segundo a qual os homens têm o poder de ajudar a si mesmos. O humanitário se coloca no lugar de Deus. Porém, dois fatos incômodos o desafiam; primeiro, quem está bem não precisa de sua ajuda; e segundo, a maioria das pessoas, se não corrompidas, certamente não quer ser “ajudadas” pelos humanitários. Quando se diz que todos devem viver primeiramente para os demais, o que se deve fazer especificamente? Cada pessoa deve fazer exatamente o que qualquer outra quiser, sem limites ou reservas? E somente o que elas quiserem? E se várias pessoas fizerem pedidos conflitantes? Esse esquema é impraticável. Talvez ela vá fazer somente o que é “bom” para os outros. Mas será que os outros sabem o que é bom para eles? Não, esta opção está excluída pelo mesmo problema. Então deverá A fazer o que julga ser bom para B, e B o que julga ser bom para A? Ou deverá A aceitar somente o que pensa ser bom para B e vice versa? Mas isso é absurdo. É claro que a proposta do humanitário é que ele mesmo faça o que ele julga ser bom para todos. E é neste momento que o humanitário prepara a guilhotina. Como seria o mundo que daria ao humanitário mais possibilidades de ação? Só poderá ser um mundo cheio de filas para receber pães, e de hospitais, no qual ninguém possui o poder natural e humano de ajudar a si mesmo ou de resistir a coisas que lhe sejam feitas. E é precisamente este o mundo que o humanitário obtém quando atinge seus objetivos. Quando um humanitário deseja que todos no mundo tenham leite, é evidente que ele não tem o leite, e que não tem como produzi-lo; caso contrário, não estaria apenas desejando. Além disso, mesmo que possuísse quantidade de leite suficiente para doar um pouco a cada pessoa, enquanto seus pretensos beneficiários tiverem condições, e produzirem leite para si mesmos, eles dirão não, obrigado. Então, como o humanitário iria produzir uma situação em que tenha leite para distribuir, e em que todos necessitem de leite? Há apenas um caminho, e este é o uso máximo da força política. Então, o humanitário sente uma extrema satisfação quando ele visita ou ouve falar de um país no qual todo o consumo é racionado. Onde a subsistência é doada, o objetivo do humanitário é atingido: há a necessidade geral e uma força superior para “aliviá-la”. O humanitário na teoria é o terrorista em ação. As pessoas boas dão-lhe o poder que ele demanda porque aceitam sua falsa premissa. O avanço da ciência emprestou a esta premissa uma falsa plausibilidade, graças ao aumento da produção. Sabendo que há o suficiente para todos, por que não podem os “necessitados” serem satisfeitos em primeiro lugar e esta questão ser abandonada para sempre? Neste ponto surge a pergunta: como você definiria os “necessitados”, e a partir de que fontes e por qual poder o sustento lhes seria suprido? As pessoas de bom coração podem exclamar indignadas: “Isto não é tão importante; estreite a definição a um limite extremo, e quando um mínimo irredutível for atingido, não se poderá negar que um homem faminto, mal-vestido e sem-teto seja um necessitado. A fonte da ajuda só poderá ser os meios daqueles que não são tão necessitados. O poder já existe; se pode existir o direito de taxar pessoas para os exércitos, marinhas, polícias locais, construção de estradas ou qualquer outro propósito que se possa imaginar, com certeza, poderá existir algo que torne possível taxar pessoas para a preservação da vida em si.” Muito bem. Peguemos um caso específico. Nos tempos difíceis, nos anos de 1890, um jovem jornalista de Chicago estava preocupado com as terríveis necessidades dos desempregados. Ele queria acreditar que qualquer homem que realmente quisesse trabalhar conseguiria encontrar emprego. Porém, para ter certeza, ele investigou alguns casos. Um deles era o de um jovem vindo de uma fazenda, onde a família talvez tivesse o suficiente para comer, mas precisava de recursos para tudo mais. O garoto da fazenda tinha ido a Chicago procurar emprego e teria certamente, aceito qualquer tipo de trabalho, mas não havia empregos disponíveis. Supomos que ele tenha pedido esmolas para conseguir voltar para casa. Havia outros necessitados, mas estavam a meio continente e mais um oceano de suas casas. Esses não podiam de jeito nenhum voltar só por seus próprios esforços, e não há o que discutir a respeito. Eles simplesmente não podiam. Eles dormiam em calçadas, esperavam por alguma comida – mesmo que insuficiente – e sofriam muito. Havia ainda outra coisa. Entre esses desempregados, algumas pessoas, é impossível dizer quantas, eram excepcionalmente empreendedoras, talentosas ou competentes – e foi isso que as colocou em dificuldade imediata. Elas tinham se livrado por pouco da dependência em um período particularmente difícil; tinham arriscado muito. Extremos se encontravam entre os desempregados; os extremos de um empreendimento corajoso, da pura má-sorte e da absoluta extravagância e incompetência. Um ferreiro que trabalhasse perto da Brooklyn Bridge e desse a um pobre que passava dez centavos para pagar a taxa da ponte não tinha como saber que fazia um empréstimo à imortalidade, a um futuro poeta laureado da Inglaterra. Mas John Masefield era o homem que passava. Portanto, não necessariamente, os necessitados são pessoas que nada merecem. Também há pessoas no campo, que sofreram com a seca ou em áreas atacadas por pragas de insetos, que estavam em extrema necessidade, e que teriam, literalmente, morrido de fome se alguma ajuda não tivesse lhes tivesse sido mandada. Esses também não receberam quase nada e foi tudo de uma forma desorganizada. Mas todos lutaram até a surpreendente recuperação de todo o país. Incidentalmente, teriam havido muito mais dificuldades entre aqueles que só produziam para a subsistência não fosse pelas doações de vizinhos, que não eram chamadas de caridade. As pessoas sempre doam bens, se eles os têm; é um impulso humano, que o humanitário manipula de acordo com seus propósitos. O que haveria de errado em institucionalizar esse impulso natural, transformando-o numa agência do governo? Retornando ao jovem, teria ele feito algo de errado ao deixar sua casa, onde tinha o suficiente ao menos para comer, e ir a Chicago procurar por trabalho? Se a resposta for sim, então deveria haver um poder legítimo que o impedisse de deixar a fazenda sem permissão. O poder feudal fez isso. Essa atitude não impediu que pessoas passassem fome, apenas as forçou a passar fome onde tinham nascido. Mas se a resposta for não, o garoto da fazenda não fez nada de errado. Ele tinha o direito de dar-se aquela chance. Então, o que deve ser feito para termos certeza de que ele não irá passar por dificuldades, quando chegar ao local que escolheu como destino? Podemos prover empregos para qualquer pessoa, em qualquer lugar que ela escolha? Não, isso é um absurdo. Não pode ser feito. Ela terá direito a assistência, se escolher ficar por lá, ou terá, ao menos, direito a uma passagem de volta para casa? Isso é igualmente absurdo. A demanda seria ilimitada e não haveria abundância de produção que a absorvesse. Porém, as pessoas que foram empobrecidas pela seca não poderiam ter sobrevivido sem receber assistência governamental? Aí, a questão seria sob que condições receberiam tais benefícios. Elas receberão assistência enquanto passarem por necessidades, enquanto permanecerem onde estão? (Elas não podem ser financiadas para viagens sem destino.) Isso é exatamente o que tem sido feito nos últimos anos; e assim, mantiveram-se destinatários de doações por sete anos em ambientes sujos, desperdiçando tempo, trabalho e sementes no deserto. A verdade é que qualquer método proposto que realmente combatesse as necessidades e angústias da vida humana, por estabelecer um imposto fixo sobre a produção, seria adotado com satisfação por aqueles que hoje a ele se opõem, caso fosse viável. Eles se opõem a esses métodos porque são impraticáveis em sua natureza. Essas pessoas já tentaram todos os meios possíveis para combater suas próprias necessidades futuras, na forma de um seguro privado; e eles sabem exatamente qual é o problema, porque se defrontam com ele quando tentam assegurar o sustento de seus próprios dependentes. O obstáculo insuperável é que é absolutamente impossível tirar algo da produção antes de tirar para a própria subistência. Mesmo que os produtores, os administradores de indústrias e outros realmente tivessem frios corações de aço e não dessem a mínima importância para o sofrimento humano, ainda assim seria mais conveniente para eles se a questão da assistência a todos os tipos de problemas, seja o desemprego, a doença ou a velhice, pudesse ser sanada de uma vez por todas. Assim, não precisariam mais ouvir falar desse assunto. Os administradores estão sempre sendo atacados por causa disso; e o ataque dobra quando a indústria entra em recessão. Os políticos podem conseguir votos a partir de crises; os humanitários conseguem empregos lucrativos em escritórios, distribuindo fundos de assistência; só mesmo os que estão envolvidos na produção, os capitalistas ou os trabalhadores, sofrem as conseqüências e pagam o preço de uma crise. A dificuldade aparece melhor num caso particular. Suponhamos que um homem, que possua um negócio bem lucrativo, que vai muito bem, com um longo histórico de boa administração, deseje garantir à sua família rendimentos futuros provenientes deste negócio. Ele deve, como proprietário, estar em posição de poder planejar para a família retornos de determinada quantia; digamos que esse retorno fosse de somente 5.000 dólares/ano, em um negócio que pagasse 100.000 dólares por ano de lucro bruto. Esse plano é o melhor que ele poderia fazer; porém, se em algum momento, o seu negócio não conseguir render o suficiente para que sejam retirados os 5000 dólares, sua família não receberá o dinheiro. Eles devem preocupar-se com a falência e com seus bens, mas seus bens depois da falência podem já não valer mais nada. É impossível tirar algo da produção antes de tirar para a própria subistência. Além disso, é claro que a família do empresário pode hipotecar sua parte na empresa ou doá-la a algum amigo “benevolente” que possa “administrá-la” – algo que acontece, como se sabe – ; então, de qualquer forma, eles não receberiam o dinheiro. É esse o caso de organizações de caridade sustentadas por um fundo. Elas sustentam vários amigos com empregos pouco exigentes. Mas e se o empresário, com sua grande generosidade, determinasse, irrevogavelmente, que sua esposa e sua família teriam uma conta, cujos cheques seriam cobertos com os fundos da empresa, para sacar o quanto quisessem. Ele poderia estar, inocentemente, certo de que eles nunca sacariam mais que uma pequena porcentagem para suas verdadeiras necessidades. Porém, poderia chegar o dia em que o caixa diria a feliz esposa que não havia fundos para cobrir seu cheque; e, se a empresa seguisse tal determinação, este dia chegaria rapidamente; nos dois casos, bem quando a família mais precisasse de mais dinheiro, a empresa lhe renderia menos. Mas o procedimento seria completamente insano se o empresário desse a um terceiro o poder irrevogável de sacar o quanto quisesse dos fundos da empresa, respeitando apenas o acordo impossível de cumprir de que esse terceiro sustentaria a família do empresário. Essa opção é exatamente a proposta de se cuidar dos necessitados por meios governamentais. A idéia dá aos políticos o poder ilimitado de cobrar impostos; e não há absolutamente nenhum meio de se garantir que o dinheiro vá para onde deveria. De todo modo, nenhuma empresa suportaria uma evasão de recursos ilimitada. Por que as pessoas de bom coração convocam o poder político? Elas não têm como negar que os recursos para os benefícios deva vir da produção. Mas dizem que há recursos suficientes e que até sobram. Então, devem supor que os produtores não desejam doar o que “devem”. Além disso, supõem também que há um direito coletivo de cobrar impostos para qualquer objetivo que a coletividade determinar. Elas localizam aquele direito no “governo”, como se este existisse por si, esquecendo o axioma americano de que o governo não existe por si, mas é instituído pelos homens para exercer papéis limitados. O próprio pagador de impostos espera proteção do exército, da marinha e da polícia; ele utiliza as estradas; logo, seu direito em insistir em que a taxação seja limitada é evidente. O governo não tem nenhum “direito”, apenas a autoridade que lhe foi delegada pelo indivíduo. Mas se cobram-se impostos para prestar assistência aos necessitados, quem julgaria o que seria possível ou positivo? Os produtores, os necessitados ou um terceiro grupo. Dizer que deveríamos ter os três juntos não responde à questão; o veredito deve balançar entre a maioria ou pluralidade de um grupo ou de outro. Irão os necessitados votar no que quiserem em benefício próprio? Ou os humanitários, o terceiro grupo, votarão em si mesmos para controlar ambos, os produtores e os necessitados? (Isso eles já vêm fazendo.) O governo deveria, supostamente, dar “segurança” aos necessitados. Mas não pode. O que o governo faz é tomar os recursos acumulados por pessoas, para sua própria segurança; assim, priva todos de qualquer esperança ou chance de ter alguma segurança. O governo não pode fazer nada além disso, se fizer alguma coisa. Aqueles que não entendem a natureza da ação são como selvagens, que cortariam uma árvore para colher o fruto; eles não levam em consideração o tempo e o espaço, como fariam homens civilizados. Nós vimos o que pode acontecer de pior quando há apenas assistência privada e assistência estatal improvisada de caráter temporário. A caridade privada sem organização é aleatória e esporádica, e nunca conseguiu prevenir completamente o sofrimento. Porém, ela nunca perpetuou a dependência de seus beneficiários. É o método do capitalismo e da liberdade, que envolve altos e baixos extraordinários, mas os altos são sempre cada vez maiores e mais longos que os baixos. E nos piores momentos, não existiu fome real, nenhum desespero terrível, mas um otimismo ativo e estranhamente nervoso, e uma crença inabalável de que tempos melhores viriam, a qual foi justificada pelos resultados. A caridade privada e não-oficial efetivamente atendeu aos propósitos. Funcionou, ainda que imperfeitamente. Por outro lado, o que pode fazer o poder político? Um dos “abusos” atribuídos ao capitalismo eram os sweatshops [N. R.: fábricas de trabalho pesadíssimo]. Imigrantes chegavam aos Estados Unidos, sem dinheiro, sem conhecer a língua e sem nenhuma experiência em trabalhos que exigissem alguma habilidade; eram contratados por salários muito baixos, trabalhavam por longas horas, em péssimas instalações, e dizia-se que eram explorados. Ainda assim, misteriosamente, com o tempo, eles melhoraram sua qualidade de vida; a grande maioria adquiriu conforto, e alguns conseguiram riqueza. Será que algum poder político poderia ter fornecido trabalhos lucrativos para todo mundo que desejasse vir? Claro que não poderia – e não pode. Desta forma, as pessoas boas clamaram pelo governo, para que aliviasse o fardo desses novos imigrantes que chegavam. O que fez o governo? Sua primeira providência foi determinar que cada imigrante deveria trazer consigo uma certa soma em dinheiro. Isto é, tirou dos mais necessitados no estrangeiro sua única esperança. Depois, quando o poder político transformou a vida na Europa num triste inferno, mas muitas pessoas ainda conseguiam juntar a soma exigida para serem admitidos nos EUA, o governo americano simplesmente reduziu a admissão de imigrantes a uma determinada cota. Quanto maiores fossem as necessidades, menores eram as oportunidades concedidas pelo poder político. Será que milhões e milhões de pessoas na Europa não estariam felizes e gratos, se pudessem ter tido uma oportunidade como as oferecidas pelo antigo sistema, em vez de campos de concentração, porões de tortura, vis humilhações e mortes violentas? O proprietário do sweatshop não possuía muito capital. Arriscava o pouco que tinha empregando pessoas e era acusado de fazer-lhes algo terrível e seu negócio era considerado revelador da brutalidade do capitalismo. Um funcionário do governo é razoavelmente bem pago e tem um emprego estável. Não arrisca nada e recebe seu salário para empurrar pessoas desesperadas para fora das nossas fronteiras, como a homens que, em vias de se afogar, fossem espancados para largar as bordas de um barco cheio de provisões. O que mais pode fazer um funcionário do governo? Nada. O capitalismo fez o que podia; o governo faz o que pode. A propósito, o barco foi construído e equipado pelo capitalismo. Para analisarmos as ações do filantropo e do capitalista privado, peguemos o caso de um homem que esteja realmente necessitado, mas não incapacitado, e suponhamos que esse filantropo lhe dê comida, roupas e abrigo – quando terminar de usar o que lhe foi doado, estará onde estava antes, porém, pode ter adquirido o hábito da dependência. Por outro lado, suponhamos que alguém, sem nenhum motivo benevolente, simplesmente desejando que algum trabalho seja feito, deseje empregar o necessitado e pagar-lhe um salário. O empregador não terá feito nenhuma boa ação. Ainda assim, a condição do homem empregado foi mudada. Qual é a diferença vital entre as duas ações? A diferença é que o empregador não-filantrópico trouxe o trabalhador de volta à linha de produção, ao grande circuito de energia; ao passo que o filantropo só pode desviar essa energia de tal maneira que não haja retorno para a produção, diminuindo assim a probabilidade do objeto de suas benesses encontrar algum emprego. Eis a razão profunda e racional pela qual os seres humanos fogem da assistência e chegam até a odiar a palavra. Essa é também a razão pela qual as pessoas realmente vocacionadas que desenvolvem trabalhos de caridade fazem o melhor possível para mantê-lo à margem, e com prazer abririam mão de “fazer o bem” se houvesse qualquer oportunidade de o beneficiário trabalhar em condições minimamente aceitáveis. Aqueles que não têm alternativa exceto a caridade sentem e exibem fisicamente os resultados: são excluídos das fontes vivas da energia auto-renovável, e sua vitalidade se esvai. O resultado, se filantropos e políticos os mantêm dependentes de assistência por um tempo longo o suficiente, foi descrito por um profissional da assistência. No inicio, os “clientes” se inscrevem com certa relutância. “Em poucos meses,tudo muda. O sujeito que só queria o suficiente para resolver acaba se adaptando e vivendo da assistência, como se fosse normal.” O funcionário que deu esta declaração estava ele próprio “vivendo da assistência, como se fosse normal”, mas estava um degrau abaixo de seu ‘cliente’, já que nem mesmo reconhecia sua própria condição. Como conseguiu desviar-se da verdade? Escondendo-se atrás de seus motivos filantrópicos: “Nós ajudamos a prevenir a fome, e vemos que estas pessoas, hoje, possuem algum tipo de moradia e abrigo”. Se perguntássemos ao agente se ele planta a comida, constrói os abrigos ou doa seu próprio dinheiro para pagar por eles, ele não veria a menor diferença entre fazer isso ou não. Ele foi ensinado que é certo “viver pelos outros”, para “objetivos sociais” e pelos “ganhos sociais”. Enquanto ele acreditar que está fazendo aquilo, não vai perguntar a si mesmo o que está exatamente fazendo aos outros, nem de onde vêm os meios para seu sustento. Se reuníssemos todos os filantropos sinceros, desde o inicio dos tempos, descobriríamos que todos eles juntos, exercendo suas atividades filantrópicas, nunca trouxeram à humanidade um décimo dos benefícios advindos dos esforços normalmente em interesse próprio de Thomas Alva Edison, para não mencionar as grandes mentes que explicaram os princípios científicos que Edison aplicou. Inumeráveis pensadores, inventores e organizadores contribuíram para o conforto, a saúde e a felicidade de seus semelhantes – porque esses não eram seus objetivos. Quando Robert Owen tentou administrar eficientemente uma fábrica, o processo naturalmente melhorou o caráter de alguns de seus funcionários, pessoas que tinham estado sob assistência, e estavam tristemente degradadas. Owen enriqueceu e, comprometido com seu projeto, lhe ocorreu um dia que se fossem pagos melhores salários talvez a produção crescesse, já que o mercado estava criado. Isso foi perspicaz e verdadeiro. Mas depois Owen foi inspirado por ambições humanitárias, tentando fazer o bem a todo mundo. Reuniu vários humanitários em uma colônia experimental; eles estavam tão preocupados em fazer o bem aos outros, que ninguém trabalhava nunca. A colônia se dissolveu, cheia de ressentimentos. Owen faliu e morreu vagamente louco. Assim, o importante princípio que vislumbrara teria de esperar um século para ser redescoberto. Sempre encontramos o filantropo, o político e o cafetão aliados, pois têm as mesmas motivações e buscam os mesmos fins – existir para os outros, por meio dos outros e pelos outros. As boas pessoas não podem ser desculpadas por apoiá-los. Também não podemos acreditar que as pessoas boas sejam totalmente ignorantes em relação ao que realmente acontece. Porém, quando essas pessoas realmente sabem, como certamente sabem, que três milhões de pessoas (pelo menos estimadamente) morreram de fome em um ano pelos métodos que aprovam, por que ainda se associam com assassinos e apóiam suas medidas? Porque lhes foi dito que a morte de três milhões pode vir a beneficiar um número maior de pessoas. O argumento se aplica igualmente bem ao canibalismo. Reproduzido de The God of the Machine (1943) Tradução por Magno Karl.

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