quinta-feira, 13 de julho de 2017

POR QUE O OCIDENTE ESTÁ CADA VEZ MENOS RELIGIOSO?


Para a escritora norte-americana Mary Eberstadt, a causa da secularização no Ocidente tem nome e sobrenome. Chama-se decadência familiar.

A escritora Mary Eberstadt é conhecida nos Estados Unidos por suas análises conservadoras sobre a sociedade, a cultura e a filosofia norte-americanas. Em 2013, ela lançou o livro How the West Really Lost God ("Como o Ocidente realmente perdeu Deus", infelizmente sem tradução para o português). Para a autora, se a destruição da família é geralmente considerada um efeito da perda de identidade religiosa, o contrário também é verdadeiro. A teoria de Eberstadt vê a decadência familiar como causa da secularização que o Ocidente vem experimentando nas últimas décadas.

Eis a íntegra de uma entrevista que ela concedeu a Gerald J. Russello, editor do site The University Bookman, sob o título Family and Faith: A Two-Way Street ("Família e fé: uma via de mão dupla"):

Obrigado por se juntar a nós. Conte-nos sobre a tese do seu novo livro.

How the West Really Lost God começa com uma revisão dos argumentos convencionais para a secularização do Ocidente e observa que esses argumentos não explicam adequadamente o declínio do Cristianismo em certas partes do mundo ocidental. Se isso estiver correto — se, com todo o respeito aos novos ateístas e outros pensadores seculares, o progresso material, a educação e o racionalismo não causaram por si só o secularismo—, então, o que aconteceu?

Meu livro argumenta que, no grande quebra-cabeça do processo de secularização, tem faltado uma peça chave: a família, e os modos como as mudanças na família ocidental, por sua vez, afetaram o Cristianismo ocidental. Por razões que são apresentadas em vários capítulos, eu acredito que essas duas instituições são melhor entendidas como uma dupla hélice — que uma é tão forte quanto a outra em um dado momento da história, e que uma depende da outra para se reproduzir.

Esse é um novo modo de entender o que anda acontecendo, uma firme ruptura com o scriptsecular pós-iluminista sobre o que Nietzsche e outros chamaram de "a morte de Deus". Sob a influência desse script, muitas pessoas parecem ter decidido que o declínio da religião é simplesmente inevitável. Mas não é isso o que mostram os registros.

O seu livro ajuda a analisar os vários efeitos que a modernidade teve em diferentes partes do mundo. Você nota que a modernidade e a perda da necessidade da religião nem sempre andam juntas. Na sua visão, então, o que causou a secularização da Europa?

A Europa ocidental é mais secular que os Estados Unidos, e a Escandinávia, por sua vez, é o território mais secular de todos. Consideremos, então, a Escandinávia como uma placa de Petri para a teoria do livro. Qual região iniciou a família ocidental sem casamento e o seu aliado mais próximo, o Estado social (cujo papel indiscutível na secularização é também parte dessa cultura)? A Escandinávia. Qual é indiscutivelmente o lugar mais atomizado no mundo ocidental hoje, a medir pelo, vamos dizer, número de pessoas que sequer vive dentro de uma família? Novamente, a Escandinávia. Hoje, quase metade das casas suecas é composta de uma só pessoa, por exemplo.

Eu acredito que essas mudanças não estão acontecendo de modo aleatório. A Escandinávia é um exemplo excelente para provar a tese do meu livro: o declínio religioso e o declínio familiar — medido por índices como fertilidade, casamento, divórcio e coabitação — andam lado a lado. Eles estão relacionados de modo causal.

Você fala do "Fator Família" e do "efeito que a participação na família per se parece ter na fé e na prática religiosas". Você pode explicar essa relação?

A sociologia convencionalmente supõe que o declínio religioso leva a um declínio na família — que as pessoas primeiro perdem o seu Cristianismo, e então mudam os seus hábitos de formação familiar. Acredito que esse é um entendimento muito estreito, e que a relação causal entre as duas instituições é muito mais dinâmica.

Por exemplo, nós sabemos que, se as pessoas são casadas, elas tendem muito mais a ir à igreja. Também sabemos que, se são casadas e têm filhos, elas tendem mais ainda a fazê-lo. Até agora, sociólogos observando essa conexão assumiram o fato de ir à igreja como algo que as pessoas casadas simplesmente "fazem". Eles não se perguntaram se a realidade de casar e ter uma família pode constituir uma força causal em si mesma — inclinando algumas pessoas a uma religiosidade maior.

O que o quadro geral mostra, eu acho, é que existe alguma coisa relativa à vida familiar — na verdade, mais de uma coisa — que leva as pessoas à igreja em primeiro lugar: coisas como o desejo de situar os próprios filhos em uma comunidade moral, ou o fato de que o nascimento é visto por muitas pessoas como um evento cósmico e sagrado, ou o fato de que o Cristianismo ratifica como nenhum outro credo secular o tipo de sacrifício envolvido na vida familiar, bem como outros fatores que eu abordo no livro. Novamente, família e fé parecem operar em uma via conceitual de mão dupla, e não em uma de direção única.

Quais dados você encontrou relacionando o declínio da família com crises econômicas ou sociológicas?

Há inúmeros dados para conectar o fortalecimento da família a benefícios econômicos — e também, por outro lado, para conectar declínio familiar a crise econômica.

No momento, toda uma biblioteca poderia ser construída para abrigar a ciência social sobre o rompimento da família incluindo, por exemplo, o fato de que lares destruídos aumentam a probabilidade estatística de que crianças tenham problemas educacionais, comportamentais e outros que possam impedir o seu sucesso na vida; ou outras verdades inconvenientes, as quais, apesar disso, estão empírica e firmemente estabelecidas. O último grande cientista social James Q. Wilson brincava que existem tantos dados atestando os benefícios da família que até alguns sociólogos estão começando a acreditar nela.

No livro, eu também tento olhar para tipos de efeitos colaterais menos comuns, mas igualmente fáceis de perceber — especialmente aqueles que ajudam o declínio familiar a impulsionar o declínio religioso.

Mas as estruturas da família não são meramente arbitrárias? Por que uma família "natural" é importante?

Ao falar de família "natural", eu me refiro simplesmente à configuração de família que outros modelos podem até imitar, mas não poderão jamais replicar, ou seja, o modelo fundamental baseado nos irredutíveis laços biológicos de mãe, pai, filhos etc. O Cristianismo tem dependido historicamente dessa forma de família, que é a que aparece nos bancos das igrejas cristãs tradicionais.

O destino da família natural é também importante para o destino do Cristianismo de outra forma: porque a história cristã em si mesma está repleta de personagens, metáforas e significado familiares. No fim das contas, trata-se de uma religião que começa com o nascimento de uma criança, que tem uma Sagrada Família, que entende o próprio conceito de Deus como o de um Pai amoroso e benevolente.

O que acontece, então, se vivemos em um mundo — como nós do Ocidente vivemos — em que mais pessoas experimentam cada vez menos essas mesmas coisas? O ponto é que a desintegração da família introduz uma nova complexidade na transmissão de certas características da mensagem cristã. Como você explica Deus Pai a alguém que cresceu sem uma figura masculina e paterna dentro de casa? Ou como falar o que há de tão sagrado sobre um bebê a pessoas que — em um tempo de taxas decrescentes de natalidade e outras mudanças familiares — talvez nunca tenham ou cuidem de uma criança?

Esses problemas não são insuperáveis. Todavia, são problemas que não existiam antes. Novamente, mudança familiar e mudança religiosa andam lado a lado.

Por que deveríamos nos preocupar com o declínio da fé cristã no Ocidente?

É um ponto de vista do livro o de que todos têm uma posição sobre esse assunto. Crentes ou seculares, todo mundo tem um palpite a dar sobre o papel do Cristianismo no espaço público moderno.

Há um capítulo inteiro dedicado aos dados que demonstram apenas essa proposição. É difícil condensar isso em uma frase sem parecer reducionista, mas, para se ter uma ideia, pessoas religiosas são, de maneira geral, mais felizes, mais saudáveis e significativamente mais caridosas com o seu tempo e o seu dinheiro do que pessoas seculares. É claro que todos podemos pensar em exceções, mas essas generalizações são corroboradas por ciência social absolutamente isenta.

Esse é um exemplo de como, no seu melhor, aqueles que creem "dão um retorno" para o resto da sociedade. Há outros exemplo ainda. O Cristianismo tradicional tenta encorajar famílias fortes, por exemplo, e à medida em que isso funciona, essa prioridade institucional também é de evidente benefício social. É possível argumentar que o grande e crescente Estado social não existiria sem a fratura do lar ocidental, porque muito do que o Estado faz é servir de substituto para o pai ou provedor do lar — fazer os tipos de coisas que costumavam ser feitas por famílias autossuficientes.

Na sua análise, que efeito tiveram os novos imigrantes islâmicos na Europa?

O livro limita a sua análise ao Cristianismo, o que já é mais do que o suficiente para um volume. Por isso, pode ser que a tese do livro se aplique a outras confissões que não a cristã.

Ao longo de todo o globo, por exemplo, alta fertilidade é associada com alta religiosidade. Quanto mais religiosas são as pessoas, mais elas tendem a ter filhos, e pessoas profundamente religiosas tendem ainda mais a ter famílias numerosas que outras pessoas. É a dupla hélice novamente em ação, e os muçulmanos da Europa exemplificam isso também.

De qualquer modo, é claro que o que torna a confusão das mesquitas na Europa tão óbvia é o silêncio de muitas igrejas, porque elas estão vazias.

Você acha que algo pode ser feito para revigorar alguma das duas hélices que você descreve — a fé e a família?

Sempre há algo a ser feito. Parte da resposta se encontra nas bases. Se as pessoas entenderem que "a importância da família para a fé" não é apenas retórica, mas, ao contrário, se trata de uma conexão orgânica profunda à qual é preciso prestar atenção, a revigoração acontecerá em cada igreja e congregação por vez.

Ter uma família é um trabalho pesado em qualquer tempo ou época, de modo que quem se preocupa com a família enquanto instituição deve pensar em todas as coisas que facilitam a vida das pessoas — coisas pequenas, mas significativas. As igrejas naturalmente fazem algumas dessas coisas, mas, sem dúvida, elas poderiam fazê-las melhor e com mais vigor. É tentador ter o Estado social tomando as rédeas do que instituições menores, como igrejas, poderiam estar fazendo melhor e com mais sensibilidade e eficiência. Todavia, é preciso resistir a essa tentação se as igrejas quiserem construir comunidades mais vibrantes. O que elas precisam é competir com o Estado oferecendo serviços melhores à comunidade.

Além das bases, a maior questão no horizonte deve ser o que vai acontecer ao moderno Estado social que ao mesmo tempo contribuiu para o declínio da família e emergiu como um substituto custoso para a família. Será o Estado babá, tal como o conhecemos — tomando conta de seus cidadãos do berço ao túmulo —, sustentável? Tendências demográficas e econômicas, especialmente em partes da Europa ocidental, sugerem que a resposta a longo prazo talvez seja negativa. E se fosse para o atual Estado social imperar ou mesmo implodir, é difícil ver como qualquer instituição a não ser a família poderia emergir no vácuo resultante.

No livro, eu ofereço dois capítulos — um para o caso do otimismo e outro para o do pessimismo —, a fim de que os leitores possam decidir por si próprios. De qualquer modo, o renascimento de ambas as instituições já aconteceu antes na história, como o livro frequentemente menciona. Não é difícil imaginar essa mesma renascença acontecendo de novo.
Por: Padre Paulo Ricardo  Do site: https://padrepauloricardo.org/blog

Fonte: The University Bookman | Tradução: Equipe CNP

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

AS GARRAS DA ESFINGE

René Guénon e a islamização do Ocidente


I

As transformações históricas e espirituais profundas que vão determinar o futuro da humanidade estão tão distantes da nossa mídia, da nossa vida universitária e, de modo geral, de todos os debates públicos neste país, que com certeza aquilo que vou dizer neste artigo parecerá estratosférico e alheio à realidade imediata. 

O doente incurável que geme de dor num leito de hospital dificilmente se interessará, nessa hora, pelas controvérsias médicas, bioquímicas e farmacológicas que se desenrolam em países longínquos e em idiomas que ele desconhece, mas das quais poderá vir, um dia, a cura da sua doença. O que mais de perto diz respeito ao seu destino lhe parece distante, abstrato e alheio à sua dor. 

Os que se interessam pelo futuro do Brasil deveriam prestar atenção ao que vou lhes dizer aqui, mas será muito difícil fazê-los ver que que uma coisa tem algo a ver com a outra.

Vou começar analisando a resenha que um autor desconhecido neste país faz do livro de outro autor igualmente ignorado por aqui.

O livro é False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism, and the Quest for a One-World Religion, de Lee Penn (Sophia Perennis, 2005), que já recomendei muitas vezes mas poucos leram, por ser um calhamaço de documentos longos e chatíssimos. O resenhista é Charles Upton, autor de The System of the Antichrist (id., 2001), que foi menos lido ainda, já que o recomendei com menos ênfase e constância. A resenha foi publicada num livro mais recente de Upton, Findings: In Metaphysic, Path, and Lore, A Response to the Traditionalist/Perennialist School (id., 2010) e reproduzida na revista eletrônica da editora, http://www.sophiaperennis.com/discussion-forums/sophia-perennis-book-reviews/false-dawn-the-united-religions-initiative-globalism-and-the-quest-for-a-one-world-religion/.

O livro de Lee Penn descreve e documenta com abundância de fontes primárias a formação e desenvolvimento de uma religião biônica mundial, com todas as características de uma paródia satânica, sob os auspícios da ONU, do governo americano, de praticamente toda a grande mídia ocidental e de um punhado de megafortunas. Iniciado em 1995 por William Swing, bispo da Igreja Episcopal, com o nome de United Religions Initiative (URI, v. http://www.uri.org), embora extra-oficialmente existisse desde muito antes (remontando ao Lucis Trust fundado em 1922 por Alice Bailey), o empreendimento, sustentado por recursos financeiros incalculavelmente vastos e apoiado por todo um cast de estrelas do show business e da política, conquistou até o apoio informal do Papa Francisco (v. http://remnantnewspaper.com/web/index.php/articles/item/511-pope-francis-and-the-united-religions-initiative). 

Com o lindo objetivo de criar “um mundo de paz, sustentado por comunidades engajadas e interconectadas, comprometidas com o respeito à diversidade, com a resolução não-violenta dos conflitos e com a justiça social, política, econômica e ambiental”, o movimento reúne, em festivas celebrações ditas “ecumênicas”, católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, budistas, xintoístas, animistas, espíritas, teosofistas, ba’hais, sikhs, adeptos da New Age, da Wicca, do satanismo, do Reverendo Moon, dos Hare Krishna e de qualquer culto indígena ou ufológico que se apresente, dando a tudo um sentido de fraternidade universal que dissolve entre sorrisos de condescendência mútua as mais óbvias e insuperáveis incompatibilidades entre essas diversas crenças. 

Todas as religiões e pseudo-religiões somadas, fundidas e mutuamente neutralizadas reduzem-se assim a um instrumento auxiliar do projeto globalista voltado à criação de um Governo Mundial.

Grosso modo, a ideologia que gruda uns nos outros esses elementos heterogêneos e inconciliáveis é o universalismo low brow da “Nova Era”, que, copiando mal e mal a linguagem da tradição hindu, proclama serem todas as religiões nada mais que aspectos locais e acidentais assumidos por uma Revelação Primordial única, donde se conclui que, por este ou aquele caminho, todo mundo chegará mais dia, menos dia, aos mais altos estágios da realização espiritual humana ou mesmo sobre-humana. 

Essa ideologia teve precursores no século XIX, como Allan Kardec, Helena Petrovna Blavatski, a célebre teosofista e – literalmente – batedora de carteiras, Jules Doinel, fundador da Igreja Gnóstica francesa (1890), Gerard Encausse, mais conhecido como “Papus”, Jean Bricaud e, de modo geral, todos os componentes do movimento que viria a se chamar “ocultista”. 

Esse “universalismo”, que no início do século XX soava apenas como uma fantasia exótica, acabou por penetrar tão fundo no senso comum das multidões que hoje a equivalência de todas as religiões em dignidade e valor é um dogma subscrito por toda a grande mídia mundial, pelos parlamentos, pelas legislações da quase totalidade dos países e pela maioria das próprias autoridades religiosas.

Longe de ser um fenômeno espontâneo, essa radical transformação das crenças coletivas reflete o trabalho incessante dos onipresentes agentes da URI, a cuja interferência nenhuma organização socialmente relevante está imune.

Não é necessário, portanto, enfatizar a importância desse projeto dentro dos planos globalistas, nem, é claro, é possível negar o valor do trabalho de Lee Penn ao reunir e ordenar documentação mais que suficiente para provar a unidade de inspiração e de estratégia por trás de fenômenos que ao observador leigo podem parecer dispersos e inconexos.

O resenhista, Charles Upton, enaltece os méritos do livro e acrescenta-lhe um esclarecimento que, diz ele, já havia transmitido pessoalmente ao autor, com total concordância deste.

O esclarecimento é este: Não se deve confundir o “universalismo” paródico da Nova Era e da URI com o universalismo high brow da escola dita “tradicionalista” ou “perenialista” inspirada em René Guénon, Frithjof Schuon, Ananda K. Coomaraswamy e seus continuadores.

É verdade. São muito diferentes. Com muita antecedência, o fundador da escola, René Guénon, já havia submetido a devastadoras análises críticas toda a ideologia “ocultista” que décadas mais tarde viria a constituir a base doutrinal – se cabe o termo -- da “Nova Era” e da URI. 

Membro e até bispo da Igreja Gnóstica na juventude, Guénon logo saiu atirando e não fez prisioneiros. Nem um pouco mais intactos ficaram o espiritismo de Allan Kardec, a teosofia de Madame Blavatski e mil e um outros movimentos nos quais Guénon via a encarnação mesma daquilo que ele chamava “pseudo-iniciação” e “contra-iniciação” – a primeira constituindo a imitação simiesca da espiritualidade, a segunda a sua inversão satânica. 

Na verdade o contraste entre o universalismo da URI e o da corrente guénoniana-schuoniana vai muito além da mera diferença entre low brow e high brow, embora essa diferença seja patente aos olhos de quem os compare. 

De um lado vemos um pastiche de sincretismos inconseqüentes reforçados por alguma retórica humanitária sentimentalóide ou futurista (ora “progressista”, ora “conservadora”, para agradar a todos) e adornado no máximo, aqui e ali, pela adesão superficial de algum escritor da moda, como Aldous Huxley e Allan Watts. 

Do outro lado, construções intelectuais sofisticadas, uma compreensão profunda e organizada dos símbolos religiosos e esotéricos de todas as tradições, um domínio cabal das fontes reveladas e uma técnica comparatista que se aproxima, em precisão, quase que de uma ciência exata. Por acréscimo, algumas das análises mais consistentes da crise civilizacional do Ocidente nas suas várias expressões: cultural, social, artística etc.

A diferença salta aos olhos de qualquer leitor culto. Em contraste com a mixórdia sincretística da “Nova Era”, temos aqui um universalismo no sentido forte da palavra, uma visão abrangente e ordenadora que não somente apreende com extrema agudeza os pontos comuns entre as várias cosmovisões espirituais, mas dá a razão e fundamento da sua diversidade, de modo que a essa articulação do uno e do múltiplo se subordina, na verdade, toda a história universal das idéias e das crenças, das teorias e práticas, numa palavra: tudo o que o ser humano fez e pensou na sua caminhada sobre a Terra. Não há praticamente nada, nenhum fenômeno, nenhum pensamento, nenhum acontecimento fausto ou infausto, que de algum modo não encontre alguma explicação “perenalista” eficiente e persuasiva, quando não irrefutavelmente certa. 

Do ponto de vista do buscador comum que, proveniente dos meios revolucionários, modernistas e ateísticos, é alertado para a importância dos temas “espirituais” e, após uma ilusão temporária com a “Nova Era”, se desilude com a sua superficialidade e sai em busca de alimento mais nutritivo, a passagem ao tradicionalismo de Guénon e Schuon é um upgrade intelectual formidável, um impacto desaculturante, quase uma transfiguração interior que repentinamente o isolará do ambiente mental em torno, marcado a um tempo pelo descrédito das religiões e pela vulgaridade sem fim do ocultismo onipresente, e o deixará sozinho, face a face com a sua consciência. Cumpre-se assim, na escala individual, a célebre profecia emitida por um biógrafo anônimo de René Guénon logo após a morte do mestre:

“Chegará o momento em que cada um, sozinho, privado de todo contato material que possa ajudá-lo em sua resistência interior, terá de encontrar em si mesmo, e só nele mesmo, o meio de aderir firmemente, pelo centro de sua existência, ao Senhor de toda Verdade.”1

Raros, raríssimos são os que chegam a esse ponto – a maioria vai tombando pelo caminho --, mas, para aquele que chega, é difícil resistir, então, ao impulso de fazer contato pessoal com os círculos guénonianos e schuonianos, em busca de alívio, apoio e orientação. É por esse processo de seleção espontânea que se forma a “elite intelectual” que, como veremos adiante, Guénon tinha em vista no livro Oriente e Ocidente, de 1924.

Pois é evidente que, entre as várias cosmovisões em luta, a mais abrangente, que absorve e explica todas as outras, está no topo. É o cume da consciência de uma época, o nec plus ultra da inteligência e do inteligível.

O que confere ainda mais autoridade ao ensinamento perenialista é a afirmação reiterada de seus expositores, de que ele não é invenção sua, mas o mero traslado, em linguagem teórica atual, de revelações imemoriais que remontam a uma Fonte originária única, a Tradição Primordial. Afirmação idêntica, na superfície, à dos próceres da “Nova Era”, mas agora fundamentada numa superabundância de provas documentais, de argumentos racionais, de toda uma ciência organizada do simbolismo universal e do comparatismo, da qual nascem tours de force intelectualmente deslumbrantes como os Symboles de la Science Sacrée do próprio René Guénon2 e A Treasury of Traditional Wisdom, de Whitall N. Perry,3 um dos mais próximos colaboradores de F. Schuon nos EUA, monumental coletânea de textos sacros organizados de modo a ilustrar, acima de qualquer dúvida razoável, a convergência essencial das doutrinas e símbolos das grandes tradições religiosas e espirituais, a Unidade Transcendente das Religiões como a denominava Schuon no título de um livro que ninguém menos que T. S. Eliot considerou o maior feito de todos os tempos no campo da religião comparada.

Toda semelhança com o “universalismo” da URI é enganosa. 

Em primeiro lugar, todos os perenialistas, sem exceção, insistem que as doutrinas, símbolos e ritos das várias tradições em particular, malgrado apontem sempre para uma Realidade suprema que é a mesma em todos os casos, têm uma integridade própria, não podem ser objeto de fusão, mescla ou sincretismo. Ou seja: não podem sofrer o tipo de operação unificante que, precisamente, caracteriza a “Nova Era”. 

Em segundo lugar, nem tudo o que se apresente com o nome de religião, espiritualidade, esoterismo ou coisa parecida pode entrar nessa síntese. Bem ao contrário, é comum a todos os perenialistas a distinção precisa, rigorosa e até intolerante entre Tradição, Pseudo-Tradição e Antitradição. Boa parte do material compactado na “Nova Era” entra nestas duas últimas categorias e, longe de integrar a unidade da fonte primordial, representa a paródia ou negação de tudo o que vem dela. 

Em terceiro e mais importante lugar, a unidade transcendente das religiões é mesmo transcendente, não imanente. As religiões aí estão unificadas apenas pelo topo, pelo cume e núcleo vivo das suas concepções doutrinais, e não pela variedade irredutível das suas liturgias, dos seus códigos morais e das suas diferentes “vias” de realização espiritual. E onde, precisamente, está esse núcleo e topo? Está nas suas respectivas concepções metafísicas, que de fato são convergentes, como a simples coletânea organizada por Whitall Perry basta para demonstrá-lo acima de toda possibilidade de controvérsia. Nesse sentido, as religiões e tradições espirituais podem ser vistas, sem distorção, como adaptações de uma mesma Verdade Primordial às condições histórico-culturais, lingüísticas e psicológicas dos vários tempos, lugares e civilizações. Os vários exoterismos refletiriam, nas suas diferenças, a unidade de um mesmo esoterismo primordial. Os homens que chegaram a apreender claramente a unidade desse esoterismo superaram, intelectivamente, a diferença entre as religiões, mas, como não são feitos de puro intelecto e têm ainda uma existência histórico-temporal de pessoas de carne e osso, continuam subordinados cada um à sua respectiva tradição religiosa, sem poder fundi-la ou misturá-la com qualquer outra. O exemplo clássico é o grande mestre sufi Mohieddin Ibn’ Arabi. Afirmando explicitamente que seu coração podia assumir todas as formas – a do brâhmana hindu, a do rabino cabalista, a do monge cristão ou qualquer outra --, ele continuava, na sua vida de indivíduo real e concreto, inteiramente fiel à mais estrita ortodoxia islâmica. 

Mas é aí que começam os problemas.

II

Desde logo, essa concepção exige, ao lado da diferenciação “horizontal” entre as várias tradições no tempo e no espaço, uma distinção “vertical”, ou hierárquica, entre as partes “inferiores” e “superiores” de cada uma. As “inferiores”, ou exotéricas, são historicamente condicionadas e por elas as tradições de afastam umas das outras até o ponto da hostilidade mútua e da total incompatibilidade. As partes “superiores”, esotéricas, refletem a eternidade imutável da Verdade, onde todas as tradições convergem e se encontram. 

Há, em suma, uma religião popular, feita de ritos e normas de conduta, igual para todos os membros da comunidade, e uma religião de elite, apenas para as pessoas “qualificadas”, que por trás dos símbolos e das leis podem apreender o “sentido” último da revelação. Pela prática dos ritos de agregação que os integram na tradição religiosa e pela obediência as normas, os homens do povo obtêm a “salvação” post mortem das suas almas. Por meio de ritos de iniciação, os membros da elite obtêm já em vida, e muito acima da mera “salvação”, a realização espiritual que os arrebata do simples “estado individual” de existência para transfigurá-los na própria Realidade Última, ou Deus. 

É bom não falar muito dessas coisas perante o público em geral, que pode escandalizar-se ante a decifração de um mistério que deve permanecer opaco para a sua própria proteção espiritual. É bem conhecida a história do sufi Mansur Al-Hallaj (858-922), que após ter chegado à última “realização espiritual”, saiu gritando “Ana al-Haqq!” (“Eu sou a Verdade”) e foi decapitado pelas autoridades exotéricas. Al-Haqq não quer dizer somente “a verdade” no sentido genérico e abstrato. É um dos noventa e nove “Nomes de Deus” impressos no Corão, de modo que a declaração de Al-Hallaj equivalia literalmente a “Eu sou Deus”. Do ponto de vista da ortodoxia esotérica, isso resultava em negar o princípio corânico da unicidade de Deus, constituindo um crime que devia ser castigado com a morte. Mais tarde os juristas islâmicos admitiram que afirmações proferidas por sufis em estado de “arrebatamento místico” escapavam à alçada da justiça comum e deviam ser aceitas como mistérios indecifráveis.

No sentido explícito, legal e oficial, a distinção entre exoterismo e esoterismo só existe numa única tradição: o Islam. Corresponde à distição entre shari’ah e tariqat. De um lado, a lei religiosa obrigatória para todos; de outro, a “via” espiritual, de livre escolha, só para as pessoas interessadas e dotadas. A aplicação dessa distinção a todas as outras tradições é meramente sugestiva ou analógica – uma figura de linguagem e não um conceito descritivo apropriado. Com isso o edifício inteiro do “perenialismo” começa a balançar um pouco. 

Existem, por exemplo, exoterismo e esoterismo na tradição hindu, justamente aquela de cujo vocabulário René Guénon se serve mais freqüentemente, por julgar que o hinduismo alcançou clareza máxima na exposição da doutrina metafísica? Evidentemente não. A distinção de castas é algo de completamente diverso. Primeiro, porque o ingresso na casta superior não é de livre escolha: o sujeito nasce shudra, vaishia, kshatyia ou brâhmana e assim permanece para sempre. Segundo, porque acidentalmente membros das castas inferiores podem alcançar os mais altos níveis de realização espiritual sem mudar de casta. Terceiro, porque os ritos da casta superior, ou brâhmana, nada têm de secreto ou discreto: qualquer zé-mané pode conhecê-los, só não tem a autorização de praticá-los.

Existe um “esoterismo cristão”? A coisa, aí, complica-se formidavelmente. Existiram e existem, aqui e ali, organizações esotéricas que se professavam cristãs e que, por meio de ritos especiais, diferentes dos sacramentos da Igreja, transmitem iniciações. A Companheiragem, os Fedeli d’Amore, a Maçonaria e a Ordem Templária são exemplos. Mais modernamente, inúmeros ocultistas, como Madame Blavatski, Rudolf Steiner e Georges Ivanovich Gurdjieff apresentaram seus ensinamentos como modalidades de esoterismo cristão. 

Mas restam alguns fatos que bastam para dar por terra com essas pretensões.

Desde logo, não há traços de nenhuma organização esotérica cristã nos primeiros dez séculos da Igreja. Em segundo lugar, o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou taxativamente: “Nada ensinei em segredo.” Mesmo Suas parábolas, cujo sentido não era imediatamente evidente a todos, eram ditas em público, não a um círculo reservado. Como é possível então que o núcleo do ensinamento do Salvador fosse conservado em segredo durante dez – ou vinte -- séculos? 

Em contraste, no Islam a diferença de exoterismo e esoterismo aparece nitidamente desde o primeiro momento. Ao ver um grupo de companheiros do Profeta praticando certos ritos estranhos, diferentes das cinco preces diárias, os fiéis foram perguntar a ele de que se tratava. Ele explicou que eram devoções voluntárias, meritórias mas não obrigatórias. Esse foi o primeiro sinal da existência do tasawwuf ou “sufismo”, o esoterismo islâmico.4 

Em terceiro lugar, e mais decisivo: os sacramentos da Igreja não são meros “ritos de agregação”. São iniciáticos de pleno direito. Não dão acesso somente à comunidade de fiéis – ou à sua “egrégora” ou consciência coletiva --, mas, Deo juvante, ao conhecimento mais íntimo da Realidade Suprema a que um ser humano pode aspirar. “Não sou mais eu que existo”, diz o Apóstolo, “é Cristo que existe em mim”. 

João Paulo II, no seu Catecismo, declara explicitamente que os sacramentos são os passos “da iniciação cristã”, e não é concebível que, num texto tão formalmente doutrinário, usasse o termo como mera figura de linguagem.

O Pe. Juan González Arintero, em dois livros memoráveis que provavelmente constituem o cume da literatura mística no século XX, demonstra com abundância de argumentos e exemplos que a via dos sacramentos foi aberta justamente para dar a todos, sem exceção, o acesso aos mais altos patamares da realização espiritual.5 A distinção de exotéricos e esotéricos só serve aí como metáfora para designar o diferente aproveitamento espiritual obtido por este ou aquele indivíduo conforme suas aptidões, seu empenho e os movimentos da Graça divina.

Todos os cristãos que receberam os sacramentos são, portanto, iniciados, no sentido estrito que o perenialismo dá a essa palavra. A diferença entre os vários resultados espirituais obtidos pode ser explicada por um conceito desenvolvido pelo próprio René Guénon, o de iniciação virtual. Nem todos os ritos de iniciação produzem imediatamente os resultados espirituais que lhes correspondem. Esses efeitos podem permanecer retidos por muito tempo até que algum fator externo – ou a evolução do próprio recipiente -- os convoque à plena manifestação.

Para complicar um pouco mais as coisas, o próprio F. Schuon reconheceu que os sacramentos cristãos tinham alcance iniciático. Para vocês avaliarem o quanto essa questão é espinhosa para a escola perenialista, basta lembrar que, publicada a opinião de Schuon a respeito, Guénon reagiu com indignação e fúria, chegando a romper relações com o seu discípulo e continuador.6 

Guénon continuou teimando que os sacramentos cristãos eram apenas ritos de agregação e que autênticas iniciações só existiram em determinadas organizações secretas ou discretas, como a Companheiragem ou a Maçonaria. Para sustentar essa tese, inventou uma das hipóteses históricas mais artificiosas que alguém já viu: o cristianismo teria surgido inicialmente como um esoterismo, mas, em vista da decadência geral da religião greco-romana, teria sido forçado ex post facto a popularizar-se, acabando por reduzir-se a um exoterismo. Não há absolutamente nenhum sinal de que isso jamais tenha acontecido. Bem ao contrário, Jesus falou abertamente às multidões desde o início da sua pregação, e os sacramentos não sofreram nenhuma mudança substancial de forma ou conteúdo ao longo dos tempos. Quaisquer que possam ter sido os seus erros em outros domínios, nesse ponto Schuon estava com a razão. 

É também só como figura de linguagem que a distinção de exoterismo e esoterismo – ou de ritos de agregação e de iniciação – pode se aplicar ao judaísmo, já que os cultores de mistérios cabalísticos ali não são outros senão os próprios sacerdotes do culto oficial.

Tão inapropriada é a aplicação dessa dupla de conceitos ao território extra-islâmico, que membros da própria escola perenianista acabaram tendo de reconhecer a existência de iniciações “exo-esotéricas” e até “exotéricas” ao lado das propriamente “esotéricas”,7 o que já basta para mostrar que esses conceitos servem para pouca coisa. 

A falta de argumentos razoáveis e a reação desproporcional de Guénon ante o que poderia ter se limitado a uma discussão entre amigos sugerem que nesse episódio ele podia estar escondendo alguma coisa. Não podendo falar claro, apelou a uma hipótese absurda e tentou reduzir o interlocutor ao silêncio mediante uma exibição de autoridade, que Schuon educadamente rejeitou.

Qual a razão pela qual Guénon teria escolhido enquadrar à força todas as tradições numa dupla de conceitos que não se aplicava apropriadamente a nenhuma delas exceto o islamismo em particular? Por que esse homem, tão criterioso em tudo o mais, se permitiu tamanha arbitrariedade, colocando-se assim numa posição vulnerável que se viu posta em risco tão logo Schuon levantou a questão das iniciações sacramentais? Quase com certeza teve, para fazê-lo, motivos que, ao menos naquele momento, não podiam ser discutidos abertamente.

Mas antes mesmo de esclarecer esse ponto é preciso levantar uma outra questão.

III

Que as tradições materialmente diferentes convergem na direção de um mesmo conjunto de princípios metafísicos é algo que não se pode mais colocar seriamente em dúvida. A tese da Unidade Transcendente das Religiões é vitoriosa sob todos os aspectos. 

Só há um detalhe: Que é propriamente uma metafísica? Não uso o termo como denominação de uma disciplina acadêmica mas no sentido muito especial e preciso que tem nas obras de Guénon e Schuon. Que é uma metafísica? É a estrutura da realidade universal, que desce desde o Primeiro Princípio infinito e eterno até os seus inumeráveis reflexos no mundo manifestado, através de uma série de níveis ou planos de existência. 

O fato de que ela seja essencialmente a mesma em todas as tradições indica que existe uma percepção normal da estrutura básica da realidade, comum a todos os homens de qualquer época ou cultura.

Essa percepção exige uma consciência clara ou ao menos um pressentimento da escalaridade do real, isto é, das distinções entre diferentes planos ou níveis de realidade, desde os objetos sensíveis da percepção imediata até a Realidade última, o Princípio absoluto, eterno, imutável e infinito, passando por uma série de graus intermediários: histórico, terrestre, cósmico, angélico etc. 

A perfeita submissão da subjetividade humana a essa estrutura está subentendida em todas as tradições como uma conditio sine qua non da vida religiosa e, mais ainda, da realização espiritual. Sua negação, mutilação ou alteração é a raiz de todos os erros e desvarios da humanidade.

É por isso que F. Schuon propõe uma distinção entre heresia essencial e heresia acidental. A palavra “heresia” vem de uma raiz grega que tem as acepções de “escolher” e “decidir”. Um heresiarca é alguém que, por vontade própria, escolhe da verdade total as partes que lhe interessam e ignora as demais. 

Heresia acidental, segundo Schuon, é a negação, mutilação ou alteração dos cânones de uma tradição em particular, como por exemplo o monofisismo na Cristandade (a teoria de que Jesus tinha só a natureza divina, não a humana) ou o associacionismo no Islam (associar Deus a outros seres). 

Heresia essencial é a negação, mutilação ou alteração da própria estrutura da realidade – um erro, portanto, que seria condenado não apenas por esta ou aquela tradição em particular, mas por todas elas. O materialismo ou o relativismo, por exemplo. 

Tudo isso está muito bem, mas há um problema lógico. Se a metafísica é comum a todas as tradições, como pode ser o topo e a suprema perfeição de cada uma delas? Por definição, a perfeição de uma espécie não pode estar no seu gênero: tem de estar na sua diferença específica. A perfeição do leão e da pulga não pode residir no simples fato de que ambos são animais. 

É admissível que, na escalada iniciática do indivíduo, a chegada à Realidade Suprema, que o eleva acima do seu estado individual e o absorve no próprio Ser da divindade, é a culminação dos seus esforços. Ela corresponderia também, segundo o perenialismo, ao momento em que as diferenças entre as tradições espirituais são definitivamente transcendidas, sem deixar de continuar valendo para a existência empírica do iniciado no plano terrestre. É Mohieddin Ibn ‘Arabi sendo cristão, zoroastriano ou judeu “por dentro” sem deixar de ser ortodoxamente muçulmano “por fora”. 

Mas, por isso mesmo, a metafísica só pode ser a culminação das tradições enquanto tais se aceitarmos uma indistinção entre a ordem do Ser e a ordem do conhecer, que, segundo ensinava Aristóteles, são inversas. O topo da escalada iniciática não pode ser, ao mesmo tempo, a culminação das religiões porque, sendo comum a todas elas, é apenas o gênero a que pertencem e não a suprema perfeição específica de cada uma. 

Mais razoável seria supor que a Tradição primordial é a base comum não só a todas as tradições espirituais, mas a todas as culturas e, no fim das contas, ao núcleo de inteligência sã presente em todos os seres humanos. Partindo dessa base, ou origem, as várias tradições se desenvolvem em direções diferentes, cada uma buscando refletir mais perfeitamente o Princípio absoluto e dar aos homens os meios de retornar a Ele. Nesse sentido, a culminação de cada tradição não é o Princípio em si, mas o sucesso que obtém na operação de retorno. E não há por que supor que, das várias espécies, todas expressem igualmente bem a perfeição do gênero: as pulgas e os leões são igualmente animais, mas nem por isso a pulga expressa a perfeição da animalidade tão bem quanto o leão, para nada dizer do ser humano.

Schuon afirma que a pretensão de cada religião de ser “melhor” que as outras só se justifica pelo fato de que todas elas são “legítimas”, isto é, refletem a seu modo a Tradição Primordial, mas que vistas na escala da eternidade e do absoluto, essa pretensão se revela ilusória.8 No entanto, se a perfeição de uma espécie não pode residir apenas no seu gênero, e sim na sua diferença específica, não há nenhum motivo para dar por provado que todas as espécies representem por igual a perfeição do gênero. Todas as religiões remetem a uma Tradição Primordial, OK, mas todas a representam igualmente bem? A pergunta é inteiramente legítima, e em parte alguma a escola perenialista lhe ofereceu – ou tentou oferecer -- uma resposta aceitável. Na verdade, nem colocou a pergunta. Será que até nessas altas esferas encontraremos o fenômeno da “proibição de perguntar”, que Eric Voegelin discerniu nas ideologias de massa? 

IV

“A geração da Escola Tradicionalista reunida em torno de Frithjof Schuon – escreve Charles Upton – apresentou e revelou as religiões em suas essências celestiais, sub specie æternitatis.”9 

Se as essências celestiais das religiões são substancialmente a mesma, a diferença entre elas é puramente terrestre e contingente, as formas particulares de cada uma nada tendo de sagrado em si mesmas sem a seiva que recebem da Tradição Primordial: só esta, a Religio Perennis,10 é verdadeira em sentido estrito. As demais são símbolos ou aparências imperfeitas de que ela se reveste na suas várias encarnações terrestres.

Mas – prossegue o mesmo Upton – “essas revelações são consideradas ramos da Tradição Primordial, mas esta Tradição não é presentemente vigente enquanto sistema religioso; não é uma religião que possa ser praticada. Os únicos caminhos espirituais viáveis existem sob a forma – ou dentro – das presentes revelações viventes: Hinduísmo, Zoroastrismo, Budismo, Judaísmo, Cristianismo e Islam.”11 

Mas esses caminhos levam somente à “salvação” numa vida post mortem. Para subir um pouco mais alto já na vida presente é preciso, sem abandoná-los, filiar-se a uma organização esotérica e praticar, além dos ritos e mandamentos da religião popular, alguns ritos e mandamentos especiais, de caráter iniciático. 

Dito de outro modo, a religião popular é um atestado de qualificação exigido do postulante na entrada do caminho iniciático. Para o muçulmano, isso não é um grande problema. Embora tenham uma existência à parte, as tariqas (turuq, em árabe) são em geral reconhecidas como legítimas pela religião oficial, de modo que o fiel interessado pode transitar livremente entre os dois tipos de práticas. 

Para o hindu, também não é problema: ainda que inexistindo propriamente um esoterismo hindu, o hinduísmo aceita e absorve todas as práticas de outras religiões, de modo que – descontados os conflitos políticos entre hinduístas e muçulmanos – nada impede que um hindu se filie a uma tariqa, à Maçonaria, a uma Tríade chinesa ou a qualquer outra organização esotérica sem mudar de estatuto na sua sociedade de origem. 

No caso de um católico, porém, a coisa se complica. Segundo Guénon, todas as organizações iniciáticas cristãs foram desaparecendo depois da Idade Média, deixando os pobres fiéis limitados a um exoterismo espiritualmente capenga. Sobraram só uns resíduos de organizações extintas e... a Maçonaria. 

Acontece que uma sentença do Papa Clemente XII, em 1738, condenou à excomunhão automática todo fiel católico que se filiasse à Maçonaria (ou a qualquer outra sociedade secreta). A decisão foi reforçada pelo Papa Leão X em 1890 e formalizada pelo Código de Direito Canônico de 1917. O novo Código do Papa João Paulo II, em 1983, falava somente em “sociedades secretas”, sem mencionar nominalmente a Maçonaria, o que por breves instantes deu a impressão de que a excomunhão fora suspensa, até que a Congregação para a Doutrina da Fé, em novembro daquele mesmo ano, esclareceu que não era nada disso, que a proibição de ingressar na Maçonaria continuava em vigor.

Isto é, o fiel católico que lesse René Guénon e acreditasse nele, vendo na perda da dimensão iniciática a raiz de todos os males do mundo moderno, era espremido contra a parede pela opção entre desistir de vez do esoterismo, contentando-se com o exoterismo cada vez mais reduzido a um moralismo exterior, e aceitando portanto ser cúmplice da degradação espiritual moderna, ou então buscar uma iniciação maçônica e ser excomungado, isto é, perder a filiação exotérica que, segundo o mesmo Guénon, era a conditio sine qua non do ingresso no esoterismo.

O conflito não era somente de ordem legal. Embora tivesse origem remota em organizações esotéricas professadamente cristãs, a Maçonaria tinha se tornado, em várias partes do mundo, uma força ostensivamente e violentamente anticatólica, incentivando perseguições e matanças de católicos, principalmente na França (durante a Revolução e depois de novo no princípio do século XX),12 no México (onde isso provocou a guerra dos Cristeros) e na Espanha, onde, com a mal disfarçada conivência do governo republicano maçônico, padres e fiéis foram mortos a granel e muitas igrejas destruídas antes mesmo da eclosão da Guerra Civil. 

Quer dizer: o católico que se filiasse à Maçonaria não apenas incorria em excomunhão automática, mas se tornava um traidor de seus correligionários assassinados.

Guénonianos católicos como Jean Tourniac fizeram o diabo para provar que as doutrinas maçônicas eram compatíveis com o catolicismo, mas, é claro, isso ficou na teoria.13 Conversações entre líderes católicos e maçons em busca de um acordo não deram em nada. A excomunhão continuava em vigor, e o risco moral continuava altíssimo.

A partir dos anos 60, quando esses problemas começaram a tornar-se objeto de discussão mais aberta nos círculos de interessados em tradicionalismo, o grupo perenialista começou a sugerir ao católico encurralado as seguintes soluções possíveis:

1. Largue tudo e converta-se ao Islam.

2. Busque abrigo na Igreja Ortodoxa Russa, onde ainda há um resíduo de esoterismo e cujos sacramentos, no fim das contas, são aceitos como válidos pela Igreja Católica.

3. Filie-se à tariqa multiconfessional de F. Schuon, onde você poderá praticar ritos iniciáticos islâmicos sem conversão formal e mantendo-se a uma prudente distância dos muçulmanos exotéricos. 

A primeira opção era com certeza a mais traumática. Afinal, o próprio Schuon tinha escrito que “mudar de religião não é como mudar de país: é como mudar de planeta”.14 

A segunda era mais confortável, mas esbarrava num obstáculo que jamais vi algum autor perenialista sequer mencionar: a Igreja Ortodoxa Russa estava infestada de agentes da KGB, sendo quase impossível ao recém-chegado orientar-se naquela selva selvaggia de conspirações e fingimentos. Não por coincidência, a KGB estava, naquele mesmo momento, organizando e treinando organizações terroristas islâmicas para a guerra contra o Ocidente cristão.15 

Sobrava a terceira, a mais fácil e natural. A tariqa de Schuon estava, de fato, repleta de membros de origem católica – a começar pelo próprio Schuon e por alguns de seus colaboradores mais próximos, como Martin Lings, Titus Burckhardt e Rama P. Coomaraswamy, dos quais os dois primeiros converteram-se ao Islam, o terceiro continuou católico ao menos em público, sem deixar de prestar ao sheikh o voto regulamentar de obediência total exigido nas tariqas.16

Nas almas daqueles que permaneciam católicos – ex professo ou de coração apenas --, realizava-se assim, em escala microscópica, o plano que, desde 1924, René Guénon traçara para o Ocidente inteiro.

V

Após descrever com as cores sombrias de um genuíno Apocalipse a degradação espiritual da civilização no Ocidente, atribuindo-a à perda das “verdadeira metafísica” e das ligações entre a Igreja Católica e a Tradição Primordial (ligações que só poderiam ter sido mantidas por intermédio das organizações iniciáticas),17 René Guénon prevê três desenvolvimentos possíveis do estado de coisas no Ocidente:18

1. A queda definitiva na barbárie.

2. A restauração da tradição católica, sob a orientação discreta de mestres espirituais islâmicos.

3. A islamização total, seja por meio da infiltração e da propaganda, seja por meio da ocupação militar.

Essas três opções reduziam-se, no fundo, a duas: ou o mergulho na barbárie ou a sujeição ao Islam, seja discreta, seja ostensiva.

A eclosão da II Guerra Mundial pareceu mostrar que o Ocidente preferira a primeira opção, sendo um detalhe irônico o fato de que importantes autoridades religiosas islâmicas deram apoio total ao Führer, especialmente na questão do extermínio dos judeus.19 Coincidência macabra ou profecia auto-realizável? Não sei. 

Após a Guerra, a colaboração íntima entre governos islâmicos e regimes comunistas no esforço anti-Ocidental conjunto veio a se tornar tão notória que nem é preciso insistir nesse ponto. Não deixa de ser oportuno lembrar que hoje em dia a esquerda mundial empenhada em corromper o Ocidente “até fazê-lo feder”, como preconizava André Breton, é a mesma que apóia ostensivamente a ocupação muçulmana do Ocidente pela imigração em massa, bem como boicota por todos os meios qualquer esforço sério de combate ao terrorismo islâmico, de modo que há entre os dois blocos como que um acordo leninista de “fomentar a corrupção e denunciá-la”. Novamente cabe a mesma pergunta do parágrafo anterior, com a mesma resposta.

Para o aspirante de origem católica, tudo o que a tariqa oferecia era a escolha entre tornar-se muçulmano ou ser católico sob orientação muçulmana. A mesma escolha que Guénon oferecia a todo o mundo Ocidental.

Creio que com isso fica mais clara a intenção de Guénon ao espremer todas as religiões, especialmente a cristã, no molde forçado de um conceito descritivo islâmico, a distinção exoterismo-esoterismo. De fato, como dominar toda uma civilização sem enquadrá-la primeiro no sistema de coordenadas intelectuais da civilização dominadora, onde ela deixará de ser uma totalidade autônoma para se tornar parte de um mapa abrangente? Também é óbvio que não bastava fazer isso em teoria: era preciso conquistar para essa nova visão das coisas os elementos mais valiosos, mais ativos intelectualmente, da elite da civilização-alvo. Só quando esta começasse a se compreender a si mesma nos termos do dominador, em vez dos seus próprios, ela estaria madura para aceitar, sem maiores reações, uma operação mais vasta de ocupação cultural. Tanto mais que a redução do cristianismo ao binômio exoterismo-esoterismo, acompanhada do diagnóstico sombrio da perda da dimensão esotérica, culminava inexoravelmente na conclusão de que a “restauração da cristandade”, das suas conexões com a Tradição Primordial e portanto das dimensões mais altas da sua espiritualidade, só poderia realizar-se sob a direção de um “esoterismo vivente”, isto é, do sufismo. Para usar os termos do próprio Guénon, era preciso submeter o Ocidente à “autoridade espiritual” do Islam antes de submetê-lo ao seu “poder temporal”. 

A teoria de Schuon, segundo a qual os sacramentos cristãos conservavam o seu poder iniciático, parecia atenuar um pouco a força do argumento islamizante, mas na verdade não o fazia de maneira alguma. Sem a devida instrução espiritual, que só um “esoterismo vivente” poderia lhe oferecer, o portador de uma “iniciação virtual” permanecia inconsciente de tê-la recebido e não apenas ficava paralisado no meio da escalada iniciática, mas se arriscava, com isso, a sofrer toda sorte de distúrbios espirituais e psíquicos. Só a espiritualidade sufi – encarnada, neste caso, na pessoa de F. Schuon – poderia salvar os católicos de si mesmos.

A islamização do Ocidente – discreta ou ostensiva, pacífica ou violenta – é o objetivo central e, na verdade, único, de toda a obra de René Guénon. Ela inteira converge para essa meta, não como uma mera conclusão lógica, mas como uma espécie de única saída à qual o leitor – e, idealmente, o Ocidente inteiro -- vai sendo levado, entre os muros de uma construção labiríntica, por um senso de fatalidade inexorável. Excluído esse objetivo, ela não passaria de um conjunto de especulações teóricas sem finalidade, um edifício de belas possibilidades espirituais irrealizáveis, coisa que ele sempre negou que ela pudesse ser.

Se fosse preciso uma confissão explícita para confirmá-lo, bastaria lembrar que, justamente no momento em que F. Schuon voltava da Argélia com o título de sheikh, alardeando sua intenção de “islamizar a Europa” (sic), Guénon declarava que a fundação da tariqa de Schuon em Lausanne, Suíça, era o primeiro e único fruto produzido pelo seu esforço de décadas. 

VI

O que pode tornar esse objetivo nebuloso ou até invisível aos olhos do público são dois fatores:

Primeiro: Guénon afirma reiteradamente seu total desprezo por qualquer atividade, corrente ou ideologia política, assegurando que seus interesses nada têm a ver com a luta pelo poder e se voltam exclusivamente à esfera do espiritual e do eterno. Isso parece colocá-lo, aos olhos de muitos, incomparavelmente acima da atual disputa entre os países islâmicos e o Ocidente.

Esse modo de ver não é propriamente falso, é apenas vazio. É óbvio que Guénon não está disputando poder político. Está disputando algo que está infinitamente acima disso e do qual, segundo ele mesmo explica, o poder político não é senão um reflexo secundário, quase desprezível: está disputando autoridade espiritual. Está disputando-a com a Igreja Católica, colocando-se muito acima dela e pretendendo orientá-la desde as alturas sublimes da espiritualidade sufi (não necessariamente em pessoa, é claro). 

Ele é muito explícito quanto a esse ponto. A Igreja Católica, em algum ponto da sua história, diz ele, perdeu contato com a Tradição Primordial e já não tem sequer uma compreensão das “partes superiores” da metafísica: detém-se na pura ontologia, ou teoria do Ser, sem penetrar nos mistérios supremos do Não-Ser (Schuon prefere dizer “Supra-Ser”). 

Já me expliquei em outras ocasiões quanto ao que me parece ser a absurdidade intrínseca da doutrina do Não-Ser, e não vou voltar a esse assunto aqui. O que interessa no momento é salientar que, segundo Guénon, o catolicismo, a partir dessa mutilação inicial, veio decaindo acentuadamente até reduzir-se a uma mera devoção sentimental para as massas. 

Como só quem pode reerguê-la desse abismo é quem ainda possua a conexão originária com a Tradição Primordial, é evidente que a salvação da Igreja e, através dela, de todo o Ocidente, só pode vir de fora. De onde, precisamente?

Do budismo não pode ser, já que Guénon nem mesmo o considera uma tradição inteiramente válida.

Do hinduísmo também não, porque não pode ser praticado fora da Índia nem por quem não seja de nacionalidade indiana. Tudo o que o hinduísmo pode fornecer é uma compreensão mais aprofundada da doutrina metafísica – e de fato Guénon recorre abundantemente aos textos hindus para isso --, mas a mera compreensão teórica, sendo indispensável, nem de longe pode fornecer por si mesma a autêntica “realização metafísica”. 

Do judaísmo, menos ainda, pois seria inconcebível que a Igreja, tendo nascido dele, voltasse ao ventre materno sem anular-se ipso facto e cessar de existir.

Da Maçonaria? Impossível, não só por causa das incompatibilidades acima apontadas e jamais superadas, mas porque, segundo Guénon, as iniciações maçônicas são apenas de “Pequenos Mistérios”, segredos do cosmos e da sociedade que nem de longe tocam as alturas da suprema realização metafísica, os “Grandes Mistérios”.

De obstáculo em obstáculo – não é preciso examinar todas as alternativas --, a conclusão inexorável é que o labirinto de impossibilidades só tem uma saída: o catolicismo só pode ser devolvido à sua integridade originária se consentir em submeter-se ao guiamento de mestres islâmicos. Ou isso, ou a ocupação do Ocidente pelos muçulmanos. Tertium non datur.

Que, en passant, Guénon e seus continuadores tenham feito várias contribuições valiosas até mesmo à compreensão do catolicismo pelos próprios intelectuais católicos, especialmente no que concerne ao simbolismo e à arte sacra, é coisa que ninguém em seu juízo perfeito poderia negar.20 

Mas, também aí, nada a estranhar. Que autoridade poderia um mestre sufi pretender exercer sobre os católicos se, pelo menos em alguns pontos seletos, não provasse compreender a sua religião melhor do que eles mesmos?21 

Os artigos “católicos” de Guénon publicados na revista Regnabit entre 1925 e 1927 não provam, nem mesmo sugerem, que ele tivesse aceitado a independência e muito menos a superioridade do catolicismo em relação ao Islam. Prova apenas que, nesse período, ele ainda acreditava na possibilidade de dirigir o curso das coisas na Igreja Católica por meio da persuasão gentil e da infiltração.22 Sua partida para o Egito, em 1930, com a firme decisão de não mais voltar e de só se comunicar com o seu público daí por diante por meio da revista Études Traditionelles, assinala o momento em ele perde essa esperança e, integrando-se cada vez mais nos meios esotéricos egípcios (até mesmo casando-se com a filha do prestigioso sheikh Elish El-Kebir), passa a bola de volta às autoridades islâmicas que de longe haviam orientado suas ações no quadro europeu. Como as coisas evoluíram desde esse ponto até a adoção da política de terrorismo e “ocupação pela imigração” (coisa que, é claro, jamais aconteceria sem o beneplácito das autoridades espirituais islâmicas), é uma história que ignoramos e que só poderá ser contada, talvez, daqui a várias décadas. O que é absolutamente certo é que Guénon, desde o início da sua atividade pública, declarou não falar em seu nome próprio mas seguir estritamente as orientação de “representantes qualificados das tradições orientais”, entre os quais, sabe-se hoje, principalmente o próprio sheikh El-Kebir. É uma bobagem descomunal dizer que Guénon “se converteu ao Islam” em 1930. Ele já era membro regular de uma tariqa pelo menos desde os vinte e um anos, o que basta para mostrar que foi longamente preparado para a missão dificílima que iria desempenhar. 

VII

O segundo fator que dificulta a percepção da identidade de Guénon como agente islâmico é o próprio impacto da obra dele sobre os seus discípulos. Qualificada como “o mais deslumbrante milagre intelectual da nossa época”,23 essa obra lança tantas luzes imprevistas sobre o fenômeno religioso e sobre a decadência espiritual do Ocidente, e é tão grande o seu contraste com todo o pensamento moderno ateu ou cristão, que se torna quase irresistível a tentação de encará-la realmente como um milagre, uma intervenção divina no curso da História. Seyyed Hossein Nasr, em Knowledge and the Sacred,24 não hesita em apresentar toda a história intelectual do Ocidente como se fosse uma longa, tateante e semicega preparação para o advento das luzes guénonianas. Vista desse modo, a obra de Guénon parece uma mensagem supra-histórica vinda da aurora dos tempos, da própria Tradição Primordial e não de um sheikh egípcio contemporâneo. 

O desejo de apagar suas raízes contemporâneas e pairar acima das contingências históricas é manifesto em vários trechos dessa obra, e reforçado ainda por várias expressões de desprezo à “mera” perspectiva histórica, segundo Guénon um ilusório véu de aparências passageiras encobrindo a realidade das coisas eternas. Ele chega a criticar o apego da mentalidade ocidental aos “fatos” como se fosse um vício de pensamento.

Jean Robin, caracteristicamente, proclama o guenonismo uma intervenção providencial e “a última chance do Ocidente”.25 É um direito inalienável do discípulo entusiasta celebrar a obra do mestre com os qualificativos mais enfáticos. Mas um qualificativo nada significa quando separado da substância que ele qualifica. Uma coisa é falar, genericamente, de “última chance do Ocidente” – e todos bem sabemos que o Ocidente precisa de uma. Mas outra coisa completamente diversa é esclarecer que não se trata de uma chance qualquer, de uma abstrata e genérica “restauração da espiritualidade” e sim de uma salvação pela islamização. Jean Robin simplesmente omite esse ponto. 

Também é muito justo privilegiar o eterno e imutável acima do temporal e transitório. Mas qualquer fiel católico habituado ao sacramento da confissão entende que o salto para o eterno, sem passar pela consciência dos detalhes factuais da vida terrestre, tão freqüentemente humilhantes e deprimentes, não é espiritualidade, é angelismo. O apóstolo que afirma “Já não sou eu quem vivo, é Cristo que vive em mim” é o mesmo que confessa trazer “um espinho na carne” até o fim dos seus dias. 

O desejo de voar para o mundo dos arquétipos eternos saltando por cima da realidade histórica concreta não aparece somente nos perfis hagiográficos da “missão de René Guénon”, mas em pelo menos três livros de importantes autores perenialistas sobre o Islam. 

Ideals and Realities of Islam, de Seyyed Hossein Nasr,26 Comprendre l’Islam, de Frithjof Schuon,27 e Moorish Culture in Spain, de Titus Burckhardt,28 mal escondem sua estratégia retórica de mostrar a vida muçulmana só pelos arquétipos eternos que simboliza, contrastando-os, explícita ou implicitamente, com as misérias factuais brutas do Ocidente materialista. A coisa chega mesmo a ser um pouco ingênua. Até uma criança percebe que não é justo comparar as virtudes de um com os defeitos do outro, em vez de virtudes com virtudes e defeitos com defeitos.

Tudo isso torna difícil, tanto ao leitor recém-chegado quanto às vezes aos próprios porta-vozes do perenialismo, admitir o óbvio: a obra de René Guénon pode ter todo o caráter providencial e salvador que se deseje, com a condição de que se admita claramente o óbvio: que, no fim das contas, ela jamais ofereceu outra via de salvação para o Ocidente exceto a islamização. 

Também é certo que qualquer cristão inteligente, católico ou não, pode tirar proveito dos ensinamentos de René Guénon sem aderir ao projeto guénoniano, mas como recusar adesão sem saber ou querer saber que o projeto existe? Todo idiota útil é idiota e útil na medida mesma em que nega a existência daquele que o utiliza. 

Muitos cristãos, católicos ou não, sentiram-se tão indignados ante os ensinamentos de René Guénon que fizeram várias tentativas de refutá-lo e até de achincalhá-lo. Essas tentativas só provaram a superioridade intelectual do adversário e caíram no ridículo ou no esquecimento. 

Sob esse aspecto, os discípulos de Guénon não estavam totalmente errados ao considerá-lo insuperável (a “bússola infalível”, dizia Michel Valsân). Mas Guénon não precisa ser combatido nem vencido. Ao adotar o pseudônimo de “Esfinge” nos seus primeiros escritos, ele sabia que aqueles que não decifrassem a sua mensagem seriam engolidos e reduzidos à obediência. Aqueles que esperneiam entre gritos de revolta não deixam se prestar-lhe obediência, a contragosto ou mesmo inconscientemente.29 Uma vez decifrada, porém, a Esfinge não tem remédio senão soltar gentilmente a presa, que sairá das suas garras não somente livre, mas fortalecida. 

Por: Olavo de Carvalho Verbum, Ano I, Números 1 e 2, Julho-Outubro de 2016 Petersburg, VA, 2 de julho de 2016

Do site: http://www.seminariodefilosofia.org/forum/15



terça-feira, 12 de julho de 2016

A GENTE NÃO FAZ AMIGOS, RECONHECE

Facebook informa: Carlos Alberto lhe enviou uma solicitação de amizade.


Querido Carlos:

Agradeço sua solicitação, mas infelizmente não posso aceitá-lo agora, de imediato, em minha lista de amigos. A amizade, assim como a confiança, não chega através de um mero pedido. Envolve um elenco de condições que não cabem na formalidade de um protocolo. Não são qualidades, ações ou comportamentos adequados ou rigidos que vão determinar o vínculo da amizade.

São os sentimentos que brotam em conjunto, sem preocupações acerca de como ou porque iniciaram ou quanto tempo vão durar. Atingida esta cumplicidade inexplicável, surge um princípio de verdade e a amizade torna-se vitalícia. 

Meus amigos só deixarão o posto quando morrerem, e torço para que este dia nunca chegue. Até mesmo quando não estiverem mais nesta vida terrena, a amizade continuará nos unindo.

Procuro fazer com meus amigos o que faço com bons livros. Guardo-os com todo o cuidado e carinho onde os possa encontrar. Sei que quando precisar, estarão ali, a meu lado. Incondicionalmente. A recíproca também é verdadeira, não os abandonarei, tampouco os deletarei, por menor que seja o tempo que a mim dediquem. Como podes ver, é uma lista sagrada e seleta. 

Quando lançaram o facebook, achei interessante acumular o maior número possivel de amizades virtuais. Pensava utilizar essa midia social como ferramenta para divulgar meu trabalho. Aceitava todas as solicitações e pedia para ser incluido em várias listas. A experiência não me agradou. Logo atingi a cifra de quase mil "amigos desconhecidos". Inventei este apelido afetuoso para designar pessoas ou entidades com as quais nunca troquei duas palavras mas que anualmente enviam mensagens automáticas de “Parabéns” ou “Felicidades” na data do aniversário e curtem toda e qualquer postagem.

Já que estamos em processo de inicio de amizade, vou aproveitar e fazer uma confidência: não curto mais este tipo de relação e pretendo realizar uma depuração nestas aproximações ilusórias e cortesias mecânicas. Aristóteles, filósofo grego, já dizia: "quem tem muitos amigos, não tem nenhum". Portanto, não acho justo incluí-lo numa lista tão distante e despretensiosa.

Mas posso te fazer uma boa proposta. Que tal te colocar na minha lista de conhecidos? Todas minhas amizades começaram assim: nos cruzamos por acaso, fomos estreitando os laços, e, quando nos demos conta, já éramos amigos. Não sei quem disse a frase, mas gosto dela: “a gente não faz amigos, reconhece-os”.

Por favor, não me interprete mal pensando que sou esnobe, arrogante ou pernóstico. Estou apenas valorizando uma verdadeira amizade e dando-lhe a devida importância no contexto desta tendência atual de encontros e desencontros cada vez mais virtuais.

Numa época em que as pessoas se aproximam para assaltar, reclamar, pedir, bisbilhotar a vida alheia, ou, no sentido inverso, não chegar perto de ninguém, isolando-se em seus próprios mundos, um pedido sincero de amizade precisa ser celebrado e levado muito a sério. Ser honrado com o título de amigo é uma conquista inestimável e digna de poucos.

Voltando a pergunta inicial: quero ser seu amigo? Claro que sim. Tomara que sim. Vamos nos esforçar para que sim. O resto deixamos por conta da vida, do tempo, da sorte. 

Muito, mas muito agradecido mesmo pela proposta, fiquei envaidecido com a distinção da escolha. Forte abraço.
Por: Ildo Meyer Do site: http://www.ildomeyer.com.br/


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

AUTOGENIA - RESUMO III

Este texto é a continuação do resumo anterior, onde foram apresentados de maneira resumida e objetiva os conceitos de Autogenia e os modos de identificação via linguagem e vizinhança. Neste resumo veremos a identificação de patamar via mecanicidade, a resolução do caso do profissional que se casou e se tornou pai e também que nem toda questão existencial é necessariamente autogênica.

Apenas para lembrar, seguindo o mesmo exemplo do resumo II, nosso guia como é o caso de uma pessoa que ao longo de sua vida teve como direcionamento existencial a Busca (Tópico 11). Apenas como ilustração este tópico é o determinante para ele, fazendo com que até mesmo o casamento tenha sido uma maneira de ascender profissionalmente. No entanto, após um ano de casado nasceu o primeiro filho e junto com ele veio a proposta de promoção e mudança de cidade. Até o momento, apenas o tópico determinante (Busca) dava as ordens, mas com o nascimento do filho, a Interseção de EPs (Tópico 28) se mostra importante a ponto de confrontar sua Busca. Fica então evidente o choque entre os tópicos 11 e 28. No resumo anterior vimos como a pessoa se orientará para solucionar a questão de acordo com o patamar autogênico que vive. Neste resumo mostraremos como se dá o desenvolvimento de acordo com o patamar por mecanicidade.

03 - Identificação de patamar via mecanicidade

A identificação do patamar autogênico por mecanicidade é bastante simples, basta perceber a maneira como a pessoa conduz sua problemática na direção do Desfecho. Há na estrutura de pensamento tópicos específicos que são pela constituição mecânicos, um dos quais a Razão (Tópico 10). Sendo um tanto simplista pode-se dizer que uma pessoa será tanto mais mecânica quanto mais racional for na resolução do problema em questão. Outro tópico que indica mecanicidade no desenrolar das situações é Comportamento & Função (Tópico 13). Assim como no caso da razão para comportamento e função também, quanto mais baseada neste tópico a solução for, mas mecânica será. Existem ainda outros tópicos com relativa mecanicidade, mas estes dois já servem como exemplo.
No entanto é possível que uma pessoa não seja mecânica como tópico especificamente, mas como estrutura. Algumas estruturas, quando você observa uma parte dela, parece pouco mecânica, parece intuitiva, mas isso é apenas ilusão, ao olhar a estrutura como um todo a mecanicidade fica evidente. Pela palavra intuitiva é possível perceber que falo em sites e aplicativos, algumas estruturas são assim. Intuitivas nas partes, mas mecânicas no todo. É justamente por isso que dizer que uma estrutura é mecânica somente pelo uso da razão é bobagem, pois a razão é um dos indicadores da estrutura e não a estrutura como um todo.

Um parágrafo contradiz o outro? Não. A condução da solução de acordo com princípios racionais ou de comportamento e função não deixou de ser mecânica. O que muda do primeiro para o segundo parágrafo é a consideração da estrutura como um todo, se a solução vier de tópicos específicos pode dizer de sua mecanicidade pela base de onde ela vem. Agora, se a solução vier da estrutura, se os dados que encaminham a solução vierem do todo que é a Estrutura de Pensamento, é necessário considerar a mecanicidade da estrutura. Como o que nos interessa é a consideração a partir da Estrutura e não dos Tópicos, a mecanicidade depende exclusivamente da Estrutura.

Uma pessoa mais mecânica, ou seja, abaixo dos patamares de nossa época, setembro de 2015, na condução de uma solução, pensará em todos os passos necessários e o quanto de esforço é necessário para que tudo aconteça. Pensa no quanto de desgaste, na força, nos perigos, na logística, nos possíveis problemas que pode ter para que tudo dê certo. Em boa parte dos casos o cenário mostra que a força necessária para fazer tudo o que precisa ser feito torna o que tem que ser feito pouco interessante. Eu já ouvi em alguns casos: “Aí o molho sai mais caro que a carne”. É uma frase interessante, que mostra que tudo o que precisa ser feito torna o prato principal desinteressante. Geralmente são expressões que mostram falta de entendimento dos motivos de acontecer justamente naquele momento, pensando até ser azar. No caso de nosso exemplo, o profissional agora pai, a partir da proposta começará a arquitetar as possíveis soluções que tem e o que precisa ser feito para que cada uma delas dê certo. Ele pensa em como será se mudar com o filho para outra cidade e o que pode fazer para não afastar o filho dos avós. Pensa no custo que terá para manter isso, mas ao mesmo tempo que o custo vale a pena pela criança. Ele construirá esquemas resolutivos diversos contendo os prós e contra da proposta até chegar a uma conclusão. No entanto, os esquemas que elaborará serão de tal forma complexos e difíceis que se mostrarão demasiados pesados pelo retorno que darão. Por mais que pense em todos os meios para solucionar seu dilema, tem ainda a ideia consigo de que é conspiração do destino para que não consiga o que quer, azar, “coisa feita”.

Uma pessoa de nossa época, setembro de 2015, quando tiver um problema usualmente procurará entender como foi que ele ocorreu e a partir das prerrogativas do próprio problema tentará resolvê-lo. Um bom exemplo é o de pessoas que se atrapalham financeiramente e entendem que revendo seu orçamento, trabalhando mais, gastando menos irão resolver o seu problema, e de fato irão. Outro bom exemplo é do relacionamento que está ruim, cada um vê onde está errando e procura melhorar para que assim o relacionamento como um todo melhore. Pode-se dizer que entender as causas e a lógica do problema dê às pessoas a capacidade de resolvê-los. O nosso quase íntimo pai de família procurará ver como foi que surgiu a situação, verá o que tem que ser feito para resolver o seu problema, procurará na própria situação que vive a solução para ela. Pode-se dizer que, em nossa época, boa parte da mecanicidade está atrelada ao fato de que este pai buscará em sua situação a solução para ela.

Uma pessoa menos mecânica que os patamares de nossa época, quando tiver um problema, considerará o problema como algo que vai além do que vive no momento que está inserida e a partir de si própria enquanto história de vida. Assim pode ser considerado Gandhi, que ao liderar seu povo contra a Inglaterra fez algo simples, recomendou aos indianos voltarem a ser indianos. Como Jesus Cristo que ao ser perguntado sobre a moeda responde com simplicidade, mesmo a resposta parecendo um tanto mecânica ela não é resolvida a partir do problema, mas vai além dele. O caso de nosso personagem, o profissional que se tornou pai, ao ser menos mecânico ele começa a considerar sua vida como um todo e não apenas o momento que vive. Ao considerar a família, o filho, os avós, sua carreira e colocar a si mesmo enquanto história de vida pode fazer com que outros elementos, que até então estavam de fora, apareçam.

Solução para o caso exemplo

Independente do método utilizado para identificar o patamar autogênico é importante ter em conta se a questão a ser tratada é ou não de cunho autogênico. De acordo com a definição de Nunes; Pedrosa (2000) do Submodo Autogenia é “a organização orientada da EP, feita pelo filósofo clínico, via interseção, para que dê à pessoa um rumo mais recomendável”. Considerando a definição de Nunes; Pedrosa, para que uma questão possa ser considerada autogênica precisa ter como assunto último um trabalho que se dedique à organização ou reorganização da Estrutura de Pensamento da pessoa.

O caso que foi utilizado como exemplo que mostrou o choque entre a Razão (Tópico 10) e Interseção de EPs (Tópico 28) não tem como ser considerado um assunto de cunho autogênico. A questão, do modo como foi estruturada, apresenta um choque pontual entre dois tópicos e num acompanhamento filosófico clínico demandará encaminhamentos pontuais. Alguns, os mais dramáticos, perguntarão: “Mas isso não pode gerar um questão autogênica?” A resposta é simples: “Pode”. Mas aí teríamos uma condição diferenciada onde o choque entre dois tópicos produz efeitos capazes de tracionar toda a estrutura, o que é plenamente possível. Lembrando que para isso são necessárias condições ímpares, o que usualmente não acontece.

Como o problema de nosso profissional que se tornou pai não é autogênico, ele deverá ser resolvido no patamar que se encontrar. Se no caso ele se encontrar num patamar mais baixo que o patamar de nossa época, onde há amarrações linguísticas que indicam falta de saída, vizinhanças pesadas que mostram um caminho de difícil solução e mecanicidade que aponta o azar, falta de sorte e que será necessário muito esforço para que dê certo, é possível que ele opte por não aceitar a promoção. Ele pode ter utilizado como Submodo Esquema Resolutivo (Sub. 05) e o fim da equação mostrar que “não vale a pena” ser promovido. Neste caso, a Interseção de EP venceu e a Busca perdeu. É possível que ele veja no filho a frustração profissional, quase como a personificação de busca interrompida.

Num patamar como o de nossos dias, o nosso personagem provavelmente utilizaria também como Submodo o Esquema Resolutivo (Sub. 05), levantaria os prós e contras da proposta e tentaria, ao máximo, compor uma solução que lhe pudesse dar as duas coisas. Ao examinar a situação, perceber a possibilidade dos avós também irem para a cidade onde seria alocado, percebe então que é possível viver sua Busca. Mesmo que as condições sejam complicadas e que exija dele certo esforço para fazer dar certo, arrumar lugar para morar, a logística de levar os avós da criança, a adaptação da mulher e a sua na nova cidade. Neste caso, dos diversos possíveis, a Busca se sobressaiu conseguindo também manter as interseções.

Já num patamar mais elevado o profissional percebe que, no contexto que vive, a promoção que lhe foi dada veio em boa hora, pois ele gosta de dirigir e a cidade que fica a 150 km de distância pode ser um bom passeio diário. Assim, a interseção é mantida e a busca também ganha vazão, a conciliação faz com que Busca e Interseção sejam mantidas tal e qual estavam. Pode ser esquisito, mas o menos mecânico tende a observar de fora da caixa e pode perceber ainda outras formas de encaminhar a situação.

Em cada uma das soluções o resultado final pode ser diferente tanto pelo tópico que é atendido, tanto pelo Submodo que é utilizado para encaminhar a situação. O exemplo é apenas uma ilustração de que um caso não autogênico deve ser resolvido no patamar que está de acordo com os submodos que a historicidade da pessoa sugere.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

AUTOGENIA - RESUMO II

O termo faz alusão ao Tópico 30 da EP como ao submodo 27. Como Estrutura de Pensamento, informa como a pessoa está estruturada, como os tópicos estão inter-relacionados; vê se há choques, se um tópico reforça ou anula outro. Segundo Packter, Autogenia “é o que dará ao clínico, em interseção, a oportunidade de entender o relacionamento funcional do que ocorre à EP da pessoa”. A EP é constituída de dados sensoriais, abstratos, espirituais, etc. Os exames de Autogenia nos mostrarão como isso ocorre. (NUNES; PEDROSA, 2000, p. 19)

Quando o terapeuta preenche todos os tópicos da Estrutura do Pensamento, caso a pessoa tenha, com os dados de sua historicidade chega a hora de ver como se dá a relação entre estes conteúdos e a resultante destas relações. O resultados destas relações é conhecido como Autogenia. A análise autogênica pode mostrar ao filósofo elementos como: tópico determinante ou determinantes, tópicos importantes, tópico fraco ou fracos, choques entre e intra-tópicos, inadequação tópica, etc. O estudo autogênico diz ao filósofo como essa estrutura está enquanto dinâmica interna.

Quando o terapeuta finda a montagem da Estrutura de Pensamento ao analisar a Autogenia da estrutura, percebe que existe um tópico ou alguns tópicos que conseguem direcionar toda a estrutura. Estes tópicos são considerados como tópicos determinantes. Essa consideração não se deve ao fato de que o conteúdo do tópico está mais presente na historicidade ou que a pessoa dá mais evidência. O que diz se um tópico é ou não determinante à estrutura, é sua participação nos direcionamentos existenciais de toda a estrutura. Assim se, por exemplo, o Tópico 11 – Busca, for o tópico determinante é ele provavelmente quem diz para onde toda a estrutura se direcionará. Caso a pessoa tenha como busca construir uma carreira de sucesso, e essa busca for determinante, a pessoa tende a tomar suas decisões, orientar suas escolhas em prol de atender às demandas geradas pelas buscas.

Diferente do tópico determinante, temos os tópicos importantes, são tópicos que tem papel secundário na estrutura enquanto indivíduos, mas quando unidos a outros tópicos podem se tornar determinantes. Assim, se para uma pessoa que tem como busca a carreira profissional e isto lhe é determinante, os tópicos importantes como, por exemplo, Tópico 28 – Interseção de Estruturas de Pensamento, são levados em conta nas decisões a serem tomadas diante da busca. É assim que se constroem alguns choques entre tópicos, se a Busca é determinante, mas vai contra Interseção de EPs que é um tópico importante, pode acontecer que a pessoa não tenha certeza se seguir carreira seria mesmo a melhor decisão.

Para exemplificar, um pai de família que ao longo de sua vida teve a carreira como prioridade, inclusive o casamento colaborou para ascensão na carreira. No entanto, com um ano de casado nasceu o primeiro filho, agora veio a decisão da organização de que ele seria promovido, mas que teria de mudar de cidade. A carreira (tópico Busca) determinante diz que ele deve seguir seu caminho, mas o filho e a boa interseção (Tópico Interseção de EPs) que tem com ele dizem que não será uma boa por conta da proximidade com os avós que o menino tem. É assim que, em muitos casos, o profissional tem um choque interno entre Busca e Interseção de EPs.

O tópico fraco, por sua vez, é o tópico em que fica evidente que a Estrutura de Pensamento passa por dificuldades. Este tópico pode ser comparado aos sintomas de uma doença, a dor ou desconforto que não é a doença em si, mas o veículo pelo qual a doença se manifesta. Mesmo que em alguns casos os sintomas sejam a própria doença. Para exemplificar, voltando ao profissional que se tornou pai e agora passa por um choque entre os tópicos Busca e Interseção de Estrutura de Pensamento, agora o resultado deste choque é ansiedade. Este profissional teve como resultado do choque entre os tópicos uma alteração no Tópico 04 – Emoções. Assim, o tópico emoções é o tópico fraco ou predisponente, ao menos neste caso. Cada estrutura tem um ou mais tópicos onde podem se manifestar como sintomas de dificuldades que a estrutura vive.

Seguindo o estudo da Estrutura de Pensamento o terapeuta identificará o patamar autogênico da pessoa. O patamar autogênico corresponde ao modo como os tópicos se relacionam entre si e o que deles resulta como um todo de acordo com o contexto que este indivíduo está inserido. Enquanto autogenia os Exames das Categorias não tem participação direta, mas servem como parâmetro externo de indicação. Desta forma ao observar como é o mundo que cerca a pessoa de acordo com os elementos categoriais, sejam eles: assunto, circunstância, tempo, lugar e relação, são eles os parâmetros contextualizados de localização. A partir destes contextos, é possível observar que por mais singular que uma pessoa seja, autogenicamente ela pode fazer par com outros seres. Sua singularidade, de acordo com a forma como está estruturada participa de contextos específicos com outros seres que tem estruturas similares. Para exemplificar seguem dois modos básicos de identificação de patamar autogênico.

01 - Identificação de patamar via linguagem

Pessoas em patamares mais baixos demonstram, via linguagem, amarrações que mostram falta de opção diante das circunstâncias que estão. Para estas pessoas o mundo é mau, um lugar ruim, colocam-se diante da realidade como reféns, o que podem fazer é apenas seguir o caminho e rezar para que não aconteça o pior. Seguindo o mesmo exemplo do profissional que se tornou pai e tem uma proposta de mudar-se para o exterior. Se ele estiver em patamares mais baixos ele utilizará expressões como: estou num beco sem saída, não tenho como deixar a empresa na mão, estou entre a cruz e a espada, não vejo luz no fim do túnel, etc..

Pessoas em patamares comuns de nossa época, setembro de 2015, demonstram via linguagem, buscar alternativas às circunstâncias que se encontram. Assim, há o entendimento de que é a pessoa quem tem que fazer a sua parte e buscar alternativas, achar uma saída. O mesmo pai, agora em situação de patamar mais elevado utilizaria expressões como: temos que pesar os pró e contra desta proposta, temos de ver a viabilidade, perder a oportunidade pode ser igual a perder o emprego, tenho que conversar com alguém que entende minha situação, etc..

Pessoas em patamares mais elevados, demonstram linguisticamente despreocupação com os elementos circunstanciais que vivem, entendendo que o próprio movimento dos elementos encaminhará as soluções para o que se apresenta. Este pai, por fim, num patamar ainda mais elevado utilizará expressões como: veio em boa hora, deve ser obra do destino, é a realização de um sonho, sorte, etc..

No entanto, em alguns casos, a pessoa via linguagem demonstra estar em um patamar autogênico, mas está de fato em outro. Um bom exemplo para isto são pessoas que adquirem hábitos linguísticos religiosos e usam termos como: graça, providência divina, bênçãos, etc. Termos como estes denotam elevado estágio autogênico, pois indicam que a pessoa vive de maneira mais leve, toca a sua vida e deixa que as coisas se encaminhem. Mas não é bem assim que se verifica na historicidade como um todo, esta pessoa pode estar abaixo do patamar autogênico dos tempos atuais. O Deus do qual ela fala que vem a graça ou a providência é um Deus malvado, que pune quem erra, que castiga o pecador, um Deus, inclusive, com o qual ela negocia. A forma como a pessoa se relaciona com o objeto da linguagem, ou seja, a maneira como o objeto linguístico é vivido enquanto vizinho mostra que a análise linguística por si só pode ser enganosa.

O contrário também é verdadeiro, algumas pessoas tem uma linguagem que denota um mundo hostil, pesado, difícil, indicando baixos patamares autogênicos. No entanto a forma como elas lidam com as dificuldades que a vida lhes apresenta mostra que seu patamar é mais elevado. É o exemplo de quem fala das amarras da economia, das dificuldades de se livrar da pesada carga tributária brasileira, da educação pública que não tem mais jeito, da religião que virou comercio, não há saída. Esta mesma pessoa no seu dia-a-dia trabalha, paga suas contas, tem um dinheirinho guardado, participa como voluntário na escola. A linguagem denota um patamar e a análise por vizinhança demonstra um patamar diferente.

02 - Identificação via vizinhança

Outra forma de se identificar o patamar autogênico de uma estrutura de pensamento é pelas vizinhanças que ela tem. Um vizinho de uma estrutura é todo e qualquer elemento que esteja ligado à estrutura via intencionalidade. Todo elemento que está próximo da estrutura só estará se houver intencionalidade direcionada a ele. Exemplo, você sai pela sua casa e observa diversas coisas que estão ao seu redor, ao quê você prestou atenção? A todos os elementos que você descrever que percebeu são eles seus vizinhos. Os que antes você não percebeu e agora passa a prestar atenção e passa a perceber, são estes também agora seus vizinhos.

Ao direcionar então a atenção para um sentimento de amor que se tem pela esposa a pessoa torna o sentimento de amor seu vizinho. No entanto, não é assim tão simples, muitos podem alegar que os pensamentos vêm à cabeça sem qualquer controle, que não se pode controlar o pensamento. Isto acontece porque ao longo da vida a pessoa não aprendeu a controlar o pensamento e ele traz a ideia que quer, isto faz com que a pessoa tenha pouco ou nenhum controle sobre os vizinhos que vem do pensamento. Outras pessoas não educaram seus sentidos e tem poucas vivências sensoriais, pessoas assim podem tomar um bom vinho e não sentir o aroma, se quer o sabor. Por isso que para ter algo como vizinho é necessário nossa atenção sobre ele, tudo o que não tiver nossa atenção não será nosso vizinho.

Outro erro que se comete com bastante frequência é não querer um vizinho e, justamente por isso, tornar o elemento vizinho. Isto acontece porque a pessoa quando não quer algo se aproxima tentando afastar. É como alguém que não quer pensar nas palavras duras do pai e tenta esquecer, tentar esquecer destas palavras faz delas vizinhas, pois se dedica a elas como negação. O mesmo pode acontecer com uma pessoa que se quer evitar, querer evitar a pessoa faz com que se pense nela, onde ela poderia estar, o que ela pensa, o que fazer se encontrar a pessoa. Todos os comportamentos são intencionalidade que tornam a pessoa um vizinhos.

Quanto aos vizinhos, outra questão a se considerar é se o vizinho é ou não adequado à pessoa. Somente uma pesquisa bem feita na historicidade da pessoa indica quais são os vizinhos que historicamente fazem bem ou mal à pessoa. Além de serem bons ou maus à estrutura de pensamento, o filósofo fará ainda outras considerações como o efeito que cada vizinho tem, como motivação, retração, expansão, enfim, como cada elemento interfere na estrutura quando se torna vizinho. Algo que pode acontecer, apenas para elencar mais uma das tantas possibilidades, é que alguns elementos, para se tornarem vizinhos, precisam de outros. Pode ser assim considerado quando um homem precisa de um filho para ter como seu vizinho momentos de lazer.

Dos tantos patamares possíveis, considerados a partir dos elementos de nossa época, consideraremos apenas três. Um patamar mais baixo que o de nossa época, o nosso patamar e um patamar superior de acordo com o critério de vizinhança.

Pessoas em patamares mais baixos tem em suas vizinhanças elementos com os quais a relação é pesada, sofrida, difícil. Para estes a relação se dá por propriedade. Há, portanto, uma relação na qual o elemento pertence ao sujeito, como uma bicicleta, um carro, uma casa. O elemento está e vizinho por pertença, como um pai que tem o filho como uma propriedade sua, que deve fazer o que ele entende que seja melhor. Vizinhos assim usualmente tornam a vida muito mecânica, pela necessidade de gestão de todos os vizinhos que estão em relação com a estrutura do sujeito.

Pessoas em patamares comuns de nossa época, setembro de 2015, tem como vizinhos elementos que estão acima e abaixo deste patamar. Desta forma, é possível ter contato com vizinhos muito elevados como anjo, mas também é possível ter contatos com níveis muito mais baixos, a violência. Os vizinhos neste patamar são normalmente tidos como posse, ou seja, como elementos que me dizem respeito pela posição que a pessoa ocupa em relação ao objeto. Assim como o pai que possui o filho e entende que quando ele sai de casa para se casar perde a posse, outorgando à esposa a posse do filho. Diferente da propriedade, a posse você pode ter ou não, já a propriedade é intrínseca ao sujeito. Como a liquidez é uma das propriedades da água, para alguns pais, os filhos são sua propriedade, não podendo ser separados de si.

Pessoas de patamares mais elevados tem como vizinhos elementos com os quais as relações se dão por afinidade. Para estes os objetos sobre os quais direcionam sua intencionalidade são tidos como elementos com os quais fazem par, ou seja, entendem que caracteres afins fazem com que esteja próximos. Seria o caso do pai que está em relação com o filho conversando sobre a escola, sobre os jogos de futebol, que são elementos de afinidade. No entanto, o pai percebe que aos poucos o filho se distancia e conversa mais com seus amigos, com sua namorada e entende que este é o caminho do filho. Percebe que, pela falta de afinidades, aos poucos o filho se afastou e que em certo momento ele pode voltar a se aproximar pelo surgimento de outros elementos que os tornem afins.

Lembro que este escrito é apenas um resumo, pode-se dizer que a estruturação didática de uma série de conteúdos aprendidos ao longo dos anos em aulas e cursos com o professor Lúcio Packter, a quem atribuo a autoria do que acima organizei.
Por: Rosemiro A. Sefstrom Do site: http://rosemirosefstrom.blogspot.com.br/